Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9448/12.7TCLRS.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.Incumbe ao autor de ação de impugnação pauliana a alegação e prova dos seguintes requisitos constitutivos da impugnação pauliana: a existência de determinado crédito; um ato praticado pelo devedor que não seja de natureza pessoal; anterioridade do crédito em relação ao ato ou, sendo posterior, ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; que tenha havido má fé, tanto da parte do devedor como de terceiro, tratando-se de um ato oneroso, entendendo-se por má fé a consciência do prejuízo que o ato cause ao credor; se o ato for gratuito, não é exigível a má fé.

2.Quanto ao requisito de procedência da impugnação pauliana consistente em que o ato provoque, para o credor, a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade, face à norma especial do Artigo 611º do Código Civil, incumbe ao devedor ou ao terceiro interessado na manutenção do ato a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor, o que se justifica pela maior facilidade que o devedor tem de fazer essa prova.

3.Os factos-indiciários desempenham a função de facto constitutivo da pretensão do autor, incumbindo a este a respetiva alegação e prova.

4.A prova de um facto negativo, por si só, não altera as normas de ónus probatório. Porém, como não se demonstra materialmente um facto que não ocorreu, a prova de um facto negativo fluirá da demonstração de um facto positivo contrário ou mediante presunções das quais possa inferir-se o facto negativo.

5.As presunções judiciais assumem especial relevância para a prova do requisito da má fé bilateral (consciência do prejuízo), tratando-se da prova de um facto de índole intelectiva e volitiva.

6.Todavia, e para tal efeito, o peso relativo das presunções judiciais não é uniforme, havendo indícios que assumem um caráter mais unilateral (apontam para um desiderato do alienante, não necessariamente partilhado e conhecido do adquirente) enquanto outros evidenciam – de forma clara- a partilha e conhecimento de tal desiderato por parte do adquirente.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Banco .... Português, SA instaurou ação de impugnação pauliana contra Maria .... .... .... .... e ...., SA, pedindo que seja declarada a ineficácia, em relação ao Autor, da venda efetuada pela 1ª Ré à 2ª Ré de um imóvel, sendo a 2ª Ré condenada a restituir o imóvel na medida em que tal venha a ser necessário à satisfação do direito de crédito do Autor, reconhecendo-se a este o direito de executar o mesmo no património daquela e de praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.

Apenas a 2ª Ré contestou.

Após julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, com fundamento na inexistência de má fé da 2ª Ré ao adquirir o imóvel.

Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

«1)Na douta sentença recorrida, devem constar como factos não provados que:
a) “a 2ª R. tenha pago qualquer valor pelo imóvel referido no nº6”;
b)“a 2ª R. receba efetivamente qualquer valor proveniente do arrendamento do imóvel referido no nº 6”;
2)Com efeito, e no que respeita ao 1º dos factos elencados (alínea a), o quesito/facto não pode constar como “negativo” (tal como consta da douta sentença recorrida);
3)Sendo que as testemunhas foram apenas inquiridas as testemunhas arroladas pelo Banco, ora apelante e, as mesmas não demonstraram conhecimento sobre o pagamento do preço, como é referido a douta sentença recorrida, porque tal questão nunca lhes foi colocada, nem tinha que o ser;
4)Efetivamente, o pagamento do preço integra ou constitui, consoante artº 576º, nº3º do CPC, exceção perentória ou de direito material;
5)É, por conseguinte, sobre o devedor demandado (neste caso a 2ª R.) que, consoante artº 342º, nº2º do CC, recai o ónus da prova de que esse modo de extinção da obrigação efetivamente ocorreu ou se verificou
6)Não tendo a 2ª R. produzido qualquer prova testemunhal ou documental quanto ao tema e competindo-lhe tal ónus;
7)Pelo que, deveria constar da douta sentença recorrida que não ficou provado que: “a 2ª R. tenha pago qualquer valor pelo imóvel referido no nº6”;
8)Retificação/alteração que desde já se requer que seja efetuada nos factos dados como não provados;
9)Acresce que, também não ficou provado que e, tal deverá constar dos factos não provados, face ao sua relevância para a boa decisão da causa, a 2ª R. recebe efetivamente as rendas provenientes do arrendamento do dito imóvel;
10)Sendo certo ainda que, a 2ª R. apenas juntou aos autos e, no que respeita ao alegado arrendamento, cópia dos contratos e de alguns recibos que são apenas assinados pelo suposto administrador da 2.ª R., sem qualquer menção à qualidade em que este assina;
11)Para além de que, não foi junto aos autos, qualquer extrato bancário que permita concluir que as quantias em questão são para si (2ª R.), são para seu proveito próprio;
12)Aliás, não foi sequer junto qualquer cheque comprovativo do pagamento da renda pelo arrendatário ou, extrato que prove o depósito do mesmo, nada, rigorosamente nada;
13)Termos em que, se conclui que deveria constar da douta sentença recorrida que não ficou provado que: “a 2ª R. receba efetivamente qualquer valor proveniente do arrendamento do imóvel referido no nº 6.”
14)E logo, deveria ter sido dado como provado o alegado no artº 19º da p.i., ou, pelo menos, mas sempre sem conceder, essa teria que ser a conclusão final da douta sentença recorrida;
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15)O contexto tem que ser apreciado no seu todo: Imobiliária adquire imóvel que não revende, mantendo-o arrendado mas, não prova que pagou o preço da compra do mesmo, nem sequer que recebe as rendas do dito arrendamento;
16)Se tal não consubstanciar uma manobra para retirar o bem da esfera patrimonial da 1ª R., então dificilmente, algo consubstanciará tal manobra;
17)A 2ª R. não teve qualquer vontade ou intenção de demonstrar que pagou o preço do bem que adquiriu, que tal venda existiu efetivamente enquanto tal, que foi real;
18)Não produziu prova sobre tais factos, não tentou sequer produzir prova sobre os mesmos, limitou-se a impugnar o alegado pelo Banco apelante;
19)Na verdade, os factos supra expostos são até reveladores de indícios fraudulentos por parte da 2ª R, a adquirente do imóvel em causa;
20)Pois, resulta dos mesmos que aquela adquiriu um imóvel, sem qualquer contrapartida, ou seja, gratuitamente;
21)Pelo que, a sentença recorrida incorreu ainda num manifesto erro de julgamento ao não qualificar a compra e venda em questão, como um ato gratuito;
22)Com efeito, as RR ao criarem uma aparência de venda, onde falta um dos elementos essenciais da mesma, o preço, mais não celebraram do que uma doação entre si;
23)Resulta provada a existência de uma manobra entre a duas Rés, a qual tem acolhimento nos factos supra expostos e, podendo-se facilmente concluir que estamos perante uma venda fraudulenta, uma venda aparente que disfarça uma real doação para prejudicar os credores da 1ª R;
24)E assim sendo, não estamos perante um ato verdadeiramente oneroso, mas sim perante um ato gratuito e como tal, a impugnação deverá proceder ainda que ambas as RR tivessem agido de boa-fé, cfr. dispõe artº 612º nº1 do CC, neste sentido vai também a doutrina dominante;
25)Mas e, ainda sem conceder, sempre se diga que ainda que o ato objeto de impugnação seja considerado oneroso, sempre a douta sentença recorrida teria que ter concluído pela verificação da existência de má-fé bilateral no sentido em que a mesma vem definida na lei (CC) e, nos termos em que é definida e explicada pela doutrina e jurisprudência dominante, ou seja, como a “consciência do prejuízo que o ato pode causar”;
26)Com efeito e, pese embora não exista prova direta do requisito da má-fé, podemos claramente aferir (nomeadamente através das presunções judiciais – 349ºCC - mencionadas na douta sentença recorrida), da conjugação de diversos factos que houve um conluio (uma manobra com vista à retirada de património de uma esfera para outra esfera) entre ambas as Rés, com o intuito de prejudicar o Banco apelante;
27)Temos assim, como factos conhecidos e reveladores do conluio entre as Rés: o facto da 1ª R. não ter sequer contestado os presentes autos, confessando assim os factos articulados pelo Banco ora apelante; o facto de nenhuma das Rés ter provado o pagamento/recebimento efetivo do preço declarado na escritura; o facto da 2.ª R. não ter feito qualquer prova quanto ao efetivo recebimento das rendas provenientes do arrendamento do dito imóvel; o facto da sociedade ...., da qual é acionista a 1.ª R., ter a sua sede em Viseu, cidade em que a 2.ª R. já teve sede, sendo o objeto social destas sociedades similar (o que denota uma possível relação de proximidade); o facto do fiscal único e a suplente de ambas as sociedades serem os mesmos e, por fim, o facto de a 1.ª R. ter vendido todo o seu património com a ajuda das duas sociedades com quem tem relação
de estrita proximidade, num espaço de cinco meses;
28)Na verdade a inexistência de qualquer documentação da transferência do preço do comprador para o vendedor, reflete uma forte probabilidade de uma situação de acordo e de adesão entre os intervenientes, a tal manobra referenciada no artº 19º da p.i.;
29)Portanto, todos estes fatores vistos num contexto global apontam fortemente no sentido de uma elevada probabilidade de comunhão entre as Rés, em que estas tiveram a plena consciência (senão mesmo a intenção) de estarem a causar prejuízo aliás, como se disse supra, este comportamento da 2ª R. é revelador de indícios fraudulentos;
30)Em face dos elementos factuais acima referidos, conjugados com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, no mínimo, a 2.ª R. sabia da dívida da 1.ª R. e, consequentemente, ao cooperar na subtração do bem do património dela, estava a prejudicar o Banco Apelante;
31) Ainda que, não se considere que houve conluio, com o claro propósito de prejudicar o Banco Apelante, o simples facto da 2.ª R. não provar (conforme lhe cabia) que pagou o valor de € 90.000,00 à 1.ª R. pela compra do imóvel aqui em causa, indicia claramente má-fé daquela.»

Contra-alegou a ...., SA,  propugnando pela improcedência da apelação.

QUESTÕES A DECIDIR.

Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
a.Reapreciação da matéria de facto no sentido de ser dados como factos não provados que: «A 2ª ré tenha pago qualquer valor pelo imóvel referido no nº 6» bem como que a «A 2ª Ré receba efetivamente qualquer valor proveniente do arrendamento do imóvel referido no nº 6»;
b.Aferir se ocorreu uma venda aparente que disfarça uma real doação, aquilatando se estamos perante um ato gratuito;
c.Subsidiariamente, considerando-se que o ato foi oneroso, indagar se está provava a má fé bilateral das Rés nomeadamente através de presunções judiciais.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1.O Banco A. é dono e portador de 3 livranças, subscritas pela Paraglas – Sociedade de Acrílicos, Lda., uma no valor de 190.000,00 €, vencida em 14-12-2009, outra no montante de 120.262,38 €, vencida em 5-08-2010 e outra livrança ainda, no valor de 2.851,85 €, vencida em 30-07-2010, todas avalizadas pela 1ª R. e por Sónia .... .... (documentos nºs 1, 2 e 3 juntos com a petição inicial).
2.O Banco A., para recuperação de tal valor instaurou uma ação executiva, tendo como títulos executivos as livranças supra identificadas - proc. 13070/10.8 TBBNV, 1º Juízo do Tribunal de Benavente (doc. n.º 4 junto com a p.i.).
3.Os montantes de tais livranças não foram pagos pela sociedade subscritora das mesmas, nem pelas avalistas, a ora 1ª Ré e Sónia .... .....
4.A sociedade subscritora das ditas livranças foi declarada insolvente por sentença proferida em 27.10.2010 nos autos que sob o nº.1208/10.6 TBBNV correram os seus termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Benavente (doc. nº 5 junto com a p.i.).
5.O Banco A. conhecia unicamente dois imóveis como pertencendo à 1ªR.
6.Por escritura pública de 15 de Março de 2010, lavrada de fls. 17 a 18 do Livro nº 114-D, do Cartório Notarial de São Pedro do Sul, a 1ª R. vendeu à 2ª R. o seguinte imóvel: fração autónoma designada por “F-2”, correspondente ao décimo segundo andar C, com arrecadação número cinquenta e dois no sótão, do prédio urbano sito na freguesia e concelho de Odivelas, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 9.912º e descrito na CRP do Registo Predial de Odivelas sob o nº 177 da respetiva freguesia (docs. nºs 6 e 7 juntos com a petição inicial).
7.Em 2 de Agosto do mesmo ano, a 1ª R. transferiu para a empresa .... – Sociedade Imobiliária S.A. a propriedade de um outro imóvel, subscrevendo em espécie o aumento de capital desta sociedade (doc. n.º 8 junto com a petição inicial).
8.A 1ª R. é acionista da Sociedade .... – Sociedade Imobiliária, S.A. (docs. nºs 8 e 9 juntos com a petição inicial).
9. A 2ª R. já teve a sua sede em Viseu, local onde também se situa a sede da Sociedade .... – Sociedade Imobiliária, S.A. (docs. nºs 9 e 10 juntos com a petição inicial).
10.A 2ª R. tem como objeto social a compra, venda e revenda de bens imóveis e dos adquiridos para esse fim, a administração de imóveis por conta de outrem e a avaliação imobiliária (doc. nº 9 e 10 juntos com a petição inicial).
11.A sociedade .... – Sociedade Imobiliária S.A. tem como objeto a compra, venda e administração de imóveis, designadamente compra de terrenos e revenda dos adquiridos para esse fim, operações de construção civil, construção de empreendimentos próprios para ....ização e aplicação de capitais em valores móveis ou imóveis (doc. nº 10 junto com a petição inicial).
12.O fiscal único de ambas as sociedades é o mesmo (António N. M.M. de O...), bem como a suplente do fiscal único (Carla M.S.G...) – (docs. nºs 9 e 10 juntos com a petição inicial).
13.As escrituras públicas que transferiram a propriedade dos imóveis supra citados ocorreram no mesmo Cartório Notarial, o de São Pedro do Sul, perante o mesmo notário, D...G... (docs. nºs 7 e 8 juntos com a petição inicial).
14.Não se conhecem mais bens penhoráveis de igual ou maior valor, livres de ónus e encargos, de que a 1ª R. seja proprietária.
15.A livrança junta como documento n.º 3, no valor de 2.851,85 €, com data de emissão de 30.3.2007, caucionava o contrato de locação financeira n.º 400059219, datado de 26/3/2007 e celebrado entre o Banco A. e a empresa Paraglas – Sociedade de Acrílicos, Lda. (doc. n.º 11 junto com a p.i.).
16.A livrança junta como documento n.º 2, no valor de 120.262,38 €, caucionava a garantia bancária prestada em 13/02/2007 pelo Banco A. a favor da Repsol Química S.A. (doc. n.º 12 junto com a petição inicial).
17.Em 03/11/2009, o Banco A. foi chamado a honrar tal garantia bancária, pelo montante de 102.294.60 € (doc. n.º 13 junto com a petição inicial).
18.Tendo procedido ao referido pagamento e, em consequência, preenchido a respetiva livrança caução junta aos autos como documento n.º2.
19.Apesar de ter sido adquirido pela 2ª R. para revenda, o imóvel identificado no nº6 supra permanece como sua propriedade.
20.A 2ª R. teve a sua sede social na Rua da C..., s/n Aval, freguesia de B..., 3515-511 Viseu, e a .... – Sociedade Imobiliária, S.A., tem a sua sede no Largo P... G..., n.º 5, 3.º dto., freguesia de S...M... de Viseu, 3500-136 Viseu (docs. nºs 9 e 10 juntos com a petição inicial).
21.A 2ª R. deu de arrendamento o referido imóvel, emitindo recibos (docs. de fls. 104-l a 104-aa).

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Reapreciação da matéria de facto.
Sustenta a apelante que alegou no artigo 20º da petição que a 2ª Ré não pagou o preço do imóvel em causa, cabendo à 2ª Ré fazer prova de tal pagamento. A 2ª Ré não apresentou qualquer prova sobre tal matéria como lhe competia, limitando-se a impugnar a alegação do Autor. Nestes pressupostos, argumenta o apelante que devia constar da sentença que não ficou provado que «A 2ª Ré tenha pago qualquer valor pelo imóvel referido no nº 6».
Mais sustenta a apelante que deve constar da sentença que não ficou provado que «A 2ª Ré receba efetivamente qualquer valor proveniente do arrendamento do imóvel referido no nº 6», sendo certo que a prova documental junta quanto aos arrendamentos é insuficiente, não tendo sido junto aos autos qualquer extrato bancário que permita concluir que as quantias são recebidas para proveito da Ré ou sequer recebidas, inexistindo qualquer documento comprovativo do pagamento.

Nos termos dos Arts. 610º a 612º do Código Civil atual, constituem requisitos da impugnação pauliana:
a)A existência de determinado crédito;
b)Um ato praticado pelo devedor que não seja de natureza pessoal;
c)Anterioridade do crédito em relação ao ato ou
d)Sendo posterior, ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
e)Ato esse que provoque, para o credor, a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;
f)Que tenha havido má fé, tanto da parte do devedor como de terceiro, tratando-se de um ato oneroso, entendendo-se por má fé a consciência do prejuízo que o ato cause ao credor;
g) Se o ato for gratuito, não é exigível a má fé.

O ato envolve diminuição da garantia patrimonial tanto pela diminuição do ativo como pelo aumento do passivo. " A constituição de uma dívida pode ser objeto da impugnação. E pode igualmente ser impugnada, através da pauliana, a constituição da garantia real, na medida em que diminua o acervo de bens que constituem a garantia dos credores comuns" - A. VARELA e PIRES DE LIMA, Código Civil Anotado, 4ª ed., I Vol.,, p. 626.

Incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do ato a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor - Art. 611º do Código Civil. No caso de existirem vários responsáveis solidários, tal ónus da prova incumbe aos demandados na ação de impugnação pois, caso tal faculdade da prova da existência de mais bens penhoráveis se estendesse a todos os responsáveis solidários da dívida, poderia haver um arrastamento por cadeia de novos responsáveis solidários de outras dívidas o que tornaria impossível ou diabólico a prova a fazer - neste sentido, Ac. do STJ de 29.9.93, Zeferino Faria, CJ 1993 III, p. 37.

A data a que deve atender-se para saber se do facto resultou ou não a impossibilidade, de facto, de satisfação integral do crédito do impugnante é a do ato impugnado.

Quando o ato é oneroso, exige-se a má fé do devedor e do terceiro, entendendo-se por má fé a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor.

VAZ SERRA, “Responsabilidade patrimonial”, BMJ nº 75, p. 212, estudo que se insere no âmbito dos trabalhos preparatórios do Código Civil afirma que:
«(...) a consciência do prejuízo causado aos credores não é a intenção de os prejudicar, pois o ato pode ser praticado sem esta intenção e existir, todavia, a consciência do prejuízo. Por outro lado, pode haver conhecimento do estado de insolvência e não haver consciência do prejuízo causado aos credores, porque pode haver a convicção séria de que, embora insolvente agora, o devedor melhorará depois a sua fortuna, de sorte a não prejudicar os seus credores. (...) Assim, se o devedor, estando insolvente, vende um prédio ou o hipoteca para obter valores com que possa realizar uma operação destinada a melhorar a sua situação patrimonial, e este facto é conhecido do terceiro, não haverá má fé, nem dele, nem do terceiro." E mais adiante (p. 214, nota 301 - a) continua: " (...) embora do ato a título oneroso possa não resultar a insolvência do devedor ou o agravamento dela (então, não há lugar para a impugnação pauliana, por falta de interesse dos credores), essa insolvência ou agravamento dar-se-ão quando o valor efetivo da contraprestação seja inferior ao da prestação (v. g. venda por preço inferior ao valor da coisa vendida) - o que não pode excluir o carácter oneroso do ato (a equivalência, nos atos onerosos, existe na intenção das partes, mas pode não existir entre os valores reais da prestação e da contraprestação) - ou quando, sendo os valores iguais, se substituem a bens executáveis outros que vêm a ser subtraídos à ação dos credores. Neste segundo caso, a má fé consistirá no conhecimento de que os bens serão subtraídos à ação dos credores.»

Já no âmbito do atual Código Civil, este autor pronunciou-se no sentido de que a má fé do terceiro é a sua consciência do prejuízo causado ao credor, não importando a que título tinha o terceiro essa consciência, não sendo necessário um acordo com o devedor nem que o terceiro tenha tido a intenção de obter proveito em prejuízo do credor - RLJ. nº 3382, p. 10, maxime nota (2).

ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12ª ed., 2016, p. 866, explicita o teor do Art. 612º, nº2, do Código Civil nos seguintes termos: "Não se reclama, deste modo, a intenção de prejudicar ou o conhecimento da insolvência do devedor. Trata-se de fórmula que correspondem a realidades diversas. Repare-se que pode existir a consciência do prejuízo que o ato causa aos credores, sendo o mesmo realizado, todavia, sem o intuito de lhes produzir dano; assim como essa consciência do prejuízo não pressupõe, necessariamente que se reconheça ou exista a situação patrimonial deficitária do devedor, e vice-versa."

ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, Op. Cit., p. 629, entendem que a consciência do prejuízo consiste na « (...) consciência de que o ato de alienação e o subsequente esbanjamento do preço recebido prejudicam o credor. (...) Pode dizer-se que o conceito adotado representa uma solução intermédia entre o antigo conceito psicológico do conhecimento da insolvência e o requisito bem mais apertado da intenção de prejudicar (animus nocendi) os credores.»

Para efeitos de impugnação pauliana, o conceito de má fé é de natureza psicológica, não se exigindo a intenção, o propósito ou a vontade de prejudicar os credores (dolo direto), bastando apenas a consciência, a representação do prejuízo que o negócio causa ao credor (dolo necessário) – cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6.12.2001, Oliveira Barros, de 6.11.2003, Ferreira de Almeida, de 25.3.2004, Araújo Barros, todos acessíveis em www.dgsi.jstj/pt, de 9.12.2004, Moreira Camilo, CJA cSTJ 2004 – III, pg. 134.

Refere Cura Mariano, Impugnação Pauliana, Almedina, 2004, p. 191, que «(…) a má fé é a consciência de que o ato em causa vai provocar a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou um agravamento dessa impossibilidade. Tendo os outorgantes representando atempadamente as consequências danosas do seu ato, têm a possibilidade de o omitir, pelo que, se nele insistem, apesar desse conhecimento, esta sua atitude é eticamente censurável e por isso considerada de má fé.»

Pelo contrário, quando o ato é gratuito a impugnação procede ainda que o devedor e o terceiro ajam de boa fé (segunda parte do nº1 do Art. 612º do Código Civil).

Esta diversidade de regime decorre da consideração de que, sendo o ato gratuito, há sempre prejuízo injustificável para o credor pois quem procura interesses (certat de lucro capiendo) deve ceder a quem procura evitar prejuízos (certat de damno vitando).

Para decidir a questão suscitada pela apelante no que tange à reapreciação da matéria de facto, há que começar por elucidar como opera o ónus da prova neste tipo de ação.

Nesta matéria rege o artº 342º do Cód. Civil, que estatui:
1.Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2.A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
3.Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.

Cabe, assim, ao autor a prova dos factos constitutivos do seu direito. Cabe ao réu, a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor, ou, noutra formulação, corresponde ao autor a prova dos factos constitutivos da ação e ao réu a prova dos factos constitutivos da exceção - vide, entre outros, o Prof. M. DE ANDRADE, in Noções Elementares de processo civil, p. 184 e segs e PIRES DE LIMA e A. VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Ed., pp.  305/306.

O Professor Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 201, escreveu sobre a repartição do “ónus probandi”:
«a)Cabe ao autor a prova dos factos constitutivos do seu direito: dos momentos constitutivos do facto jurídico (simples ou complexo) que representa o título ou causa desse direito;
b)O réu não carece de provar que tais factos não são verdadeiros: “reo sufficit vincere per non ius actoris; actore non probante reus absolvitur [autor não probante, o réu deve ser absolvido] ”.

O que lhe compete é a prova dos factos impeditivos ou extintivos do direito do autor; dos momentos constitutivos dos correspondentes títulos ou causas impeditivas ou extintivas [...].»

Segundo o mesmo autor, o ónus da prova traduz-se “ (…) para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova; ou na necessidade de, em todo o caso, sofrer tais consequências, se os autos não contiverem prova bastante desse facto – trazida ou não pela mesma parte” – Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 196.

Há, assim, que distinguir entre o:
I-O ónus da prova subjetivo que se refere à determinação da parte onerada com a prova de certo facto. Incumbe à parte o ónus da afirmação/alegação (de factos) e subsequente ónus da prova dos factos cuja subsunção a uma norma jurídica lhe propicia uma situação favorável.
Sendo certo que a parte que tem o ónus da prova tem naturalmente o ónus da alegação quanto a esses factos, já o contrário não é necessariamente correto.
No caso em que o Autor pretende exigir do Réu o cumprimento de uma obrigação, na petição inicial o autor terá de alegar o incumprimento do Réu sob pena de, no mínimo, lhe ser exigido o aperfeiçoamento da petição inicial por insuficiência da matéria de facto. A prova do cumprimento incumbe ao Réu enquanto facto extintivo do direito do autor (Artigo 342º, nº2 do Código Civil). O ónus da prova do cumprimento de uma obrigação onera o respetivo devedor – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.1.2007, João Camilo, acessível em www.dgsi.pt/jstj
Ou seja, incumbe ao autor o ónus de alegação do incumprimento mas não o ónus da prova do incumprimento.
II-O ónus da prova objetivo nos termos do qual é sempre sobre a parte onerada com a prova dos factos que recaem as consequências da falta ou insuficiência de prova, ou seja, perante a dúvida irredutível sobre a realidade do facto que é pressuposto da aplicação de uma norma jurídica, o julgador decide como se estivesse provado o facto contrário – cf. Artigos 342º do Código Civil, 414º do Código de Processo Civil, TEIXEIRA DE ...., As partes, o objeto e a prova na ação declarativa, 1995, pp. 215-217; Ac. Da RP de 16.2.95, Coelho da Rocha, BMJ nº 444, p. 698.
O critério mais adequado para qualificar in concreto os factos como constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos é o critério ou teoria da norma, segundo o qual cada uma das partes está onerada com a prova de todos os factos que constituem pressupostos de uma norma que lhe é favorável, uma vez que o juiz só pode aplicar a norma a favor da parte que a invoca se ficar convencido da verificação de todos os elementos que constituem a respetiva previsão – cf. RITA LYNCE DE FARIA, A inversão do ónus da prova no direito civil português, Lex, 2001, p. 29.
A qualificação do facto como constitutivo, modificativo, impeditivo e extintivo só pode ser feita mediante uma análise de cada situação concreta e considerando a função que o facto desempenha atenta a posição das partes. Por outras palavras, “a obrigação de prova não está determinada pela qualidade do facto que se tem de provar, mas pela condição jurídica que tem em juízo aquele que o invoca” – CARLOS LESSONA, Teoria general de la prueba en derecho civil, p. 129, citado por Rita Lynce Faria, Op. Cit., p. 32.

Nas obrigações de dar e fazer, o credor só precisa provar que a obrigação nasceu e está vencida e ao devedor incumbe provar a realização da prestação (o cumprimento da obrigação como facto extintivo do crédito) ou que não cumpriu por causa legítima (cabe ao Réu provar outro facto extintivo, impeditivo ou modificativo do reclamado crédito do autor).[3]  Isto porque as obrigações de dar e fazer se mantêm inalteráveis no caso de não serem cumpridas.

Diversamente, nas obrigações de não fazer, incumbe ao credor provar não só o facto constitutivo da obrigação mas também o facto lesivo do devedor. Isto porque o incumprimento das obrigações de não fazer faz surgir um direito novo, qual seja o de o credor fazer desaparecer o facto lesivo. Daí que o credor tenha de identificar o facto lesivo para que possa pedir a sua eliminação.

Em sede de fixação da matéria de facto provada, não devem confundir-se as normas sobre o ónus da prova com a valoração da prova.

Assim, se os factos alegados e vertidos nos Temas da Prova ficaram devidamente provados (ocorreu prova suficiente), o juiz não tem de recorrer à regra de decisão decorrentes das normas sobre o ónus da prova.

Diversamente, se depois de valorada a prova, o juiz entender que há factos que permanecem duvidosos e incertos (ocorre uma deficiência probatória), então terá de recorrer às normas sobre o ónus da prova para a fixação da matéria de facto, valorando a prova contra a parte a quem incumbia o respetivo ónus da prova, respondendo Não provado ao artigo de alegação correspondente.

Por isso é que as regras do ónus da prova são subsidiárias no sentido de que apenas operam, se necessário, posteriormente à valoração da prova – cf. SILVIA GARCIA-CUERVA GARCIA, “Las reglas generales del onus probandi” in Objecto y carga de la prueba civil, Bosch, 2007, pp. 54-55.

No que tange aos requisitos da ação de impugnação pauliana acima enumerados sob a) a d) e f) e g), o ónus da respetiva prova incumbe ao autor nos termos do Artigo 342º, nº1, do Código Civil. Quanto ao requisito enunciado sob e) (ato esse que provoque, para o credor, a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade) existe a norma especial do Artigo 611º do Código Civil, nos termos da qual incumbe ao devedor ou ao terceiro interessado na manutenção do ato a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor, o que se justifica pela maior facilidade que o devedor tem de fazer essa prova (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.10.2015, Prazeres Beleza, 903/11). Deste modo, a prova sobre o caráter oneroso ou gratuito do ato impugnado cabe ao autor da ação. Conforme se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 3.11.2009, Carlos Moreira, 1751/04, se se discutir na impugnação pauliana o caráter oneroso ou gratuito do ato impugnado, tanto mais atendendo a que a prova da gratuidade beneficia o autor porque dispensa o requisito da má fé, impende sobre o autor o ónus da prova do animus donandi.

Feito este excurso, apreciemos então as questões colocadas pelo apelante.

Ao alegar no artigo 20º da petição que a 2ª Ré não pagou qualquer valor pelo imóvel, pretendeu o autor aduzir um facto-base suscetível de despoletar uma presunção judicial no sentido de que o negócio foi simulado e/ou visou exclusivamente desviar o património da 1ª Ré para a 2ª Ré. Este facto indiciário desempenha a função de facto constitutivo da pretensão do autor, incumbindo a este a respetiva alegação e prova – cf. Luís Filipe Pires de ...., Prova por Presunção no Direito Civil, 2012, p. 25. Assim, incorre em erro de raciocínio a apelante quando alega que a prova de que ocorreu um efetivo pagamento incumbe à 2ª Ré.
A circunstância de se tratar de um facto negativo em nada altera o que fica dito. Com efeito, a prova de um facto negativo, por si só, não altera as normas de ónus probatório. Todavia, como não se demonstra materialmente um facto que não ocorreu, a prova de um facto negativo fluirá da demonstração de um facto positivo contrário ou mediante presunções das quais possa inferir-se o facto negativo.[4] Em tese, a apelante conseguiria lograr provar tal facto negativo, por exemplo, requerendo a junção da documentação bancária atinente ao pagamento e/ou ao depósito do preço (cf. Artigos 429º e 430º do Código de Processo Civil), o que não foi requerido pela apelante.

Mais sustenta a apelante que deve constar da sentença que não ficou provado que «A 2ª Ré receba efetivamente qualquer valor proveniente do arrendamento do imóvel referido no nº 6». Também aqui incorre a apelante em erro de raciocínio. Trata-se de um facto-base de uma presunção judicial no sentido de que o negócio foi simulado e/ou visou exclusivamente desviar o património da 1ª Ré para a 2ª Ré. Este facto indiciário desempenha a função de facto constitutivo da pretensão do autor, incumbindo a este a respetiva alegação e prova – cf. LUÍS FILIPE PIRES DE ...., Prova por Presunção no Direito Civil, 2012, p. 25. Sucede que, quanto a este facto, a apelante nem o alegou na petição como lhe incumbia. Também aqui a apelante poderia ter requerido diversas diligências de prova, designadamente pedido de junção de cheques e/ou transferências comprovativas de pagamentos, o que não fez.

Acresce que o tribunal de primeira instância deu como provado que «A 2ª Ré deu de arrendamento o referido imóvel, emitindo recibos (docs. De fls. 104-I a 104-aa)», valorando livremente a prova em tal sentido. De forma implícita, este facto é incompatível com a pretensão da apelante. O tribunal valorou a única prova documental que foi trazida a tal propósito aos autos, não tendo de se pronunciar sobre pretensas omissões probatórias da Ré quando esta não está onerada com o ónus da prova do pagamento efetivo das rendas.

Por outro lado, constituem realidades diversas dar-se (i) como não provado que «A 2ª Ré receba efetivamente qualquer valor proveniente do arrendamento do imóvel referido no nº 6» (ii) ou dar-se como provado que «A 2ª Ré não recebe qualquer valor proveniente do arrendamento do imóvel». Lidas as alegações, a apelante peticiona que se declare o referido em (i) mas, do contexto das mesmas e da sua interpretação, inferimos que o que a apelante pretende é que se dê como provado o referido em (ii).

Consoante sabemos, da resposta negativa (“não provado”) a um facto alegado não se pode inferir a ocorrência de quaisquer outros factos, dela apenas resultando que o facto em causa – no contexto factual a considerar – inexistiu, tudo se passando como se o facto não tivesse sido alegado.[5] Assim, da eventual prova do cenário referido em (i) (e peticionado pela apelante) não derivaria a provar do referido sob (ii).

Termos em que improcede a apelação neste circunspecto.

Improcedendo a pretendida alteração da matéria de facto não provada, improcede consequentemente a tese da apelante no sentido de que ocorreu erro de julgamento em virtude de não ter ocorrido uma compra e venda mas sim um ato gratuito. Isto na precisa medida em que a apelante estribava a tese do ato gratuito na alteração fáctica que peticionava, tendo sucumbido esta.

Da prova da má fé bilateral das Rés a partir de presunções judiciais
A consciência do prejuízo não é, em regra, suscetível de prova direta mas sim de prova tradicionalmente classificada como indireta. Neste âmbito, as presunções judiciais assumem um protagonismo determinante permitindo alcançar a prova da má fé. Na expressão do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.9.2005, “A prova de factos do foro interno, como aqueles de que depende a afirmação do requisito da má fé necessário à impugnação pauliana, constitui tarefa árdua e de difícil concretização para o autor. É em casos como este que as presunções judiciais assumem particular importância na formação da convicção quanto à fixação da matéria de facto, embora condicionadas sempre a uma utilização prudente e sensata.” Em sentido confluente, vejam-se ainda os Acórdãos da Relação de Lisboa de 30.4.2013, Manuel Marques, 1380/10 e do STJ de 25.11.2014, Pinto de Almeida, 6629/04.

Sustenta a apelante que existem diversos factos de cuja conjugação resulta que houve um conluio entre as Rés no sentido de prejudicar a apelante. Alega, de forma circunstanciada, que constituem factos conhecidos e relevadores do conluio entre as Rés os seguintes:
i.O facto da 1ª R. não ter sequer contestado os presentes autos, confessando assim os factos articulados pelo Banco ora apelante;
ii.O facto de nenhuma das Rés ter provado o pagamento/recebimento efetivo do preço declarado na escritura;
iii.O facto da 2.ª R. não ter feito qualquer prova quanto ao efetivo recebimento das rendas provenientes do arrendamento do dito imóvel;
iv.O facto da sociedade ...., da qual é acionista a 1.ª R., ter a sua sede em Viseu, cidade em que a 2.ª R. já teve sede, sendo o objeto social destas sociedades similar (o que denota uma possível relação de proximidade);
v.O facto do fiscal único e a suplente de ambas as sociedades serem os mesmos;
vi.O facto de a 1.ª R. ter vendido todo o seu património com a ajuda das duas sociedades com quem tem relação de estrita proximidade, num espaço de cinco meses.

Vejamos.

No que tange ao referido sob i. não se alcança qualquer sentido útil ao mesmo porquanto existe o regime específico do Artigo 568º, alínea a), do Código de Processo Civil, nos termos do qual a contestação apresentada por um dos réus aproveita ao réu não contestante quanto aos factos que o contestante impugnar. A não impugnação da 1ª Ré está suprida pela impugnação da 2ª Ré, não podendo o mesmo facto ser considerando como provado em relação a uma ré e não provado em relação a outra ré.

Quanto ao referido sob ii e iii, a questão já foi analisada no ponto que antecede para o qual remetemos, estando prejudicada a apreciação da mesma.

A factualidade enunciada sob iv e v está provada na sentença sob 8 a 12 e 20. Contudo, não cremos que tal factualidade comporte a leitura propugnada pela apelante. As coincidências provadas do objeto social das sociedades, transitória da sede em Viseu e do fiscal único (e seu suplente) não são necessariamente indiciadoras do intuito de conluio. Com efeito, o que mais releva nesta sede é a relação de confiança entre o alienante e o adquirente (tratando-se de sociedades, entre os legais representantes), relação essa que pode assentar em relações de amizade, parentesco, negócios anteriores ou outras, o que denominamos de indício affectio – cf. o nosso Prova por Presunção no Direito Civil, Almedina, 2012, pp. 198, 226, 242. Neste tipo de situações, o alienante tem um especial cuidado na eleição do adquirente (não vende por anúncio no jornal). E, quanto a tal relação de confiança que determina a eleição do adquirente, a apelante nada alegou nem demonstrou de relevo. Neste tipo de ações, é curial que o autor faça um trabalho de campo no sentido de descobrir que relações intercedem entre alienante e adquirente para detetar este tipo de indício e outros.  Note-se que pode ocorrer factualidade indiciadora do indício affectio apesar da alienante e da adquirente terem objetos sociais distintos, sedes em lugares diversos e fiscais díspares. Nesta sede, releva também sobremaneira o indício que denominamos de movimento bancário ( cf. Op. Cit.,pp. 213-214) sendo que a apelante – consoante já vimos – não requereu diligências de prova a tanto dirigidas. Tanto basta para demonstrar a insuficiência destes factos.

Finalmente, argumenta a apelante com o facto de a 1.ª R. ter vendido todo o seu património com a ajuda das duas sociedades com quem tem relação de estrita proximidade, num espaço de cinco meses.

A alienação dos autos ocorreu em 15.3.2010 (facto 6) e a 2.8.2010, a 1ª Ré transferiu para a .... – Sociedade Imobiliária, SA a propriedade de um outro imóvel, subscrevendo em espécie o aumento de capital social desta sociedade (facto 7). As escrituras foram outorgadas no mesmo cartório (facto 13), não se conhecendo mais bens penhoráveis de igual ou maior valor, livres de ónus e encargos, de que a 1ª Ré seja proprietária (facto 14). As livranças venceram-se em 5.8.2010 e em 30.7.2010 (facto 1).

A proximidade temporal entre o vencimento das livranças e as duas alienações ativa o indício tempus – cf. Op. cit., p. 228 e 242. Por seu turno, a venda de todo o património ou da parte mais significativa do mesmo num curto período de tempo ativa o indício omnia bona (cf. Op. Cit., p. 243) que revela designadamente a simulação de insolvência. Estes indícios apontam para a formulação de um desiderato/propósito por parte do alienante mas – de per si – nada dizem sobre o conhecimento do adquirente sobre tal propósito nem que tal propósito seja comum ao adquirente. São factos-indiciários unilaterais e não bilaterais. Dito de outra forma, destes indícios não resulta necessariamente que a 2ª Ré conhecesse qual o património efetivo da 1ª Ré nem que a 2ª Ré soubesse que a 1ª Ré estava a alienar todo o seu património para o subtrair à ação de um credor. Tal conhecimento por parte da 2ª Ré derivaria, isso sim, de outros indícios designadamente dos indícios affectio, movimento bancário e investimento (cf. Op. Cit., p. 244).

Termos em que concluímos que inexistem factos-indiciários suficientes para alicerçar a conclusão de que a 2ª Ré atuou de má fé (requisito acima enunciado sob f)).

Sumário elaborado pelo relator (Artigo 663º, nº7, do Código de Processo Civil):
1.Incumbe ao autor de ação de impugnação pauliana a alegação e prova dos seguintes requisitos constitutivos da impugnação pauliana: a existência de determinado crédito; um ato praticado pelo devedor que não seja de natureza pessoal; anterioridade do crédito em relação ao ato ou, sendo posterior, ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; que tenha havido má fé, tanto da parte do devedor como de terceiro, tratando-se de um ato oneroso, entendendo-se por má fé a consciência do prejuízo que o ato cause ao credor; se o ato for gratuito, não é exigível a má fé.
2.Quanto ao requisito de procedência da impugnação pauliana consistente em que o ato provoque, para o credor, a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade, face à norma especial do Artigo 611º do Código Civil, incumbe ao devedor ou ao terceiro interessado na manutenção do ato a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor, o que se justifica pela maior facilidade que o devedor tem de fazer essa prova.
3.Os factos-indiciários desempenham a função de facto constitutivo da pretensão do autor, incumbindo a este a respetiva alegação e prova.
4.A prova de um facto negativo, por si só, não altera as normas de ónus probatório. Porém, como não se demonstra materialmente um facto que não ocorreu, a prova de um facto negativo fluirá da demonstração de um facto positivo contrário ou mediante presunções das quais possa inferir-se o facto negativo.
5.As presunções judiciais assumem especial relevância para a prova do requisito da má fé bilateral (consciência do prejuízo), tratando-se da prova de um facto de índole intelectiva e volitiva.
6.Todavia, e para tal efeito, o peso relativo das presunções judiciais não é uniforme, havendo indícios que assumem um caráter mais unilateral (apontam para um desiderato do alienante, não necessariamente partilhado e conhecido do adquirente) enquanto outros evidenciam – de forma clara- a partilha e conhecimento de tal desiderato por parte do adquirente.


DECISÃO.

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.



Lisboa, 27-09-2016


                                  
(Luís Filipe Pires de Sousa)                                  
(Carla Câmara)                                  
(Maria do Rosário Morgado)



[1]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
[3]Cf. ANTUNES VARELA,  Manual de Processo Civil, 2ª Ed., p. 462; ANSELMO DE CASTRO,  Direito Processual Civil Declaratório, III Vol., p. 362; Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de  28.11.96, Casanova Abrantes, BMJ nº 461, p. 511, de  9.7.1998, Pais do Amaral, CJ 1998 – III, p. 99; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de  8.7.2000, Miranda Gusmão, CJ AcSTJ – II, p. 104.
[4]Cf.  Michele Taruffo, La Prova nel Processo Civile, “Trattato di Diritto Civile e Commerciale”, 2012, p. 21, enfatiza que a prova de um facto negativo - em regra - decorre de forma indireta pela demonstração de um facto incompatível com a verificação do primeiro.  O que implica uma diferença entre o facto como é definido na norma em referência e o facto que é efetivamente objeto de prova.
[5]Cf. Acórdãos do STJ de 9.1.91, AJ 15º/16º-20, de 6.6.2000, Sumários, 42º-11, de 7.4.2005, Oliveira Barros, de 20.4.2006, Salvador da Costa, de 14.6.2007, Pereira da Silva, acessíveis em www.dgsi.jstj/pt.