ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I) RELATÓRIO
J…, executado nos autos de que estes são apenso, que litiga com apoio judiciário concedido na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo, deduziu oposição à execução que lhe foi movida por C….
A oposição deu entrada em juízo em 14 de janeiro de 2013, tendo sido proferido despacho que, com fundamento em apresentação da oposição no terceiro dia útil após o termo do prazo legal, ordenou a notificação do Executado ora Recorrente para efetuar o pagamento da multa a que aludia o artigo 145.º, n.º 6, do CPC na redação anterior à entrada em vigor da Lei 41/2013, de 26 de junho (doravante ACPC).
Notificado, o Executado nada disse quanto à multa, liquidada no montante de € 306,00 por guia que lhe foi remetida em 21 de janeiro de 2013, com termo final do prazo para pagamento em 4 de fevereiro de 2013.
Em 1 de fevereiro de 2013 foi junto aos autos comprovativo do deferimento do pedido de apoio judiciário ao Executado/Recorrente na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo, concedido em 28 de janeiro de 2013.
Foi proferido despacho que julgou extemporânea a oposição sem possibilidade de aproveitamento da dilação prevista no artigo 145.º, nº 6, por omissão de pagamento da multa legal voluntariamente e após a mencionada notificação.
Deste despacho vem interposto o recurso em apreciação, tendo o Recorrente apresentado alegações que concluiu como segue:
«A. Os Recorrentes vêm interpor recurso do despacho que julgou o requerimento de oposição à execução extemporâneo, por falta de pagamento da multa correspondente à dilatação do prazo para a prática do acto.
B. Os Recorrentes não dispõem de meios económicos para proceder à liquidação da multa resultante da dilatação do prazo para a prática do acto.
C. Facto este, que se provou junto da entidade competente para o efeito, tendo o despacho de deferimento do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo sido junto aos presentes autos.
D. O despacho de desentranhamento do requerimento de oposição à execução, assim como, a sua devolução aos Recorrentes constitui um impedimento e uma limitação dos mesmos no acesso ao direito.
E. O que viola a lei fundamental, na medida em que, na medida em que, a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
F. Nos termos do n.º 8 do artigo 139.º do CPC, o juiz pode excepcionalmente determinar a redução ou a dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respectivo montante se revele manifestamente desproporcionado.
G. Consideramos, salvo melhor opinião, que face à fragilidade da posição em que se encontram as partes, estejamos perante um “poder-dever” e não uma mera faculdade, passível de aplicação consoante parâmetros indefinidos pelo legislador.
H. Deste modo, é claro que há que atentar à natureza dos actos de processo das partes, sendo que uns respeitam a actos mais importantes do que outros.
I. O acto processual ora em crise integra o primeiro grupo.
J. Sendo que, deste modo, a medida da culpa da parte no atraso verificado não só pode como deve variar.
K. Importa salientar que as partes invocaram as circunstâncias que deveriam ter levado à redução ou à dispensa da multa aquando da prática do acto, tendo em conta que,
L. Quanto à carência económica da parte, já resulta dos autos prova da manifesta carência económica dos Recorrentes, bem como, o crédito na mesma por parte do tribunal a quo.
M. Mediante o supra exposto e tendo em conta o valor considerável da acção, o juiz deveria ter procedido à redução ou à dispensa da multa, tendo em conta que as circunstâncias já resultavam do processo, à semelhança do decidido no Ac. do TRL, de 25.01.2011, in dgsi.
N. Sendo manifesta a carência económica dos Recorrentes para efeitos de pagamento daquela multa é, salvo melhor opinião, caso de se dispensar os mesmos do seu pagamento, nos termos do preceito legal acima mencionado.
A sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por uma outra, proferida pelo Tribunal ad quem, que repare o erro jurídico em que a anterior incorreu, tendo em conta as alegações do presente recurso;
TERMOS EM QUE,
Deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho de desentranhamento, com as legais consequências, PARA TAL, REQUEREM
Muito respeitosamente que o tribunal ad quem substitua o despacho recorrido por um que isente os Recorrentes da multa aplicada para que, deste modo, o requerimento de oposição à execução seja considerado, dando-se seguimento aos autos.
O Recorrente está abrangido pelo benefício de apoio judiciário, pelo que se encontra dispensado do pagamento da taxa de justiça do presente Recurso».
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi recebido como apelação, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, o que tudo foi mantido nesta Relação.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II) OBJETO DO RECURSO
1. Regime processual aplicável
Com a entrada em vigor da Lei 41/2013, de 26/06, que aprovou o novo Código de Processo Civil (doravante CPC 2013), atento o que vem disposto nos artigos 5.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1, dessa lei, é aplicável o novo regime à tramitação que tenha lugar na vigência da nova lei.
No que respeita à admissibilidade e regime do recurso de decisões posteriores a 30 de agosto de 2013, aplica-se a lei vigente à data da prolação da decisão (no caso o CPC 2013).
Não assim quanto à apreciação da validade de atos praticados na vigência da lei antiga, à qual se aplica a lei vigente na data da sua prática, atenta a inexistência de norma que determine a aplicação retroativa, em contrário dispondo o artigo 136.º, n.º 1, do CPC 2013, e o artigo 138.º, n.º 1, do ACPC.
Assim, se quanto ao recurso e sua tramitação se aplicam as normas do CPC 2013, quanto à validade dos atos praticados antes da sua entrada em vigor, aplica-se o regime do ACPC.
2. Questões a decidir
Tendo em atenção as conclusões do Recorrente e inexistindo questões de conhecimento oficioso - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as exceções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, cumpre apreciar e decidir se deveria ter sido dispensado oficiosamente o pagamento da multa devida pela extemporânea apresentação da oposição à execução.
III) FUNDAMENTAÇÃO
1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto pertinente é a que consta do relatório supra, não tendo sido posta em causa.
2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
2.1. A decisão recorrida transitou na parte em que decidiu ser extemporânea a apresentação da oposição por ter ocorrido no terceiro dia útil posterior ao termo final do prazo, uma vez que o Recorrente não a põe em causa nessa parte.
2.2. Entende o Recorrente que o despacho de deferimento do pedido de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e encargos demonstra que o Recorrente carece de meios económicos para proceder ao pagamento da multa liquidada, pelo que o juiz a quo deveria ter dispensado oficiosamente ou reduzido o pagamento da multa.
Nesses termos, defende, o despacho que mandou desentranhar a oposição constitui um impedimento e limitação do seu acesso ao direito, constitucionalmente garantido pelo disposto no artigo 200.º[1], n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), violando ainda o disposto no artigo 139.º, n.º 8, do CPC 2013.
2.3. Defende o Recorrente que o tribunal havia já aceitado a sua insuficiência económica pelo que deveria ter procedido à dispensa oficiosa da multa, atenta a gravidade das consequências do não pagamento, a fragilidade da posição em que se encontram as partes dada a sua situação económica e as circunstâncias que constam do processo. Louva-se no disposto no artigo 139.º, n.º 8, do CPC.
É o seguinte o teor da norma:
«O juiz pode excecionalmente determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respetivo montante se revele manifestamente desproporcionado, designadamente nas ações que não importem a constituição de mandatário e o ato tenha sido praticado diretamente pela parte».
Como decorre do que referimos anteriormente, não entendemos que seja esta a norma aplicável. Não pode cindir-se o regime de validade e regularidade e validade da prática de um ato. Pese embora, a discussão é ociosa em caso como o vertente em que a norma aplicável – a do artigo 145.º, n.º 8, do ACPC – tem redação igual à da norma nova, a supra constante.
Não oferece dúvida que a omissão da prática do ato tem consequências que podem reputar-se de especial gravidade, na medida em que obsta a que o Executado se oponha à execução que lhe é movida.
Não se vê embora que de tal decorra a oficiosidade da apreciação da dispensa ou redução da multa.
A norma também nada refere quanto a essa oficiosidade, sendo de aplicar o princípio geral que consta do artigo 3.º, n.º 1, do ACPC (e do artigo 3.º, n.º 1, do CPC 2013).
A oficiosidade, embora não expressa na norma do artigo 145.º, n.º 8, do ACPC, poderia resultar da obediência ao princípio ínsito no artigo 3.-A, do ACPC (atual artigo 4.º, do CPC 2013).
Refere esta norma o dever de o juiz assegurar a igualdade das partes ao longo do processo. Pese embora, tal princípio não pode «ser entendido no sentido de consagrar o papel assistencial do juiz, impondo-lhe que preste auxílio à parte que dele se mostre carecida por via do deficiente exercício dos seus direitos e faculdades processuais»[2].
Ora, quanto à fragilidade da parte que vem invocada, não se vê em que possa consistir, estando o Recorrente representado por profissional do foro e, por isso, presumivelmente aconselhado tecnicamente quanto aos meios de fazer valer as suas pretensões em juízo.
Não é por acaso que a norma em que se louva indica como campo privilegiado da sua aplicação os casos em que a parte não esteja acompanhada na lide por mandatário forense e pratique os atos pessoalmente. Embora mesmo em tal caso não nos pareça que consagre uma apreciação oficiosa mas, como decorre do seu n.º 7, um particular cuidado na notificação da parte fazendo-lhe indicação das faculdades de validação do ato praticado fora de prazo, sem o acréscimo da multa que decorre do não pagamento imediato por parte do interveniente representado por mandatário.
A propósito do artigo 145.º, atual n.º 8, refere o Conselheiro Lopes do Rego: «esta disposição constitui afloramento dos princípios da proporcionalidade e da igualdade de armas, visando facultar ao juiz em situações excepcionais – e a requerimento fundamentado da parte – a concreta adequação da sanção processual cominada nos nºs 5 e 6 deste preceito, quer à gravidade da falta cometida e à sua repercussão no bom andamento da causa, quer à situação económica do responsável.
Assim, por exemplo, poderá o juiz, ao abrigo deste preceito, reduzir o montante da multa que seria devida por quem litiga com o benefício do apoio judiciário – que não abarca a dispensa do pagamento das multas processuais – se, por exemplo, a parte contrária vem prorrogando os seus prazos ao abrigo deste regime, estando a parte carenciada economicamente impossibilitada de proceder de igual forma; ou reduzir o montante da multa que seria devida nos termos do nº 6 do preceito, quando a parte convença que estava, de boa fé, convencida que ainda não se esgotara o prazo peremptório para a prática do acto, não tendo logo requerido guias para pagamento da multa por lapso desculpável (e não pelo facto de pretender “ocultar” que o praticava ao abrigo da prorrogação consentida pelo nº 5)» (sublinhado nosso)[3].
Anote-se que mesmo em sede do princípio de igualdade de armas se mantém a referência à necessidade de pedido.
Dir-se-á ainda que a norma prevê uma específica situação de fragilidade: a da parte não representada por mandatário que pratique o ato pessoalmente.
Porém, mesmo em tal caso, o modo de repor a igualdade é mediante notificação dando conhecimento da faculdade de pagamento da multa e não mediante conhecimento oficiosa da possibilidade de dispensa.
Não é esta a situação dos autos. Na situação dos autos, o Recorrente, representado por Advogado, repita-se, foi notificado para pagar a multa e nada disse, não pedindo, nomeadamente a dispensa que agora reclama dever ter-lhe sido concedida sem que a pedisse.
Refira-se que o acórdão em que o Recorrente se louva – desta Relação de 25 de Janeiro de 2011, proferido no processo 141/08.6TBCDV-D.L1-1 (Manuel Marques) -, não propugna a oficiosidade da apreciação de dispensa da multa mas, antes, considera que os factos documentados em sede do pedido de apoio judiciário podem ser considerados pela decisão que se pronuncie sobre requerimento de dispensa apresentado pela parte. Coisa inteiramente diversa.
A não oficiosidade da apreciação em nada contende com o regime de acesso ao direito previsto no artigo 20.º da CRP, não concretizando o Recorrente porque entende o contrário. Diga-se que o acesso ao direito em nada implica a faculdade de desrespeitar os prazos estabelecidos.
Com o que se conclui inexistir o dever de o juiz apreciar, oficiosamente, da verificação das condições de dispensa ou redução da multa.
2.4. Mesmo quando a apreciação devesse ser oficiosa, não existiriam elementos nos autos que permitissem concluir pela dispensa ou redução, o que se apreciará por exaustão de razões.
O deferimento do pedido de apoio judiciário implica um juízo de que o Recorrente, dele beneficiário, não tem possibilidade de suportar o pagamento da taxa de justiça e encargos do concreto processo para que é concedido, ficando dele dispensado assim se garantindo o seu acesso ao direito.
É o que resulta dos artigos 8.º e 8.º-A da Lei 34/2004, de 29 de julho. Não pode extrapolar-se da concessão desse benefício que o Recorrente não tem possibilidade de proceder ao pagamento da multa em causa.
Na verdade, é uniforme a jurisprudência, como aliás o Recorrente também admite, no sentido de que a concessão de apoio judiciário, em qualquer das suas modalidades, não implica dispensa ou isenção de pagamento da mencionada multa.
Veja-se, com exemplo, o acórdão desta Relação proferido em 23 de outubro de 2012 no processo 39564/92.3TVLSB-B.L1-1 (Rosário Gonçalves) onde se lê:
«(…) uma coisa é o pagamento de multas por atraso na prática do acto e outra é a omissão do pagamento das taxas de justiça.
O facto de o recorrente beneficiar de apoio judiciário, não implica que se possa eximir ao pagamento da multa atinente ao artigo 145º do CPC.
O princípio de igualdade no acesso ao direito, no sentido de não poder ser denegada justiça devido a insuficiência de meios económicos, é garantida com a concessão do apoio judiciário aos economicamente débeis, dispensando-os de taxas de justiça e de custas, mas não abrange a dispensa de aplicação de multas quando estas têm a ver com a inobservância dos prazos judiciais.
Com efeito, a cominação do nº 6 do art. 145º tem a ver precisamente com o não pagamento de uma multa liquidada por inobservância de um prazo legal».
Aliás, o Recorrente nem sequer indica quais os factos por si trazidos aos autos ou que por outro modo deles constem, para além daquela concessão de apoio judiciário, de que possa concluir-se por impossibilidade ou mera dificuldade de pagamento daquela multa.
Assim, improcede a sua conclusão no sentido de estar demonstrado pela concessão de apoio judiciário a insuficiência económica do recorrente para o pagamento da multa de € 306,00.
Acresce dizer que, dada a própria natureza da multa, a dispensa do seu pagamento não pode decorrer, sem mais, de se verificar uma situação de insuficiência económica.
Como se refere no acórdão desta Relação de 16 de janeiro de 2014 proferido no processo 415/12.1SILSB-A.L1-9 (Carlos Benido): «(…) a dispensa ou redução, sem mais, do pagamento dessas multas em todos os casos de carência económica descaracterizá-las-iam na sua função desmotivadora da prática dos comportamentos que pretendem evitar e uma tal interpretação redundaria num alargamento injustificado dos prazos estabelecidos para quem se encontrasse numa situação de carência económica, com o que se poderia violar até o princípio da igualdade.
Impõe-se, por isso, que, para além da verificação da carência económica, se atenda também à natureza do acto e ao motivo pelo qual não foi respeitado o prazo inicial estabelecido e, no caso do nº 6, à razão pela qual o requerimento não foi apresentado em simultâneo com a prática do acto».
Ora, aplicando este critério ao caso presente, chega-se facilmente à conclusão que não existe qualquer motivo que permita acolher o requerimento formulado uma vez que o recorrente se limitou a alegar a sua “carência económica e eventual desproporcionalidade”, não tendo invocado qualquer razão para o não acatamento do prazo».
Também a este respeito, nada consta nos autos pois o Recorrente, assim como se dispensou de requerer a redução ou dispensa de multa e de invocar os factos que permitiam concluir pela sua insuficiência para a pagar, dispensou-se igualmente de invocar os factos que o levaram a desrespeitar o prazo que lhe estava assinalado.
Nem se diga que assim se viola o direito do Recorrente ao acesso ao direito. O seu direito manteve-se íntegro e de exercício pleno, sendo apenas a sua conduta que lhe vedou o prosseguimento da oposição.
Em suma, improcede o recurso.
IV) DECISÃO
Pelo exposto, ACORDAM em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Lisboa, 29 de maio de 2014
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(Ana de Azeredo Coelho)
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(Tomé Ramião)
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(Vítor Amaral)
[1] Referindo-se a norma à competência do Conselho de Ministros, considerar-se-á lápsica a referência querendo acolher-se ao regime do artigo 20.º.
[2] Lebre de Freitas in “Introdução ao processo civil – conceito e princípios gerais à luz do novo código”, Coimbra Editora, 3.ª edição, p.137, nota 32.
[3] In “Comentário ao Código de Processo Civil”, Almedina, 1999, pág. 124.