Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
138/14.7TCFUN.L1-6
Relator: TOMÉ ALMEIDA RAMIÃO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
NOVO CODIGO DE PROCESSO CIVIL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Não ofende o princípio da segurança jurídica e proteção da confiança, ínsitos no art.º 2.º da C. R. P., a interpretação conjugada do art.º 703.º do NCPC e 6.º n.º3 da Lei 41/2013 de 26 de junho, no sentido de o primeiro se aplicar a documento particular de reconhecimento de dívida, emitido em data anterior à da sua entrada em vigor e dotado de exequibilidade nos termos do art.º 46.º n.º1 c) do anterior CPC, ocorrendo o vencimento da obrigação reconhecida em outubro de 2010.
(sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I- Relatório

           D… veio instaurar, em 14 de março de 2014, ação executiva para pagamento de quantia certa contra R…, mediante requerimento próprio e juntando como título executivo um documento particular, intitulado “ Confissão de Dívida”, assinado pelo executado, em 1 de outubro de 2010, e com assinatura reconhecida por I…, advogado, no qual o executado, se “declara devedor da quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) a D…, dispensando-o, em consequência daquela confissão, de provar a relação de onde emerge a dívida confessada” e cujo pagamento se obriga a fazer por transferência bancária através do NIB…, nos seguintes termos: € 10.0000 até 31 de Outubro de 2010; € 10.000,00 até 30 de dezembro de 2010; € 4.000,00 até 31 de janeiro de 2011; € 3.000,00 até 28 de fevereiro de 2011 e € 3.000,00 até 31 de março de 2011.

            E consta do n.º9 da factualidade constante do requerimento executivo:

           “Assim, a obrigação de pagamento encontra-se vencida desde o dia 31 de outubro de 2010”.

           Concluso o processo à Senhora Juiz, por iniciativa da Senhora Agente de Execução, foi proferido o seguinte despacho:

“O título dado à execução é constituído por um documento particular intitulado “Confissão de Dívida” que se mostra subscrito por R…, aqui executado, e em que este se declara devedor perante D…, exequente, da quantia de € 30 000,00 – cf. fls. 4 p.p.

Não se trata de documento exarado ou autenticado por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal mas de um mero documento particular simples – cf. art.ºs 369º, 377º e 373º do C. Civil.

Como tal, esse documento não constitui título executivo à luz do disposto no art. 703º do CPC.

Com tais fundamentos, e ao abrigo do disposto no art. 726º, n.º 2, a) do CPC, indefiro liminarmente o requerimento executivo.

Custas a cargo do exequente.

Registe e notifique”.

Inconformado, veio o exequente apelar, formulando as seguintes,

Conclusões:

1. O documento particular denominado “confissão de dívida”, apresentado pelo Exequente e rejeitado pelo douto despacho recorrido, constitui título executivo.

2. À luz da atual redação do art. 703º do CPC, dada pela lei 41/2013, de 26 de Junho que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2013, a confissão de dívida constante de mero documento particular não constitui de facto título executivo.

3. Sendo certo que, de acordo com as regras gerais de aplicação da lei no tempo bem como com as disposições transitórias da referida lei, em particular o n.º3 do art. 6º do diploma preambular, a supra mencionada disposição parece aplicar-se a todas as execuções que deem entrada a partir de 1 de Setembro de 2013.

4. No entanto, aquando da feitura de tais documentos particulares, constituíam os mesmos válidos títulos executivos.

5. Tendo as partes legitimamente confiado nessa característica de que eram dotados.

6. Pelo que, a supressão no elenco dos títulos executivos, dos documentos particulares constituídos antes da entrada em vigor da nova lei configura um caso de aplicação retroativa ou retrospetiva da lei nova, que afeta de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos.

7. Ora, não sendo vedada a possibilidade de aplicação de leis infraconstitucionais retroativas, tal faculdade também não é deixada ao livre arbítrio do legislador ordinário.

8. Pelo que, a retroatividade deve, necessariamente, enformar-se pelos princípios constitucionais que toldam o nosso ordenamento jurídico.

9. In casu, pelo princípio da segurança jurídica, na sua vertente da tutela da confiança dos cidadãos, que decorre do princípio do Estado de Direito, consagrado no art. 2º da CPR.

10. Devendo ser salvaguarda a posição dos cidadãos sempre que a aplicação retroativa da lei implique um sacrifício de expectativas não previsível ou desproporcional.

11. Ora, independentemente do grau de retroatividade, estando em causa retroatividade autêntica ou inautêntica, deve o legislador ordinário ter necessariamente como limite o princípio da proteção da confiança.

12. Não sendo admissível a aplicação retroativa quando a mesma implique a afetação de expectativas decorrentes de uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas delas constantes não possam contar, bem como quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes.

13. À data em que foi celebrada a confissão de dívida, nada faria prever que o legislador no futuro retiraria a força executiva ao documento particular então celebrado.

14. Pelo que, Exequente e Executado legitimamente confiaram que o documento, ao qual o douto despacho ora recorrido não atribuiu força executória, era plenamente apto a consubstanciar a base de uma ação executiva.

15. Sendo certo que, tal característica foi fundamental para Exequente e Executado aquando da celebração do mesmo.

16. A supressão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos validamente formados ao abrigo da lei anterior constitui uma alteração da ordem jurídica com que os cidadãos não poderiam razoavelmente contar, violando por isso as expectativas criadas.

17. Tendo em conta que as razões que subjazem à retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos, não podemos deixar de considerar que deverão prevalecer sobre estas a segurança jurídica e as legítimas expectativas dos cidadãos que confiaram na tutela que lhes era conferida pelo direito.

18. Não sendo, de acordo com os referidos objetivos, necessário, adequado nem proporcional stricto sensu a aplicação da nova lei aos títulos executivos anteriormente formados.

19. A aplicação do novo Código de Processo Civil aos títulos executivos anteriormente formados ao abrigo do antigo código fere, de forma inadmissível, não só as legítimas expectativas dos cidadãos como também os seus direitos adquiridos.

20. Pelo que, não podemos deixar de concluir pela inconstitucionalidade da norma transitória refletida no n.º 3 do art. 6º, quando interpretada no sentido de retirar força executiva aos documentos particulares formados ao abrigo da lei antiga.

21. Sendo tal posição a seguida pela jurisprudência, nomeadamente no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 27-02-2014, bem como no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 26-03-2014.

22. Sendo igualmente a posição defendida na doutrina, nomeadamente por MARIA JOÃO GALVÃO TELLES.

23. Face ao exposto sempre se dirá que, em face da aludida inconstitucionalidade, o documento apresentado, denominado “confissão de dívida” deveria ter sido validamente aceite como título executivo.

24. Pelo que, decidindo como decidiu, o douto despacho recorrido violou o disposto no art. 2º da CRP, alínea a) do n.º 2 do art. 726º do CPC, art. 703º do CPC, nº 3 do art. 6º da Lei 41/2013 e alínea c) do n.º 1 do art. 46º do CPC de 1961.

Termos em que, deverá julgar-se procedente o presente recurso e, em consequência, deverá ser revogado o douto despacho recorrido, substituindo-o por outro que determine o prosseguimento da execução.


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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II -  Direito processual aplicável.

No caso concreto estamos em presença de ação executiva instaurada em 19 de março de  2014, pelo que será aplicável o NCPC aprovado pela Lei n.º41/2003, de 26 de junho.


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III – Âmbito do Recurso.

Perante o teor das conclusões formuladas pelo recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que a questão essencial decidenda consiste em saber se o documento junto com o requerimento executivo constitui, ou não, título executivo, à luz das disposições do anterior CPC, face à redação do atual CPC.


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IV – Fundamentação fáctico-jurídica.

Sendo a matéria de facto a descrita no relatório que antecede, vejamos, pois, a questão colocada e que consiste apenas em saber se o documento denominado de “Confissão de Dívida” junto com o requerimento executivo consubstancia título executivo válido.

No âmbito do art.º 45.º/1 do pretérito regime do C. P. Civil era o título que determinava o “fim e os limites da ação executiva”, e como fim possível, o seu n.º2 indicava o “ pagamento de quantia certa”, a “entrega de coisa certa” ou a “prestação de facto, “quer positivo, quer negativo” – Eurico Lopes Cardoso,  in “Manual da Ação Executiva”, pág. 31.

Idêntico regime passou a figurar no art.º 10.º, n.ºs 5 e 6 do NCPC, sendo que o título, nas palavras de Lebre de Freitas, in “ A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 6.ª Edição, pág. 43, “constitui a base da execução, por ele se determinando o fim e os limites da ação executiva, isto é, o tipo de ação e o seu objeto, assim como a legitimidade, ativa e passiva”.

 Como refere Rui Pinto, in “Manual da Execução e Despejo”, Coimbra Editora, pág. 142/143, “deve considerar-se que o título executivo é um documento, i. é., a forma de representação de um facto jurídico, o documento pelo qual o requerente de realização coativa da prestação demonstra a aquisição de um direito a uma prestação, nos requisitos legalmente prescritos”.

Neste sentido se escreveu no Acórdão do STJ de 15/3/2007, Proc. N.º 07B683 (Salvador da Costa): “A relevância especial dos títulos executivos que resulta da lei deriva da segurança tida por suficiente da existência do direito substantivo cuja reparação se pretende efetivar por via da ação executiva.

O fundamento substantivo da ação executiva é, pois, a própria obrigação exequenda, constituindo o título executivo o seu instrumento documental legal de demonstração. Ele constitui, para fins executivos, condição da ação executiva e a prova legal da existência do direito de crédito nas suas vertentes fáctico-jurídicas (…)”.

Como já ensinava José Alberto dos Reis, in “Processo de Execução”, Vol. I. 3.ª Edição, pág. 147, a propósito dos requisitos substanciais do título executivo, “O segundo requisito não está expressamente previsto na lei, mas é uma exigência da própria natureza e função do título executivo. O título executivo pressupõe necessariamente a afirmação de um direito em benefício de uma pessoa e a constituição de uma obrigação a cargo de outra.”

O art.º 46.º, n.º1, do anterior CPC, fixava taxativamente as várias espécies de títulos executivos, nomeadamente “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem confissão ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes…” – alínea c).

A propósito da natureza executiva dos documentos particulares, referia Abrantes Geraldes ([1]): «A apresentação de um documento a que a lei reconhece exequibilidade deixa em segundo plano a substância da relação de crédito, erigindo como fator determinante aquilo que é formalmente revelado pela simples análise do título. Por isso, para efeitos de ação executiva, mais importante do que a efetividade do crédito é a sua formalização num documento legalmente idóneo. A mera existência de um direito de crédito será irrelevante para efeitos da ação executiva se não se encontrar consubstanciado num documento que, de acordo com a lei, seja dotado de exequibilidade.

O título executivo é, assim, condição necessária da ação executiva, já que sem título não pode ser instaurada ação executiva; se for instaurada, deve ser indeferida liminarmente; se o não for, pode ser objeto de oposição à execução.

Mas, por outro lado, o título executivo é também condição suficiente da ação executiva, uma vez que a sua apresentação faz presumir as características e os sujeitos da relação obrigacional, correspondendo à necessidade reclamada pelo processo executivo de se encontrar assegurada, com apreciável grau de probabilidade, a existência e o conteúdo da obrigação. Assim, a análise do título deve demonstrar, sem necessidade de outras indagações, tanto o fim como os limites da ação executiva”.

Assim, ao abrigo desse preceito legal, na sequência da revisão de 1995/96, estes documentos particulares eram considerados títulos executivos, podiam servir de base à execução, sendo reconhecida a sua exequibilidade.

E assim era ainda que tal documento contivesse um reconhecimento da obrigação ( como é o caso dos autos), como realça Lopes do Rego: “(…) estabelece-se expressamente que a força executiva tanto é conferida aos que incorporem o ato ou negócio constitutivo do débito exequendo, como aos de carácter puramente recognitivo, que envolvam mero reconhecimento pelo devedor de uma obrigação pré-existente»( [2]).

Por isso, não é questionável que o documento particular dado à execução, subscrito em 1 de outubro de 2010, consubstanciando o reconhecimento de uma dívida nos termos do art.º 458.º do C. Civil, era considerado título executivo ao abrigo do citado art.º 46.º/1, al. c), ou seja, em data anterior à vigência do atual C. P. Civil.

Porém, cotejando essa disposição legal com o elenco dos títulos executivos consagrado no artigo 703º do Novo Código de Processo Civil, facilmente se conclui que os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações, deixaram de ter exequibilidade, ou seja, não lhes é reconhecida a natureza de título executivo.

Com efeito, o atual regime processual civil, no seu art.º 703.º, deixou de contemplar como títulos executivos os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias.

O legislador justificou esta opção legislativa nos termos seguintes: “

“(…), é revisto do elenco dos títulos executivos. É conhecida a tendência verificada nas últimas décadas, com especial destaque para a reforma de 1995/1996, no sentido de reduzir os requisitos de exequibilidade dos documentos particulares e, com isso, permitir ao respetivo portador o imediato acesso à ação executiva. Se é certo que tal solução teve por efeito reduzir significativamente a instauração de ações declarativas, a experiência mostra que também implicou o aumento do risco de execuções injustas, risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório. Associando-se a isto uma realidade que, embora estranha ao processo civil, não pode ser ignorada, como seja o fundamento um tanto desregrado do crédito ao consumo, suportado em documentos vários cuja conjugação é invocada para suportar a instauração de ações executivas, é fácil perceber que a discussão não havida na ação declarativa (dispensada a pretexto da existência de título executivo) acabará por eclodir mais à frente, em sede de oposição à execução. Afigura-se incontroverso o nexo entre o progressivo aumento do elenco de títulos executivos e o aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório.

Considerando que, neste momento, funciona adequadamente o procedimento de injunção, entende-se que os pretensos créditos suportados em meros documentos particulares devem passar pelo crivo da injunção, com a dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e de, caso não haja oposição do requerido, tornar mais segura a subsequente execução, instaurada com base no título executivo assim formado. Como é evidente, se houver oposição do requerido, isso implicará a conversão do procedimento de injunção numa ação declarativa, que culminará numa sentença, nos termos gerais. Deste modo, relativamente ao regime que tem vigorado, opta-se por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem. Ressalva-se os títulos de crédito (…). – Exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII.

E de acordo com o n.º 3 do art.º 6.º da Lei n.º 42/2013, “o disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor”.

 Deste modo, e face à transcrita norma transitória, o NCPC, no que respeita à ação executiva, só se aplica às execuções instauradas após a sua entrada em vigor – 1 de setembro de 2013 ( artigo 8º da Lei nº41/2013).

Daí que o legislador retirasse, propósito expressamente assumido, força executiva aos documentos particulares até então reconhecidos pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior CPC, cuja exequibilidade apenas se mantém para as execuções pendentes à data da entrada em vigor do NCPC.

E assim sendo, coloca-se então a questão de saber se, no caso concreto, esse documento particular, sendo título executivo à data da constituição da obrigação, poderá deixar de o ser no âmbito de ação executiva instaurada na vigência do NCPC.

Dito de outro modo, coloca-se então a questão de saber se a supressão do elenco dos títulos executivos do documento particular dado à execução, cujo reconhecimento da dívida foi feito antes da entrada em vigor da nova lei processual, configura um caso de aplicação retroativa ou retrospetiva da lei nova, que afeta de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos, em colisão com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança consagrados no art.º 2.º da C. R. P.

No Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 27/2/2014, Proc. n.º 374/13.3TUEVR.E1, disponível em www.dgsi.pt, secundando posição defendida por M. J. Galvão Teles ([3]), entendeu-se ser inconstitucional, por violação do princípio da segurança e proteção da confiança, integradores do princípio do Estado de Direito Democrático ( art.º 2.º da C. R. P.) a norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinadas pelo devedor do elenco de títulos executivos ( art.º 703.º do CPC), quando conjugada com o art.º 6.º/3 da Lei n.º 41/2013 e interpretada no sentido de se aplicar a esses documentos dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do n.º1 do art.º 46.º do anterior C. P. Civil.

E pelo mesmo caminho seguiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26/3/2014, Proc. n.º 766/13.8TTALM.L1-4, em cujo sumário se pode ler : “ A interpretação das normas do art.º 703.º do novo CPC e 6.º n.º3 da Lei 41/2013 de 26 de junho, no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC, e então exequíveis por força do art.º 46.º n.º1 c) do CPC de 1961, é inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança”.

Também Rui Pinto, in “Notas Ao Código de Processo Civil”, Coimbra Editora, Abril 2014, pág. 466, parece partilhar este entendimento, ao afirmar:

Porventura, uma solução possível teria sido manter a força executiva para os documentos particulares constituídos até 31 de agosto de 2013. Não tendo isso sucedido, será de considerar a inconstitucionalidade da revogação da alínea c) pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho quando interpretada no sentido de que abrange os documentos existentes a 1 de setembro de 2013, por violação do princípio da segurança jurídica, Na verdade, uma das características centrais do movimento de constitucionalização do processo civil é a ponderação dos efeitos substantivos das normas processuais”.

Ora, com o devido respeito, que é muito, se a questão da inconstitucionalidade poderá ser questionada em tese geral, a verdade é que, no caso concreto, não se verifica qualquer colisão com normas ou princípios da Lei Fundamental, como tentaremos demonstrar.

Na realidade, o art.º 703.º do NCPC é uma típica norma processual, a qual, como se refere no Assento n.º9/93 ([4]),  para além de incluída no Código de Processo Civil, não interfere com a validade e força probatória do documento particular em causa, nem com o seu conteúdo ou substância dos direitos subjetivos por ele conferidos, matéria que é regulada pelo direito substantivo, mas apenas com o modo de realização ou tutela desses direitos, o que é próprio da lei processual. E aí se acrescenta que “ a definição dos requisitos de um documento, para que possa valer como título executivo, está diretamente relacionada com este segundo aspeto, ou seja, com o meio processual adequado à defesa do direito material”.

Dito de outra maneira, a lei processual civil ao não atribuir força executiva a esses documentos, não está a regular ou interferir com o ato de constituição ou de reconhecimento da obrigação, nem a regular ou modificar os seus efeitos jurídicos, mas a regular unicamente o seu aspeto de natureza processual, o modo de realização judicial de um direito de crédito, caso se mostre necessário, isto é, haja incumprimento da obrigação assumida.

No caso da ação executiva, o credor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida, tendo por base um título, pelo qual se determina o fim e os limites da execução ( art.º 10.º/4 e 5 do NCPC).

No que respeita aos problemas suscitados com a aplicação temporal de qualquer lei processual importa averiguar se a própria lei os resolve através das suas disposições transitórias – cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “ Manual de Processo Civil”, 2.ª Edição, pág. 46; Anselmo de Castro, in “Direito processual Civil Declaratório, Vol. I, 1981, pág. 46, e João Batista Machado, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, pág. 229 e segs.; e J.P. Remédio Marques, in “Ação Declarativa Á Luz do Código Revisto”, 3.ª Edição, pág. 190 e segs.).

Mas, por outro lado, se quanto ao direito substantivo há que respeitar as expectativas das partes no momento em que praticaram os atos que a lei regula, outra é, nas palavras de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. Cit., pág. 47, “ a orientação geral que tem prevalecido na doutrina em relação às normas do processo. Tem-se entendido neste sector que a nova lei processual deve aplicar-se imediatamente, não apenas às ações que venham a instaurar-se após a sua entrada em vigor, mas a todos os atos a realizar futuramente, mesmo que tais atos se integrem em ações pendentes…” E justificam esta orientação por, em primeiro lugar, se tratar de um ramo do direito público, cujos superiores interesses da coletividade, inerentes ao sistema de justiça pública, se sobrepor aos interesses particulares, e em segundo lugar pela circunstância de “o direito processual ser um ramo do direito adjetivo e não um sector do direito substantivo”.

E sublinham que “ O direito  processual civil limita-se a regular o modo como as pessoas devem fazer valer em juízo os poderes que a lei substantiva lhes concede”.

No mesmo sentido ensina o Prof.º J. P. Remédio Marques, ob. cit. Pág. 190 a 192, delimitando o campo de aplicação da 2.ª parte do n.º2 do art.º 12.º do C. Civil aos efeitos jurídicos, referindo: “ Se, por exemplo, o legislador processual viesse dizer que só as transações homologadas pelo tribunal que respeitassem condições acrescidas de forma poderiam ser títulos executivos, deveria entender-se que as transações celebradas antes da entrada em vigor da lei processual nova perderiam a sua exequibilidade”.

E mais adiante, dá-nos outro exemplo, que é  bem elucidativo: “ Admita-se que a lei nova afasta os documentos particulares assinados pelo devedor do campo dos títulos executivos que permitem intentar execução para entrega de imóvel ( art.º 46.º, alínea c), parte final do CPC). Neste caso, a sua aplicação atingiria os documentos particulares apenas assinados pelo devedor já preexistentes na data da sua entrada em vigor, onde se tivesse convencionado a entrega desses bens imóveis ( art.º 12.º/2, 2.ª parte, do C. Civil)” (nosso sublinhado).

Ora, no âmbito do direito processual civil o “legislador ordinário não está constitucionalmente impedido de conferir retroatividade às leis que edita, salvo se através da retroatividade vier a violar direitos fundamentais constitucionalmente tutelados ou quaisquer outro princípio ou garantia constitucional” – cfr. Batista Machado, ob. Cit., pág. 228.

O princípio da segurança jurídica, como emanação do Estado de Direito, reconduz-se, no plano subjetivo, à proteção da confiança, no sentido de que “os cidadãos têm direito à proteção da confiança, na confiança que podem por nos atos do poder político que contendam com as suas esferas jurídicas”. – Cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada”, TI, 2.ª Edição, pág. 102.

E acrescentam estes Autores que não se trata apenas de, no tocante à função legislativa, da proibição da lei retroativa que viole de forma intolerável a segurança jurídica e a confiança das pessoas, devendo a lei satisfazer, entre outros, exigência de “previsibilidade, como suscetibilidade de se anteverem situações futuras e suscetibilidade de os destinatários, assim, organizarem as suas vidas”.

De acordo com a jurisprudência constitucional, a propósito de normas dotadas de  “retroatividade inautêntica ou retrospetiva”, como é o caso dos autos, ou seja, a aplicação dos preceitos do NCPC às ações executivas instauradas após a sua vigência, mas em que na vigência do anterior CPC esses documentos eram reconhecidos como títulos executivos, criando-se, desse modo, com os factos subjacentes uma mera expectativa jurídica,  podendo ser tutelados à luz do princípio da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição, escreveu-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 128/2009, Processo nº 772/2007, disponível em www.tribunalconstitucional.pt:

“De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais: a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas delas cons­tantes não possam contar; e ainda b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da propor­­cionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).

No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão n.º 786/96, de 19/6/1996, onde pode ler-se:

"O princípio da proteção da confiança exprime uma ideia de justiça que aprofunda o Estado de direito democrático. Segundo ela, o Estado não pode legislar alterando as expectativas legítimas dos cidadãos relativamente às respetivas posições jurídicas, a não ser que razões ponderosas o ditem ( ... ). Prevalecem, neste último caso, a necessidade e o valor dos fins almejados, perante a segurança e a solidez das expectativas. Mas tal sacrifício das expectativas deve ser previsível para os cidadãos atingidos e não desproporcional à lesão dos interesses subjacentes (…) Pressuposto de tal violação é a validade das expectativas. Isso não implica, necessariamente, que estas correspondam a direitos subjetivos, mas apenas que tenham um fundamento jurídico. E, por outro lado, não bastam quaisquer expectativas tuteladas juridicamente para que se justifique a intervenção do princípio da confiança.

A validade das expectativas impõe que a previsibilidade da manutenção de uma posição jurídica se fundamente em valores reconhecidos no sistema e não apenas na inércia ou na manutenção do status quo” ([5]).

Posição que é igualmente defendida pela Doutrina, nomeadamente pelo Prof.º Jorge Miranda, in “Manual de Direito Constitucional, Direitos Fundamentais”, T-IV, 5.ª Edição, págs. 310 e segs., sublinhando que no plano subjetivo “ a segurança jurídica reconduz-se a proteção da confiança, tal como a jurisprudência constitucional alemã ( seguida pela portuguesa) a tem interpretado. Os cidadãos têm direito à proteção da confiança, da confiança que podem pôr nos atos do poder político  que contendam com as suas esferas jurídicas. O Estado está vinculado a um dever de boa-fé ( ou seja, de cumprimento substantivo, e não meramente formal, das normas e de lealdade e respeito pelos particulares)”.

Também o Prof.º Jorge Reis Novais, in “As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição”, Coimbra Editora, 2.ª Edição, pág. 819, a propósito da denominada “retrospetividade” ([6]), chama a atenção para os problemas difíceis relativos à proteção da confiança, por aqui “ a não consolidação plena de situações a que a nova lei se pretende aplicar gera uma diminuição do peso dos interesses relativos à segurança jurídica e à proteção da confiança dos cidadãos. Nestas circunstâncias, adianta “ a proibição perde o seu sentido autónomo ou, no mínimo, apresenta uma menor intensidade normativa: a inconstitucionalidade só existe, indiscutivelmente, nos casos de limitação excessiva ou arbitrária de um direito fundamental, o que identifica a proibição de retrospetividade com o princípio da proteção da confiança dos cidadãos., ou seja, com aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito, mas que é suscetível de cedência face a interesses, princípios ou valores que, no caso, apresentem maior peso” ( [7]).

Ora, no caso que nos ocupa, o legislador, no âmbito da reforma da lei processual civil (NCPC), excluiu do elenco dos títulos executivos os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem confissão ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas deles constantes, os quais tinham força executiva nos termos do art.º 46.º, alínea c) do anterior CPC.

Esta alteração é justificada pelo facto de se reconhecer que essa solução, pese embora reduzisse significativamente a instauração de ações declarativas, conduziu a um aumento “do risco de execuções injustas, potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório”. E, para além dessa circunstância, ter-se verificado um significativo aumento do crédito ao consumo, suportado em documentos vários cuja conjugação é invocada para suportar a instauração de ações executivas. Em consequência, a discussão sobre a existência da obrigação que não teve lugar na ação declarativa acabou por se transferir para a fase de oposição à execução.

Por isso, e considerando o adequado funcionamento do procedimento de injunção, considerou-se que “os pretensos créditos suportados em meros documentos particulares devem passar pelo crivo da injunção, com a dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e de, caso não haja oposição do requerido, tornar mais segura a subsequente execução, instaurada com base no título executivo assim formado”.

Decorrentemente, a alteração processual apontada é irrelevante quanto à validade ou força probatória do documento particular em causa, não interfere com o conteúdo do ato de constituição da obrigação, nem com o direito subjetivo por ele conferido, matéria que tem a sua disciplina no direito substantivo, interferindo apenas com o modo de realização ou tutela desse direito, ou seja, alterando o modo processual de exercer judicialmente o seu direito.

Com efeito, no caso que nos ocupa, o documento dado à execução consubstancia o reconhecimento de uma dívida, emitido nos termos do art.º  458.º do C. Civil, formalmente válido, ficando o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário, ou seja, compete ao devedor fazer a prova da sua inexistência, nos termos do art.º 342.º/2 do C. Civil.

Assim, em caso de incumprimento do devedor, o credor, reconhecida a sua força executiva, podia instaurar a competente ação executiva, cabendo ao devedor/executado, na ação declarativa subsequente à execução ( mediante oposição nos termos do art.º 816.º do anterior CPC, atual art.º 730.º) alegar e demonstrar a  inexistência dessa dívida ou qualquer outro facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito de crédito invocado.

Já não assim no âmbito do NCPC, por força da eliminação do elenco dos títulos executivos desse documento de reconhecimento de dívida, razão pela qual não pode inicialmente lançar mão da ação executiva, devendo utilizar o procedimento de injunção, ou recorrer à ação declarativa, com vista à obtenção do título executivo.

Daí nos parecer excessivo considerar haver uma violação intolerável e arbitrária do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança do apelante, afetando a legítima expectativa que depositava na exequibilidade desse documento, uma vez que a alteração meramente processual não atinge de forma inadmissível e arbitrária o direito ou expectativas conferidas pela força executiva ao documento, ou seja, da alteração das normas processuais identificadas não decorre qualquer efeito substantivo.

Na verdade, desta alteração não decorre qualquer significativo prejuízo para o apelante, na medida em que continua a ter assegurado o acesso à administração da justiça para exigir o pagamento do seu crédito através de instrumento processual mais adequado, nem afeta minimamente os pressupostos legais (substantivos) do reconhecimento dessa dívida. Esses direitos não são postos em causa com a alteração processual.

Como sublinha Rui Pinto ([8]), “ No plano da tutela melhor será, a montante, o credor precaver-se promovendo a autenticação, por termo, do documento particular, ao abrigo do art.º 150.º do Cód (…). Se tal não for possível, resta ao credor, a jusante, obter injunção ou sentença de condenação”.

Depois porque está em causa o interesse público do melhor funcionamento da justiça, do estabelecimento de instrumentos processuais mais adequadas à realização e satisfação dos direitos e interesses dos cidadãos, um maior equilíbrio entre os conflitos de interesses em presença, ou seja, as alterações são justificadas pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, nomeadamente que um cidadão não possa ver penhorados os seus bens sem ter tido previamente oportunidade de se defender (inobservância do princípio do contraditório), relativamente a um crédito invocado e suportado por meros documentos particulares, sem controlo judicial prévio que o reconheça, sem garantias de autenticidade, e que prevalecem sobre as legítimas expectativas dos particulares na manutenção da força executiva desses documentos.

Em consequência, a única onerosidade imposta ao apelante consubstancia-se na utilização prévia da injunção para obtenção do título executivo, transferindo para este procedimento a possibilidade do devedor provar a não existência da dívida ou outros factos extintivos ou modificativos do invocado direito de crédito, quando essa defesa podia ser exercida na ação declarativa subsequente à execução.

Daí não resultar qualquer violação desproporcionada, desadequada e desnecessária importante dos direitos fundamentais constitucionalmente tutelados ou qualquer outro princípio ou garantia constitucional do apelante.

É certo que poderão ocorrer alterações da lei adjetiva afrontando direitos fundamentais, nomeadamente o direito de acesso ao direito e aos tribunais, o direito a um processo equitativo, o direito de defesa e o princípio do contraditório ( art.º 20.º da C.R.P.), casos em se justificaria uma ponderação sobre os direitos afetados e eventual juízo de (in)constitucionalidade.

Finalmente, não é aceitável invocar-se que o apelante não podia razoavelmente contar com a alteração legislativa em causa, sendo até previsível o sacrifício das suas expectativas.

Na verdade, e como decorre do relatório, o documento dado à execução ( reconhecimento de dívida) foi emitido em 1 de outubro de 2010 e o apelante refere que o seu vencimento ocorreu em 31 de outubro de 2010, ou seja, podia exigir o pagamento da dívida, porque exigível,  por ele titulada, a partir dessa data. Porém, só o fez em 14 de março de 2014, ou seja, cerca de 3 anos e 5 meses depois desse vencimento, sabendo, ou pelo menos não devendo ignorar, que com a entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, tal documento não era exequível.

Dito de outro modo, a partir da publicação da Lei  n.º 41/2013, de 26 de junho, que entraria em vigor em 1 de setembro de 2013, o apelante sabia, ou não podia ignorar, que não podia servir-se desse documento como título executivo, pelo que deveria ter instaurado a ação executiva pelo menos até 31 de agosto de 2013, isto é, não sacrificava essa expectativa se intentasse, como devia, a ação executiva durante o período da vacatio legis .

Daí não poder invocar-se, salvo o devido respeito, não contar com a alteração legislativa, quando após a publicação da Lei n.º 41/2013 sabia que esse documento deixaria de ser título executivo a partir de 1 de setembro de 2013 e deveria, caso pretendesse beneficiar da sua exequibilidade, ter instaurado a ação executiva até de 1 de setembro de 2013, sabendo que posteriormente o não podia fazer sem o recurso prévio á figura da injunção.

Questão diversa seria se o incumprimento da obrigação apenas viesse a revelar-se já na vigência do NCPC, o que não é manifestamente o caso. 

Concluindo, não ofende o princípio da segurança jurídica e proteção da confiança, ínsitos no art.º 2.º da C. R. P., a interpretação conjugada do art.º 703.º do NCPC e 6.º n.º3 da Lei 41/2013 de 26 de junho, no sentido de o primeiro se aplicar a documento particular de reconhecimento de dívida emitido em data anterior à da sua entrada em vigor e dotado de exequibilidade nos termos do art.º 46.º n.º1 c) do anterior CPC, ocorrendo o vencimento da obrigação reconhecida em outubro de 2010.

Improcede, pois, a apelação.

Vencido no recurso, suportará o recorrente as custas respetivas – art.º 527.º/1 do C. P. C.


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V. Sumariando.

Não ofende o princípio da segurança jurídica e proteção da confiança, ínsitos no art.º 2.º da C. R. P., a interpretação conjugada do art.º 703.º do NCPC e 6.º n.º3 da Lei 41/2013 de 26 de junho, no sentido de o primeiro se aplicar a documento particular de reconhecimento de dívida, emitido em data anterior à da sua entrada em vigor e dotado de exequibilidade nos termos do art.º 46.º n.º1 c) do anterior CPC, ocorrendo o vencimento da obrigação reconhecida em outubro de 2010.


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VI. Decisão.

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Lisboa 2014/06/19                       

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Tomé Almeida Ramião

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Vítor Amaral

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Maria Manuela Gomes


([1])  Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Junho de 2007, proc. 5194/2007-7, in www.dgsi.pt
[2] In “Comentários ao Código de Processo Civil”, Almedina, 1999, p. 69.

([3])  In “ A REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: A SUPRESSÃO DOS DOCUMENTOS PARTICULARES DO ELENCO DOS TÍTULOS EXECUTIVOS”, de 21/9/2013, in “Revista Julgar, on-line, Doutrina, onde refere que “Ora, o facto de aqueles documentos particulares revestirem a forma de título executivo pode ter sido essencial para a formação da vontade dos credores aquando da celebração daquele negócio jurídico ou da constituição daquela relação jurídica em particular. A aplicação da lei nova, sem mais, aos títulos executivos formados ao abrigo da lei anterior e ainda subsistentes lesa direitos adquiridos dos credores que apenas a prossecução de um elevado interesse público poderia derrogar.

A doutrina e a jurisprudência constitucionais têm entendido que uma norma retroativa cuja aplicação afete de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos é inconstitucional, com fundamento na violação do princípio da segurança e da proteção da confiança consagrado no artigo 2.º da CRP”.

([4]) Publicado no DR, I.ª Série-A de 18/12/1993.

([5]) E mais recentemente, no seu Acórdão n.º 187/2013, de 5/4/2013,  não obstante se reconhecer “a fluidez de contornos e o grau de indeterminação de conteúdo que ao princípio da proteção da confiança são recorrentemente apontados”  pode afirmar-se que o mesmo leva «postulada uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica (…). Esta ideia de arbitrariedade ou excessiva onerosidade, para efeito da tutela do princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, tem sido definida pelo Tribunal Constitucional por referência a dois pressupostos essenciais: a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas delas cons­tantes não possam contar; e ainda

b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição)”.
([6]) Definida para as situações em que “ a lei nova só reclama uma vigência ex nunc, ainda que com a virtualidade de afectar direitos que, embora constituídos no passado por força de lei anterior, prolongam os seus efeitos no presente”.
O Prof.º Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7.ª Edição, pág. 262, considera a “retroatividade inautêntica, também denominada retrospetividade” quando uma norma jurídica incide sobre situações ou relações jurídicas já existentes embora a nova disciplina jurídica pretenda ter efeitos para o futuro

([7]) No mesmo sentido se pronuncia o Prof.º Gomes Canotilho, “ibidem”, enfatizando que, em primeiro lugar,  “devem trazer-se à colação os direitos fundamentais: saber se a nova normação jurídica tocou desproporcionada, desadequada e desnecessariamente dimensões importantes dos direitos fundamentais”. 
([8]) In “ Manual da Execução e Despejo”, pág. 184.