Acordam em conferência na 7ªSecção do Tribunal da Relação de Lisboa.
I -RELATÓRIO
C, CRL por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa, sobre a forma ordinária que corre termos, contra D, Lda.” e na qual é exequente, pretendendo obter o pagamento da quantia de 140.736,46€ e juros vincendos, reclamou os seus créditos o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, no montante de 104.868,87€, relativo ao imposto sobre o valor acrescentado (IVA) dos anos de 1999 a 2001, acrescido de juros vincendos no valor de 37.266,28€ e juros vincendos até integral pagamento.
Na execução de que estes autos são apenso, foi penhorado um crédito da executada, cujo depósito foi efectuado nos autos de caução em 2 de Maio de 1997, e cuja conversão em penhora foi efectuada por despacho proferido a 13/10/98, sendo tal depósito no valor actual de 156.876,93€.
Admitido liminarmente o crédito reclamado a exequente invocou ineptidão da petição inicial, dado que não contém factos que consubstanciem a exigibilidade de tal crédito, nomeadamente, a data de notificação do devedor para aferir da eventual caducidade. Alega ainda, que os créditos reclamados são posteriores à penhora, pelo que devem ser graduados depois do crédito da exequente.
O Magistrado do Mº Público respondeu infirmando o vício apontado à petição inicial de reclamação do crédito da Fazenda Nacional, considerando que ali se remete para a certidão junta aos autos, e a graduação preferencial está prevista legalmente.
Foi proferido despacho a convidar o Mº Pº a aperfeiçoar o requerimento inicial, tendo este respondido ao convite, discriminado o capital em divida, juros compensatórios e juros moratórios, e respectivas datas de liquidação e citação da devedora.
Notificadas as partes da nova petição, a exequente arguiu a caducidade do direito de liquidação do IVA referente aos anos de 1993 e 1994, porquanto o mesmo apenas foi notificado ao devedor decorridos que foram mais de cinco anos. Além disso, computa juros de mora superiores ao prazo de três anos previsto legalmente quanto aos créditos discriminados nos artº 3º e 5º do requerimento. Refere ainda que existe discrepância entre o ora reclamado no artº 6º e a certidão junta, reiterando no final o que anteriormente referiu na sua oposição, ainda que perante o aperfeiçoamento existam créditos de 93 e 94, concluindo pelo não reconhecimento dos créditos reclamados pela Fazenda Nacional.
O Magistrado do Mº Público em resposta, afirma que relativamente aos créditos de 93 e 94 a notificação ocorreu em 98/99, pelo que, não se verifica a caducidade apontada, juntando ainda certidão das aludidas notificações.
A exequente respondeu e impugnou, dizendo que das certidões ora juntas resulta que foram cobrados juros compensatórios e juros de mora sobre os mesmos, o que a lei proíbe, e quanto ao outro documento não resulta do mesmo em que data respeita o imposto, o valor do mesmo, pelo que não prova a referida notificação.
Proferiu-se de seguida sentença que reconheceu e graduou os créditos postos em crise a decidiu julgar verificados os seguintes créditos: Dívida da executada de 19.977,90 € de IVA de 1994, juros compensatórios nos valores de 423,84 €, 3.760,34€, 2.072,35€, 4.167,35€ e 6.102,66€, acrescido de juros de mora cuja liquidação foi efectuada em 28/09/99 e notificada a devedora a 26/10/99; Dívida da executada de IVA de 1998, no valor de 374,10€, liquidado em 27/11/99 e notificada a devedora em 29/11/99, sendo devidos juros de mora desde 26/05/2000; Dívida da executada de IVA do ano de 2001, no valor de 1.122,30€, liquidado em 31/05/2003, tendo a executada sido notificada em 01/03/2004, sendo devidos juros de mora desde 01/03/2004. Declarar a caducidade da dívida de IVA do ano de 1993, no valor de 66.119,83€, liquidado em 31/12/98 e notificada a devedora em 21/10/99, e graduar, em 1º, o crédito da fazenda Nacional (apenas na parte supra referida), e, em 2º lugar, o crédito da exequente.
A exequente inconformada interpôs recurso da sentença, recebido adequadamente como de apelação e efeito meramente devolutivo.
Rematou as suas alegações com as conclusões que seguem:
1. O tribunal a quo deu como provado que os juros compensatórios mencionados na certidão de dívida nº , nos valores de 423,84€, 3.760,34€, 2.072,35€, 4.167,35€ e 6.102,66€ se reportam ao crédito (isto é, foram calculados sobre o crédito), no valor de €19.977,90, referente a IVA de 1994.
2. Porém, compulsados os documentos juntos aos autos pela ora apelada, forçosamente se conclui que os supra mencionados juros compensatórios foram calculados sobre outros impostos não reclamados nos presentes autos pela apelada.
3. Da certidão de dívida nº … dos “Documentos de Cobrança – Mod. A” juntos como doc nº 1 do articulado da apelada de fls. 62 a 77, constata-se que os juros compensatórios reclamados pela apelada são efectivamente os seguintes: Juros compensatórios, no valor de 6.102,66, referentes a Janeiro de 2004, calculados sobre o montante de 1. (?) 46.515$00 (na copia do documento remetido para a apelante o montante não se encontra totalmente legível) de imposto (IVA) em falta, à taxa de 17%, pelo período de 1816 dias (isto é, 4 anos e 356 dias); Juros compensatórios, no valor de € 4.167,35, referentes a Fevereiro de 2004, calculados sobre o montante de 1.004.380$00 de imposto (IVA) em falta, à taxa de 17%, pelo período de 1786 dias (4 anos e 326 dias); Juros compensatórios, no valor de € 2.072,35, referentes a Março de 2004, calculados sobre o montante de 508.282$00 de imposto (IVA) em falta, à taxa de 17%, pelo período de 1755 dias (4 anos e 295 dias); Juros compensatórios, no valor de € 3.760,34, referentes a Abril de 2004, calculados sobre o montante de 938.333$00 de imposto (IVA) em falta, à taxa de 17%, pelo período de 1725 dias (4 anos e 265 dias); Juros compensatórios, no valor de € 423,84, referentes a Maio de 2004, calculados sobre o montante de 107.699$00 de imposto (IVA) em falta, à taxa de 17%, pelo período de 1694 dias (4 anos e 234 dias).
Os factos acima descritos apesar de inequivocamente provados pelos documentos dos autos e de revestirem inquestionável relevância para a decisão da causa, não constam da sentença recorrida, devendo proceder-se à modificação da matéria de facto constante da sentença recorrida em conformidade com o supra exposto, aditando-se a factualidade em causa e alterando-se a parte dos factos provados.
4. Porque não foi alegado (nem provado) pela apelada nos autos, desconhecendo-se em absoluto quais os factos tributários que estão na origem do IVA sobre o qual são calculados os juros compensatórios reclamados pela apelada e reconhecidos na sentença recorrida, assim como se desconhece a data desses factos, bem como se a apelada procedeu em prazo à liquidação do IVA em causa e se as liquidações foram regularmente notificadas ao sujeito passivo.
5. Tão pouco foi alegado pela apelada ou está provado nos autos um único facto concreto do qual decorra que houve atraso na liquidação de cada um dos montantes de o IVA sobre os quais são calculados os juros compensatórios reclamados e que esse atraso se deveu a motivo imputável à executada.
6. A petição aperfeiçoada apresentada pela apelada é pois deficiente no que respeita ao crédito de juros compensatórios, porquanto nela a apelada exprime correctamente o seu pedido e a causa de pedir, mas omite factos positivos e concretos para o reconhecimento do seu direito. Ao decidir em sentido diverso, o tribunal recorrido violou o disposto nos artºs 659º nº 3 do Código de Processo Civil e ainda o art. 83º nº 1 do Código de Processo Tributário (aplicável in casu por força do disposto no art. 12º da Lei Geral Tributária e do art. 5º nº 5 a contrario do DL. nº 398/98, de 17 de Dezembro).
Sem conceder,
7. Os juros compensatórios reclamados, a serem devidos, derivariam da falta de Pagamento de IVA.
8. Se o direito à liquidação do IVA caduca se a liquidação não for notificada ao Contribuinte no prazo de cinco anos contados a partir da data da ocorrência do facto tributário, por maioria de razão, também o direito à liquidação dos respectivos e eventuais juros compensatórios – juros estes que, aliás, se integram na própria dívida de imposto (cf. art. 35º nº 8 da Lei Geral Tributária) – caduca se a liquidação destes juros não for notificada ao contribuinte no prazo de cinco anos contados do seu vencimento – cf. Art. 33º do Código de Processo Tributário.
9. A liquidação destes juros compensatórios reclamados pela apelada, vencidos em Janeiro, Fevereiro, Março, Abril e Maio, todos do ano de 1994, só foi notificada à executada em 26/10/1999, portanto, decorridos em qualquer caso, inequivocamente, mais de cinco anos a contar do seu vencimento, ficando por isso demonstrada a caducidade do direito à sua liquidação. Ao decidir em sentido inverso, o tribunal a quo violou inequivocamente o disposto no art. 33º do Código de Processo Tributário (aplicável in casu por força do disposto no art. 12º da Lei Geral Tributária e do art. 5º nº 5 a contrario do DL. nº 398/98, de 17 de Dezembro).
10. A apelada reclamou um crédito de IVA referente ao ano de 1994, no valor de €19.977,90, cuja liquidação foi efectuada em 28/09/1999 e notificada à executada em 26/10/1999.
11. Na petição aperfeiçoada, a apelante apenas alega aquele crédito de IVA respeita ao ano de 1994. A sentença recorrida também só reputa provado que o IVA em causa respeita ao ano de 1994. Não se encontra junto aos autos qualquer documento que comprove a data exacta e concreta da ocorrência dos factos tributários que deram origem ao pagamento do referido tributo.
12. Ora, dizer que o IVA é referente ao ano de 1994 é o mesmo que dizer que o facto tributário pode ter ocorrido em qualquer data entre 01.01.1994 e 31.12.1994.
13. E a (s) data (s) concreta (s) em causa é/são essenciais, porquanto, se o (s) facto (s) tributário (s) que estão na origem do crédito de IVA de 1994 reclamado pela apelada tivesse (m) ocorrido entre 01/01/1994 e 25/10/1994, o direito da apelada seria inexistente (uma vez que o direito à respectiva liquidação havia caducado); se o facto (s) tributário (s) que estão na origem do crédito de IVA de 1994 reclamado pela apelada tivesse (m) ocorrido entre 26/10/1994 e 31/12/1994, o direito da apelada existiria.
14. Não tendo provado, como lhe competia, todos os factos de que decorrem o direito ao pagamento do imposto em causa, deverá inferir-se, invariavelmente, que também no que respeita ao crédito de IVA de 1994 a petição apresentada pela apelada é deficiente, devendo, por consequência, julgar-se não verificado o referido crédito. Ao decidir em sentido diverso, o tribunal a quo violou o preceituado no art. 659 nº 3 do Código do Processo Civil e no art. 342º nº 1 do Código Civil.
15. Quanto aos juros de mora entende-se que a sentença recorrida merece dois reparos.
16. Em primeiro lugar, estatui o art. 44º nº 2 da Lei Geral Tributária (ex vi art. 89º nº 2 do CIVA) de acordo com o qual o prazo máximo de contagem de juros é de três anos. Apesar disso, a sentença recorrida não impôs qualquer limite temporal à contagem dos juros de mora.
17. Em segundo lugar, a apelada reclamou e a sentença recorrida julgou verificados “juros de juros” (note-se que a sentença recorrida refere, na parte decisória, «juros compensatórios nos valores de 423,84€, 3.760,34€, 2.072,35€, 4.167,35€ e 6.102,66€, acrescidos de juros de mora»). Porém, a lei proíbe claramente a cobrança de juros sobre juros (i.e., o anatocismo), salvo raras excepções que, no caso vertente não se verificam – cf. Art. 560º do Código Civil.
18. Ao decidir em sentido diverso, o tribunal recorrido violou o disposto nos artºs 44º nº 2 da Lei Geral Tributária, 89º nº 2 do CIVA e art. 560º do Código Civil.
19. Conforme consta da sentença recorrida, o crédito da apelante encontra-se garantido por penhora com efeitos desde 25/10/1995.
20. Por outro lado, uma parte dos créditos de IVA reclamados pela apelada reporta-se aos anos de 1998 a 2001, portanto, a factos tributários muito posteriores à data da penhora efectuada e registada a favor da apelante.
21. Da conjugação dos art.ºs 736º nº 1 e 822º ambos do Código Civil resulta inequívoco que, embora a apelada tenha legitimidade para reclamar aos seus créditos, em matéria de graduação, o crédito da apelante deve ser pago com preferência ao crédito da apelada relativamente aos créditos que tenham nascido após 25/10/1995, ou seja, após a penhora.
22. Uma interpretação dos artºs 736º nº 1 e 822º ambos do Código Civil, que os créditos da Fazenda Nacional referentes a IVA teriam sempre preferência no pagamento relativamente ao crédito da apelante, ainda que este gozasse de garantia real (leia-se penhora) anterior à constituição daqueles créditos de IVA, seria flagrantemente violadora do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2º da Constituição da República Portuguesa.
23. Se assim fosse, estar-se-ia mesmo a sacrificar injustificadamente o direito do apelante conferido pela penhora em virtude da pouca celeridade da justiça e dos tribunais; se a Justiça fosse célere, a apelante teria sido paga mesmo antes de ter nascido as obrigações fiscais em causa. Não tendo a Justiça sido célere, a apelante vê o pagamento do seu crédito ser preterido a favor de créditos da Fazenda Nacional que nasceram vários anos depois de instaurado o processo judicial e, até, de efectuada a penhora a favor da apelante.
24. O crédito da exequente e ora apelante deve ser graduado antes, i.e., com preferência, aos créditos da apelada posteriores a 25/10/1995. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou o disposto nos artºs 736º nº 1 e 822º do Código Civil e, ainda, o art. 2º da Constituição da República Portuguesa.”
Termina a apelante pedindo que se dê provimento ao recurso revogando parcialmente a sentença recorrida de acordo com o supra explicitado.
Apresentou-se a responder o Magistrado do Mº Público pelo credor que representa, pugnando pela manutenção do julgado, refutando os argumentos alegados pela apelante.
Cumpridos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento de mérito.
II – ENQUADRAMENTO FACTUAL
O Tribunal a quo assentou na seguinte factualidade:
1. Nos autos de caução apensos (proc. nº 451-A/93) foi, por despacho proferido a 25/10/95, ordenado o arresto dos créditos da executada sobre “F, Lda.” (cf. Despacho de fls. 120 desses autos cujo teor se reproduz), tal despacho foi cumprido a 20/11/95;
2. A devedora supra aludida veio responder a fls. 123, dizendo que nada deve à executada, dada a entrega de cheques que titulam a referida dívida;
3. A fls. 230 e 231 a CGD deu conhecimento da existência de um depósito efectuado em 2 de Maio de 1997, no valor de 16.836.000$00;
4. Nos autos de execução apensos (proc. nº 451-E) foi tal arresto convertido em penhora, por despacho proferido em 13/10/98 (cfr. fls. 50);
5. Certidão de dívida n.º …, que atesta que a executada é devedora de 19.977,90e, de IVA, de 1994, juros compensatórios nos valores de 423,84€, 3.760,34€, 2.072,35€, 4.167,35€ e 6.102,66€, acrescido de juros de mora cuja liquidação foi efectuada 28/09/99 e notificada a devedora a 26/10/99 (cf. doca. De fls.45, 65 a 73 dos autos);
6. Certidão nº…, que atesta que a executada é devedora de IVA de 1998, no valor de 374,10€, liquidado em 27/11/99 e notificada a devedora em 27/11/99, sendo devidos juros de mora desde 26/05/2000 (cf. doc. de fls. 47 e 3);
7. Certidão nº …., que atesta que a executada é devedora de IVA do ano de 1993, no valor de 66.119,83€, liquidado em 31/12/98 e notificada a devedora em 21/10/99, sendo devidos juros de mora desde 01/11/99 (cf. doc. de fls. 47 e 3);
8. Certidão nº…., que atesta que a executada é devedora de IVA do ano de 2001, no valor de 1.122,30€, liquidado em 31/05/2003, tendo a executada sido notificada em 01/03/2004, sendo devidos juros de mora desde 01/03/2004 (cf. fls. 3).
III – DIREITO APLICÁVEL
Em sinopse e postos perante as conclusões da apelante, é mister apreciar três questões axiais acerca das quais se insurge :
Alteração da matéria de facto;
Os juros compensatórios;
A ordem da graduação dos créditos.
A apelante coloca em crise o teor das certidões emitidas pela autoridade fiscal em que o Tribunal a quo se fundou para a verificação do crédito do reclamante, porquanto na sua leitura não contêm os factos necessários para apurar dos requisitos de exigibilidade, pugnando assim pela sua desvalorização com a necessária alteração da matéria de facto.
Compulsadas as certidões em causa, salvo o devido respeito, não logramos identificar as omissões referidas, e no conjunto do seu teor, não divisamos motivo para alteração dos pressupostos de facto da decisão.
Assim, as certidões apontadas na sentença e juntas a fls. 102 e SS, comprovam que a executada e ora reclamada foi objecto, de pelo menos, fiscalizações da autoridade tributária[1] no âmbito da obrigação de pagamento em 1993 e 1994,apontando-se diversas irregularidades que suscitaram, além do mais, a imposição de liquidações ditas adicionais efectuadas em 1994, o que interrompe e suspende os prazos de caducidade.
Em suma, os factos constantes apurados na sentença não suscitam alteração porque conformes e não discrepantes ao conteúdo das certidões anexas.
Passando agora às questões suscitadas a propósito dos juros compensatórios verificados.
Dispõe o art. 733.º do CCivil que “privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros”.
Por seu turno, o art. 734.º estabelece que «o privilégio creditório abrange os juros relativos aos últimos dois anos, se forem devidos».
Finalmente, o artº 736, nº1 consagra que «o Estado e as autarquias locais têm privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos por impostos indirectos, e também pelos impostos directos inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou acto equivalente, e nos dois anos anteriores”.
Os privilégios dividem-se em mobiliários e imobiliários, sendo que os primeiros são gerais e especiais. Os privilégios creditórios mobiliários gerais constituem uma garantia real das obrigações e traduzem-se na faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros, pelo valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor, à data da penhora ou de acto equivalente (cfr. os arts.º 733º e 735º do CC).
O privilégios imobiliários são sempre especiais, conforme a definição prevista no artº735, nº1 do CCivil, observando-se com interesse para a decisão que, a alteração introduzida pelo DL 38/2003, de 8/3/03, somente aditou à anterior redacção do nº3 daquele normativo a expressão “ previstos neste código.”
O IVA, goza do privilégio mobiliário geral do artº 736, nº 1, do CCivil, não sujeito a limite temporal anterior ou posterior à penhora, importando somente indagar da sua existência aquando da data da sua reclamação.
Concomitantemente os juros de mora gozam de igual privilégio nos termos do estabelecido no artº734 do CCivil .[2]
Quanto ao período temporal ali estabelecido -2 anos- é seguro que a doutrina prevalecente, e sem dúvida, quando estão em causa impostos indirectos, em que rege o artigo 10.º da Decreto-Lei n.º 49 168, de 5 de Agosto de 1969,[3] leva a concluir que não se verifica este limite temporal, beneficiando os juros do mesmo privilégio que o imposto que os pressupõe. [4] Assim, ter-se-á querido, com os mencionados diplomas avulsos excluir da limitação temporal do artº 734 do CCivil, quer os créditos do Estado, quer os das autarquias locais, dado que, referindo o n.º 1 do artº 736 que estes têm privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos por impostos indirectos, sem limitação de tempo, aqueles diplomas, ao equipararem-lhes as dívidas provenientes de juros de mora, igualmente relegaram, nestes casos, a aplicabilidade do artº 734, no que ao limite temporal dos juros diz respeito. Ora, sendo o IVA um imposto indirecto, os juros de mora devidos pelo seu não pagamento, beneficiam do privilégio nos mesmos termos que o crédito que lhes deu causa. E, nestes juros incluem-se os juros de mora e os juros compensatórios.
Por outro lado, sabemos que os juros compensatórios, estão destinados a garantir aos lesados o recebimento de uma indemnização equivalente à que deviam ter recebido no momento da constituição em mora, enquanto os juros de mora excedem o valor da inflação, constituindo uma indemnização forfetária dos danos resultantes do não recebimento, a tempo, de determinada quantia.
Chegados aqui é mister decidir em desfavor da pretensão do apelante no tocante à limitação dos juros ao período de 3 anos a que se faz referência no artº 44 da Lei Geral Tributária, que diz respeito apenas à actuação do fisco, e nada tem que ver com a existência do privilégio creditório de que beneficiam os impostos indirectos e os respectivos juros, sem limite temporal, como atrás se deixou expresso.
No segundo segmento do excurso alegatório e da apontada aplicação de juros sobre juros, temendo a verificação do proíbido anatocismo.
Vejamos.
O Tribunal a quo exarou neste âmbito da decisão al)a - Dívida da executada de 19.977,90€, de IVA, de 1994, juros compensatórios nos valores de 423,84€, 3.760,34€, 2.072,35€, 4.167,35€ e 6.102,66€, acrescido de juros de mora cuja liquidação foi efectuada 28/09/99 e notificada a devedora a 26/10/99;”
Salvo melhor e circunspecta leitura , não cremos que o texto seja tão pouco equívoco nos seus termos, quando refere os devidos juros de mora por referência à dívida-base, e aos juros compensatórios, em pura adição aritmética aos valores dos primeiros já liquidados, ou seja, a copulativa “e”, interpretado o texto dentro dos cânones da decisão não deixam dúvidas, que os juros de mora devisdos, são –no sobre o valor da dívida originária, o imposto, e não incidem, obviamente, sobre o valor enunciado imediatamente antes(juros compensatórios)[5].
Pelo que, também, neste aspecto não procede reparo à sentença, estabelecendo-se o seu sentido literal e implícito de harmonia com a previsão legal.
Passando agora a discutir a espécie deste tipo de imposto indirecto, o IVA, como de obrigação única ou períodica, conceitos que importarão à apreciação da invocada caducidade.
A distinção entre impostos directos e indirectos tem sido objecto de controvérsia por parte da doutrina, embora em termos maioritários se entenda que os impostos indirectos serão os impostos instantâneos ou de obrigação única e impostos directos os impostos periódicos. [6] Os primeiros, incidem sobre actos ou factos isolados, sem qualquer carácter de continuidade, ao passo que os segundos atingem factos, situações ou actividades que se prolongam no tempo e, por isso, a obrigação se renova automaticamente todos os anos.
Conforme o atrás exposto, a avaliação do requisito de exigibilidade temporal afere-se pela data da reclamação do imposto indirecto, no caso o IVA, e neste ponto entronca a outra questão, da caducidade.
Está em causa apurar se as liquidações tributárias efectuadas foram notificadas ao devedor dentro do prazo legal de cinco anos, e se tal prazo decorre desde a data do facto tributário que originou a dívida, encarando-se nesta perspectiva o IVA como um imposto indirecto de prestação única e, portanto, de execução instantânea, ou, diferentemente, como reportando o IVA a contagem do prazo legal de caducidade ao termo do ano a que respeita o imposto, concebendo-o como um imposto de execução periódica.
Face ao que actualmente dispõe o artº 33 do Código de Processo Tributário, [7]na redacção conferida pelo DL 47/95, de 10 de Março: “o direito à liquidação de impostos e outras prestações tributárias caduca se a liquidação não for notificada ao contribuinte no prazo de cinco anos contados, nos impostos periódicos, a partir do termo daquele em que ocorreu o facto tributário ou, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu”. Tendo ainda presente que o IVA se destina a tributar individuais actos de consumo, afigura-se que a melhor interpretação é da sua classificação como um imposto indirecto de verificação instantânea, esgotando-se em cada cobrança, maugrado, o devedor do IVA esteja sujeito periodicamente à obrigação fiscal em causa. Está foi, de resto, a solução preconizada na sentença recorrida, determinando a verificação da caducidade quanto ao valor de IVA reportado a facto de 1993.
Não acudindo embora a razão ao apelante no que se prende com a já decidida alteração da matéria de facto, o que significa, pois, secundando a decisão recorrida, e pelos motivos expostos, que a liquidação de 1994 é exigível, há ainda que cuidar se tal como defende, ocorre caducidade quanto aos juros compensatórios aplicados por atraso na devida liquidação, cuja causa, como vimos, residiu exclusivamente na actuação irregular e até fraudulenta da executada, ou seja, provindo de sua culpa exclusiva.
Finalmente, não parece sobrarem dúvidas, que incidindo o privilégio creditório dos juros nos mesmos termos daquele que garante o crédito principal do imposto, que por igual argumentação de facto e de direito, os juros compensatórios da liquidação do ano de 1994, não caducaram.
Em último, haverá que apurar do confronto entre os créditos provenientes da dívida de IVA e do crédito exequente que beneficia da penhora e, se a graduação como reclama o apelante, é contrária à lei.
Desde logo, dando aqui por reproduzido o excurso relativo à identificação do privilégio de que beneficia o credor reclamante, e respigando a data da penhora (1995), o tipo de garantia de que beneficia o apelante, visto o disposto nos artº733, 736 e artº822 do CCivil, somos a concluir que soçobra, o recurso na totalidade.
O apelante insurge-se porque este quadro afecta gravemente o princípio da confiança legítima e da proporcionalidade contidos nos artigos 2 e 11 da CRP.
A Jurisprudência Constitucional mais significativa, contudo, não se compromete com a declaração de inconstitucionalidade dos preceitos que atribuem a preferência de pagamento em relação aos credores detentores da garantia prevista no artº822 do CPC, diferenciando apenas no que concerne aos credores detentores da preferência garantida por hipoteca.[8]
Desta feita, não ocorre motivo que exija alteração da graduação, sendo o crédito do reclamante prevalente em relação ao do exequente.
IV-DECISÃO
Pelo exposto, acorda o Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, e em consequência, manter a sentença nos seus precisos termos.
As custas ficam a cargo do apelante.
Lisboa, 6 de Outubro de 2009
Isabel Salgado
Cristina Coelho
Soares Curado
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[1] Assinale-se que dessa intervenção resultaram apuradas diversas irregularidades na contabilidade, na qual a executada era crónica credora de IVA por patentear prejuízo fiscal declarado desproporcional aos lucros tributáveis
[2] Ficou, portanto, sem fundamento legal a doutrina que excluía os juros de mora do âmbito dos privilégios creditórios, restringindo-os apenas aos juros contratuais (Vaz Serra, BMJ n.º 64, nota 62; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2.ª ed., I, pág. 679).Correia das Neves, Manual dos Juros, 2.ª ed., pág. 171, entende que o privilégio abrange não só os juros de mora relativos aos dois últimos anos, como também os respeitantes ao prazo pelo qual goza de privilégio a própria dívida que vence juros».
[3] O art. 8.º do DL 73/99, de 16.3, corresponde ao art. 10.º do DL 49 168, de 5.8.69, dispondo que as dívidas provenientes de juros de mora gozam dos mesmos privilégios que por lei sejam atribuídos às dívidas sobre que recaírem.
[4] Cf. Salvador da Costa in Concurso de Credores , pag.172/3 :”. Quanto aos juros de mora devidos ao Estado e às autarquias locais, segundo o qual as dívidas provenientes de juros de mora gozam dos mesmos privilégios que por lei sejam atribuídos aos créditos a que respeitem, pelo que também não estão sujeitos ao limite temporal a que alude este artigo».
[5] Á semelhança do que explicita o apelado na sua resposta :” o que parece evidente é que o que é “acrescido” de juros de mora é o crédito do imposto de IVA de 1994 no valor de 19.977,90€ e só este. “
4 Cf. Alfredo José de Sousa e José da Silva Paixão, Código de Processo das Contribuições e Impostos, 610 e 611, Fernando Pardal In Os privilégios creditórios fiscais segundo o novo Código Civil, C.T.F., n.º 102, pág. 11; ver, também, Sousa Franco, C.T.F., n.º 105, pág. 91.
[7] Na versão inicial, estabelecia que: “o direito à liquidação de impostos e outras prestações de natureza tributárias caduca se não for exercido ou a liquidação não for notificada ao contribuinte no prazo de cinco anos contados, nos impostos periódicos, a partir do termo daquele em que se verificar o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu”.
[8] Diferentemente, foi declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória, do artº11 do DL 103/80, quando interpretado no sentido de conferir ao crédito da Segurança Social preferência sobre um direito de crédito garantido por hipoteca registada .- Acórdão do Tribunal Constitucional nº363/2002 in DR I Série A, de 16/10, declaração ainda em vigente.