Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13359/02.6TJLSB.L1-7
Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA
Descritores: DANOS
RESPONSABILIDADE DO PRODUTOR
CULPA
EXCEPÇÕES
FALTA DE RESPOSTA
EFEITOS
PROCESSO SUMÁRIO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
COISA DEFEITUOSA
PRODUTO DEFEITUOSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- Os danos que o DL nº 383/89, de 6.11, veio ressarcir são apenas os sofridos pelos utilizadores, resultantes de morte ou lesão corporal, e os danos em coisa diversa do produto defeituoso, desde que seja normalmente destinado ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente este destino, pelo que, à luz dos arts. 12, nº 5, da Lei nº 24/96, e 1 e 8 do DL nº 383/89, aplicáveis ao caso, estão excluídos da responsabilidade do produtor os danos sofridos no próprio produto defeituoso;
II- Tendo sido apenas alegadas, em acção instaurada em 12.7.2002 pelo respectivo adquirente contra o produtor, deficiências de funcionamento que afectaram o veículo e o terão desvalorizado, e não se demonstrando a culpa do produtor na verificação das deficiências desse veículo, deve a acção improceder quanto ao mesmo;
III- Se a falta de resposta à excepção tem por efeito, no processo sumário, a admissão dos factos correspondentes (cfr. arts. 785, 463, nº 1, 505 e 490, todos do C.P.C. de 1961), tal pressupõe que o réu respeitou o disposto no art. 488 do mesmo C.P.C., especificando separadamente a excepção deduzida;
A inobservância pelo réu dessa regra pode ter por consequência, nos casos mais graves, a aplicação de sanção por litigância de má fé, mas ainda que não se justifique uma tal condenação, terá sempre de ter como efeito a inoperância da admissão dos factos alegados pelo réu em sede de excepção.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

I- Relatório:
CM veio propor, em 12.7.2002, contra MP, S.A.R.L., e SA, Lda, acção declarativa de condenação sob a forma sumária pedindo a condenação das RR. a pagar-lhe a quantia de € 11.921,57, acrescida de juros desde a citação e até integral pagamento. Alega, para tanto e em síntese, que na data de 13.3.1999 adquiriu à 2ª Ré, em estado novo, o veículo da marca “M”, modelo “C”, com a matrícula …-…-…, pelo preço de Esc. 2.890.000$00 (equivalente a € 14.415,26). Mais refere que tal veículo apresentou, de imediato, deficiências de fabrico que o A. reclamou junto da 1ª Ré por carta de 24.6.1999. Apesar de novas e sucessivas reclamações e deslocações às oficinas dos representantes da marca do veículo, para reparação de múltiplos problemas, os mais graves não ficaram solucionados, como o da direcção e o da falta de potência do motor (que não desenvolvia e fazia poço), o que obrigou o A. a adquirir outra viatura para a sua vida laboral e pessoal.
Contestou a 2ª Ré, “SA”, defendendo, no essencial, que a última intervenção na sua oficina foi em 5.8.1999, tendo esta solucionado as avarias então reclamadas. Mais refere que desde essa data o A. jamais reclamou junto de si qualquer posterior anomalia, pelo que ignora os invocados defeitos e reparações posteriores. Afirma que todos os demais defeitos apenas foram comunicados à 1ª Ré e a uma outra concessionária, mesmo assim, e sem qualquer efeito com relação à 2ª Ré, decorrido já o prazo de 6 meses após a entrega da viatura, ocorrida em 13.3.1999. Por último, diz que o A. não instaurou a acção no prazo de 6 meses, como lhe competia. Conclui pela improcedência da causa.
Contestou a 1ª Ré, “MP”, alegando, além do mais e em súmula, que o veículo do A. não enfermou de deficiências que tivessem impedido a sua utilização normal, não apresentando o mesmo, designadamente, a invocada falta de potência do motor. Mais refere que muitos dos defeitos reclamados apenas resultaram de utilização excessiva da viatura por condução anormal sendo, ainda assim, sempre reparadas sem qualquer custo para o A.. Afirma que estava até na disposição de aceitar as reparações a efectuar pela concessionária VTD, mas que o A. mandou suspender tal reparação. Pede, de igual modo, a improcedência da acção.
A fls. 450 e ss., veio a ser proferido despacho saneador, com selecção da matéria de facto e organização de base instrutória. A fls. 464, veio a ser indeferida a reclamação que fora apresentada pela 1ª Ré, requerendo o aditamento de factos à base instrutória.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, uma vez fixada a matéria assente (fls. 547 e ss.), foi proferida sentença, em 4.1.2013, que decidiu nos seguintes termos: “(...) julgando esta acção parcialmente procedente e provada, decido condenar as Rés MP  , S.A., e S – , Lda., a pagarem, solidariamente entre si, ao Autor CM, a título de indemnização por danos emergentes, a quantia pecuniária de € 7.207,63 (sete mil, duzentos e sete euros e sessenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, às sucessivas taxas supletivas para negócios civis – contados desde a citação das Rés, até pagamento efectivo e integral.
Absolvo as Rés de todo o demais peticionado pelo Autor.
As custas são a cargo de Autor e Rés, na proporção dos decaimentos – cf. artigo 446.º/1 e 2 do Código de Processo Civil. (...).”
Inconformadas, cada uma das RR. interpôs recurso, sendo os mesmos recebidos como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos e efeito suspensivo (fls. 582).
Apresentadas as alegações pela 1ª Ré, “MP”, foram ali formuladas as seguintes conclusões que se transcrevem nos precisos termos:
1. (…)
Pede a revogação da sentença apelada, sendo a 1ª Ré absolvida do pedido.
Apresentadas as alegações pela 2ª Ré, “S”, foram por esta formuladas as conclusões que a seguir também se transcrevem:

(…)
Pede a revogação da sentença, sendo considerada procedente a excepção da caducidade.
Não se mostra apresentada resposta aos recursos.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

                                                                        ***
II- Fundamentos de Facto:
A 1ª instância fixou como provada a seguinte factualidade:
(…)                                                               
                                                                          ***
III- Fundamentos de Direito:

Cumpre apreciar do objecto do recurso.
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o seu âmbito. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
Compulsadas as conclusões de cada um dos recursos, são as seguintes as questões suscitadas:
Recurso da 1ª Ré, “MP”:
- aditamento/correcção da matéria de facto seleccionada ao abrigo do art. 511 do C.P.C. de 1961;
- impugnação da matéria de facto (arts. 4º, 6º, 7º, 12º, 13º e 18º da base instrutória);
- regime jurídico aplicável e responsabilidade da 1ª Ré.
Recurso da 2ª Ré, “S”:
- procedência da excepção de caducidade e omissão de pronúncia na sentença, ou necessidade de aditar factos à base instrutória para apreciação da excepção;
- impugnação da matéria de facto (arts. 3º, 4º, 6º, 7º, 12º, 13º, 15º, 16º, 17º e 18º da base instrutória);
- regime jurídico aplicável e responsabilidade da 2ª Ré.

Apelação da 1ª Ré, “MP”:
A 1ª Ré, “MP” começa por pedir o aditamento dos factos alegados nos artigos 34º, 35º, 36º e 39º da sua contestação, por entender serem relevantes para a decisão da causa, e impugna a resposta dada aos arts. 4º, 6º, 7º, 12º, 13º e 18º da base instrutória.
Por fim, sustenta que foi feito incorrecto enquadramento jurídico do caso, invocando, designadamente e em súmula, que os direitos previstos no artigo 12, nº 1, da Lei nº 24/96, de 31.7, só podem ser exercidos contra o fornecedor da coisa defeituosa e que a 1ª Ré não vendeu a viatura ao A., nem se provou a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil a que alude o art. 483 do C.C..
Tendo em vista que, de acordo com os factos acima assentes, é já possível concluir pela inviabilidade da acção contra a demandada “MP”, ora apelante, inútil se afigura conhecer das anteriores questões suscitadas no recurso, pelo que se procede, de imediato, à apreciação do mérito da pretensão do A. dirigida contra aquela Ré.
Na sentença concluiu-se, como dissemos, pela condenação solidária das RR. a pagar ao A. a quantia de € 7.207,63 “a título de indemnização por danos emergentes”, justificando-se a decisão nos seguintes termos: “(...) Da apreciação da matéria de facto adquirida neste processo é incontestável que o veículo do modelo C vendido ao Autor apresentava vícios que afectaram o seu funcionamento – cf. alíneas B), C), H) e N) dos factos provados. Também não oferece dúvida a afirmação de que o Autor denunciou reiteradamente os defeitos, nos termos do n.º 2 do artigo 916.º do Código Civil.
O bem fornecido ao Autor deveria ser apto ao fim a que se destina e a produzir os efeitos que lhe são atribuídos (n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (Defesa do Consumidor). Os defeitos, à luz da matéria de facto, têm que ser considerados originários [cf. n.º 4 da norma citada e no que se reporta aos vícios da alínea C) dos factos provados].
Quer o vendedor quer o produtor são responsáveis pelos defeitos da coisa vendida – artigo 12.º/1 e 5 da citada Lei n.º 24/96, de 31 de Julho.
Os defeitos foram denunciados em tempo e acham-se demonstrados, com excepção da alegada falta de potência, que não se provou e que era um vício que mereceria a qualificação de redibitório. Contudo, é inquestionável – pela matéria dos autos – que o veículo da marca M, modelo C, com a matrícula …-…-…, apresentava deficiências que afectavam o uso do mesmo. O Autor procurou a reparação dos defeitos (n.º 1 do citado artigo 12.º); a reparação total não foi conseguida, nem a substituição – constata-se pois que o iter (caminho) previsto no artigo 12.º/1 da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho foi respeitado pelo Autor.
Não tendo obtido satisfação (ou seja: tendo falhado a reconstituição natural) resta ao lesado a satisfação indemnizatória, que é assegurada pelo artigo 12.º/4, a qual cobre danos patrimoniais e danos não patrimoniais (estes não pedidos).
Da conjugação das normas extraídas dos n.ºs 4 e 5 do artigo 12.º da Lei de Defesa do Consumidor aplicável à data dos factos ter-se-á de concluir que as responsabilidades do vendedor e do produtor são objectivas (independentes de culpa, ou seja dum juízo de censura no caso concreto) e não se excluem entre si. Trata-se aqui dum afloramento da relevância substancial que a lei outorga à protecção dos direitos do consumidor (artigo 16.º/1 da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho).
Nesta linha de raciocínio entende-se que a obrigação em causa tem a natureza duma verdadeira obrigação solidária dimanada da lei – cf. artigos 512.º/1 e 2 e 513.º, ambos do Código Civil.
Assim, verifica-se nos autos a responsabilidade objectiva – sem dependência de dolo ou negligência – de ambas as Sociedades Rés. Tal responsabilidade funda-se directamente na verificação dos vícios de funcionamento do veículo, relevando a primeira Ré do produtor e a segunda Ré do vendedor, nos termos já referidos.
Tendo o iter legal sido respeitado pelo lesado, ora Autor, que denunciou os defeitos e solicitou a sua reparação, cumpre agora – em face dos defeitos subsistentes – determinar o quantum indemnizatório, traduzido em danos emergentes.
Haverá que considerar no entanto que não se provou que o veículo fosse inutilizável, que não é o mesmo que apresentar deficiências que afectam o seu uso. Assim, para calcular a desvalorização do veículo haverá que considerar a data em que os autos reflectem que ele deixou de ser utilizado (8 de Agosto de 2004). A desvalorização a considerar não poderá ser inferior a metade do preço de aquisição: 1.445.000$00 (correspondentes a € 7.207,63).
A este valor não acrescem as despesas com o parqueamento: € 972,00. Com efeito, não se demonstrou que o Autor ficou desembolsado daquela quantia [cf. alínea R) dos factos provados], pelo que a sua esfera patrimonial não sofreu a lesão correspondente.
Ao valor referido em primeiro lugar - € 7.207,63 – acrescem juros de mora, às sucessivas taxas supletivas para negócios civis – contados desde a citação das Rés.
(...)”.
O Tribunal a quo sustentou, assim, a responsabilidade da Ré “MP” no nº 5 do art. 12 da Lei nº 24/96, de 31.7 (Lei de Defesa do Consumidor).
Sucede que a acção foi instaurada em 12.7.2002, pelo que há que ter em conta a legislação então aplicável.
Dispunha então o referido art. 12 da Lei nº 24/96, de 31.7 (antes da alteração introduzida pelo DL nº 67/2003, de 8.4), que: “1. O consumidor a quem seja fornecida a coisa com defeito, salvo se dele tivesse sido previamente informado e esclarecido antes da celebração do contrato, pode exigir, independentemente de culpa do fornecedor do bem, a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço ou a resolução do contrato.
2. O consumidor deve denunciar o defeito no prazo de 30 dias, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, após o seu conhecimento e dentro dos prazos de garantia previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 4.º da presente lei.
3. Os direitos conferidos ao consumidor nos termos do n.º 1 caducam findo qualquer dos prazos referidos no número anterior sem que o consumidor tenha feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, não se contando para o efeito o tempo despendido com as operações de reparação.
4. Sem prejuízo do disposto no número anterior, o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.
5. O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos de produtos que coloque no mercado, nos termos da lei.”

Resulta, assim, deste nº 5 do referido art. 12 da Lei nº 24/96, em correspondência, aliás, com o estipulado no DL nº 383/89, de 6.11, então vigente sobre a responsabilidade civil do produtor, que este é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos de produtos que coloque no mercado.
Para efeitos do indicado DL nº 383/89, produto defeituoso é aquele que, no momento da sua entrada em circulação, não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar (art. 4, nº 1, do DL nº 383/89).
Ainda assim, nem todos os danos causados por defeitos de segurança de um produto são ressarcíveis, pois o produtor apenas está vinculado a reparar os danos resultantes de morte ou lesão pessoal e os danos em coisa diversa do produto defeituoso, desde que normalmente destinada ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente esse destino (art. 8 do referido DL nº 383/89). Dito de outro modo, os danos que o DL nº 383/89, de 6.11, veio ressarcir são apenas os sofridos pelos utilizadores, resultantes de morte ou lesão corporal, e os danos em coisa diversa do produto defeituoso, desde que seja normalmente destinado ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente este destino([1]).
Estão, por conseguinte, excluídos da responsabilidade do produtor, à luz dos mencionados arts. 12, nº 5, da Lei nº 24/96, e 1 e 8 do DL nº 383/89, os danos sofridos no próprio produto defeituoso.
Como se afirma também no Ac. da RP de 14.7.2010([2]), a propósito do regime jurídico a que vimos aludindo: “(...) No caso de morte ou lesão pessoal – seja da integridade física ou psíquica - são ressarcíveis todos os danos sejam patrimoniais ou não patrimoniais (artº 496 do Código Civil). Na determinação da extensão dos danos, do quantum debeatur, valem, por inteiro, as regras gerais de direito comum (artº 566 nº 2 do Código Civil).
No tocante aos danos causados em coisas, apenas são reparáveis os danos causados em coisa diversa do produto defeituoso, desde que normalmente destinado ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente esse destino, com dedução de uma franquia de 500,00€ (artº 8 nº 1 e 9 do DL nº 383/89, de 6 de Novembro) (...). Excluem-se, portanto, do perímetro da reparabilidade, os danos sofridos no próprio produto defeituoso, os danos ulteriores que possam resultar da destruição das coisas de uso privado e os danos patrimoniais puros, i.e., os danos que são autónomos e independentes da violação de direitos absolutos.
O contraste entre os danos da morte ou na lesão pessoal e a danificação de coisas revela, no plano subjectivo, esta diferença fundamental: ao passo que no plano danos pessoais a tutela é disponibilizada a qualquer pessoa, ainda que seja um profissional que utiliza o produto no exercício da sua profissão, no domínio dos danos em coisas, apenas se protege o consumidor em sentido estrito, i.e., aquele utilizava a coisa destruída ou danificada pelo produto defeituoso, para um fim privado, pessoal ou doméstico e não para um fim profissional (artº 2 nº 1 da Lei nº 24/96, de 31 de Julho).
 (...).”
Ora, é manifesto que o A. não funda a responsabilidade da Ré “MP” em qualquer dano causado ou produzido por anomalias do veículo em questão, seja originando morte ou lesão corporal, seja por verificado em coisa diversa do produto defeituoso, invocando apenas deficiências de funcionamento que afectaram o próprio veículo e, assim, o terão desvalorizado.
De resto, a sentença apenas considerou verificarem-se vícios que afectam o uso da viatura, procedendo à determinação dessa desvalorização.
Não pode, por conseguinte, afirmar-se, como se afirmou na sentença recorrida, que “Quer o vendedor quer o produtor são responsáveis pelos defeitos da coisa vendida – artigo 12.º/1 e 5 da citada Lei n.º 24/96, de 31 de Julho”, que “as responsabilidades do vendedor e do produtor são objectivas (independentes de culpa, ou seja dum juízo de censura no caso concreto)”, ou ainda que “a obrigação em causa tem a natureza duma verdadeira obrigação solidária dimanada da lei – cf. artigos 512.º/1 e 2 e 513.º, ambos do Código Civil”, posto que, como vimos, o produtor, qualidade em que a Ré “MP” é aqui demandada, não responde, ao abrigo da legislação aplicável, nos mesmos termos que o vendedor.
Mas se a Ré “MP” não pode ser responsabilizada nos termos do art. 12, nº 5, da Lei nº 24/96, e arts. 1 e 8 do DL nº 383/89, também é certo que não se vislumbra outro fundamento que justifique a sua condenação, o que o art. 13 do referido DL nº 383/89 sempre consentiria([3]).
Uma vez que o A. não contratou com a 1ª Ré, apenas poderia esta responder com base em responsabilidade civil extracontratual (art. 483 do C.C.).
Por força deste dispositivo: “1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. 2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.”
Assim, e a menos que esteja legalmente consagrada a responsabilidade objectiva, para que nasça a obrigação de indemnizar é necessário que o agente pratique um acto ilícito, culposo e adequado a causar danos ao lesado.
Ora, conforme resulta da factualidade assente e se reconheceu, afinal, na própria sentença sob escrutínio, nenhuma prova se fez da culpa da 1ª Ré na verificação das deficiências da viatura dos autos. Pelo que também não poderá a 1ª Ré responder perante o A. ao abrigo do indicado art. 483 do C.C..
Por conseguinte, e em conclusão do que se deixa dito, tem de concluir-se, desde já, pela improcedência da acção quanto à Ré “MP”.
Procede, deste modo e sem necessidade de outras considerações, a apelação da 1ª Ré.

Apelação da 2ª Ré, “S”: Da excepção de caducidade e omissão de pronúncia na sentença, ou necessidade de aditar factos à base instrutória para apreciação da excepção:
No que respeita ao recurso interposto pela 2ª Ré, constata-se que também esta pede a ampliação da base instrutória.
Uma vez que o aditamento sugerido por esta 2ª Ré se prende com a arguição da excepção da caducidade, há que verificar se tal excepção foi invocada e em que termos, se houve omissão de pronúncia na sentença a tal propósito e se é indispensável produzir ainda prova sobre a matéria correspondente.
Diz a 2ª Ré, “S”, em síntese, que invocou, nos arts. 29º a 31º da contestação por si apresentada, a excepção da caducidade, sendo que, não tendo havido “réplica”, os factos respectivos deveriam ter sido dados por assentes, julgando-se logo procedente a excepção.
Sustenta ainda que, em todo o caso, o Tribunal a quo não se pronunciou na sentença sobre a questão, pelo que ocorre a nulidade prevista no art. 668, nº 1, al. d), do C.P.C..
Por último, refere que, julgando-se necessária a produção de prova sobre a matéria, na base instrutória não se encontram vertidos todos os factos alegados com interesse para a decisão, mostrando-se ainda relevante perguntar também o que consta dos artigos 9º e 24º da sua contestação: “Desde essa data (5.8.1999), o A. tão pouco reclamou qualquer posterior anomalia à 2ª R.” e “Quanto às demais anomalias, foram todas comunicadas à 1ª R. e à U e não à 2ª R.”.
Analisando.
Alegou a 2ª Ré “S”, na sua contestação, designadamente, que: “O A. utilizou pela última vez os serviços de reparação daquela (2ª Ré), no dia 5 de Agosto de 1999” (art. 7º); “Nessa data foi feito novo alinhamento da direcção e equilíbrio das rodas, procedimentos habituais, sempre que haja reclamação de desvio na direcção” (art. 8º); “Desde essa data que o A. não mais utilizou os serviços da 2ª Ré, nem tão pouco reclamou qualquer posterior anomalia” (art. 9º); “Desconhecendo a 2ª Ré os defeitos e reparações posteriores que o A. invoca, ignorando se tal corresponde à verdade” (art. 10º); “O A. passou a utilizar os serviços da U, empresa que terá procedido a reparações, relativamente às supostas anomalias posteriormente invocadas pelo A.” (art. 11º); “O A. invoca a ocorrência de anomalias na viatura, mas as reclamadas à 2ª Ré foram por esta solucionadas” (art. 23º); “Quanto às demais anomalias, foram todas comunicadas à 1ª Ré e à U e não à 2ª Ré, a qual as desconhecia e a elas era alheia” (art. 24º); “Todos os demais defeitos só foram reclamados pelo A. em 18 de Novembro de 1999 à U e em 22 do mesmo mês à Ré MP” (art. 29º); “Mesmo que se considerassem tais denúncias à 1ª Ré e à U, como vinculantes para a 2ª Ré, o que não se concede, sempre estas teriam ocorrido depois do prazo previsto no nº 2 do artº 916, decorrido já o prazo de 6 meses após a entrega da viatura, ocorrida em 13.3.99” (art. 30º); “E, ainda que se considerasse tais denúncias como operantes, na sequência das mesmas, o A. teria de ter accionado no prazo de 6 meses, o que manifestamente não fez” (art. 31º).
No final da contestação, a 2ª Ré concluiu, simplesmente, pela improcedência da causa e pela respectiva absolvição do pedido.
Decorre do que se deixa dito que a Ré “S”, embora não mencionando expressamente a palavra “caducidade” ou referindo tão pouco invocar uma excepção, exprimiu na sua defesa que, no que a si respeita, o A. não observou os prazos de que dispunha para a denúncia dos defeitos ou para a instauração da acção. Assim, a alegação, embora deficiente e processualmente inadequada, revela que a 2ª Ré pretendeu prevalecer-se da excepção peremptória da caducidade (cfr. arts. 916 e 917 do C.C. e 12, nºs 2 e 3, da Lei nº 24/96).
O A. não apresentou articulado de resposta, ao abrigo do art. 785 do C.P.C. de 1961 (uma vez que de acção sumária se trata), o Tribunal a quo nada disse a tal respeito no despacho saneador, que foi tabelar, e na sentença apenas se refere, sem esclarecer, que “Os defeitos foram denunciados em tempo”.
Como é sabido, ao juiz cabe resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e se o mesmo deixar de pronunciar-se sobre questões que, nos moldes indicados, devia apreciar, a sentença será nula (cfr. arts. 660, nº 2, e 668, nº 1, al. d), do C.P.C. de 1961).
Não se tendo pronunciado o Tribunal a quo sobre tal questão, como lhe competia, ocorre a nulidade da sentença, nos termos do art. 668, nº 1, al. d), do C.P.C., assistindo, nessa parte, razão à 2ª Ré/recorrente.
Todavia, tal conclusão não obstaria, de per si, ao conhecimento do recurso nem implicaria a devolução do processo à 1ª instância, cumprindo a esta Relação prosseguir com a correcção do vício, apreciando da questão em causa, nos termos do art. 715 do C.P.C..
Resta saber se estão fixados os factos indispensáveis à respectiva apreciação.
Defende a 2ª Ré/recorrente, num primeiro momento, que a ausência de resposta do A. à excepção impõe o reconhecimento dos factos alegados e a procedência da excepção.
No processo sumário, a falta de resposta à excepção tem por efeito a admissão dos factos correspondentes (cfr. arts. 785, 463, nº 1, 505 e 490, todos do C.P.C. de 1961).
No entanto, é também certo que, no caso, e como acima dissemos, a 2ª Ré desrespeitou claramente o disposto no art. 488 do mesmo C.P.C., não especificando separadamente a excepção deduzida, como lhe competia.
Tal regra responde a imperativos de clareza na alegação e concretiza os princípios da cooperação e da boa fé processual, pelo que a sua inobservância pode ter por consequência, nos casos mais graves, a aplicação de sanção por litigância de má fé([4]). No entanto, ainda que não se justifique uma tal condenação, o desrespeito da norma terá sempre de ter como efeito a inoperância da admissão dos factos alegados pelo réu em sede de excepção, pois seria intolerável “que a parte pudesse beneficiar da prova decorrente da omissão de impugnar a matéria da excepção que, por culpa sua, a contraparte não entendeu como tal.”([5]).
Isto posto, temos que, apesar de não ter sido apresentado articulado de resposta pelo A., não podia, na situação em análise, ter-se como admitidos por acordo os factos invocados pela 2ª Ré na sua contestação quanto à excepção da caducidade.
Todavia, verificamos que da matéria dessa contestação acima parcialmente transcrita, apenas o vertido nos arts. 7º e 23º foi levado à base instrutória, na versão “O Autor utilizou pela última vez os serviços de reparação da Ré S no dia 5 de Agosto de 1999?” (ponto 15º) e “As anomalias assinaladas pelo Autor à Ré S foram todas reparadas?” (ponto 16º).
Ora, tais factos (o primeiro foi dado como provado e o segundo como não provado) são claramente insuficientes para permitir conhecer da excepção em toda a sua abrangência, sendo que foram alegados outros pela 2ª Ré com manifesto interesse para a apreciação da caducidade e até para o apuramento da responsabilidade da 2ª Ré caso improceda a excepção.
Assim, e atento o exposto, devem aditar-se à base instrutória os seguintes factos:
Ponto 24º-  “Desde a data referida no quesito 15º (5.8.1999) que o A. não mais reclamou junto da 2ª Ré S qualquer posterior anomalia no veículo dos autos?”
Ponto 25º-  “As demais anomalias foram todas comunicadas pelo A. à 1ª Ré e à U e não à 2ª Ré, que as desconhecia?”
Ponto 26º-  “E apenas em 18.11.1999 à U e em 22.11.1999 à 1ª Ré MP?”

Da contradição nas respostas dadas:
Do que se deixa dito decorre que, devendo prosseguir a causa contra a Ré “S”, cumpre devolver o processo à 1ª instância para ampliação da matéria de facto e aditamento da base instrutória, produzindo-se depois prova sobre aquela matéria.
Voltando os autos à 1ª instância, impõe-se, contudo, ainda que aquele Tribunal ultrapasse a contradição verificada na resposta à matéria de facto denunciada pela rectificação do ponto F) supra dos factos assentes a que acima procedemos.
Na verdade, perguntava-se no quesito 3º “No dia 22 de Novembro de 1999 (folhas 13-14), o Autor voltou a reclamar das deficiências referidas no quesito 1.º, junto da MP  , S.A., pelas seguintes anomalias: avaria do rádio; apesar da mudança dos amortecedores dianteiros: persistência desvio da direcção para a direita; avaria do vidro do lado do «pendura»; problema no motor do veículo (perda de potência)?” e no quesito 4º “Os problemas referidos em 3º mantiveram-se após a revisão dos 15.000 km?”.
A ambos os quesitos o Tribunal recorrido respondeu provados.
Simultaneamente, no entanto, aquele Tribunal deu como não provados os quesitos 8º e 9º, onde se perguntava se o motor da dita viatura não desenvolvia e fazia “poço”, explicando-se, no mesmo despacho, por que razão não se considerou verificada a “falta de potência, nem o poço”.
É clara a incompatibilidade das respostas, pois não é possível afirmar, ao mesmo tempo, que não se provou a falta de potência do motor reclamada pelo A. (resposta aos quesitos 8º e 9º) e que, após a revisão dos 15.000Km, se mantinha, designadamente, o problema no motor do veículo (perda de potência) (resposta aos quesitos 3º e 4º).
Concluindo, além da indispensável ampliação da base instrutória com os novos pontos 24º a 26º acima indicados, deve responder-se, de novo, à matéria dos quesitos 8º, 9º, 3º e 4º por forma a evitar a contradição assinalada na resposta dada aos mesmos.
Cumpre, por isso:
- absolver a 1ª Ré “MP” do pedido; e
- anular o julgamento e a sentença proferida no que respeita à 2ª Ré “S”, ao abrigo do disposto nos arts. 712, nº 4, do C.P.C. 1961, e 662, nº 2, al. c), e nº 3, al. c), do C.P.C. de 2013, voltando os autos à 1ª instância onde, após proceder-se da forma referida, se decidirá em conformidade.
Procedem, assim, ambas as apelações nos moldes indicados.

                                                                       ***
IV- Decisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação, julgando procedentes as apelações interpostas pelas RR., em:
A) Revogar a sentença na parte em que condenou a Ré “MP” a pagar ao A. a quantia pecuniária de € 7.207,63, absolvendo-se a mesma Ré do pedido;
B) Anular o julgamento e a sentença proferida no que respeita à 2ª Ré “S”, determinando-se que a 1ª instância:
- amplie a Base Instrutória com o aditamento dos pontos 24º a 26º acima indicados, produzindo a prova julgada necessária e decidindo, depois, em conformidade;
- responda, de novo, à matéria dos quesitos 8º, 9º, 3º e 4º por forma a evitar a contradição assinalada na resposta dada aos mesmos.
Quanto ao recurso da 1ª Ré “MP”, custas em ambas as instâncias pelo recorrido/A..
Custas da apelação da 2ª Ré “S” pela parte vencida a final.
Notifique.                  

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Lisboa, 11.3.2014
                                                                             
                                                                                          Maria da Conceição Saavedra
                                                                  
       Cristina Coelho
                      
                                                        
       Roque Nogueira

[1] Cfr. Ac. do STJ de 27.5.2008, Proc. nº 08A1104, disponível em www.dgsi.pt.
[2] Proc. nº 1073/2000.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[3] De acordo com este art. 13 do DL nº 383/89, a responsabilidade civil do produtor concorre com outras fontes de responsabilidade.
[4] Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, 2ª ed. 2004, vol. I, pág. 414.
[5] Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., vol. 2º, pág. 321.

Decisão Texto Integral: