Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8955/2008-1
Relator: JOSÉ AUGUSTO RAMOS
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO A TERMO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
CONTRATO DE TRABALHO SEM PRAZO
FORMA ESCRITA
NULIDADE
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I - O contrato de utilização de trabalho temporário, nos termos do artigo 2º, al. e), do Decreto-Lei n.º 358/99, é o contrato de prestação de serviço celebrado entre um utilizador e uma empresa de trabalho temporário, pelo qual esta se obriga, mediante retribuição, a colocar à disposição daquele um ou mais trabalhadores temporários.
II - O contrato de utilização de trabalho temporário celebrado com empresas é obrigatoriamente reduzido a escrito (n.º 1 do artigo 11º). Assim, a forma escrita para o contrato de utilização de trabalho temporário só está estabelecida para o caso de o utilizador ser uma empresa, isto é, ser uma sociedade comercial.
III - Perante a forma escrita que deve revestir o contrato de utilização de trabalho temporário para o caso de o utilizador ser uma empresa cumpre tomar em consideração que, nos termos do artigo 220º do Código Civil, a declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei.
IV – E, nos termos do artigo 11º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 358/99, na falta de documento escrito, considera-se que o trabalho é prestado ao utilizador com base em contrato de trabalho sem termo, celebrado entre este e o trabalhador.
V - Actualmente, de acordo com o disposto nos artigos 14º, n.º 1, e 20º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 19/2007, de 22 de Maio, na falta de documento escrito, a par da manutenção da regra de que se considera que o trabalho é prestado pelo trabalhador ao utilizador em regime de contrato de trabalho sem termo, estabeleceu-se a nulidade do contrato de utilização de trabalho temporário celebrado entre a empresa de trabalho temporário e o utilizador.
FG
Decisão Texto Integral:        Acordam na secção cível da Relação de Lisboa:
       I- Relatório
       L, Lda., intentou esta acção, com processo ordinário, contra N, pedindo seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 34.259,86 acrescida da quantia de € 5.481,57, de juros de mora vencidos, no total de € 39.741,43, e dos juros de mora entretanto vencidos e vincendos.
       Para tanto, em síntese, alega que, como empresa de trabalho temporário, nos períodos de 14 a 31 de Agosto e de 1 a 16 de Setembro de 2000 cedeu à Ré, para uma obra desta, um serralheiro, sendo credora pela primeira cedência da quantia de € 16.498,92, tal como consta da factura de 31 de Agosto de 2000 e da nota de crédito que se lhe refere, e pela segunda cedência da quantia de € 17.760,94, tal como consta da factura de 30 de Setembro de 2000, ou seja é credora da quantia global de € 34.259,86.

       Citada, a Ré contestou para concluir pela improcedência da acção.
       Para o efeito, em síntese, além de excepcionar a sua ilegitimidade alegou que nunca chegaram a ser reduzidos a escrito os contratos de utilização de trabalho temporário relativos aos dois trabalhadores que a Autora colocou na obra e sempre a informou que sem o contrato não lhe pagaria as facturas que enviasse, pois neste caso os trabalhadores seriam seus com contrato de trabalho sem termo.

       Replicou a Autora para, em síntese, alegar que a Ré aceitou o trabalho dos trabalhadores cedidos, que em cada período foram cinco e não dois, negociou o valor a pagar e assim, criando a convicção que, no plano formal e material, o acordo estava completo, litiga com abuso de direito e de má fé, e para ampliar a causa de pedir alegou que, ainda que o contrato fosse considerado nulo por falta de forma, sempre teria a Ré, nos termos do instituto do enriquecimento sem causa, que lhe liquidar o valor do benefício que auferiu por ter ao seu serviço os seus funcionários, benefício esse que correspondente ao seu prejuízo e é equivalente ao valor facturado, terminando por pedir que a Ré, como litigante de má fé, seja condenada a pagar-lhe as despesas e prejuízos.
      
No despacho saneador decidiu-se pela admissão da ampliação da causa de pedir, para tanto se tendo considerado que a Autora na réplica invocou subsidiariamente, para fundamentar o pedido, o instituto do enriquecimento sem causa, decidiu-se pela legitimidade da Ré e nada mais haver a obstar ao conhecimento do mérito da causa, pelo que organizada a selecção da matéria de facto, com base instrutória, se realizou o julgamento e foi proferida sentença que absolveu a Ré do pedido.

       A Autora interpõe recurso de apelação da sentença, para tanto tendo apresentado as suas alegações com as conclusões seguintes:
1ª- A relação controvertida dos autos é um contrato de prestação de serviços (trabalho temporário) celebrado entre a Autora e a Ré;
2ª- Autora e Ré nesta relação são apenas dois dos vértices do triângulo entre os quais não existe qualquer relação laboral, uma vez que nenhuma das partes trabalha para a outra;
3ª- Esta relação controvertida é de natureza exclusivamente civil;
4ª- Mesmo a nulidade do contrato não converte a relação entre a Autora e a Ré numa relação laboral uma vez que essa especialidade só tem relevo para o outro vértice do triângulo, o trabalhador;
5ª-De acordo com o disposto no artigo 11º da Lei n.º 146/99 os contratos de prestação de serviços dos autos, por serem de cedência de trabalho temporário, tinham que ser, obrigatoriamente, reduzidos a escrito;
6ª- Os referidos contratos não foram reduzidos a escrito o que provoca a sua nulidade, por falta de forma, nos termos do disposto no artigo 220º do Código Civil;
7ª- A referida nulidade, nos termos do disposto no artigo 286º do Código Civil, é invocável a todo o tempo e de conhecimento oficioso;
8ª- De acordo com o disposto no artigo 289º do Código Civil a declaração de nulidade dos presentes acordos, que tem efeitos retroactivos, obrigaria a Ré a restituir à Autora todo o trabalho realizado pelos serralheiros que esta lhe forneceu;
9ª- Uma vez que a referida restituição em espécie não é possível, a Ré terá que pagar à Autora o valor correspondente;
10ª- Ficou provado que a contrapartida monetária devida pela Ré à Autora pela cedência dos trabalhadores era de € 34.258,92 euros e que a Ré nunca pagou essa quantia à Autora;
11ª- Não foi alegado ou provado que os serralheiros tivessem ficado vinculados à Ré ou que esta lhes tivesse pago qualquer remuneração ou compensação;
12ª- Sem ter havido declaração de vontade dos serralheiros, nunca estes poderiam ter ficado funcionários da Ré ou tal facto ter sido para esta qualquer encargo;
13ª- Assim esta alegada consequência não afasta a nulidade, por falta de forma, do contrato celebrado entre a Autora e a Ré;      
14ª- Só após a verificação da nulidade do contrato de cedência de trabalhador poderá renascer entre algumas das partes algum outro tipo de relação;
15ª- A Ré, mesmo sem ter celebrado os contratos por escrito, recebeu o trabalho dos funcionários da Autora durante cerca de 2 meses;
16ª- A Ré, consciente da falta de contrato escrito, poderia ter recusado a prestação do trabalho dos serralheiros, a qualquer momento;
17ª- Recusar, posteriormente, o pagamento dos serviços contratados e executados consubstancia uma violação do princípio da boa-fé previsto no artigo 334º do Código Civil;
18ª- A excepção agora invocada pela Ré é totalmente ilegítima uma vez que excede, manifestamente, os limites impostos pela boa fé;
19ª- Se a Ré recebeu o trabalho dos serralheiros durante o período de 14 a 31 de Agosto de 2000 e 1 a 26 de Setembro de 2000 e não o pagou, claro está que teve um enriquecimento;
20ª-A esse enriquecimento correspondeu um empobrecimento da Autora que teve que suportar esses custos com os serralheiros e deixou de receber o correspondente ao preço aceite pelo serviço que objectivamente a Ré teria que pagar por serviço idêntico a qualquer outro fornecedor;
21ª- A douta sentença violou o disposto nos artigos 11º, 30º do Decreto-Lei n.º 358/89, 220º, 289°,334º e 473º do Código Civil.
       Termos em que pede a revogação da sentença e a sua substituição por outra que declare a nulidade dos contratos celebrados entre si e a Ré e condene a Ré a pagar-lhe o valor do trabalho dos serralheiros, já quantificado, ou, caso não se entenda que ocorreu a nulidade dos contratos, que a condene a pagar-lhe a mesma quantia referente ao benefício económico que obteve à sua custa por ter utilizado o trabalho de diversos serralheiros pagos por si.
       A Ré nas suas contra-alegações entende dever ser mantida a sentença recorrida.

       Como resulta do disposto nos artigos 684º, n.º 3, e 690, n.º 1, do Código de Processo Civil, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objecto do recurso e, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, servem para colocar as questões a conhecer no recurso.
       Sendo assim as questões em recurso resumem-se a apreciar se os contratos de cedência de trabalho são nulos por omissão da sua redução a escrito, se a recorrida, em consequência da nulidade e para não enriquecer à custa da recorrente, deve restituir € 34.258,92 à recorrente e se a recusa de pagamento dos serviços contratados constitui abuso de direito da recorrida.

       II- Fundamentação
       A matéria de facto provada a considerar, tal como consta da sentença recorrida, é a seguinte:
a) a Autora é uma empresa de trabalho temporário que tem por objecto a cedência de trabalhadores a outras empresas;
b) no período de 14 a 31 de Agosto de 2000 a Autora cedeu à Ré, para uma obra na Azambuja, um serralheiro, a fim de que o mesmo, ao serviço e sob as ordens desta, praticasse actos da sua profissão;
c) esse serralheiro trabalhou para a Ré na obra referida na al. b) supra durante aquele período;
d) no período de 1 a 26 de Setembro 2000 a Autora cedeu à Ré um serralheiro para a mesma obra, a fim de que o mesmo, ao serviço e sob as ordenas desta, praticasse actos da sua profissão;
e) as cedências referidas nas als. b) e d) supra não foram reduzidas a escrito;
f) a Autora emitiu e enviou à Ré as facturas e notas de crédito cujas cópias constam de fls. 7-10;
g) a contrapartida monetária pela cedência do serralheiro referido na al. b) supra e de outros serralheiros, durante o período ali indicado, ascendeu a € 16.498,92;
h) a contrapartida monetária pela cedência do serralheiro referido na al. d) supra e de outros serralheiros, durante o período ali indicado, ascendeu a € 17.760,00;
i) a Ré solicitou à Autora que lhe remetesse o projecto de acordo escrito referente às cedências referidas em nas als. b), d), g) e h) supra;
j) a Ré informou a autora que não procederia ao pagamento de qualquer factura enquanto as cedências referidas nas als. b), d), g) e h) supra não fossem reduzidas a escrito.

Pese embora a Lei n.º 19/2007, de 22 de Maio, tenha revogado o Decreto-Lei n.º 358/99, de 17 de Outubro, com todas as suas alterações efectuadas pelas Leis n.ºs 39/96, de 31 de Agosto, 146/99, de 1 de Setembro, e 99/2003, de 27 de Agosto, face à data dos factos e visto o disposto no artigo 12º, n.º 2, 1ª parte, do Código Civil, cumpre atender ao regime do Decreto-Lei n.º 358/99 que regula o exercício da actividade das empresas de trabalho temporário, as suas relações contratuais com os trabalhadores temporários e com os utilizadores, bem como o regime de cedência ocasional de trabalhadores.
       O contrato de utilização de trabalho temporário, nos termos do artigo 2º, al. e), do Decreto-Lei n.º 358/99, é o contrato de prestação de serviço celebrado entre um utilizador e uma empresa de trabalho temporário, pelo qual esta se obriga, mediante retribuição, a colocar à disposição daquele um ou mais trabalhadores temporários.
       Por outro lado, nos termos do artigo 2º, als. b) e c), do Decreto-Lei n.º 358/99, o trabalhador temporário é a pessoa que celebra com uma empresa de  trabalho temporário um contrato de trabalho temporário, pelo qual se obriga a prestar a sua actividade profissional a utilizadores, a cuja autoridade e direcção fica sujeito, mantendo, todavia, o vínculo jurídico-laboral à empresa de trabalho temporário e o utilizador é a pessoa individual ou colectiva, com ou sem fins lucrativos, que ocupa, sob a sua autoridade e direcção, trabalhadores cedidos por empresa de trabalho temporário.
       Assim, considerando ainda o disposto nos artigos 6º, 20º, 21º e 24º do Decreto-Lei n.º 358/99, o trabalhador temporário, ainda que prestando a sua actividade profissional ao utilizador, continua vinculado à empresa de trabalho temporário que lhe deve pagar a retribuição que for devida, designadamente, estando o trabalhador a prestar serviço ao utilizador, a retribuição mínima fixada na lei ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho aplicável ao utilizador para a categoria profissional correspondente às funções desempenhadas, a não ser que outra mais elevada seja por este praticada para o desempenho das mesmas funções, sempre com ressalva de retribuição mais elevada consagrada em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho aplicável à empresa de trabalho temporário.
       No artigo 11º do Decreto-Lei n.º 358/99 regula-se a forma do contrato de utilização de trabalho temporário, aliás o artigo tem por epígrafe “forma do contrato de utilização”.
       Assim no n.º 1 desse artigo 11º estabelece-se que o contrato de utilização de trabalho temporário celebrado com empresas é obrigatoriamente reduzido a escrito.
       Deste modo a forma escrita para o contrato de utilização de trabalho temporário só está estabelecida para o caso de o utilizador ser uma empresa, portanto para o caso do utilizador ser uma sociedade comercial.
       Perante a forma escrita que deve revestir o contrato de utilização de trabalho temporário para o caso de o utilizador ser uma empresa cumpre tomar em consideração que, nos termos do artigo 220º do Código Civil, a declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei.
       Sucede, nos termos do artigo 11º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 358/99, que na falta de documento escrito se considera que o trabalho é prestado ao utilizador com base em contrato de trabalho sem termo, celebrado entre este e o trabalhador.
       Portanto quando a empresa de trabalho temporário e o utilizador, no caso deste ser uma empresa, omitam a forma escrita para o contrato de utilização de trabalho temporário sucede, por força da lei, que se considera que o trabalhador presta a sua actividade profissional ao utilizador, não já com base num contrato de utilização de trabalho temporário, mas sim em regime de contrato de trabalho sem termo, celebrado entre o utilizador e o trabalhador que a empresa de trabalho temporário colocou à disposição daquele.
       Sendo assim, ponderando o disposto no artigo 406º, n.º 1, do Código Civil, pode-se afirmar que, por força da lei, o vínculo jurídico-laboral que ligava o trabalhador à empresa de trabalho temporário se modifica para um vínculo jurídico-laboral entre o utilizador e o trabalhador, para um contrato de trabalho sem termo, celebrado entre estes, mas não se pode afirmar que esta modificação seja a sanção especialmente prevista na lei para a omissão da forma escrita legalmente prescrita para o contrato de utilização de trabalho temporário celebrado entre a empresa de trabalho temporário e o utilizador que seja uma empresa.
        Esta sanção terá que ser, na falta de prescrição especial, a nulidade do contrato de utilização de trabalho temporário celebrado entre a empresa de trabalho temporário e o utilizador.
       Aliás actualmente, de acordo com o disposto nos artigos 14º, n.º 1, e 20º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 19/2007, de 22 de Maio, na falta de documento escrito, a par da manutenção da regra de que se considera que o trabalho é prestado pelo trabalhador ao utilizador em regime de contrato de trabalho sem termo, estabeleceu-se a nulidade do contrato de utilização de trabalho temporário celebrado entre a empresa de trabalho temporário e o utilizador.
        Esta norma vem certamente confirmar que, no âmbito do regime do Decreto-Lei n.º 358/99, de 17 de Outubro, se deve entender como nulo, por omissão da forma escrita, o contrato de utilização de trabalho temporário.
        Pode-se concluir, perante a matéria de facto, que a Autora, nos períodos de 14 a 31 de Agosto de 2000 e de 1 a 26 de Setembro 2000, cedeu à Ré serralheiros para que estes, ao serviço e sob as ordens desta, praticassem actos da sua profissão em obra, sem que essas cedências fossem reduzidas a escrito.
       Consequentemente, perante o disposto nos artigos 11º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 358/99, de 17 de Outubro, e 220º do Código Civil, cumpre concluir pela nulidade desses contratos de utilização de trabalho temporário celebrados entre as partes.
       Assim, em consequência da nulidade, esses contratos ficaram completamente destituídos da sua eficácia[1].
       Por outro lado cumpre concluir que esses serralheiros passaram, em regime de contrato de trabalho sem termo celebrado entre cada um deles e a Ré, a trabalhar para esta que, assim, ficou adstrita a pagar-lhes a respectiva retribuição.
       Esta retribuição, não pode deixar de ser aquela a que estes trabalhadores  sempre teriam direito em face do disposto no artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 358/99, ou seja deveria a Ré pagar-lhes a retribuição mínima fixada na lei ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho aplicável à Ré para a categoria profissional correspondente às funções desempenhadas por esses serralheiros, a não ser que outra mais elevada fosse pela Ré praticada para o desempenho das mesmas funções, ou ainda outra mais elevada que tivessem direito a receber, consagrada em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho aplicável à Autora, na ocasião em que esta os colocou à disposição da Ré.
       Estabelece-se no artigo 289º, n.º 1, do Código Civil, que a declaração de nulidade tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
       Portanto a nulidade, quando a restituição em espécie não é possível, obriga à restituição do valor correspondente a tudo o que tiver sido prestado.
       Nos termos do artigo 479º, n.º 1, do Código Civil, a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
       Também aqui, quando a restituição em espécie não seja possível, fica o enriquecido obrigado à restituição do valor correspondente de tudo o que tenha obtido à custa do empobrecido.
       A diferença está em que a restituição fundada na nulidade “deve ter lugar, mesmo que se não verifiquem os requisitos do enriquecimento sem causa, isto é, cada uma das partes é obrigada a restituir tudo o que recebeu e não apenas aquilo com que se locupletou.”[2]
       Com efeito, no enriquecimento sem causa, o enriquecido ”não é obrigado a restituir tudo quanto recebeu, mas apenas aquilo com que efectivamente se enriqueceu.”[3]
       A nulidade daqueles contratos de utilização de trabalho temporário obriga a Ré a restituir à Autora o valor da colocação à sua disposição daqueles trabalhadores, mas certamente não obriga e até exime a Ré de pagar à Autora a retribuição estabelecida a favor desta.
       Com efeito se assim não fosse os efeitos da nulidade seriam precisamente idênticos aos produzidos pelo contrato valido e eficaz.
       Deste modo o valor da colocação daqueles trabalhadores à disposição da Ré deve equivaler aos custos que, para tanto, a Autora suportou incluindo as respectivas retribuições durante os períodos de colocação, se fosse certo que a Autora, como refere nas suas conclusões 11ª, 19ª e 20ª, tivesse suportado esses custos por a Ré não lhes ter pago a retribuição.
       Neste caso a obrigação de restituição fundada na nulidade do negócio consome a obrigação de restituição que se possa fundar no enriquecimento sem causa.
       Com efeito, como a recorrente pretende na conclusão 19ª, a medida do enriquecimento da requerida resultaria das retribuições que deixou de pagar.
       Simplesmente a Autora oportunamente, ou seja nos articulados, não alegou que custos suportou para colocar os trabalhadores à disposição da Ré, designadamente não alegou o montante das retribuições auferidas pelos trabalhadores durante os períodos de colocação ao serviço da Ré e, aliás, nem sequer alegou que pagou essas retribuições.
       Na petição inicial a Autora limitou-se a alegar no sentido de exigir o cumprimento dos contratos, ou seja o pagamento da retribuição que alegou lhe ser devida pela Ré pela cedência, entre ambas contratada, de dois trabalhadores, e na réplica limitou-se a alegar no sentido de demonstrar o estabelecimento dessa retribuição.
       Alegou, conforme consta, entre outros, dos artigos 11º, 12º, 17º e 21º deste articulado, que em cada um dos referidos períodos colocou à disposição da Ré cinco trabalhadores, que esta aceitou o seu trabalho, que houve correcções quanto às horas extras de trabalho, que depois de negociações prolongadas ficou assente o valor da hora e que os valores facturados foram corrigidos, por notas de crédito, em função do ajuste do preço alcançado.
       Todavia a Autora não alega que este preço ajustado para a hora de trabalho correspondia à retribuição que devia ser efectivamente auferida pelos trabalhadores, nem que pagou, a título de retribuição, esse preço aos trabalhadores que colocou à disposição da Ré.
       Aliás a Autora no tocante ao preço ajustado para a hora de trabalho e ao número de horas de trabalho prestado limita-se a remeter para documentos, contudo sem incluir entre estes quaisquer recibos de pagamento aos trabalhadores.
       Assim nem é possível concluir que os valores de horas normais de serralheiro, de horas a 50% e de horas a 100%, constantes das facturas de fls. 7 e 9, correspondem a valores de retribuição efectivamente auferida pelos trabalhadores.
        De resto consta das als. g) e h) supra que o montante de € 34.258,92 corresponde à contrapartida monetária pela cedência dos serralheiros e não que esse montante corresponda à retribuição que deviam auferir e auferiram.
       Cumpre assim concluir que o alegado acordo alcançado quanto ao valor da hora serviu para estabelecer a retribuição prevista no artigo 2º, al. e), do Decreto-Lei n.º 358/99, de 17 de Outubro, no montante global, resultante das als. g) e h) supra, de € 34.258,92.
       Deste modo, não correspondendo o montante de € 34.258,92, ao valor dos custos suportados pela Autora para colocar os trabalhadores à disposição da Ré, nem havendo elementos, desde logo porque não foram alegados, susceptíveis de permitir estabelecer o valor desses custos, não é possível compelir a Ré a restituir à Autora tal montante.
       Nos termos do artigo 334º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
       O excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé “abrange os casos que a doutrina e a jurisprudência condenam sob a rubrica do venire contra factum proprium. São os casos em que a pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando por exemplo, determinada causa de nulidade, anulação, resolução ou denúncia de um contrato, estabelecida no interesse do contraente, depois de fazer crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação ou do contrato.”[4]
       Perante as als. i) e j) supra não é possível concluir que a Ré criou na Autora a convicção de que não invocaria nunca a omissão de redução a escrito dos contratos em causa, ou que foi a Ré que deu causa a essa omissão.
       De resto a Autora como empresa de trabalho temporário, portanto para tal habilitada em conformidade com o disposto no artigo 4º do Decreto-Lei n.º 358/99, de 17 de Outubro, teria sempre que tomar a iniciativa de promover o cumprimento das formalidades legalmente prescritas.
       Em todo este contexto não se considera que a recusa de pagamento dos serviços contratados, naturalmente com fundamento na nulidade, exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé e, assim, que essa recusa se constitua como abusiva.
       III – Decisão
       Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em negar provimento à apelação e, assim, confirmar a sentença.
       Custas pela recorrente: artigo 446º, n.º 1, do Código do Processo Civil
       Processado em computador.
                                                    Lisboa, 27/5/08
                                     José Augusto Ramos
                                     João Aveiro Pereira
                                     Rui Moura
_________________________________
[1] Vd. Vaz Serra, R.L.J. 111º, 148.
[2] Cfr. Mota Pinto, Teoria geral do Direito Civil, 1973, Pg.
[3] Cfr. Mário de Brito, Código Civil Anotado, Vol. II, Pg. 155.
[4] Cfr. Antunes Varela, das Obrigações em Geral, Volume I, 10ª Edição, Revista e Actualizada, Pg. 547.