Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
769/14.5TAFUN.L1-3
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CRIMINAL PESSOAS COLECTIVAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: I–O princípio geral da responsabilidade criminal das pessoas colectivas no âmbito das infracções contra a economia e contra a saúde pública, constante do artigo 3º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, deve ser conciliado com a norma constante do artigo 11º do Código Penal, pelo que a imputação dos factos à pessoa colectiva ocorre quando os crimes forem cometidos a) em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou b) por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem.

II–Ocupa uma posição de liderança para efeito de imputação dos seus actos à pessoa colectiva, além dos representantes e mandatários, quem exercer o controlo da actividade da sociedade, aqui se incluindo as pessoas a quem a administração da pessoa colectiva delega funções de autoridade, conferindo-lhe poderes de domínio sobre a actividade da pessoa colectiva, englobando-se mesmo os trabalhadores ou quem de algum modo represente o ente colectivo e tenha agido no seu interesse e por sua conta.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


1.–Nestes autos de processo comum nº 769/14.5TAFUN e após a realização da audiência de julgamento, o tribunal singular condenou, pelo cometimento em autoria material de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, previsto nos artigos 2.°, 3.°, n.° 1, e n.° 3, 24, n.° 1, alínea c), 81, alíneas a) e e), e 82, n.° 1, alínea b), n.° 2, alínea c), do Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro,  a arguida L. II - DPL, S. A., na pena de noventa dias de multa, à taxa diária de quarenta euros, o arguido J.S.P., na pena de sete meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, a arguida G.F.E., na pena de sete meses de prisão, substituída por duzentos e dez dias de multa, à taxa diária de sete euros, e na pena de setenta dias de multa, à dita taxa diária, e em cúmulo material destas penas na pena única de duzentos e oitenta dias de multa, à taxa diária de sete euros e o arguido C.G.C., na pena de sete meses de prisão, substituída por duzentos e dez dias de multa, à taxa diária de seis euros, e na pena de setenta dias de multa, à dita taxa diária, e em cúmulo material destas penas na pena única de duzentos e oitenta dias de multa, à taxa diária de seis euros.
Os arguidos L. II - DPL, S. A., G.F.E. e J.S.P. interpuseram recurso e da motivação extraiu as seguintes conclusões (transcrição):
1.–Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida em 2 de Setembro e depositada em 5 de Setembro, pela qual os ora Recorrentes foram condenados pela prática, a título de dolo, de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos, previsto e punido nos termos do. 24.°, n.° 1, al. c), do Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro.
2.–A douta sentença proferida incorreu em erro na apreciação da matéria de facto, porquanto dá como provados factos relativamente aos quais foi efectuada prova cabal de se não terem.
3.–O douto Tribunal a quo deu como provado o facto sob n.° 7 e como não provados os factos: 8.°, 9.°, 11 .°a 22.° da Contestação apresentada por L.  II e 9o a 31.° da Contestação apresentada pelos Arguidos G.F.E. e J.S.P.. Salvo o devido respeito por entendimento diverso o douto Tribunal a quo não poderia ter dado como provados e não provados os factos enunciados por ter sido produzida, nos autos e em audiência de julgamento, prova em sentido contrário.
4.–Contrariamente ao afirmado na douta sentença recorrida e no que aos factos provados e não provados supra transcritos importa o depoimento da testemunha JCT a partir do minuto 00:04:40 e até ao minuto 00: 22:00 do seu depoimento.
5.–Importa também ter presente o depoimento da testemunha SF a partir do minuto 00:01:30, bem como o depoimento da testemunha MPC a partir do minuto 00:01:36 , aqui se dando por integralmente reproduzidos os depoimentos supra transcritos para os devidos e legais efeitos.
6.–Os depoimentos supra transcritos determinariam desde logo o afastamento do facto provado sob n.° 7 da acusação, porquanto o depoimento logo do Inspector da IRAE JCT, demonstra que o Recorrente J.S.P. não se encontrava no estabelecimento em apreço, não acompanhou a visita efectuada à loja, sequer foi chamado a tomar nota da ocorrência em representação da empresa.
Inexiste assim, relativamente à Recorrente qualquer sustentação de facto para a condenação pela prática dos factos em apreço.
7.–Mais demonstra ser do conhecimento directo da IRAE, na pessoa dos seus inspectores, que o Recorrente J.S.P. exerce funções de representação da Arguida L. , exercendo fiscalização em todas as lojas da RAM, incluindo na de Porto Santo, que se situa geograficamente numa ilha distinta da Madeira. Por tal facto e conhecimento o Recorrente foi constituído arguido, inexistindo, no entanto, qualquer facto objectivo ou subjectivo praticado pelo Recorrente que determinasse a sua identificação como agente material do ilícito.
8.–Acresce que resulta devidamente demonstrado que as funções exercidas pelo Recorrente  J.S.P. não são ao nível da operação de loja, mas numa hierarquia superior na qual contacta essencialmente com a gerência, não lhe cabendo de facto a verificação de validades em loja. Extraindo-se dos depoimentos transcritos que o Recorrente  J.S.P. não teve conhecimento, senão posterior ao sucedido, da ocorrência do ilícito detectado pela IRAE, não se podendo, consequentemente afirmar, como o faz a douta sentença recorrida que o mesmo se encontrava com capacidade de decisão e que se conformou com o resultado sucedido.
9.–Forçoso será concluir que o Recorrente não teve qualquer intervenção, conhecimento ou sequer consciência do facto que constitui infracção ou seja a existência de produtos fora do prazo de validade, senão posterior, não estando assim presente no momento da prática do ilícito, não só em posição de o praticar enquanto agente material, sequer de o impedir pela total ausência de conhecimento, sequer consciência do mesmo.
10.–Igual entendimento se deverá extrair quanto à Recorrente G.F.E., com efeito, a Recorrente não obstante encontrar-se presente na data dos factos não teve qualquer intervenção, nem consciência dos mesmos. Apesar das suas funções, enquanto gerente da loja a verdade é que no caso em apreço e como resulta claramente do depoimento da testemunha MPC, na data em apreço a Recorrente questionou a testemunha sobre o estado e existências de frangos tendo sido informada por aquela que tido estava em conformidade. Não se pode como tal falar em capacidade de decisão para agir de modo diferente, sequer de conformação com o sucedido. A Recorrente G.F.E. foi induzida em erro quanto às validades pela testemunha supra, não se tendo conformado com qualquer situação de ilicitude.
Inexiste assim, relativamente à Recorrente qualquer sustentação de facto para a condenação pela prática dos factos em apreço.
11.–Mais se diga que sequer se vislumbra fundamento ou sustentação factual para que os Recorrentes, pessoas singulares se mostrem condenados a título de dolo, porquanto a matéria dada como provada é claramente omissa em demonstração de factos que configurem sequer o preenchimento dos elementos objectivos do ilícito. Inexiste qualquer descrição factual de qualquer acto praticado pelos Recorrentes que configure a prática objectiva do ilícito, mostrando-se o incumprimento das suas tarefas de supervisão manifestamente afastado pelos depoimentos prestados e supra transcritos.
12.–Os próprios inspectores da IRAE concretamente a testemunha JCT, foi peremptório em afirmar que a identificação dos Arguidos pessoas singulares, nessa qualidade resulta somente do conhecimento das funções dos mesmos e não por apreensão de qualquer facto que determinasse ou demonstrasse a prática do ilícito por qualquer deles.
13.–A matéria de facto é omissa na demonstração de actos dos Recorrentes que configure a possibilidade de imputação do ilícito a título de dolo.
14.–A mera constatação da existência de frangos com prazo de validade expirado, nas 24 horas da data da visita recorde-se, não preenche o elemento subjectivo do ilícito, a acusação é sustentada numa constatação objectiva e nada mais, sendo omissa na real apreensão de quem foram os agentes materiais e no apuramento das suas intenções/motivação.
15.–Inexiste sustentação para a condenação dos Recorrentes, pessoas singulares quer na prática objectiva, quer no elemento subjectivo do ilícito.
16.–Igualmente terá de concluir-se pela ausência de ilicitude na conduta da Recorrente L. ., porquanto a factualidade supra transcrita e alegada em sede de contestação pela Recorrente L. , mostra-se plenamente demonstrada, concretamente a existência de um departamento de controle de qualidade e segurança alimentar, a existência de instruções de trabalho, um plano de formação e prestação de formação aos trabalhadores, bem como a existência de processos disciplinares na sequência da situação e consequente apuramento de responsabilidades.
17.–A prova produzida demonstra que o facto ilícito detectado resulta de uma falha humana, praticada por funcionários, em incumprimento das normas e procedimentos estabelecidos pela Recorrente. Acresce que os mesmos não integram os órgãos societários, ou de qualquer modo detêm poderes de representação. Motivo pelo qual não se encontram preenchidos os pressupostos de condenação da pessoa colectiva.
18.–Mal andou o douto Tribunal a quo, na apreciação da prova produzida e no entendimento extraído quanto aos factos provados e não provados os quais deverão ser tidos no sentido oposto ao adoptado pelo Tribunal a quo, consequentemente, deverá a douta sentença recorrida ser revogada com as legais consequências.
19.–Caso assim se não entenda, o que por dever de patrocínio se equaciona sempre se dirá que a douta sentença recorrida condenou os Recorrentes em moldura penal excessiva, desde logo, porquanto decidiu pela imputação a título de dolo, o que se mostra claramente afastado em face da prova produzida.
20.–Na condenação do Recorrente  J.S.P. foram tidos em consideração antecedentes reportados a decisões transitadas em julgado em 2002 e 2005, ou seja, relativamente às quais se encontra já decorrido o prazo máximo para PDCmento definitivo, devendo tais antecedentes ser desconsiderados, não se vislumbra fundamento para o decretar de pena de prisão, ainda que suspensa na sua aplicação atenta a manifesta ausência de gravidade dos factos apurados.
21.–É excessivamente gravosa a pena decretada à Recorrente G.F.E. porquanto como a douta sentença em crise bem refere se trata de uma situação primária.
22.–Excessivo se mostrando igualmente o valor diário fixado à Recorrente L.  desde logo porque não resultam demonstrados quaisquer factos da existência de perigo para a saúde pública, por outro lado, não pretendendo menorizar a gravidade resultante da existência de registo criminal a este propósito, não deixará de se notar que se trata de 6 registos, com datas de factos afastadas entre si no período de 7 anos civis e que a Recorrente actua na RAM desde 1995, e que detêm actualmente 13 lojas, incluindo Porto Santo. Tal antiguidade e número de lojas, comparativamente com número de ilícitos se afigura demonstrativo da correcção com que a Recorrente actua no mercado e o seu cumprimento das normas legais que se lhe mostram aplicáveis.
23.–Nos termos do supra exposto, requer-se a revogação da douta sentença proferida com as legais consequências.”
O Ministério Público, por intermédio da Exm.ª magistrada na Instância Local formulou resposta, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso.
No momento processual a que se reporta o artigo 416º do Código de Processo Penal, a Exm.ª procuradora-geral adjunta apôs “visto”.
Houve comunicação de eventual alteração da qualificação jurídica a que responderam os arguidos.

Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

2.–Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deveria sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso.
As questões a rever são fundamentalmente as seguintes: Impugnação da decisão em matéria de facto provada, preenchimento dos elementos subjectivos do tipo de crime quanto aos arguidos  J.S.P. e G.F.E.  da , responsabilização penal da sociedade arguida e consequências jurídicas dos factos.
3.–Os tribunais da relação conhecem dos recursos em matéria de facto e em matéria de direito (artigos 427º e 428º do Código de Processo Penal) e a decisão sobre a matéria de facto pode ser alvo de recurso sob dois prismas bem distintos:
Uma primeira forma de colocar em crise a decisão de facto consiste na alegação de um dos vícios, também de conhecimento oficioso,  previstos no artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou o erro notório na apreciação da prova.
Num plano distinto, genericamente admitido pelos artigos 412º nºs 3 e 4 e 431º, ambos do Código de Processo Penal, a análise não se limita ao texto da decisão e envolve a apreciação da prova produzida ou examinada em audiência de julgamento.
Ainda assim, o recurso não pressupõe nem se destina a uma nova análise de todos os elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas a uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, na avaliação das provas que impunham uma decisão diferente.
Neste âmbito, e sem prejuízo dos limites impostos da apreciação da prova pessoal decorrentes da ausência da imediação, o tribunal de recurso irá verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova especificados pelo recorrente e que este considera imporem decisão distinta. Nesta avaliação, deverá ser apreciada a razoabilidade da norma extraída da vivência comum subjacente à opção do tribunal recorrido, por forma a aferir da correcção do raciocínio indutivo constante da decisão do tribunal de primeira instância.
4.–Para apreciação das questões suscitadas e fundamentação do presente acórdão, impõe-se transcrever parcialmente a decisão recorrida.

O tribunal julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição):
“1-A arguida L. II - DPL, S. A., com sede no ……………, ………, Funchal, é uma sociedade comercial anónima, cujo objecto social é, além do mais, a DPL e comércio de produtos alimentares e não alimentares, explorando o estabelecimento comercial PDC, sito na Estrada do …………………….
2-O arguido  . J.S.P. na data dos factos infradescritos desempenhava funções de district manager da área territorial do PDC, incumbindo-lhe, além do mais, o controle e fiscalização do cumprimento de regras de segurança e higiene dos estabelecimentos comerciais PD na Região Autónoma da Madeira.
3-A arguida G.F.E. e o arguido C.G.C. eram, respectivamente, gerente e chefe de cozinha daquela loja.

4-No dia 26 de Junho de 2014, pelas 12 h 20 min, na sequência de uma acção de fiscalização encetada pelo IRAE, Inspecção Regional das Actividades Económicas, no PDC verificou-se no interior de uma câmara de refrigeração, prontos para ser confeccionados e servidos ao público consumidor:
a)-um saco de plástico fechado com oito frangos marinados, com peso líquido de 10,340 kg, com o rótulo de «lote 1400259-21, consumir até 25-06-014».
b)-um saco de plástico fechado com oito frangos marinados, com peso líquido de 10,240 kg, com o rótulo de «lote 1400259-21, consumir até 25-06-2014».
c)-um saco de plástico aberto, com apenas cinco frangos, marinados e prontos para assar, com peso líquido de 7,140 kg, com o rótulo de «lote 1400259-21, consumir até 25-06-2014».

5.–De igual modo e provenientes do mesmo lote expirado, verificaram-se:
a)-fragmentos de três frangos, com o peso de 3,252 kg confeccionados que se encontravam expostos para venda na zona do take-away,
b)-três frangos assados por cima do assador com 1, 780 kg; e
c)-nove frangos dentro do assador com 13,310 kg.

6.–Todos os bens descritos foram considerados anormais, com falta de requisitos, impróprios para consumo, mas não susceptíveis de criar perigo para a vida, para a saúde e integridade física de eventuais consumidores.
7.–Ao não procederem à vigilância e fiscalização do processo de armazenamento, conservação e confecção dos géneros alimentares nele existentes, os arguidos  e G.F.E, como district nanager e gerente de loja do PDC, respectivamente, não cumpriram os seus deveres de responsáveis pela manutenção do estabelecimento e confecção das refeições aí servidas, actuando no pleno uso da sua capacidade de decisão, não podendo ignorar que com essa actuação os géneros alimentares supradescritos se encontravam impróprios para consumo humano, e, não obstante, conformaram-se com o resultado, sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.
8.–O arguido C.G.C., como chefe de cozinha do PDC, ao confeccionar os géneros alimentares descritos, actuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo, e não o podendo ignorar, que confeccionava produtos que se encontravam impróprios para consumo humano e com prazo de validade já expirado, e de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

9.–A arguida L. II, S. A., foi condenada, pela prática de:
(1)-um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, previsto no artigo 24, n.° 1, alínea c), do Decreto-Lei n.° 28/84, de 10 de Janeiro, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária 50 €, no Processo CS 531/06.9TASCR, do 1.° Juízo do Tribunal de Santa Cruz, Madeira, factos de 23.06.2006, decisão de 03.06.2008, transitada em 10.12.2009;
(2)-um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, previsto no artigo 24, n.° 1, alínea c), do Decreto-Lei n.° 28/84, de 10 de Janeiro, na pena de 150 dias de multa, á taxa diária 25 €, no Processo CS 3377/09.9TAFUN, do 3.° Juízo Criminal do Funchal, factos de 18.11.2011, decisão de 04.10.2011, transitada em 24.10.2011;
(3)-um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares avariados, previsto nos artigos 81, al. a) e e), 82, n.° 1, al. b), n.° 2, al. c), do Decreto-Lei n.° 28/84, de 10 de Janeiro, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária 40 €, no Processo CS 842/11.1 TASCR, do 1.° Juízo do Tribunal de Santa Cruz, Madeira, factos de 25.10.2011, decisão de 17.07.2013, transitada em 19.03.2014;
(4)-um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares avariados, previsto no artigo 24, n.°l, al. c), do Decreto-Lei n.° 28/84, de 10    de Janeiro, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária 70 €, no Processo CS 78/11.1TAPST, do Tribunal do Porto Santo, factos de 21.07.2011, decisão de 23.04.2014, transitada em 19.11.2014;
(5 e 6) um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares avariados por negligência, previsto nos artigos 82, n.° 2, al. c) e, 24, n.° 1, al. c), e n.° 2, do Decreto-Lei n.° 28/84, de 10 de Janeiro, e um crime de especulação, previsto no artigo 35, n.° 1, do mesmo decreto-lei, na pena de 170 dias de multa, à taxa diária de 15 €, no Processo CS 2202/13.0TAFUN, do J3 da Secção Criminal da Instância Local do Funchal, factos de 05.12.2012, decisão de 27.02.2015, transitada em 10.04.2015.

10–O arguido C.G.C. foi condenado, pela prática de:
(1)-um crime de especulação, previsto no artigo 35, n.° 1, al. c), do Decreto-Lei n.° 28/84, de 10 de Janeiro, e 1.°, n.° 1, al. f), 6.° e 15, n.° 1, do DL n.° 329-A/7, de 10 de Julho, na pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa, à taxa diária de 2,49 €, e na pena de 100 dias de multa à mesma taxa diária, no Processo CS 15/01.1TBPST, do Tribunal do Porto Santo, factos de 13.08.1998, decisão de 30.05.2001, transitada em 11.12.2002;
(2)-um crime de especulação, previsto no artigo 35, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 28/84, de 10 de Janeiro, na pena de 400 dias de multa, à taxa diária de 5 €, no Processo CS 341/03.5TASCR, do 1.° Juízo do Tribunal de Santa Cruz, Madeira, factos de 09.10.2000, decisão de 14.06.2004, transitada em 25.04.2005;
(3)-um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares avariados, previsto nos artigos 81, al. a) e e), 82, n.° 1, al. b), n.° 2, al. c), do Decreto-Lei n.° 28/84, de 10 de Janeiro, na pena de 7 meses de prisão substituída por igual tempo de multa, ou seja, por 210 dias de multa, e na pena de 70 dias de multa, ambas à taxa diária 10 €, e na pena acessória de publicidade da decisão condenatória, no Processo CS 842/11.1TASCR, do 1.° Juízo do Tribunal de Santa Cruz, Madeira, factos de 25.10.2011, decisão de 17.07.2013, transitada em 19.03.2014;
(4 e 5) um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares avariados por negligência, previsto nos artigos 82, n.° 2, al. c) e, 24, n.° 1, al. c), e n.° 2, do Decreto-Lei n.° 28/84, de 10 de Janeiro, e um crime de especulação, previsto no artigo 35, n.° 1, do mesmo decreto-lei, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de 10 €, e de 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa, e em 120 dias de multa, à taxa diária 10 €, nos termos do artigo 6.° do DL 48/95, na pena única de 345 dias de multa, à dita taxa diária, no Processo CS 2202/13.0TAFUN, do J3 da Secção Criminal da Instância Local do Funchal, factos de 05.12.2012, decisão de 27.02.2015, transitada em 10.04.2015.

11.–A arguida G.F.E e o arguido C.G.C. não têm antecedentes criminais.
12.–No dia 10 de Janeiro de 2014, pelas 20 h e 30 min, o demandante MFP deslocou-se ao   PDC, secção take away, onde jantou acompanhado de outra pessoa.
13.–Escolheu salada de frango, e quando se encontrava a mastigar a comida, sentiu uma picada dolorosa numa das gengivas do lado esquerdo da boca.
14.–Ao reparar melhor no que se passaria, depara-se-lhe um objecto pontiagudo com forma de seta, com um dos lados maiores e partida em diagonal no corpo da mesma.
15.–Tratava-se de parte do selo de qualidade dos frangos.
16.–O qual não tinha sido retirado correctamente por ocasião da confecção desse produto alimentar.
17.–Esses objectos devem ser retirados do produto por ocasião da preparação do frango.
18–Um dos lados da seta é mais longo precisamente para manter o selo preso à carne, ou seja, para produzir efeito de anzol.
19.–O demandante reclamou verbalmente junto do gerente da loja onde lhe disseram que ali apenas se limitavam a cozinhar os frangos, pois estes já vêm preparados do fornecedor.
20.–Ao verificar os factos atrás referidos o demandante ficou perturbado.
21–Durante algum tempo sentiu a gengiva dorida e ficou com receio da qualidade da comida dessa loja e passou a ter cuidados acrescidos com a higiene oral.
22.–O demandante tentou rever o caso com a demandada L. II, mas não lhe foi paga nenhuma compensação por danos patrimoniais e danos não patrimoniais.”

Na motivação da decisão sobre a matéria de facto, consta o seguinte (transcrição):
O tribunal baseou a sua convicção na análise da prova produzida em audiência, em que:
Os arguidos, presentes, optaram por não prestar declarações, cf. artigo 343, n.° 1, CPP, excepto quanto á sua identificação, declarando-se o arguido  responsável por todas as operações dessas lojas na Madeira, e a arguida G.F.E. gerente da loja do   PDC; e em que:
JCT, inspector do IRAE (Inspecção Regional das Actividades Económicas), na Madeira desde 2008, afirmou que em meados de Junho de 2014, a data mais precisa consta do auto de diligência, foram ao   PDC por denúncia de consumidor que comera salada de frango em Janeiro de 2014, e a gerente da loja era a arguida G.F.E., o chefe de cozinha era o arguido C.G.C., com quem falou na secção de take away, e que os referidos frangos tinham a data de consumo ultrapassada, pois a validade expirava no dia 25 de Junho de 2014, data que não sofre tolerância como data limite da validade de produtos perecíveis, só válido até aquele dia e não mais, e confrontado com autos de apreensão de fls 27, confirmou a presença da arguida G.F.E.  e do chefe de cozinha, o arguido C.G.C., que foram cooperantes, bem como confirmou o respectivo auto, que assinou, juntamente com o médico veterinário E.

E PAD afirmou ser em 2014 inspector principal na IRAE, Madeira, e ter acompanhado em Junho de 2014 a inspecção no  PDC, onde foi levada a cabo a inspecção do take away, por motivo de reclamação originada por uma ponta de etiqueta num frango, e onde lhe pareceu que o arguido C.G.C. estava presente como cozinheiro, e que se tratava de frangos vendidos com data de validade ultrapassada.

Por sua vez, MMS, testemunha do pedido cível, afirmou ser doméstica no Funchal, e que estava a jantar com o demandante pelas 20 ou 20 h e 30 min no take away no   PDC, há um ou dois anos, em Janeiro ou Fevereiro de 2014, e encontraram a etiqueta no meio da salada de frango, misturada com este, o demandante ficou preocupado, chamou os responsáveis do PDC , apareceu um senhor alto, que não identifica como os arguidos, e uma cozinheira, e, que saiba, o demandante não foi ao médico, mas ficou preocupado e andou a desinfectar a boca.

E, das testemunhas de defesa: SGF afirmou que os arguidos são seus colegas na L. II desde 1996, é responsável do departamento do controlo de qualidade, com a função de fiscalizar a mercadoria, fazer auditorias aos fornecedores, e que dão formação na loja aos empregados, verificam se os procedimentos são cumpridos, dão instruções de trabalho, inclusive para os produtos serem retirados na véspera da data limite de validade, como medida preventiva: se a validade vai até ao dia 25, devem retirar o produto no dia 24, e têm liberdade de destruir o produto; a secção é gerida por chefe de secção, a quem incumbe zelar por isso, e qualquer empregado de secção também o pode fazer monitorizado pelo chefe de secção; que antes de fechar a loja verificam a validade dos produtos; e mais que no presente caso foram aplicadas sanções disciplinares por não terem sido retirados os produtos fora de validade; e o chefe de secção do take away do   PDC, em Junho de 2014, era o arguido C.G.C., e agora uma tal C, assim como em Janeiro de 2014; e o chefe de secção deve reportar ao gerente o sucedido com os produtos, e este perguntar o que se passa, e se está tudo bem; e enfim que teve conhecimento da etiqueta no frango, uma seta do selo enfiada, em Janeiro de 2014, frango que recebem em sacos, e ficaram surpreendidos com a reclamação e falaram com o fornecedor, a quem sugeriram que retirasse dali por diante a seta do selo do frango.

E SC afirmou ser colega de trabalho dos arguidos e supervisora da área de restauração do take away das várias lojas da L. II do PD  no Funchal, desde Junho de 2014, teve conhecimento da etiqueta de plástico na salada de frango, que resultou da não remoção completa pelo fornecedor pela seta representante da marca do supermercado, etiqueta que tem cerca de 1 cm, e tinha uma parte que entrava no frango, e outra ficou dentro deste, presa ao músculo, e não era visível, e o fornecedor também marinava, embalava e enviava o produto, e que depois lhe solicitaram que a marca de salubridade ficasse fora do produto com outro tipo de rotulagem, e agora vêm em papel, e mais que tem instrução interna para retirar o produto na véspera do limite de validade por precaução; teve conhecimento da inspecção de Junho de 2014, desde a qual reforçara a formação; e em Junho de 2014 a chefe de secção da referida loja estava de licença de maternidade, e quem a substituía era o arguido C.G.C., mas em Janeiro de 2014 não se lembra de quem era o responsável.

Enfim, MPC afirmou ser cozinheira no PDC, e no respectivo take away, onde trabalha desde 1999, onde verificam a validade dos produtos de manhã e à noite, não reparou na validade dos referidos frangos, que estavam foram da validade, apesar de haver ordem para retirar os produtos nesse estado na véspera, e só depois de a inspecção chegar reparou na falta de validade, pelo que teve processo disciplinar e uma semana de suspensão; e que no dito dia da inspecção o arguido C.G.C. também estava na loja, mas «à partida C.G.C. pensava que ela já verificara», C.G.C. que põe os frangos a assar; e que a chefe de secção nessa altura era uma tal C, que estava de baixa em Junho de 2014, e quem a substituía então era o arguido C.G.C., e em Janeiro de 2014 não sabe quem era o chefe de secção; e mais que arguida G.F.E, era a gerente dessa loja em Junho de 2014, assim com também o era em Janeiro de 2014, a qual lhe disse que verificasse a quantidade dos frangos na loja, onde devia haver cerca de 100 kg de frango, e foram levados uns 15 kg de frango, e que nesse dia foi o arguido C.G.C. que assou os frangos, cuja data de validade é verificada pelo chefe de cozinha.

Perante o que, incluídos os elementos documentais referidos, e designadamente de fls 4 a 22, 26 a 32, 45 a 53, 83 e ss, 97 e ss, 159 e ss, 218 e ss, se reputa por provada a factualidade relatada, já que, no atinente ao elemento subjectivo, em que pese ao silêncio dos arguidos, a verdade é que estes são os responsáveis pela venda e exposição/reposição e confecção dos produtos da placa do PD  , e como tais devem diligenciar pela efectiva fiscalização do cumprimento de todas as regras legais, e, nesta decorrência, e ainda à luz das regras da experiência comum e do critério do homem médio, é possível aferir que os arguidos sabiam que detinham para venda ao público os referidos alimentos que não se encontravam em condições de consumo e utilização, sem embargo do que não se inibiram de proceder à respectiva comercialização de forma deliberada e cientes da proibição e punibilidade da sua conduta, nada insólita no pretérito dos arguidos L. II e , como espelha o seu CRC.

Para os antecedentes criminais, CRC de fls 367 e ss.

Quanto aos factos não provados, além do que já resulta da análise que se fez da prova, sendo a ausência de convicção por natureza não fundamentável, cumpre ainda assim observar, por imperativo legal, que nenhum elemento convincente permitiu concluir pela sua ocorrência sem margem para dúvida razoável.”

6.–Em conformidade com o circunstancialismo de facto pacificamente admitido pelos recorrentes, no dia 26 de Junho de 2014, no estabelecimento comercial PDC, explorado comercialmente pela sociedade comercial L. II - DPL, S. A., existiam no interior de uma câmara de refrigeração, prontos para ser confeccionados e servidos ao público consumidor, 21 frangos marinados, além de outros 12 frangos e ainda fragmentos de frango, com falta de requisitos, impróprios para consumo, mas não susceptíveis de criar perigo para a vida, para a saúde e integridade física de eventuais consumidores.
Encontra-se ainda adquirido sem contestação que na data dos factos infra descritos o arguido  J.S.P. desempenhava funções de district manager da área territorial do  PDC, incumbindo-lhe, além do mais, o controle e fiscalização do cumprimento de regras de segurança e higiene dos estabelecimentos comerciais na Região Autónoma da Madeira e que a arguida G.F.E.   da  era gerente daquela loja.
Os arguidos impugnam a decisão quanto ao teor do ponto sete da matéria de facto provada.

Se bem entendemos, esse parágrafo condensa as seguintes afirmações:
a)-Os arguidos  J.S.P. e G.F.E. não procederem à vigilância e fiscalização do processo de armazenamento, conservação e confecção dos géneros alimentares nele existente;
b)-Ao omitirem essa vigilância e fiscalização no pleno uso da sua capacidade de decisão,  o arguido J.S.P. enquanto district manager e a arguida G.F.E.   , enquanto gerente de loja,  não cumpriram os seus deveres de responsáveis pela manutenção do estabelecimento e confecção das refeições aí servidas e gerente de loja do PDC, respectivamente;
c)-Os arguidos não podiam ignorar que em consequência da omissão de vigilância e fiscalização, os géneros alimentares se encontravam impróprios para consumo humano;
d)-Os arguidos conformaram-se com o resultado da omissão, ou seja, com a circunstâncias de os frangos terem perdido requisitos e se encontrarem impróprios para consumo e sabiam que as suas condutas eram proibidas por lei.
Salvo melhor entendimento, este ponto sete da matéria de facto provada contem afirmações contraditórias: se os arguidos não vigiaram, nem fiscalizaram o armazenamento e conservação dos frangos, e se nada mais se sabe a este propósito, teremos razoavelmente de admitir que os mesmos arguidos não viram o estado dos géneros alimentares e não podiam ter adquirido o conhecimento da perda de características ou de requisitos dos frangos.
Neste âmbito, escreveu-se na motivação da convicção da sentença recorrida que, no atinente ao elemento subjectivo, em que pese ao silêncio dos arguidos, a verdade é que estes são os responsáveis pela venda e exposição/reposição e confecção dos produtos da placa do PD , e como tais devem diligenciar pela efectiva fiscalização do cumprimento de todas as regras legais, e, nesta decorrência, e ainda à luz das regras da experiência comum e do critério do homem médio, é possível aferir que os arguidos sabiam que detinham para venda ao público os referidos alimentos que não se encontravam em condições de consumo e utilização, sem embargo do que não se inibiram de proceder à respectiva comercialização de forma deliberada e cientes da proibição e punibilidade da sua conduta, nada insólita no pretérito dos arguidos L. II e , como espelha o seu CRC.
A decisão recorrida baseia a inferência de que os arguidos “não podiam deixar de saber que os géneros alimentares se encontravam impróprios para consumo humano” apenas no elenco das funções que a cada um competiam na estrutura da empresa.
Discordamos em abuto.
Do que efectivamente se pode extrair de muitas situações semelhantes ocorridas em estabelecimentos de supermercado de natureza e extensão idênticas, é que a perda de requisitos de um género alimentar como o frango pode ocorrer de um dia para o outro ou mesmo num período de horas, sem que o gerente da zona ou o gerente da loja disso tenham necessariamente conhecimento, ainda que eles tenham sempre agido com a normal diligência na fiscalização das condições de armazenamento.
No relato feito pelas testemunhas SF e MPC foi isso que aconteceu no caso vertente e este tribunal não dispõe de elementos de prova que permitam configurar um circunstancialismo diferente.
Deve por isso retirar-se da decisão da matéria de facto que os arguidos tinham conhecimento do estado concreto de conservação dos frangos apreendidos pela IRAE.

7.–Os arguidos foram acusados e condenados pelo cometimento do crime contra a genuinidade dos géneros alimentares por terem tido uma conduta dolosa.
Como é sabido, a estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objectivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: o dolo directo – a intenção de realizar o facto – o dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta – e o dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta. 
Ora, não se demonstra com a necessária segurança que os arguidos tivessem representado que os géneros alimentares e destinados a consumo público ficaram sem os necessários requisitos e “anormais”.
Nestes termos,  encontra-se excluído o elemento intelectual do dolo e não podem os arguidos ser condenados pelo cometimento do crime na forma dolosa.

8.–Na definição constante do artigo 15.º do Código Penal, age com negligência “quem não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz” –, distinguindo-se a negligência consciente, na al. a), traduzida em o agente “representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização”; e a da negligência inconsciente, traduzida em o agente “não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”. O essencial da definição reside, porém, no proémio unitário, sendo aí que se contém o tipo de ilícito (a violação do cuidado a que, segundo as circunstâncias, o agente está obrigado, isto é, a violação do cuidado devido) e o tipo de culpa (a violação do cuidado que o agente, segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais, está em condições de prestar).
Nem ao longo do inquérito, nem em audiência de julgamento se procurou definir ou concretizar o conteúdo das funções desempenhadas por J.S.P., mas constitui contudo dado incontornável que este arguido  exercia as suas atribuições de district manager numa área territorial da empresa, incumbindo-lhe, além do mais, o controle e fiscalização do cumprimento de regras de segurança e higiene   em todas as lojas da cadeia “PD ” na Região Autónoma da Madeira, incluindo a  ilha de Porto Santo.
Numa organização empresarial estruturada, o titular de poderes de gerência e liderança procede a uma divisão de tarefas, atribuições e responsabilidades, numa cadeia hierárquica. Assim, o gerente que controla e orienta a actividade de um largo sector da empresa tem necessariamente de confiar no desempenho dos colaboradores que se encontram sob a sua orientação.
Sendo notória a normal extensão de cada um dos estabelecimentos de supermercado ou hipermercado empresa com a marca  “PD ”, o volume dos géneros alimentares e a diversidade dos meios de armazenamento e condicionamento, entendemos que não é razoável exigir, diremos mesmo que não é “humanamente possível”, que uma pessoa com funções de gerência num conjunto de lojas de supermercado em toda uma Região Autónoma, possa acompanhar e vigiar permanentemente o estado de conservação de todos os géneros alimentares existentes e expostos para venda ao público em todos os estabelecimentos de toda essa mesma área. Dito de outro modo: do nome jurídico do cargo ou do elenco das responsabilidades na empresa, não é razoável inferir que o arguido  J.S.P. tenha visto o que aconteceu com os concretos géneros deste processo, nem tão pouco que o  deveria ter visto, pelo que fica afastada a viabilidade de se imputar o resultado a qualquer acção deste arguido enquanto gerente da sociedade, seja a titulo de dolo, em qualquer uma das suas formas, como já exposto, seja mesmo a título negligente, por omissão de um dever de cuidado.

9.–O mesmo não se poderá afirmar quanto à arguida G.F.E.   da , que ao tempo exercia a actividade de gerente de loja.
A pessoa que assume a gerência de um estabelecimento comercial como o destes autos, tem sempre o dever de zelar pelo cumprimento escrupuloso das normas e regulamentos sobre a verificação da qualidade, genuinidade e estado de conservação dos géneros alimentícios destinados à venda ou ao consumo do público.
Segundo os costumes comuns para um profissional prudente com as tarefas e incumbências concretas que lhe estavam atribuídas e apesar da normal complexidade da actividade num supermercado, a arguida G.F.E.  da , podia ter evitado que se mantivessem expostos para venda ou consumo publico os frangos anormais por perda de requisitos.
Com efeito, embora a arguida desconhecesse que tais géneros alimentícios se encontravam avariados, a verdade é que era responsável pela gestão diária do estabelecimento, recaindo sobre ela o dever de verificação directa da genuinidade e estado de conservação desses géneros por forma a evitar que eles se transformem, fiquem “anormais” e impróprios para consumo.
Nestes termos, ao não proceder à vigilância e fiscalização do processo de armazenamento e conservação dos géneros alimentares existentes na loja, como efectivamente podia fazer, a arguida, agindo no pleno uso da sua capacidade de decisão e com os poderes de liderança inerentes ao seu cargo na sociedade, incumpriu os seus deveres enquanto gerente de loja de se assegurar directamente das condições concretas dos géneros alimentares. Desta sua conduta resultou a exposição para venda ao público dos bens alimentares sem os requisitos necessários.

Em face do exposto e ponderando em conjunto a prova produzida na audiência de julgamento, incluindo obviamente os excertos de depoimentos indicados na motivação de recurso, procede-se a alteração da decisão em matéria de facto, por forma a substituir a redacção do ponto sete dos factos provados pelo seguinte:
7.–A arguida G.F.E.   agindo enquanto gerente de loja, no uso dos seus poderes de liderança e em nome da sociedade L. II, S.A. omitiu o dever de cuidado de que era capaz, de supervisionar, vigiar e fiscalizar o estado de conservação dos géneros alimentícios, assim levando a que os frangos apreendidos pela inspecção se encontrassem expostos para consumo público e fossem considerados anormais, com falta de requisitos e impróprios para consumo.
Aqui chegados, constata-se ter a arguida G.F.E.  cometido, a título da negligência inconsciente prevista no art.º 15.º al.ª b), do Código Penal, um crime contra a economia, por existência de produtos anormais avariados, previsto e punido pelos art.º 24.º, n.º 1 al.ª c) e nº 2 al.ª c), 82.º, n.º 2 al.ª c), 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1 e 8.º, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20-1, devendo proceder-se a necessária convolação. Ainda nos termos sobreditos, terá improceder a acusação contra o arguido  J.S.P..
10.–Haverá seguidamente que apreciar da responsabilidade da sociedade arguida.
Segundo o principio geral da responsabilidade criminal das pessoas colectivas no âmbito das infracções contra a economia e contra a saúde publica constante do artigo 3º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, as pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo.
Este preceito deve ser conciliado com a norma constante do artigo 11º do Código Penal, por força do artigo 8º do mesmo compêndio normativo, pelo que a imputação dos factos à pessoa colectiva ocorre quando os crimes forem cometidos a) Em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou b) Por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem.

Neste âmbito, deve entender-se que ocupa uma posição de liderança para efeito de imputação dos seus actos à pessoa colectiva, além dos representantes e mandatários, quem exercer o controlo da actividade da sociedade, aqui se incluindo as pessoas a quem a administração da pessoa colectiva delega funções de autoridade, conferindo-lhe poderes de domínio sobre a actividade da pessoa colectiva (…) Trata-se em regra da prática de actos dirigidos por pessoas a quem a lei ou a administração confiam a sua direcção e controlo (v.g. o encarregado de uma linha de fabrico, o responsável por um estabelecimento, o revisor oficial de contas etc.) (Germano Marques da Silva, Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas, Revista do CEJ, 1º semestre 2008, nº 8, Almedina, p. 70-97), englobando mesmo, não só os representantes legais, mandatários, mas os trabalhadores ou quem de algum modo represente o ente colectivo e tenha agido no seu interesse e por sua conta  (Mário Pedro Meireles, A Responsabilidade Colectiva das Pessoas Colectivas ou Entidades Equiparadas, Julgar nº 5, Almedina, 2008 p. 130).

A palavra gerente tem o significado comum de “aquele que gere ou administra, aquele que tem sobre si a responsabilidade da gestão ou administração, dando instruções ou mesmo executando-as, no interesse da sociedade” e o gerente de loja é a pessoa responsável pelo gestão do estabelecimento, dotada de importantes poderes de planeamento, fiscalização e de controlo da actividade dos colaboradores que prestam serviço nesse sector da empresa . Não há qualquer indicação que a arguida tenha actuado contra ordens ou indicações expressas de superior hierárquico na estrutura ou de representante da mesma sociedade.

Afigura-se-nos assim que a arguida G.F.E. , ao omitir os deveres de cuidado que lhe incumbiam e de que era capaz nos termos acima descritos, agiu na qualidade de gerente de loja, no uso de uma posição de liderança e no exclusivo interesse da sociedade comercial L. II-DPL, enquanto detentora da exploração comercial do estabelecimento comercial.

Em conclusão, a arguida L. II-DPL, S.A, deve ser responsabilizada, nos termos do disposto no art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 28/84, pelo cometimento de um crime previsto e punido pelos art.º 24.º, n.º 1 al.ª c) e nº 2 al.ª c), 82.º, n.º 2 al.ª c), 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1 e 8.º, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro,
11.–Cumpre seguidamente apreciar as consequências jurídicas dos factos.
A moldura penal abstracta é, no caso, a de prisão até seis meses e multa de vinte a trezentos e sessenta dias para a arguida G.F.E.  (art.º 24.º, n.º 1 al. c) e 2 al. c), do Decreto-Lei n.º 28/84, e 47.º, n.º 1, do Código Penal).
Aplicando o disposto no artigo 7º nº s 1 e 4 do Decreto-Lei nº 28/84 e, subsidiariamente, no artigo 90º B nºs 1 e 2 do Código Penal, concluímos que a moldura penal para a sociedade arguida tem um mínimo de dez e um máximo de sessenta dias de multa.
Subscrevemos o entendimento constante da decisão recorrida quando aí consta: (transcrição)
“Para a medida da pena e da culpa, o legislador considera como relevantes os fins ou os motivos que o determinaram, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, as circunstâncias de motivação interna e os estímulos externos. No que concerne aos factores atinentes ao agente, o legislador manda atender às condições pessoais do mesmo, à sua condição económica, à gravidade da falta de preparação para manter uma conduta lícita e a consideração do comportamento anterior ao crime.
Assim, como factores de graduação da pena criminal importa considerar aqui: o acentuado grau de ilicitude do facto; o concreto modo de execução mediante produtos prontos a consumir, em número significativo; as exigências de prevenção geral que urge acautelar de modo firme, por forma que se evite a lesão de bens jurídicos caros ao desenvolvimento de uma sociedade moderna também alicerçada no respeito para com a genuinidade e qualidade alimentar, cabendo aos tribunais declarar com firmeza a censura dessas actuações menos próprias e despectivas de tais bens jurídicos, demasiadas vezes na origem determinante de males de saúde com consequências para a vida e integridade física dos consumidores alimentares; (…)”
Há que ponderar na intensidade da negligência manifestada no caso concreto, a gravidade das suas consequências, bem como no grau de violação dos deveres impostos ao agente, as suas condições pessoais, a sua situação económica, o comportamento anterior aos factos e, em suma, em todo o demais condicionalismo mencionado não só no corpo como nas respectivas alíneas do n.º 2 do art.º 71.º do Código Penal.
Tendo em conta os elementos disponíveis sobre a profissão da arguida Guida G.F.E. e a normal capacidade económica de uma sociedade que explora um estabelecimento de supermercado, os valores fixados na sentença recorrida para a razão diária das multas não são seguramente excessivos.

Ponderando em conjunto os factores enunciados entende-se que as penas concretas se devem fixar nos seguintes termos:
a)-Para a arguida G.F.E.  da  em dois meses de prisão, substituídos por sessenta dias de multa, à razão diária de sete euros e na pena de trinta dias de multa, à mesma razão diária e, em cúmulo (artigo 6º nº 1 do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março), na pena única de noventa dias de multa, à razão diária de sete euros;
b)-Para a arguida sociedade L. II, S.A. em vinte dias de multa, à razão diária de quarenta euros.

12.–Pelos fundamentos expostos, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa acordam em julgar procedente o recurso do arguido  J.S.P. e parcialmente procedentes os recursos dos arguidos L. II, S.A. e G.F.E.  e, em consequência, procedendo a revogação parcial da sentença recorrida:
a)-Absolvem o arguido  J.S.P. do crime de que vinha acusado;
b)-Condenam a arguida G.F.E. pelo cometimento de um crime previsto e punido pelos art.º 24.º, n.º 1 al. c) e 2 al.ª c), 82.º, n.º 2 al.ª c), ambos do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, em dois meses de prisão, substituídos por sessenta dias de multa à razão diária de sete euros e na pena de trinta dias de multa, à mesma razão diária e, em cúmulo, na pena única de noventa dias de multa, à razão diária de sete euros;
c)-Condenam a sociedade L. II – DPL, S. A, pelo cometimento de um crime previsto e punido pelos art.º 24.º, n.º 1 al.ª c) e nº 2 al.ª c), 82.º, n.º 2 al.ª c), ambos do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de

Em tudo o mais, designadamente na aplicação das penas acessórias, confirmam a sentença recorrida. 
Sem tributação.



Lisboa, 8 de Março de 2017.
                                  
                                        
                                                                                                          
João Lee Ferreira - (Texto elaborado em computador e revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem)    
Ana Paula Grandvaux