Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4274/15.4YLPRT.L1-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: DENUNCIA DE ARRENDAMENTO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
BENFEITORIAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Sendo a denúncia do contrato feita pelo senhorio em 25-10-2010, a mesma há-de reger-se pela lei vigente ao tempo da denúncia.
- E sendo a denúncia válida face à lei em vigor ao tempo em que foi realizada, devem ficar ressalvados os efeitos já produzidos pela mesma ainda que sobrevenha nova lei que revogue ou altere a primeira, como aconteceu no caso em apreciação.
- Ao tempo da denúncia estava em vigor a Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano e que continha normas transitórias aplicáveis aos contratos de arrendamento não habitacionais celebrados antes da vigência do DL 257/95, de 30 de Setembro – artigos 27º e seguintes da referida lei.
- Em caso de locação do estabelecimento ocorrida após a entrada em vigor da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, o senhorio podia validamente denunciar o contrato nos termos previstos no artigo 1101º alª c) do Código Civil, na redacção vigente na data em que foi realizada a denúncia.
- Constando do contrato de arrendamento que “todas as obras ou benfeitorias que o inquilino fizer na casa arrendada à mesma ficarão pertencendo, logo que feitas, sem que por elas possa o inquilino pedir qualquer indemnização”, não se confere ao locatário o direito a ser indemnizado pelas obras ou benfeitorias realizadas no locado e não se verifica abuso de direito.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa


I - RELATÓRIO


L... e N... propuseram junto do Balcão Nacional de Arrendamento procedimento especial de despejo contra C... Lda indicando como fundamento a denúncia do contrato pelo senhorio e juntando os documentos previstos no artº 15º nº 2 Lei 31/2012 de 14 de Agosto.

A requerida apresentou oposição pedindo a improcedência do pedido de despejo por ineficácia da denúncia uma vez que o seu fundamento, não se verificou, pois não ocorreu nem trespasse, nem locação do estabelecimento por iniciativa da requerida, invocando ainda a inaplicabilidade do disposto nos artigos 1101º c) do Código Civil e 26º nº 6 do NRAU, por terem sido expressamente revogados pela Lei 31/2012, de 14 de Agosto.
O que aconteceu foi uma cessão de exploração comercial pelo período de 10 anos e não por tempo indeterminado.
Em reconvenção, pedem a condenação dos autores a pagar-lhes o valor de 200.616,19 euros, actualizado em função dos factores de correcção monetária, a título de indemnização por benfeitorias realizadas no locado nos anos de 1993/1994.

Os requerentes responderam, dizendo, em síntese, que o artigo 29º nº 3 do NRAU não é aplicável ao caso dos autos. Além disso, o próprio contrato de arrendamento estipula que “todas as obras de ou benfeitorias que o inquilino fizer na casa arrendada à mesma fisgarão a pertencendo, logo que feitas, sem que por elas possa o inquilino pedir qualquer indemnização.
Por isso, não tem a requerida direito à pretendida indemnização.
Foi proferida SENTENÇA que julgou a oposição improcedente e a acção procedente e, em consequência, julgou cessado por denúncia do senhorio o contrato de arrendamento celebrado em 6 de Janeiro de 1936 e condenou a ré a entregar o locado aos autores, livre e devoluto de pessoas e bens.
Absolveu ainda os autores do pedido de pagamento da indemnização por benfeitorias apresentado pela ré.

Não se conformando com a sentença, dela recorreu a requerida, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
1ª – A denúncia do contrato de arrendamento não habitacional (comercial) vigente desde o dia 6 de Fevereiro do ano de 1936, foi feita pelos autores através do envio de carta com a data do dia 25 de Outubro do ano de 2010, tendo aí invocado como fundamento legal dessa decisão a alª c) do art. 1101º do Cód. Civil e ainda a alª a) do nº 1 do artº 26º da Lei nº 6/2006, do dia 27 de Fevereiro de 2006.
2ª - Na situação “sub judice” e em face da aplicação “in casu” do artº 12º do Cód. Civil não se podem deixar de considerar e ter em devida análise e apreciação as dezenas de anos de vigência e os efeitos daí operantes em relação ao aludido contrato de arrendamento, nomeadamente em torno das posições dos senhorios e da inquilina.
3ª - Entende-se serem aqui, isso sim, aplicáveis as normas do Cód. Civil, nomeadamente os artº 1086º, 1112º e de forma especial e relevante o artº 1085º, todos com os textos anteriores à vigência da aludida Lei nº 6/2016, antes referida.
4ª - Consequentemente não tem aqui enquadramento legal a aplicação dos artigos e lei invocada na carta de denúncia, enviada dos senhorios para a inquilina (aludidos conclusão 1ª).
5ª - Por efeito do concluído nos dois anteriores pontos (conclusão 3ª e 4ª) a realizada cessão de exploração pela ré a favor de terceiros, porque não considerada arrendamento no então vigente sistema legal português, não pode gerar denuncia pelos senhorios, sendo ilegal e ineficaz a comunicação do dia 25 de Outubro de 2010.
6ª- Tal entendimento legislativo foi prolongado no sistema jurídico positivo português durante a vigência do RAU, que deu à cessão de exploração igual qualificação de não ser arrendamento.
7ª - “Ad cautelem” é inaplicável na situação “sub judice” o nº 3 do artº 28º da Lei nº 79/2014, do dia 19 de Dezembro de 2014, pois como manda o seu nº 4 tal só ocorrerá (será aplicável) aos factos denunciativos verificados após a sua entrada em vigor – seu artº 65º - (ocorreu em Abril de 2015) já que “in casu” a denúncia ocorreu no dia 25 de Outubro de 2010 (mais de 4 anos antes).
8ª - A ré e inquilina realizou no locado, após obter prévia autorização por escrito dos senhorios, obras que ultrapassaram no seu global o valor de 201.000,00€.
2ª - Na situação “sub judice” e em face da aplicação “in casu” do artº 12º do Cód. Civil não se podem deixar de considerar e ter em devida análise e apreciação as dezenas de anos de vigência e os efeitos daí operantes em relação ao aludido contrato de arrendamento, nomeadamente em torno das posições dos senhorios e da inquilina.
3ª -Entende-se serem aqui, isso sim, aplicáveis as normas do Cód. Civil, nomeadamente os artº 1086º, 1112º e de forma especial e relevante o artº 1085º, todos com os textos anteriores à vigência da aludida Lei nº 6/2016, antes referida.
4ª – Consequentemente, não tem aqui enquadramento legal a aplicação dos artigos e lei invocada na carta de denúncia, enviada dos senhorios para a inquilina (aludidos conclusão 1ª).
5ª - Por efeito do concluído nos dois anteriores pontos (conclusão 3ª e 4ª) a realizada cessão de exploração pela ré. a favor de terceiros, porque não considerada arrendamento no então vigente sistema legal português, não pode gerar denuncia pelos senhorios, sendo ilegal e ineficaz a comunicação do dia 25 de Outubro de 2010.
6ª - Tal entendimento legislativo foi prolongado no sistema jurídico positivo português durante a vigência do RAU, que deu à cessão de exploração igual qualificação de não ser arrendamento.
7ª - “Ad cautelem” é inaplicável na situação “sub judice” o n.º 3 do art. 28º da Lei n.º 79/2014, do dia 19 de Dezembro de 2014, pois como manda o seu n.º 4 tal só ocorrerá (será aplicável) aos factos denunciativos verificados após a sua entrada em vigor – seu art. 65º - (ocorreu em Abril de 2015) já que “in casu” a denúncia ocorreu no dia 25 de Outubro de 2010 (mais de 4 anos antes).
8ª - A ré e inquilina realizou no locado, após obter prévia autorização por escrito dos senhorios, obras que ultrapassaram no seu global o valor de 201.000,00€.
9ª - Como decorre da conjugação dos nºs 3 e 2 do artº 29º da Lei nº 61/2006, do dia 27 de Fevereiro de 2006, a inquilina tem direito, no âmbito do contrato de arrendamento para fins não habitacionais, a ser indemnizada, como compensação pelas obras que licitamente realizou no locado propriedade dos autores
10ª - Tal estatuição normativa e de forma especial o ínsito na parte final do nº 2 (“independentemente do estipulado no contrato de arrendamento), afasta o conteúdo da cláusula 5ª do contrato vigente inter partes que dispõe de forma divergente.
11ª - A sentenciada absolvição dos autores, quanto ao não pagamento das obras e bens incorporados no locado, adicionada ao despejo (cessação do contrato de arrendamento por denúncia) constitui abuso de direito (artº 334º do Cód. Civil) que urge ser anulado e substituído por oposto acórdão que decida pelo pagamento da indemnização compensatória a realizar pelos autores em benefício da ré.
12ª - Os autores bem conhecem a lei vigente nessa época, pois são eles que na sua denúncia expressamente escrevem que a fundamentam no nº 6 do artº 26º da Lei 6/2006, sendo que esta norma é aludida no já apreciado nº 3 do artº 29º da mesma lei, quanto à compensação das benfeitorias.

V. Do Pedido:
Termos em que a final se espera e requer que seja proferido Acórdão que dê procedência “in totum” a este Recurso e em consequência seja anulado o decidido pelo Tribunal “a quo” e daí que:
1º - Decida manter como válido e não denunciado o contrato de arrendamento comercial vigente entre os autores e a ré (recorrente).
“Ad cautelem” e sem conceder,
2º - A ser mantida a denúncia, sejam os autores condenados a pagar sob a forma de compensação uma indemnização em benefício da ré em valor igual do das benfeitorias por esta realizadas no locado.

Os autores responderam, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.

Dispensados os vistos, uma vez que a questão é meramente de direito, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A) Fundamentação de facto
Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:

1º- Os requerentes são os actuais titulares do direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Rua da Academia das Ciências, nº 1 e 1 A, em Lisboa.
2º- Por contrato de 6 de Fevereiro de 1936, os então proprietários do prédio deram de arrendamento a J..., pelo prazo de seis meses, sucessivamente prorrogável por iguais períodos de tempo, a loja que é parte do dito prédio, destinando-se a casa arrendada a carvoaria e venda de vinhos e comidas.
3º- Estipularam as partes na cláusula quinta desse mesmo contrato que todas as obras ou benfeitorias que o inquilino fizer na casa arrendada à mesma ficarão pertencendo logo que feitas, sem que por elas possa o inquilino pedir qualquer indemnização.
4º- A requerida é a arrendatária da dita loja tendo sucedido na posição do referido arrendatário por contrato de trespasse do estabelecimento comercial aí instalado, celebrado em 23 de Dezembro de 1992.
5º- A renda mensal actual é de 9,65 euros.
6º- Por carta registada com aviso de recepção, datada de 1 de Outubro de 2010 a requerida comunicou à requerente ter celebrado com data desse mesmo dia, contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial instalado na referida loja do prédio sito na Rua da Academia das Ciências, nº 1 e 1 A, em Lisboa, com efeitos entre 1 de Outubro de 2010 e 30 de Setembro de 2020.
7º- Os requerentes enviaram à requerida carta registada com aviso de recepção datada de 25 de Outubro de 2010 com o seguinte teor: “Na qualidade de senhorios da loja da qual é arrendatária a sociedade Consenso – Actividades Hoteleiras, Lda e após termos tomado conhecimento da locação do estabelecimento comercial denominado Restaurante Bar Consenso instalado na loja, vimos por este meio nos termos e para os efeitos do disposto no artº 1101º, c) CC e no artº 26º nº6 alínea a) da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano, denunciar o referido contrato de arrendamento mediante o pré-aviso de 5 anos previsto nas citadas disposições legais. A presente denúncia produz os seus efeitos decorridos cinco anos a contar da data da recepção da presente carta, data em que a loja deverá ser restituída, devoluta de pessoas e bens.”
8º- Os requerentes enviaram igualmente à requerida carta registada com aviso de recepção datada de 11 de Agosto de 2014 com o seguinte teor: “Vimos pela presente confirmar a denúncia do contrato de arrendamento celebrado em 6 de Fevereiro de 1936 relativo à loja com o nº 1 e 1 A da Rua da Academia das Ciências (…), denúncia essa que vos foi comunicada por carta datada de 26.10.2010 e recebida por V. Exas em 10.11.2010. Por conseguinte, a denúncia em questão produzirá efeitos a partir do dia 10.11.2015, data em que V. Exas deverão restituir a loja livre de pessoas e bens”.
9º- Por documento datado de 09/08/1993 declararam os proprietários à data do prédio descrito em 1º supra o seguinte: “Nós abaixo assinados, M..., viúva (…) e J... (…) declaramos pela presente, autorizar para todos os efeitos legais, a execução de todas as obras previstas na Sala Um do estabelecimento sito na loja 1 e 1 A da Rua da Academia das Ciências, conforme projecto constante do processo 36/OB/RU/93 da Câmara Municipal de Lisboa”.
10º- Entre os anos de 1993 e 1995 a requerida levou a cabo obras de recuperação, restauro e remodelação no locado, com vista à instalação de um restaurante.
11º- Nos projectos de decoração, arquitectura, electricidade, água e esgotos, gás e ar condicionado, despendeu a requerida a quantia de 1.990.200$00/9.927,08 euros.
12º- Nas obras de construção civil gastou a requerida 25.544.407$00/127.414,96 euros.
13º- Em climatização e condutas, recuperador e tubo e portas corta-fogo despendeu a requerida a quantia de 2.688.040$00/13.308,12 euros.
14º- Em vidros e portas despendeu a requerida a quantia de 3.601.598$00/17.964,70 euros.
15º- Em puxadores de portas, estuques e pinturas artísticas, estrutura do pavimento, pedras de mármore, tampos de mármore, torneiras e sanitários, tintas para pinturas despendeu a requerida a quantia de 2.261.916$00/11.282,39 euros.
16º- Nos anos de 1998 a 2001 despendeu a requerida em climatização e grelhas, ventilação e condutas e obras na chaminé a quantia de 3.214.575$00/16.034,23 euros.
17º- Nos anos de 2010 e 2011 despendeu a requerida com a recuperação do pavimento e reparação de infiltrações a quantia de 5.155,27 euros.

B) Fundamentação de direito

As questões colocadas pela recorrente nas suas alegações e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, são as seguintes:
- Da aplicação da lei no tempo, quanto à denúncia do contrato de arrendamento pelos autores, seus efeitos (i)legalidade, eficácia;
- Do direito da ré, enquanto inquilina, a ser indemnizada das benfeitorias por si realizadas, com autorização do senhorio, no locado.

PRIMEIRO TEMA: DA APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO, QUANTO À DENÚNCIA DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO PELOS AUTORES, SEUS EFEITOS (I)LEGALIDADE, EFICÁCIA.

Argumenta a recorrente que, no caso concreto, são aplicáveis na sua qualificação e enquadramento jurídico (porque celebrado o contrato em 1936), as regas anteriores ao RAU, ou seja o Código Civil com a redacção anterior ao DL 321-B/2010, de 15 de Outubro.

Estamos perante um contrato de arrendamento para fins não habitacionais, tal como foi dito na sentença recorrida, qualificação aceite e não contestada pela apelante nas suas alegações.

Mas o cerne da questão é outro: é o de saber qual a lei aplicável.
Como bem observam os apelados, a área do arrendamento urbano será porventura a área nuclear do Direito Civil que maior número de alterações conheceu nas décadas recentes.
Essa proliferação legiferante leva a que qualquer contrato de arrendamento de longa duração suscite questões em matéria de sucessão de leis, convocando as normas transitórias das várias leis em confronto, e também as normas do Código Civil sobre esta matéria.

Sobre esta questão é importante recuperar os dois pontos nucleares e que constam dos nºs 7 e 8 da Fundamentação de facto.
Assim,
7º- Os requerentes enviaram à requerida carta registada com aviso de recepção datada de 25 de Outubro de 2010 com o seguinte teor: “Na qualidade de senhorios da loja da qual é arrendatária a sociedade Consenso – Actividades Hoteleiras, Lda e após termos tomado conhecimento da locação do estabelecimento comercial denominado Restaurante Bar C... instalado na loja, vimos por este meio nos termos e para os efeitos do disposto no artº 1101º, c) CC e no artº 26º nº6 alínea a) da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano, denunciar o referido contrato de arrendamento mediante o pré-aviso de 5 anos previsto nas citadas disposições legais. A presente denúncia produz os seus efeitos decorridos cinco anos a contar da data da recepção da presente carta, data em que a loja deverá ser restituída, devoluta de pessoas e bens.”
8º- Os requerentes enviaram igualmente à requerida carta registada com aviso de recepção datada de 11 de Agosto de 2014 com o seguinte teor: “Vimos pela presente confirmar a denúncia do contrato de arrendamento celebrado em 6 de Fevereiro de 1936 relativo à loja com o nº 1 e 1 A da Rua da Academia das Ciências (…), denúncia essa que vos foi comunicada por carta datada de 26.10.2010 e recebida por V. Exas em 10.11.2010. Por conseguinte, a denúncia em questão produzirá efeitos a partir do dia 10.11.2015, data em que V. Exas deverão restituir a loja livre de pessoas e bens”.

Sendo a denúncia do contrato feita pelo senhorio em 25-10-2010, a mesma há-de reger-se pela lei vigente ao tempo da denúncia.
E que, sendo a denúncia válida face à lei em vigor ao tempo em que foi realizada, devem ficar ressalvados os efeitos já produzidos pela mesma ainda que sobrevenha nova lei que revogue ou altere a primeira, como aconteceu no caso em apreciação.
Ora, como bem se observa na douta sentença recorrida, ao tempo da denúncia estava em vigor a Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano e que continha normas transitórias aplicáveis aos contratos de arrendamento não habitacionais celebrados antes da vigência do DL 257/95, de 30 de Setembro – artigos 27º e seguintes da referida lei.
O artigo 28º da referida lei preceitua que “ Aos contratos a que se refere o presente capítulo aplica-se, com as devidas adaptações, o previsto no artigo 26º”.
Por outro lado, o artigo 26º nº 4 alª c) e nº 6 alª a) da Lei 6/2006, considerava inaplicável a tais contratos o disposto no artº 1101º alª c) do Código Civil, excepto nos casos em que ocorresse trespasse ou locação do estabelecimento após a entrada em vigor da lei 6/2006.
Significa isto que, em caso de trespasse ou locação do estabelecimento ocorrido após a entrada em vigor da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, facto que se verificou na situação em apreciação pois que a cessão de exploração do estabelecimento comercial foi celebrada em 1 de Outubro de 2010, o senhorio podia validamente denunciar o contrato nos termos previstos no artº 1101º alª c) do Código Civil, na redacção vigente na data em que foi realizada a denúncia.
Efectivamente, preceitua o artigo 1101º alª c) do Código Civil preceitua que “ o senhorio pode denunciar o contrato de duração indeterminada mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretenda a cessação”.
Foi o que fizeram os senhorios com a carta de 25 de Outubro de 2010, configurando, assim, como válida, a denúncia.
 Por outro lado, estabelece o artigo 1104º do Código Civil, uma condição de eficácia da denúncia referida, ao preceituar que “ no caso previsto na alínea c) do artigo 1101º, a denúncia deve ser confirmada, sob pena de eficácia, por comunicação com a antecedência máxima de 15 meses e mínima de um ano relativamente à data da sua efectivação”.
Foi o que os senhorios voltaram a fazer com a carta de 11 de Agosto de 2014.
Assim, recuperando parte do conteúdo das contra-alegações, diremos que “ a denúncia foi realizada com base num regime legal, vigente à data, que expressamente permitia o exercício do direito denunciativo nos termos em que o mesmo foi concretamente exercido.
Improcedem, assim, nesta parte, as conclusões das alegações da apelante.

SEGUNDO TEMA: DO DIREITO DA RÉ, ENQUANTO INQUILINA, A SER INDEMNIZADA DAS BENFEITORIAS POR SI REALIZADAS, COM AUTORIZAÇÃO DO SENHORIO, NO LOCADO.

Alega a apelante que tem direito ao valor das benfeitorias que realizou no locado, sendo aplicável o disposto no nº 2, por força do nº 3, ambos do artigo 29º da lei 6/2006.
Cumpre decidir.
O contrato de arrendamento foi celebrado em 06 de Fevereiro de 1936 – fls 161 a 167.
Estipularam as partes na cláusula quinta desse mesmo contrato que “todas as obras ou benfeitorias que o inquilino fizer na casa arrendada à mesma ficarão pertencendo, logo que feitas, sem que por elas possa o inquilino pedir qualquer indemnização” – nº 3 da Fundamentação de facto.
No caso sub judice, rege o artigo 405º nº 1 do Código Civil, segundo o qual, dentro dos limites da lei, podem as partes fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos no Código Civil ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver (princípio da liberdade contratual).
O princípio da liberdade contratual é uma aplicação da regra da liberdade negocial, sendo ambos um corolário do princípio da autonomia privada, só limitado, em termos gerais, nas disposições dos artigos 280º e seguintes do Código Civil, e, em termos especiais, na regulamentação de alguns contratos.
O tema em apreço deve, pois, ser decidido no âmbito do princípio da liberdade contratual, que pode afastar a aplicação da lei, que não é de interesse e ordem pública; por isso, é por força da supra mencionada cláusula quinta do contrato de arrendamento que a apelante não terá direito à pretendida indemnização e não por força das normas que invoca.

Por outro lado, o artigo 29º nº1 da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro estabelece o seguinte:
“Salvo estipulação em contrário, a cessação do contrato dá ao arrendatário direito a compensação pelas obras licitamente feitas, nos termos aplicáveis às benfeitorias realizadas por possuidor de boa fé”.
Isso significa que o arrendatário, por força da mencionada cláusula quinta, ficará excluído do direito a uma indemnização pelas benfeitorias nos casos em que o contrato assim disponha.
Aquele nº 1 do artigo 29º manteve-se intacto com as alterações introduzidas na Lei 6/2006, pela 31/2012, de 14 de Agosto e pela Lei nº 79/2014, de 19 de Dezembro.
A pretensão da apelante de ser aplicável o nº 2 do artigo 29º não faz sentido, pois o mesmo aplica-se a uma realidade bem diferente. Aquele nº 2 refere-se à denúncia do contrato de arrendamento prevista no nº 5 do artº 37º, ou seja, a que é feita pelo arrendatário.

Deste modo e em conclusão, existe a mencionada “estipulação em contrário” e não se verifica nenhuma das situações em que se confere imperativamente ao arrendatário o direito a ser compensado por benfeitorias.

Alega ainda a apelante que existe uma situação de abuso de direito, em benefício dos autores, que vêem o seu património (locado) ficar enormemente enriquecido com bens e obras ali colocadas e realizadas pela ré.
Estipula o artigo 334º do Código Civil que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito.”
Não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.
Ora, a cláusula quinta em apreço consta de um contrato firmado entre as partes e, quando a ré efectuou as obras, fê-lo, sabendo de antemão que não teria direito a receber qualquer compensação pelas mesmas, pelo que a sua pretensão não tem fundamento, nem mesmo ao nível do só agora invocado abuso do direito.
Improcedem, deste modo, as restantes conclusões.

EM CONCLUSÃO

- Sendo a denúncia do contrato feita pelo senhorio em 25-10-2010, a mesma há-de reger-se pela lei vigente ao tempo da denúncia.
- E sendo a denúncia válida face à lei em vigor ao tempo em que foi realizada, devem ficar ressalvados os efeitos já produzidos pela mesma ainda que sobrevenha nova lei que revogue ou altere a primeira, como aconteceu no caso em apreciação.
- Ao tempo da denúncia estava em vigor a Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano e que continha normas transitórias aplicáveis aos contratos de arrendamento não habitacionais celebrados antes da vigência do DL 257/95, de 30 de Setembro – artigos 27º e seguintes da referida lei.
- Em caso de locação do estabelecimento ocorrida após a entrada em vigor da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, o senhorio podia validamente denunciar o contrato nos termos previstos no artigo 1101º alª c) do Código Civil, na redacção vigente na data em que foi realizada a denúncia.
- Constando da cláusula quinta do contrato de arrendamento que “todas as obras ou benfeitorias que o inquilino fizer na casa arrendada à mesma ficarão pertencendo, logo que feitas, sem que por elas possa o inquilino pedir qualquer indemnização”, não confere ao locatário o direito a ser indemnizado pelas obras ou benfeitorias realizadas no locado e não se verifica abuso de direito.

III - DECISÃO

Atento o exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pela apelante.


Lisboa, 02 de Junho de 2016


Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Carla Mendes
Decisão Texto Integral: