Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2354/09.4YXLSB.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS EMERGENTES DE CONTRATOS DE INJUNÇÃO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
DECISÃO
FORÇA EXECUTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/29/2010
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I – Na acção declarativa com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, prevista no Decreto-Lei nº 269/98, de 01 de Setembro, se o réu, pessoalmente citado, não contestar, o juiz só deve recusar conferir força executiva à petição se for evidente que ocorrem excepções dilatórias ou se o pedido for manifestamente improcedente.
II – O pedido só é manifestamente improcedente se tal conclusão for unânime, incontroversa, isenta de dúvidas.
III – É manifestamente improcedente pedido que contraria jurisprudência uniforme fixada pelo STJ em julgamento ampliado de revista realizado recentemente e sem votos de vencido.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 10.10.2009 Banco, S.A. intentou, nos Juízos Cíveis da comarca de Lisboa, acção com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, nos termos do Decreto-Lei nº 269/98, de 01 de Setembro, contra F....
O A. alegou, em síntese, que no exercício da sua actividade e com destino à aquisição de um veículo automóvel segundo informação prestada pela Ré, por contrato constante de título particular datado de 23 de Março de 2006, concedeu à dita R. crédito directo sob a forma de mútuo, na importância de € 8 680,00, com juros à taxa nominal de 12,74% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos bem como a comissão de gestão, as despesas de transferência de propriedade, o imposto de selo de abertura do crédito e o prémio de seguro de vida serem pagos em 72 prestações mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 30 de Abril de 2006 e as seguintes nos dias 30 dos meses subsequentes. Foi acordado que em caso de falta de pagamento de alguma das prestações na data do vencimento, vencer-se-iam imediatamente as restantes. Em caso de mora sobre o montante em débito a título de cláusula penal acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro acordada acrescida de 4 pontos percentuais. A referida R. não pagou a 27ª prestação e seguintes, vencida a primeira em 30 de Junho de 2008, vencendo-se então todas. O valor de cada prestação era de € 178,57. O total das prestações em débito ascendia a € 8 214,22. Instada a pagar a importância em dívida, bem assim juros respectivos e imposto de selo incidente sobre os juros, a R. fez entrega do dito veículo ao A., para que procedesse à sua venda e creditasse o respectivo valor por conta do que a R. devesse. Em 10.3.2009 o A. vendeu o veículo pelo preço de € 2 280,79. À data de 10.3.2009 a R. devia, além da dita importância de € 8 214,22, o montante de € 935,12 a título de juros sobre ela vencidos e o montante de € 38,12, a título de imposto de selo sobre esses juros.
O A. terminou pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a importância de € 6 924,67, acrescida de € 647,88 de juros vencidos até 01 de Outubro de 2009 e de € 25,92 de imposto de selo sobre estes juros e juros que sobre a dita quantia de € 6 924,67 se vencessem, à taxa anual de 16,74% desde 02 de Outubro de 2009, até integral e efectivo pagamento, bem como o imposto de selo sobre os juros vincendos.
Citada, a Ré não contestou.
Em 22.12.2009 foi proferida sentença em que se julgou a acção parcialmente procedente e em consequência condenou-se a R. a pagar ao A. a quantia de € 3 259,98, acrescida de juros de mora, à taxa anual de 16,74%, desde 01.10.2009, até integral pagamento, bem como o imposto de selo devido.
O A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1. Atenta a natureza do processo em causa – processo especial – e o facto de o R. regularmente citado não ter contestado, deveria o Senhor Juiz a quo ter de imediato conferido força executiva à petição inicial, não havendo assim necessidade, sequer, de se pronunciar sobre quaisquer outras questões.
2. Aliás, neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu recente Acórdão da 2ª Secção, Processo 153/08.OTJLSB-L1 onde se refere que: "Não tendo o Apelado, César Simões contestado, apesar de citado pessoalmente, o tribunal recorrido, deveria limitar-se a conferir força executiva à petição, nos termos do art. 2°, do Regime dos Procedimentos a que se refere o artigo 1° do diploma preambular do Decreto-Lei n° 269/98, de 01-09, e não a analisar, quanto a um dos réus, da viabilidade do pedido, uma vez que este não era manifestamente improcedente isto é, ostensiva, indiscutível, irrefutável).
Concluindo, nos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações emergentes de contrato de valor não superior a € 15.000,00, se o réu citado pessoalmente, não contestar, o juiz apenas poderá deixar de conferir força executiva à petição, para além da verificação evidente de excepções dilatórias, quando a falta de fundamento do pedido for manifesta, por não ser possível nenhuma outra construção jurídica.”
3. Quanto ao que decidido foi na sentença recorrida a respeito dos juros remuneratórios, e mau grado o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 25 de Março de 2009, proferido no recurso 1992/98-6, certo é que, nesse mesmo Acórdão se deixou expresso que: "10 – As partes no âmbito da sua liberdade contratual podem convencionar, contudo, regime diferente do que resulta da mera aplicação do princípio definido no art.° 781° do C. Civil. "
4. No caso dos autos as partes expressamente acordaram regime diferente do que resulta da mera aplicação do princípio definido no artigo 781° do Código Civil, porquanto, na alínea b) da Cláusula 8ª das Condições Gerais do contrato dos autos expressamente foi acordado que "A falta de pagamento de uma prestação na data do respectivo vencimento implica o imediato vencimento de todas as restantes" e, igualmente, na alínea c) da Cláusula 4ª das Condições Gerais do referido contrato, as partes expressamente acordaram que: "No valor das prestações estão incluídos o capital, os juros do empréstimo, o valor dos impostos devidos, bem como os prémios das apólices de seguro a que se refere a cláusula 15 das Condições Gerais."
5. As partes acordaram expressamente regime diferente do que resulta do artigo 781° do Código Civil. É, pois, inteiramente válido, legítimo e legal o pedido dos autos.
6. Termos em que deve conceder-se provimento ao presente recurso, e, por via dele, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por acórdão que condene o R., ora recorrida na totalidade do pedido, como é de inteira Justiça.
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões suscitadas no recurso são as seguintes: se, face à natureza deste processo, o tribunal a quo não podia suscitar a questão que deu azo à parcial improcedência da acção; no caso de se entender que o tribunal podia apreciar tal questão, se, ainda assim, a acção devia ser julgada integralmente procedente.
Primeira questão (se o tribunal a quo não podia apreciar a questão que fundou a parcial improcedência da acção)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de Facto
1. A Autora e a Ré assinaram o original do documento de fls. 12 e 13, intitulado de "contrato de mútuo", cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. Pelo referido contrato, datado de 23.03.2006, no exercício da sua actividade de financiamento para aquisições a crédito, a Autora financiou o montante de € 8.580,00, que foi pago a terceiro, para que a Ré adquirisse um veículo de marca PEUGEOT, matrícula YY, mediante o pagamento à Autora de 72 prestações, iguais, mensais e sucessivas, no valor de € 178,57, com início em 30.04.2006 e final previsto para 30.12.2012, num total de € 12.857,04.
3. A Ré não pagou a 27.ª prestação na data de vencimento (30.06.2008).
4. Por conta da dívida, a Ré entregou o veículo referido à Autora, que o vendeu pelo valor de € 2.280,79, em 10.03.2009.
Em virtude de serem expressamente invocadas pelo apelante, transcrevem-se aqui as seguintes cláusulas do contrato referido em 1:
Alínea b) da cláusula 8.ª das Condições Gerais – “A falta de pagamento de uma prestação na data do respectivo vencimento, implica o imediato vencimento de todas as restantes.”;
Alínea c) da cláusula 4.ª das Condições Gerais – “No valor das prestações estão incluídos o capital, os juros do empréstimo, o valor dos impostos devidos, bem como os prémios das apólices de seguro a que se refere a cláusula 13 destas Condições Gerais.”
O Direito
A presente acção foi instaurada ao abrigo do disposto nos artigos 1º e seguintes do anexo ao Dec.-Lei nº 269/98, de 01.9, com a redacção introduzida pelo Dec.-Lei nº 107/2005, de 1.7, o qual procedeu à republicação integral do regime resultante (sendo irrelevantes para o caso as alterações posteriormente introduzidas pela Lei n.º 14/2006, de 26.4, Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24.4, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31.12, pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.02 e pelo Dec.-Lei n.º 226/2008, de 20.11).
Tal regime aplica-se aos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada da Relação. Esses procedimentos podem assumir a forma de acção declarativa, regulada nos artigos 1º a 5º, ou de injunção, regulada nos artigos 7º e seguintes.
No caso, instaurou-se acção declarativa.
Nos termos do nº 1 do aludido artigo 1º, na petição o autor exporá sucintamente a sua pretensão e o respectivos fundamentos, sendo certo que a petição não carece de ser articulada (nº 3 do art.º 1º). O réu é citado para contestar no prazo de 15 dias, se o valor da acção não exceder a alçada do tribunal de 1ª instância, ou no prazo de 20 dias, nos restantes casos (nº 2 do artigo 1º). Se o réu, citado pessoalmente, não contestar, “o juiz, com valor de decisão condenatória, limitar-se-á a conferir força executiva à petição, a não ser que ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente” (art.º 2.º).
O juiz não tem, pois, que proceder a fundamentação de facto e de direito, para proferir a condenação ínsita na declaração de concessão de força executória à petição inicial (procedimento inspirado pelo regime da “aposição da fórmula executória”, próprio da injunção - art.º 14º).
Tal não significa que se preveja um regime cominatório pleno, semelhante ao que vigorava antes da reforma introduzida pelo Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12.12. Aliás, nesse regime, a falta de contestação não obstava a que o juiz não desse seguimento à pretensão do autor, caso constatasse que a petição inicial era inepta, que o tribunal era absolutamente incompetente, que alguma das partes carecia de personalidade ou de capacidade judiciária ou era parte ilegítima, que o réu era incapaz ou pessoa colectiva, que o autor pretendia prosseguir um fim proibido por lei ou se estivesse em causa um efeito jurídico subtraído à mera vontade das partes (artigos 795º nº 1 e 784º do Código de Processo Civil na redacção anterior à introduzida pelo Dec.-Lei nº 329-A/95).
Neste regime, o juiz não deve conferir força executiva à petição se for evidente que ocorrem excepções dilatórias ou se o pedido for manifestamente improcedente.
O pedido é improcedente quando a fundamentação apresentada na petição inicial não chega para conferir ao autor a tutela jurídica pretendida. Porém, é necessário que tal carência seja “manifesta.”
Note-se que no anterior regime das cominações nas acções declarativas com processo sumário e sumaríssimo, na falta de contestação o juiz não podia negar provimento à acção com base no entendimento de que era evidente que a pretensão do autor não podia proceder (artigos 784.º n.º 1 e n.º 2, 795.º n.º 1 e 474.º n.º 1 alínea c), 2.ª parte, do Código de Processo Civil na redacção anterior à introduzida pelo Dec.-Lei nº 329-A/95). Nesse regime, desde que o réu não contestasse, considerava-se confessada a matéria de facto e de direito (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, volume VI, reimpressão, 1985, Coimbra Editora, pág. 455); o juiz teria de condenar o réu, ainda que, em sua opinião, a pretensão do autor fosse infundada, salvo o caso de se tratar de relações indisponíveis (parte final do n.º 2 do art.º 784.º e alínea c) do art.º 485.º).
No regime cominatório previsto pela lei para o procedimento especial ora sob análise recusa-se a confissão de direito, admitindo-se que o tribunal averigue da sustentabilidade da pretensão face ao direito substantivo: porém, tempera-se essa possibilidade, exigindo-se que o pedido seja “manifestamente improcedente.”
Salvador da Costa (in “A injunção e as conexas acção e execução”, Almedina, 6.ª edição, Junho de 2008, pág. 105) entende que “a ideia de manifesta improcedência corresponde à de ostensiva inviabilidade, o que raro se verifica, pelo que o juiz tem de ser muito prudente na formulação do juízo de insucesso a que a lei se reporta.
O conceito indeterminado de “manifesta improcedência” tem sido preenchido a propósito de juízos liminares, formulados em sede de análise perfunctória da viabilidade de pretensões judiciais, apreciada no início do respectivo processo (cfr. art.º 234.º-A n.º 1 do CPC). A esse propósito se tem propugnado que o pedido é manifestamente improcedente “quando não possa haver dúvida sobre a inexistência dos factos que o constituiriam ou sobre a existência, revelada pelo próprio autor, de factos impeditivos ou extintivos desse direito” (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, Coimbra Editora, vol. 1.º, 2.ª edição, 2008, pág. 426). Ou, noutra formulação, “quando seja inequívoco que o procedimento nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais” (Abrantes Geraldes, “Temas da reforma do processo civil, III volume, 2.ª edição, Almedina, pág. 162). A decisão de rejeição liminar do requerimento inicial deve ser reservada “apenas para os casos em que a tese propugnada pelo autor não tenha possibilidades de ser acolhida face à lei em vigor e à interpretação que dela façam a doutrina e a jurisprudência.” (Abrantes Geraldes, obra e local citados).
Antes da reforma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12.12, o Código de Processo Civil previa o indeferimento liminar da petição quando fosse “evidente” que a pretensão do autor não podia proceder (art.º 474.º n.º 1 alínea c) do CPC). Tratava-se de formulação já utilizada no CPC de 1939 (3º do art.º 481.º). A expressão “evidente” ou “manifesta” tinham e têm o mesmo sentido e valor (neste sentido, Alberto dos Reis, a propósito do dever de o juiz lavrar despacho de indeferimento liminar quando fosse “manifesta” a falta de determinados pressupostos processuais: Código de Processo Civil anotado, vol. II, 3.ª edição, reimpressão, 1981, Coimbra Editora, pág. 375).
Conforme é explicado por Alberto dos Reis, as regras atinentes ao indeferimento liminar da petição têm em vista evitar o dispêndio inútil de actividade judicial. “O indeferimento liminar pressupõe que ou por motivos de forma, ou por motivos de fundo, a pretensão do autor está irremediavelmente comprometida, está votada a insucesso certo. Em tais circunstâncias não faz sentido que a petição tenha seguimento; deixá-la avançar é desperdício manifesto, é praticar actos judiciais em pura perda. Impõe-se, por isso, ao juiz o dever de jugular a acção à nascença.” (CPC anotado, citado, pág. 373).
Quanto ao indeferimento por razões de fundo, a fórmula utilizada pela lei processual anterior ao CPC de 1939 (n.º 4 do art.º 2.º do Dec. n.º 12 353 e n.º 4 do art.º 93.º do Dec. n.º 21 287) era outra: a petição deveria ser indeferida “quando a inviabilidade da pretensão do autor for de tal modo evidente, que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior” (A. dos Reis, citado, pág. 377). Conforme nota A. dos Reis (obra citada, pág. 384) esta fórmula era mais enérgica do que a que veio a ser exarada no CPC de 1939. Tal deveu-se à circunstância de em 1926 o indeferimento liminar constituir uma inovação e pretender-se que a mesma fosse introduzida em termos cautelosos, de forma a ser utilizada apenas em casos extremos (A. dos Reis, citado, páginas 384 e 385). Aquando da elaboração do CPC de 1939, pretendeu-se utilizar uma fórmula mais breve. Porém, o sentido e o espírito da nova disposição eram, segundo Alberto dos Reis, os mesmos da norma correspondente dos Decretos n.ºs 12 353 e 21 287: para A. dos Reis, “o juiz só deve indeferir a petição inicial, com fundamento na 2.ª parte do n.º 3 do art.º 481.º, quando a improcedência da pretensão do autor for tão evidente que torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de actividade judicial” (A. dos Reis, citado, pág. 385).
É, pois, com este histórico lastro de conteúdo que aparece, na acção com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, nos termos do Decreto-Lei nº 269/98, o conceito de manifesta improcedência do pedido.
O rigor e as cautelas impostas pelo sentido atribuído a esse conceito, tal como supra exposto, justificam-se quando está em causa um juízo liminar. Porém, in casu trata-se de formular um juízo definitivo, emitido finda a fase dos articulados, sem haver de cuidar de diligências instrutórias futuras.
Dir-se-ia, pois, não se justificar aqui que ao conceito de “manifesta improcedência” do pedido se atribua um conteúdo idêntico ao que se tornou tradicional no nosso processo civil.
Mas será necessariamente assim?
É que, note-se, está-se perante a aplicação de um efeito cominatório, decorrente da indiferença patenteada pelo réu que se quedou em revelia, num procedimento configurado para servir os interesses do credor, em termos de eficácia e celeridade da actuação judicial. Justifica-se, então, que o juiz esteja inibido de ir em socorro do devedor, antepondo obstáculos à procedência da pretensão do autor, em casos em que esta pode ainda obter amparo na ordem jurídica, nomeadamente à luz da opinião conhecida de alguns sectores da doutrina e da jurisprudência.
Nesta espécie processual, a falta de contestação só obstará à procedência do pedido em casos excepcionais previstos na lei, ou seja, quando “ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente” (art.º 2.º).
Afigura-se-nos, pois, não haver razões para atribuir ao referido conceito indeterminado um conteúdo diverso daquele que lhe tem cabido em sede de apreciação liminar da viabilidade do pedido.
Julgamos que a lei, também aqui, apela para um critério objectivo, que exige um juízo de recusa do peticionado assente numa visão consensual, incontroversa, que não deixa margem para dúvidas (neste sentido, cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 30.4.2009, processo 153/08.OTJLSB.L1-2; acórdão da Rel. de Lisboa, de 20.10.2009, proc. 2148/08.4TJLSB.L1-7; Rel. de Lisboa, 16.7.2009, proc. 1256/08.6TBAGH.L1-2; Rel. de Lisboa, 04.02.2010, proc. 415/09.9YXLSB.L1-8; Rel. de Lisboa, 02.02.2010, proc. 1008/08.3TJLSB.L1-1; Rel. do Porto, 01.3.2010, proc. 349/09.7TBMD.P1; em sentido dissonante, ac. da Rel. de Lisboa, 15.12.2009, proc. 74/09.9TJLSB.L1-1 e ac. da Rel. de Coimbra, de 02.03.2010, proc. 682/07.2YXLSB.C1 – todos publicados na internet, dgsi-itij).
O juízo de manifesta improcedência poderá afectar apenas parte do peticionado (neste sentido, Salvador da Costa, obra citada, pág. 119).
Na sentença recorrida julgou-se a acção improcedente quanto ao valor dos juros remuneratórios que o A. dava como incluídos nas prestações antecipadamente vencidas em consequência do não pagamento de uma das prestações a que a R. se obrigara por força do contrato que celebrara com o A.. Entendeu-se, na sentença, que tal improcedência era manifesta, por decorrer da jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça através do acórdão n.º 7/2009, de 25.3.2009.
Está em causa acórdão proferido pelo STJ em 25.3.2009 (publicado na internet, dgsi-itij, processo 08A1992 e no D.R., I série,n.º 86, de 5.5.2009, pág. 2530 e seguintes), em julgamento ampliado de revista, o qual uniformizou a jurisprudência nos seguintes termos:
“No contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao art.º 781º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados. ”
É certo que os acórdãos de uniformização de jurisprudência não têm força de lei, não vinculam genericamente a comunidade jurídica. Tal efeito está expressamente vedado pelo n.º 5 do art.º 112.º da Constituição da República Portuguesa (“nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”).
Porém, o regime processual que lhes é associado leva a prognosticar que a doutrina neles consignada se imporá, com grande probabilidade, em futuros arestos que incluam no seu objecto a questão neles apreciada. O julgamento ampliado da revista faz-se com a intervenção do pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça (n.º 1 do art.º 732.º-A do CPC) e só se realiza com a presença de, pelo menos, três quartos dos juízes em exercício nas secções cíveis (n.º 4 do art.º 732.º-B do CPC, com a redacção introduzida pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24.8; n.º 3 do art.º 732.º-B, na redacção anterior ao Dec.-Lei n.º 303/2007). É sempre admissível recurso das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada pelo STJ (alínea c) do n.º 2 do art.º 678.º do CPC). O relator, ou qualquer dos adjuntos, deve obrigatoriamente propor o julgamento ampliado da revista quando verifique a possibilidade de vencimento de solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência uniformizada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito (n.º 3 do art.º 732.º-A). Se, por algum motivo, o STJ venha ainda assim a proferir, sem a intervenção do plenário das secções cíveis, decisão contrária a acórdão de uniformização de jurisprudência proferido à luz da mesma legislação, as partes podem interpor recurso dessa decisão para o pleno das secções cíveis (art.º 763.º n.º 1 do CPC).
Mecanismos estes que visam, obviamente, salvaguardar as vantagens inerentes à uniformidade da jurisprudência.
Ora, tendo a sentença recorrida sido proferida em Dezembro de 2009 e datando o citado acórdão uniformizador da jurisprudência de Março de 2009, tendo sido subscrito sem votos de vencido pela totalidade dos ilustres conselheiros que intervieram no julgamento, não podia o tribunal a quo alhear-se do mesmo e deixar de pautar a bondade da pretensão do A. pela interpretação da lei nele definida (cfr., no mesmo sentido, sobre situações idênticas, acórdão da Relação de Lisboa, de 16.7.2009, proc. 1256/08.6TBAGH.L1-2; ac. da Rel. de Lisboa, de 22.10.2009, proc. 1111/09.2TJLSB.L1-2; ac. da Rel. de Lisboa, de 04.02.2010, proc. 415/09.9YXLSB.L1-8; ac. da Rel. de Lisboa, de 02.02.2010, proc. 1008/08.3TJLSB.L1-1; ac. da Rel. do Porto, de 01.3.2010, proc. 349/09.7TBMD.P1; ac. da Rel. de Coimbra, de 02.3.2010, proc. 157/09.5TBMIR.C1; ac. da Rel. de Coimbra, de 23.02.2010, proc. 168/09.0TBGVA.C1; em sentido contrário, ac. da Rel. de Coimbra, de 16.12.2009, proc. 14/09.5TBMLD.C1).
Nesta parte, pois, o recurso improcede.
Segunda questão (da procedência total da acção, face ao contratado entre as partes)
O apelante defende que mesmo que se possa atentar no teor do citado acórdão de uniformização de jurisprudência, do mesmo não resultaria a improcedência parcial da acção. Isto porque, nota o apelante, o STJ admitiu expressamente que “as partes no âmbito da sua liberdade contratual podem convencionar, contudo, regime diferente do que resulta da mera aplicação do princípio definido no artigo 781.º do Código Civil” (n.º 10 da enunciação das “premissas nucleares” do acórdão). Ora, diz o apelante, no caso dos autos as partes acordaram em regime diferente do que resulta da mera aplicação do princípio definido no artigo 781° do Código Civil. A apelante sustenta tal asserção no teor da alínea b) da Cláusula 8ª das Condições Gerais do contrato e no teor da alínea c) da Cláusula 4ª das Condições Gerais do referido contrato, as quais estão supra transcritas em sede de matéria de facto.
A verdade é que o acórdão do STJ ora invocado debruçou-se sobre contrato com cláusulas precisamente idênticas às supra descritas e a totalidade dos exmos Conselheiros entendeu que essas cláusulas remetem para ou reproduzem o art.º 781º do Código Civil, pelo que devem ser interpretadas de acordo com o regime adveniente dessa norma. E esse regime, diz o STJ, implica que “No contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao art.º 781º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados. ”
Ou seja, tanto à data da propositura da acção como actualmente, era e é evidente que, face ao estado da lei e da jurisprudência, a pretensão da A. no que concerne ao vencimento antecipado de juros remuneratórios era e é inviável.
Razão porque se entende que a apelação é improcedente.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo da apelante.
Lisboa, 29.4.2010
Jorge Manuel Leitão Leal
Ondina Carmo Alves (com declaração de voto em anexo)
Ana Paula Boularot
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Com a declaração de que votei a decisão, embora não acompanhe o entendimento acolhido no acórdão, na parte em que atribui ao conceito de “manifesta improcedência” um conteúdo idêntico àquele que é atribuído uniformemente pela doutrina e jurisprudência quando está em causa um juízo liminar.
Face à evolução legislativa, dificilmente se poderá admitir que no Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro se pretenda, ao cabo e ao resto, regressar ao ultrapassado cominatório pleno, penalizando automaticamente quem não apresenta contestação.
As limitações e necessárias cautelas que se colocam na fase liminar da acção, em face das várias soluções plausíveis da questão de direito, não se colocam na fase de julgamento.
Na fase de julgamento, e mesmo estando em causa uma acção de processo de especial destinada a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, o juiz não está obrigado a conferir força executiva a uma petição inicial, mesmo sabendo que há várias orientações jurídicas sobre o fundo da causa, clivagens na doutrina e na jurisprudência, e muito menos quando defende uma orientação diferente da que é apresentada pelo autor e entende ser infundada.
Se assim se não entendesse, o julgador seria obrigado a decidir diferentemente a mesma questão de direito, apenas pela circunstância da acção ter sido - ou não - contestada, forçando-o a abandonar a posição que perfilha e a decidir contra a interpretação que considera ser a mais correcta.
Esta foi, de resto, a posição vertida no Acórdão desta Relação de 29.04.2010 (Pº 2898/08.5YXLSB.L1), em que fui relatora, bem como no voto de vencida aposto no Pº 3111/08.0TJLSB.L1.
Ondina Carmo Alves