Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO LEE FERREIRA | ||
Descritores: | CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL SILÊNCIO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/14/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | O princípio nemo tenetur se ipsum accusaresignifica fundamentalmente que ninguém pode ser obrigado a testemunhar contra si próprio, a produzir prova contra si mesmo ou a fornecer coactivamente qualquer tipo de declaração ou informação que o possa incriminar. O princípio não se restringe ao mero direito ao silêncio, - artigo 61º n.º 1, alínea d) CPP, mas abrange de uma forma ampla o direito de a pessoa não ser obrigada a apresentar elementos que provem a sua culpabilidade. Trata-se em todo o caso de um direito que não é absoluto e que se deve entender como sujeito à ponderação com outros interesses e com deveres de colaboração, nomeadamente no âmbito do Direito Fiscal. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa, 1. Na sentença proferida nestes autos de processo comum com o n.º 483/15.4IDLSB, o tribunal singular do Juízo Local Criminal de Torres Vedras (Juiz 2) condenou o arguido L..., pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de três crimes de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigo 105.º,n.ºs 1, 2, 4, e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 15 de Junho, nas penas de cento e vinte, cento e vinte e cem dias de multa e, em cúmulo jurídico na pena única de trezentos dias de multa à taxa diária de seis euros e cinquenta cêntimos, condenou a arguida ME..., pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de três crimes de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigo 105.º,n.ºs 1, 2, 4, e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 15 de Junho, nas penas de cento e cinquenta, cento e cinquenta e cento e vinte dias de multa e, em cúmulo jurídico, na pena única de trezentos e sessenta dias de multa à taxa diária de seis euros e cinquenta cêntimos e condenar a arguida Os LN..., Comércio de Produtos Agrícolas, Lda., pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de três crimes de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7.º, n.º 1, 105.º,n.º s 1, 2, 4, e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 15 de Junho, nas penas de cento e cinquenta, cento e cinquenta e cento e vinte dias de multa e, em cúmulo jurídico na pena única de trezentos e sessenta dias de multa à taxa diária de cinco euros. Os arguidos L..., ME... e Os LN..., Comércio de Produtos Agrícolas, Lda., interpuseram recurso e das motivações extraíram as seguintes conclusões (transcrição): “A. O presente recurso versa sobre matéria de direito e de factos, e assenta, essencialmente, em quatro vertentes, a saber, Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - cfr. al. a), do n.° 2, do artigo 410.°, do CPP; Contradição insanável da fundamentação - cfr. al, b), do n.° 2, do artigo 410.°, do CPP; Nulidade da prova - cfr. artigo 525.°, e n.° 1, do artigo 126.°, ambos do CPP; Violação do n.° 1 do artigo 105.° do RGIT. B. Quanto à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da violação do n.° 1 do artigo 105.° do RGIT, consta da douta sentença, em concreto do ponto 4 dos lactos provados que: 4) Nos meses de Março, Setembro e Dezembro de 2014, a sociedade recebeu efectivamente, nesses períodos, o IVA de clientes nos montantes de €49,120,36, € 48.630,78 e €25.141,58, respectivamente. C. Ora, como sabemos, o n.° 1 do artigo 105.° do RGIT estabelece um dos elementos objectivos do crime de abuso de confiança fiscal, isto é, a prestação tributária que deveria ter sido entregue ao Estado tem de ser de valor superior a € 7.500,00, ganhando por isso relevância definir, qual o momento relevante para se considerar que o crime foi praticado. D. Quanto ao momento da prática do crime, hoje em dia parece que a questão está definitivamente ultrapassada, muito tendo contribuído o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 8/2015, de 2 de junho publicado no Diário da República n.° 106/2015, Série I. de 02/06. Páginas 3502 - 3512, que tomou definitivamente assente que, só comete o crime de abuso de confiança quem efectivamente, no prazo legalmente fixado para entregar o meio de pagamento ao Estado, tenha recebido dos seus clientes, pelo menos, € 7.500,00 de IVA. E. Sendo que, no caso do IVA, o prazo legalmente fixado varia, consoante se esteja a falar do regime de periodicidade mensal ou trimestral. F. No caso em concreto, e uma vez que a LN... estava abrangida pelo regime de periodicidade mensal, a data relevante é o dia 10 do 2.° mês seguinte àquele a que respeitam as operações -cfr. al. a), do n.° 1, do artigo 41do OVA. G. Ou seja, para que o elemento objectivo do crime - a não entrega da prestação tributária de valor superior a (euro) 7500,00 - esteja verificado, é necessário que a LN... tenha recebido, e tenha ficado provado, que efectivamente recebeu, da facturação emitida no período, um valor de IVA superior a € 7.500,00 até ao dia 10 do 2.° mês seguinte aquele a que diz respeito. H. No caso concreto, conforme consta do ponto 4 da matéria de facto provado, apenas resulta que a LN..., nos meses de Março, Setembro e Dezembro de 2014, recebeu efectivamente, nesses períodos, o IVA de clientes nos montantes de €49.120,36, € 48.630,78 e € 25.141,58, respectivamente, não tendo ficado provado em que data ocorreu esse recebimento, se antes, se depois, do 10° dia do 2° mês seguinte ao que diz respeito. I. A ser assim, e não resultando da sentença nenhum facto provado que esclareça, com clareza, que valor a LN... recebeu, efectivamente, dos seus clientes, até ao dia 10 do 2.° mês seguinte ao da facturação em causa, não pode o Tribunal a quo dar como provados todos os elementos objectivos do crime de abuso de confiança fiscal, não podendo, consequentemente, condenar os arguidos pela prática desse crime. J. Verificando-se, consequentemente, insuficiência da matéria de facto provada para a decisão - de condenação - e a violação do artigo 105.°, n.° 1, do RGIT, uma vez que é elemento objectivo do tipo a não entrega do IVA, efectivamente recebido até ao 10.° dia do 2.° mês seguinte ao período de facturação, se superior a € 7.500,00. K. Quanto à contradição insanável da fundamentação, resulta da douta sentença, como factos provados, o ponto 7 e 10, a saber, 7) Apesar de desenvolver normalmente a sua actividade empresarial, a sociedade arguida "LN..., Comércio Produtos Agrícolas S.A.", não entregou nos cofres do Estado, nem no prazo legal item até hoje, o IVA referente aos meses de Março, Setembro e Dezembro de 2014, respectivamente, nos montantes de € 29.906,86, €30.397,11 e €15.873,32. 10) No âmbito dos processos de execução fiscal instaurados pela autoridade tributária, a sociedade arguida e administradores liquidaram a quantia de € 3.200,28 referente ao IVA do mês de Setembro de 2014, e a quantia de € 2.854,61, referente ao IVA do mês de Março de 2014 (PEFn.° 158920148111753.1 e n.° 1589201401227130). L. Por um lado o Tribunal a quo dá como provado que a LN... não entregou nos cofres do Estado, nem no prazo legal nem até hoje, o IVA referente aos meses de Março, Setembro e Dezembro de 2014, respectivamente, nos montantes de € 29.906,86, €30.397,11 e € 15.873,32, e por outro dá como provado que a sociedade arguida e administradores liquidaram a quantia de € 3.200,28 referente ao IVA do mês de Setembro de 2014, e a quantia de € 2.854,61, referente ao IVA do mês de Março de 2014, o que é manifestamente contraditório. M. O Tribunal a quo não pode dar como provado que nenhum valor foi pago até à data da sentença - ponto 7 da matéria de facto provada e seguidamente dá como provado que afinal parte do valor foi pago, existindo, consequentemente, uma contradição insanável da fundamentação na vertente de uma contradição entre a matéria de facto dada como provada - factos 7 e 10 dos factos provados. N. Quanto à nulidade da prova - cfr. artigo 125.°, e n.° 1, do artigo 126.°, ambos do CPP diga-se que, na sessão da audiência de julgamento de dia 02.03.2017, o Sr. Procurador Adjunto, finda a produção de prova - inquirição de testemunhas - pediu a palavra e, no uso da mesma, requereu que a sociedade arguida, fosse notificada para juntar aos autos a documentação contabilista e os comprovativos do pagamento, relativos às transacções sobre as quais pagou IVA e que inscreveu nas declarações periódicas de Março, Setembro e Dezembro de 2014, no campo dos IVAS a favor do sujeito passivo, a fim de comprovar quais os valores que efectivamente haviam sido pagos às datas do cumprimento das respectivas obrigações fiscais, nomeadamente à data de 10 de Maio de 2014, para o período de Março, à data de 10 de Novembro 2014, para o período de Setembro e à data de !0 de Fevereiro de 2015 para o período de Dezembro, uma vez que tal análise se releva importante para a descoberta da verdade e à boa decisão da causa. O. Isto é, o Ministério Público entendeu que esta prova era importante para a descoberta da verdade e à boa decisão da causa, e apercebendo-se que as provas que constavam dos autos não eram suficientes, tentou remediar a acusação deficitária, requerendo, na fase de julgamento, provas que já podiam ter sido juntas. P. A defesa dos arguidos pugnou, desde logo, o que mantêm, pelo indeferimento do requerido uma vez que, pese embora, nos termos do n.° 1, do artigo 340.°. do CPP, o tribunal possa ordenar, oficiosamente, ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e boa decisão da causa, esta regra tem excepções e limites, nomeadamente, esses requerimentos de prova devem ser indeferidos se as provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou contestação, o que, no caso concreto é notório, e manifesto, pois essas provas, requeridas pelo Sr. Procurador Adjunto, já podiam, e deviam, ter sido recolhidas na fase de inquérito, e juntas no despacho de acusação. Q. Acontece que, o Tribunal a quo, embora a oposição da defesa dos arguidos, decidiu deferir o requerido pelo Sr. Procurador Adjunto, e notificar os arguidos para, em 10 dias, juntarem aos autos os elementos contabilísticos da sociedade arguida, assim como informação sobre o número do PER, isto é, os arguidos foram obrigados ajuntar aos autos prova, contra a sua vontade. R. A Exma. Senhora Juiz a quo na sentença, uma vez que esta questão já tinha sido suscitada pelos arguidos, justificou a sua opção com base em argumentos que não se aceitam e que não respondem àquilo que os arguidos defenderam, ou seja, o Tribunal a quo justifica a validade da prova no facto dos arguidos terem decidido prestar declarações, assim como no facto da LN... ter contabilidade organizada. S. Ora, como referido, não é essa a questão. T. A questão não se prende com o facto dos arguidos terem, ou não, prestados declarações, nem tão pouco se a sociedade tem, ou não, contabilidade organizada, a única questão que se coloca é se os arguidos, embora tenham decidido prestar declarações, estão obrigados, por esse motivo, a atender a todos os requerimentos de prova, ainda para mais na fase de julgamento, que o Tribunal determine. U. Coloca-se pois uma questão fulcral, c decisiva, que se traduz na violação do direito ao silêncio dos arguidos, e na violação do direito à proibição da autoincriminação dos arguidos, assim como na definição da fase administrativa e judicial do processo, e quais as obrigações que o contribuinte e arguido têm em ambas. V. E certo que os contribuintes têm o dever de colaborar com a Autoridade Tributária e Aduaneira, na fase administrativa, facultando a informação que lhes é solicitada, muitas vezes informações e documentos que posteriormente vão ser usados em processo penal contra os mesmos. W. Acontece que, nesta dita fase administrativa, uma vez que, no choque entre os direitos, por um lado dos contribuintes de não se autoincriminarem, por outro lado da Administração Central de conseguir cobrar impostos e tributos, e de poder investigar e comprovar se os impostos estão a ser bem liquidados, o direito do Estado de cobrar impostos, e de fiscalizar esta cobrança, acaba por vencer esta “batalha”, e os contribuintes são efectivamente obrigados a prestar a informação que lhes é solicitada, e a entregar a documentação que lhe é pedida. X. Mas este dever de cooperação termina, como bem se compreende, no momento é que o processo passa a ser tramitado como procedimento criminal, e os contribuintes são constituídos arguidos, passando estes a beneficiar dos direitos, constitucionalmente consagrados, tais como o direito ao silêncio e da proibição da autoincriminação - veja- se a este propósito parte da fundamentação do Acórdão do Tribuna! da Relação de Guimarães, processo n.° 97/06.01DBRG.G2, disponível em httD://www.dgsi.r>t/itrg.nsf/86c25a698e4e7cb7SQ2579ec004d3832/459al6dbb335a26 880257c7700331 al 9?OpenDocument. Y. Desse acórdão retira-se que, se é certo que, na fase administrativa, o contribuinte tem o dever de cooperar com a Autoridade Tributária, esse dever termina com a sua constituição como arguido, começando a valer, em processo penal, o princípio da proibição da auto incriminação - nemo tenetur se ipsttm accusare logo, a obrigação que recaiu sobre os arguidos de entregarem documentação contabilística da LN..., e outras informações, fez com que essas provas, obtidas desta forma, violassem os seus direitos fundamentais. Z. Pelo que, sendo as provas obtidas com violação dos direitos fundamentais dos arguidos as mesmas são inadmissíveis em processo penal, nulas, e não podem serem utilizadas -cfr. artigo 125.°, e n.° 1, do artigo 126.°, ambos do CPP. AA. O direito à não autoincriminação (nemo tenur se ipsum accusare), direito com natureza constitucional implícita, implica que ninguém pode ser obrigado a testemunhar contra si próprio, a produzir prova contra si mesmo, ou a prestar qualquer tipo de declaração ou informação que o possa incriminar, direta ou indiretamente, não podendo dessa ausência de colaboração resultar para si qualquer prejuízo jurídico ou presunção de culpabilidade. BB. Veja-se que, tanto a Autoridade Tributária podia, na fase administrativa, e antes de proceder à constituição de arguidos, ter solicitado os documentos contabilísticos que o Sr. Procurador Adjunto requereu a junção em julgamento, e que o Tribunal a quo deferiu, como o Ministério Público, como titular do processo na fase de inquérito poderia, querendo, no seio das suas atribuições, ter analisado o IVA dedutível apresentado pela LN..., o que nenhuma entidade fez. CC. Não se pode aceitar é que, o Ministério Público, na fase de julgamento, quando se apercebeu dos graves erros da acusação, tenha vindo, à custa da violação de direitos fundamentais dos arguidos, corrigir o que está mal feito. DD. E tudo isto é relevante porque, como a Exma. Senhora Juiz a quo referiu, esta prova foi valorada para efeitos de condenação dos arguidos, conforme resulta dos factos provados 14, 15 e 16. EE. Isto é, o Tribunal a quo valorou a prova que os arguidos apresentaram - porque obrigados - em fase de julgamento e foi, com base na mesma, que os condenou. FF. Ora, sendo uma prova proibida, e nula, não pode ser valorada, logo não pode servir para fundamentar a condenação dos arguidos. GG. Por último importa salientar o motivo, e a justificação, para tanto o Sr. Procurador do Ministério Público requerer, como o Tribunal a quo permitir, esta prova. HH. E esse motivo prende-se com o facto de ambos considerarem, tal como os Recorrentes, que para que possa existir condenação pelo crime de abuso de confiança fiscal, é necessário que se prove que, no caso concreto, a LN... recebeu, até ao dia 10 do 2° mês seguinte ao que a facturação respeita, um montante de IVA superior a € 7.500,00, após ter sido exercido, no concreto, o direito automático à dedução do IVA suportado na aquisição de bens e serviços da actividade da empresa, II. Caso o Ministério Público não tivesse requerido a produção de prova suplementar - nula - e o Tribunal a quo não tivesse autorizado, teriam de absolver os arguidos, o que deveriam ter feito, ao invés de obrigarem os arguidos a apresentar prova que já não era exigível na fase judicial do processo. JJ. E isto porque, no caso concreto ficou provado que a LN..., no que respeita ao IVA, recebeu - não se sabe em que data exactamente - os montantes de €49.120,36, € 48.630,78 e € 25.141,58 e, de acordo com as declarações periódicas de IVA juntas na fase de inquérito, e que a AT não colocou em causa, a LN... tinha o direito de deduzir os seguintes valores a título de IVA dedutível: a) No que respeita ao IVA do mês de Marco de 2014: € 64.800,58; b) No que respeita ao IVA do mês de Setembro de 2014: € 158.700,26; c) No que respeita ao IVA do mês de Dezembro de 2014: € 117.280,67. KK. Ou seja, em todos os períodos, de acordo com a prova válida no processo - declarações periódicas a fls ... juntas na fase de inquérito e na fase administrativa do processo - a LN..., até ao dia 10 do 2o mês seguinte ao da facturação, não tinha recebido IVA suficiente para operar o direito automático à dedução e entregar ao Estado qualquer valor. LL. O Tribunal a quo apenas o só conseguiu fundamentar a condenação dos arguidos, demonstrando que a LN... não tinha liquidado todo o IVA dedutível aos seus fornecedores durante os períodos em causa, com a prova nula apresentada em sede de julgamento e que, como tal, não pode ser valorada e servir de fundamento à condenação. MM. Pelo que o Tribunal a quo, ao condenar os arguidos/ Recorrentes nos termos que condenou, violou, entre outros, o artigo 105.°,n.° 1 do RGIT, o artigo 205º do CP, os artigos 19.°, n.° 1, 22.°. n.° 1, e 7.°, n.° 1, todos do CIVA, assim como os artigo 340.°, 125.°, e n.° 1, do 126.°, todos do CPP, pelo que deverá a Douta Sentença ser revogada e substituída por outra em que os Recorrentes sejam absolvidos.” O Ministério Público, por intermédio do magistrado na instância local criminal de Torres Vedras formulou resposta, concluindo que deve negar-se provimento aos recursos. Realizada a audiência, cumpre apreciar e decidir. 2. O objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso. As questões a resolver são fundamentalmente as seguintes, pela ordem lógica de conhecimento: a) Vícios decisórios de contradição na fundamentação e de insuficiência para a decisão da matéria de facto; b) Nulidade da prova. 3. Para compreensão das questões a resolver e fundamentação da decisão, torna-se necessário transcrever parcialmente a sentença recorrida. O tribunal julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição): 1) A sociedade " Os LN..., Comércio Produtos Agrícolas, S.A.”, constituída em 10/03/1988, com sede na Rua do P..., n.º 2, P..., A..., T..., tem por objecto social “a produção, bem como a produção integrada e comercialização de produtos hortícolas e outros produtos agrícolas, sua importação e exportação, comercialização de factores de produção para a produção agrícola, comercialização a retalho de produtos e acessórios para a agricultura, aluguer de infra-estruturas e equipamentos. No âmbito da produção integrada é objectivo da sociedade promover a aplicação de técnicas de protecção integrada e, prestar assistência técnica aos agricultores no âmbito da produção integrada e produção integrada, promover e realizar acções de formação em protecção integrada e produção integrada, bem como de outras mercadorias e aluguer de equipamento”, encontrando-se registada para efeito de IVA no regime normal de periodicidade mensal. 2) Os arguidos L... e ME... são administradores da sociedade arguida, exercendo o primeiro o cargo de presidente e o segundo de administrador, praticando actos de administração correntes necessários ao desenvolvimento da actividade da sociedade arguida, e todos os demais adequados e necessários à administração, nomeadamente, assegurar o pagamento dos impostos devidos ao Estado. 3) A sociedade exerceu de forma ininterrupta a sua actividade comercial, tendo emitido regularmente facturas, realizado vendas e emitindo recibos a clientes, designadamente nos meses de Março, Setembro e Dezembro de 2014, nos montantes de € 64.472,70, € 173.806,87 e € 171.116,61, respectivamente. 4) Nos meses de Março, Setembro e Dezembro de 2014, a sociedade recebeu efectivamente, nesses períodos, o IVA de clientes nos montantes de €49.120,36, € 48.630,78 e € 25.141,58, respectivamente. 5)Os arguidos, em representação e em nome da sociedade arguida, apresentaram as declarações periódicas de IVA, referentes aos meses de Março, Setembro e Dezembro de 2014, sem o respectivo meio de pagamento do imposto exigível e apurado. 6) Enquanto membros do conselho de administração da sociedade arguida, competia aos arguidos L... e ME... a prática de todos os actos adequados e necessários à administração, nomeadamente, assegurar o pagamento dos impostos devidos ao Estado. 7) Apesar de desenvolver normalmente a sua actividade empresarial, a sociedade arguida “LN..., Comércio Produtos Agrícolas S.A.”, não entregou nos cofres do Estado, nem no prazo legal nem até hoje, o IVA referente aos meses de Março, Setembro e Dezembro de 2014, respectivamente, nos montantes de € 29.906,86, €30.397,11 e € 15.873,32. 8) Com efeito, os arguidos, enquanto administradores da sociedade arguida "LN..., S.A.”, não entregaram nos cofres do Estado os aludidos montantes, decorridos 90 dias após o prazo legal. 9) Em 28/04/2015 e 28/08/2015, os arguidos e sociedade arguida foram ainda notificados pela administração tributária para, no prazo de 30 dias, efectuarem o pagamento do IVA em dívida, respectivos juros e coimas aplicáveis, não o tendo feito até ao terminus do aludido prazo. 10) No âmbito dos processos de execução fiscal instaurados pela autoridade tributária, a sociedade arguida e administradores liquidaram a quantia de € 3.200,28 referente ao IVA do mês de Setembro de 2014, e a quantia de € 2.854,61, referente ao IVA do mês de Março de 2014 (PEF n.º 1589201481117531 e n.º 1589201401227130). 11) Os arguidos L... e ME... agiram no exercício dos poderes de gestão e administração da sociedade arguida que efectivamente detinham. 12) Agiram os arguidos, em comunhão e conjugação de esforços e desígnios, de modo voluntário, livre e consciente, em nome e interesse da sociedade arguida "LN..., Comércio Produtos Agrícola, S.A.”, bem como no seu próprio interesse, de modo a apropriarem-se de quantias em dinheiro de impostos, devidos ao Estado Português, lesando o património colectivo deste, bem sabendo que as actuações descritas lhes estavam vedadas por Lei. 13) Os arguidos sabiam que a descrita conduta era proibida e punida por lei. 14) A sociedade arguida até 12/05/2014, pagou a título de IVA o valor de €19.213,50. 15)A sociedade arguida até 10/11/2014, pagou a título de IVA o valor de €18.233,67. 16)A sociedade arguida até 10/02/2015, pagou a título de IVA o valor de €9.268,26. 17)Os arguidos não têm antecedentes criminais. 18) O arguido L... e ME... são casados. 19) O arguido L... é gestor de empresas, auferindo mensalmente cerca de €1.700,00. 20) A arguida ME... é gestora de empresas, auferindo mensalmente cerca de €1.700,00. 21) Vivem em casa arrendada, pela qual pagam a renda mensal no valor de €500,00. 22) O arguido L... tem o 4.° ano antigo de escolaridade. 23) A arguida ME... tem o 12.° ano de escolaridade. 24) Os arguidos pagam a título de crédito pessoal a prestação mensal de cerca de €1.700,00. O tribunal decidiu julgar não provado (transcrição): “25) O IVA não entregue pelos arguidos nos cofres do Estado, referente aos meses de Março, Setembro e Dezembro de 2014, respectivamente, foi nos montantes de € 18.850,04, € 19.201,68 e € 77.364,33.” Na motivação da decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto consta o seguinte (transcrição): “Em obediência ao disposto no artigo 374.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, cumpre indicar as provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal e proceder ao seu exame crítico. Consigna-se que convicção do Tribunal assentou no conjunto da prova produzida em sede de audiência de julgamento, apreciada à luz do art° 127°, do CPP, aliada às regras da experiência comum. Concretizando. O arguido L..., em sede de audiência de julgamento, confessou integralmente e sem reservas os factos sobre os quais vinha pronunciado. Por sua vez, a arguida ME..., em sede de audiência de julgamento, confessou parcialmente os factos, admitindo o enquadramento social e fiscal da sociedade, não admitindo, porém, os valores constantes da pronúncia. De outra banda, teve-se em conta o depoimento da testemunha Célia Martins, inspectora tributária que participou na instrução do processo de inquérito por parte dos Serviços de Finanças, a qual esclareceu os valores recebidos a título de IVA pela sociedade à data de elaboração do relatório. Mais se valorou o depoimento da testemunha João Maurício, contabilista da sociedade arguida, o qual referiu, em suma, que a sociedade possui contabilidade organizada e que os valores relativos ao IVA dedutível foram pagos. Por sua vez, a testemunha João Moreira, referiu trabalhar para os arguidos na área de planeamento, controlo e gestão, relatando que o IVA não foi entregue ao Estado por dificuldades financeiras e que os valores foram utilizados para a manutenção da actividade da sociedade. Mais referiu que não sabe se os valores relativos ao IVA dedutível foram pagos. Quanto à prova documental, valorou-se a seguinte: - Declarações de IVA, a fls. 1, 563/565/566; - Certidão Permanente a fls. 17/23, 587/591; - Notificação a fls. 42/45, 48/50, 53, 524, 529, 534, 637/646, 648/651, 936, 975, 980; - Documentos a fls. 25/41, 51/52, 535/537, 540/541, 594/636, 653/659, 945/965, 984; - Documentação contabilística a fls.78/516, 673/712, 717/916, 967/968; - Mapas a fls. 548/556, 991/998. Mais se teve em conta os documentos contabilísticos de fls. 1267 /verso e 1529, conjugados com a informação de fls. 1549 a 1551, a qual permitiu apurar o valor do IVA devido ao Estado, após apuramento do IVA efectivamente recebido à data de cumprimento das obrigações fiscais e o IVA dedutível efectivamente pago. Mais se diga que, ao contrário do que alega a Defesa, não estamos perante qualquer prova nula. Na verdade, ambos os arguidos quiseram prestar declarações, tendo o arguido L..., inclusive, confessado integralmente e sem reservas os factos, enquanto a arguida ME... pôs em causa os valores constantes da pronúncia, alegando, inclusive, que não recebeu dos clientes os valores naquela sede referidos. Assim, as diligências feitas pelo Tribunal, não tiveram o objectivo de prejudicar ou incriminar os arguidos, mas inclusive favorecê-los, tendo em conta que, um dos arguidos admitiu todos os factos constantes do despacho de pronúncia, e a outra arguida funda a sua defesa precisamente na incorrecção dos valores constantes da pronúncia. Por outro lado, os elementos solicitados aos arguidos pelo Tribunal fazem parte da contabilidade organizada, a qual é obrigatória e pode ser consultada pelas autoridades. Mais se diga que, os arguidos não podem pretender defender-se com a falta de recebimentos e erros nos montantes constantes da pronúncia e, após, impedirem que o Tribunal apure tais factos, em nome do Princípio da Descoberta da Verdade Material. Assim, em nossa óptica, a prova produzida pelo Tribunal não é nula, tendo sido, por conseguinte valorada, para determinação dos valores dados como provados e exclusão dos valores não dados como provados. De outra banda, os factos provados atinentes ao elemento subjectivo resultam desde logo das presunções ligadas ao princípio da normalidade e das regras gerais de experiência. Mais se diga que, atendendo às regras da experiência e da normalidade, nos dias que correm, este tipo de actuações é amplamente conhecido da população em geral como geradora de responsabilidade criminal. Mais se diga que, exercendo os arguidos o comércio, sendo gestores de profissão, mais lhes era exigível que conhecessem o carácter ilícito das suas condutas, tanto mais que, nos pareceram, da imediação que fizemos da prova, pessoas esclarecidas. No tocante à ausência de antecedentes criminais dos arguidos, teve-se em conta os certificado de registo criminal dos arguidos juntos aos autos. Relativamente às condições socioeconómicas dos arguidos, teve-se em conta as declarações dos próprios arguidos.” 4. Dos vícios decisórios Os tribunais da relação conhecem dos recursos em matéria de facto e em matéria de direito (artigos 427º e 428º do Código de Processo Penal) e a decisão sobre a matéria de facto pode ser alvo de recurso em dois planos. Uma forma de colocar em crise a decisão de facto consiste na alegação de um dos vícios previstos no artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou o erro notório na apreciação da prova. Sob esta perspectiva, o objecto de apreciação encontra-se bem delimitado: como estabelece claramente a norma respectiva (o recurso pode ter por fundamento (…) desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras normas da experiência comum ), trata-se de analisar apenas o teor da fundamentação da sentença, à luz das regras da vivência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, nomeadamente ao conteúdo dos meios de prova produzidos, inclusive da prova oralmente produzida e gravada em audiência. Os recorrentes afirmam a verificação na sentença recorrida de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, invocando que a sociedade estava abrangida pelo regime de periodicidade mensal e não ficou provado que para cada um dos períodos a sociedade LN... tenha recebido da facturação emitida um valor de IVA superior a € 7500 até ao dia 10 do 2º mês seguinte aquele a que diz respeito. Como tem sido entendido na jurisprudência, existe vício decisório de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada da alínea a) do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal quando se conclua, a partir do próprio texto da sentença, isoladamente considerada ou em conjugação com regras de experiência comum, que a matéria de facto provada se revela insuficiente para a decisão correcta de direito porque o tribunal não esgotou os seus poderes de investigação. Entendendo-se necessário precisar que a decisão critério não é aquela decisão que se alcançou no processo, mas a decisão justa, a composição mais próxima da “ideal” e que, tendencialmente, declara a justiça no caso concreto. Concordamos com os recorrentes quando relembram que só se verifica o crime de abuso de confiança fiscal por não entrega de IVA à administração tributária relativamente a quantias a tal título efectivamente recebidas nos períodos tributários a que se referem e sobre as quais exista obrigação de entrega ao Estado (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência n.º 8/2015, DR I de 2 de Junho). Porém, não existe qualquer insuficiência da matéria de facto na sentença destes autos, pois no ponto 4 da matéria de facto provada constam os valores de IVA efectivamente recebidos pela sociedade ao longo dos períodos mensais relevantes ou seja, nos meses de Março, Setembro e Dezembro de 2014 e no ponto 7 da matéria de facto provada constam os valores de IVA efectivamente devidos para esses mesmos períodos mensais e que não foram entregues nos cofres do Estado no prazo legal. Os recorrentes suscitam a verificação de uma antinomia insanável entre a matéria constante dos pontos 7 e 10 da matéria de facto provada. Como sabemos, ocorre o vício decisório da contradição insanável da fundamentação, quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal (Ac. do S.T.J de 13-10-1999, rel. Cons. Armando Leandro, Colectânea, III e jurisprudência aí citada). O elenco dos factos constantes dos pontos 7, por um lado e 10, por outro não são de forma alguma inconciliáveis, uma vez que o circunstancialismo referente ao pagamento parcial e em fase de execução (ponto 10), não contradiz nem afecta a ocorrência de falta de entrega voluntária da totalidade do IVA nem no “prazo legal”, nem até à data do julgamento destes autos. Uma vez que inexiste contradição no segmento da decisão destinado à enunciação dos factos provados, falha ou incompletude na matéria de facto provada, improcede o recurso no plano dos vícios decisórios. 5. Da nulidade da prova Os recorrentes suscitam a verificação de nulidade na sentença por valoração de prova obtida com violação do direito ao silêncio e do direito à não auto-incriminação dos arguidos. Com interesse para a apreciação desta questão, cumpre ter presente, em síntese o seguinte circunstancialismo processual: a) O tribunal determinou a notificação da sociedade arguida para junção aos autos de documentação contabilística e de comprovativos de pagamento relativos às transacções sobre as quais pagou IVA, nos períodos em causa nestes autos, por ter considerado que a obtenção desses elementos se revelava indispensável para o apuramento da verdade e a boa decisão da causa, ao abrigo do disposto no n.º 1 e na previsão do n.º 4 alínea a) segunda parte, ambos do artigo 340º do Código de Processo Penal; b) Os arguidos juntaram aos autos os documentos pretendidos, mas invocaram a nulidade da prova, por entenderem que a entrega violava o direito ao silêncio e o direito à não auto-incriminação; c) A solicitação do tribunal e com base nos documentos entregues pelos arguidos, a Sr.ª Inspectora da Direcção de Finanças de Lisboa da Autoridade Tributária elaborou informação sobre o apuramento do IVA e os valores efectivamente recebidos pela sociedade arguida na data do cumprimento das respectivas obrigações fiscais; d) Na sentença, o tribunal julgou provados factos, extraídos dos elementos de prova apresentados pelos arguidos e da informação elaborada pela Srª Inspectora. O princípio nemo tenetur se ipsum accusare significa fundamentalmente que ninguém pode ser obrigado a testemunhar contra si próprio, a produzir prova contra si mesmo ou a fornecer coactivamente qualquer tipo de declaração ou informação que o possa incriminar. Embora sem consagração constitucional expressa, o nemo tenetur beneficia de fundamento implícito nas normas constitucionais que tutelam as garantias de defesa e os valores fundamentais da dignidade humana e da presunção de inocência, num processo leal e equitativo (artigos 1º, 20º n.º 4 e 32º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa). Sem prejuízo do reconhecimento do direito ao silêncio como sendo o “núcleo” duro ou essencial, não existe consenso na doutrina e na jurisprudência sobre o âmbito de validade material da proibição de auto-incriminação. Contudo, tem vindo a reconhecer-se que o princípio não se restringe ao mero direito ao silêncio, com consagração entre nós no artigo 61º n.º 1, alínea d) do Código de Processo Penal, mas abrange de uma forma ampla o direito de a pessoa não ser obrigada a apresentar elementos que provem a sua culpabilidade. Trata-se em todo o caso de um direito que não é absoluto e que se deve entender como sujeito à ponderação com outros interesses e com deveres de colaboração, nomeadamente no âmbito do Direito Fiscal. Segundo Augusto Silva Dias e Vânia Costa Ramos, “À medida que nos afastamos das concretizações nucleares, como o direito ao silêncio ou à não entrega de documentos íntimos, a protecção de que o princípio goza vai-se relativizando, isto é ficando, dependente da concordância prática. A doutrina portuguesa vem aceitando a concepção de Dwoorkin e de Alexy segundo a qual o Dasein dos princípios é em colisão com outros e o modo de dirimir essa colisão é, não através de um critério all or nothung, mas por meio de uma compatibilização ou concordância prática que visa aplicar todos os princípios colidentes, harmonizando-os entre si na situação concreta. Quando um princípio, direito ou garantia é superior a outro de acordo com critérios de relevância constitucional e não é possível na situação concreta salvaguardar alguns aspectos do principio inferior, nesse caso, é permitido o sacrifício deste ultimo”[1] No acórdão de fixação de jurisprudência n.º 14/2014, publicado no DR I, de 21 de Outubro de 2014, o Supremo Tribunal de Justiça, chamado a pronunciar-se sobre o âmbito de validade material do direito à não auto-incriminação, também considerou que deve ser adoptado um critério da concordância prática, com base numa ponderação que compatibilize o direito do arguido com a tutela de valores penalmente relevantes como a investigação criminal e a descoberta da verdade material, segundo critérios de proporcionalidade, necessidade e adequação. Concordando com este entendimento, será possível sustentar a admissibilidade de uma compressão do direito à não auto-incriminação, designadamente na “modalidade” de entrega de documentos pelo arguido e mesmo em plena fase de julgamento, desde que justificada e aceite em favor da concordância com outros bens e interesses, igualmente protegidos constitucionalmente. Para aferir da proporcionalidade da diligência probatória, interessa ponderar na sua modalidade, intensidade (grau de intrusão que comporta), a sua indispensabilidade e necessidade para o alcance dos fins, perante o tipo de crime e o bem ou bens jurídicos em causa. Como frequentemente se sublinha, o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, e a tributação do património pessoal ou real deve concorrer para a igualdade entre os cidadãos (artigos 103.º, n.º 1, e 104.º, n.º 3, da CRP). Com efeito, as receitas tributárias constituem um instrumento essencial de financiamento do Estado e a criminalização da conduta ilegítima em que se traduzem a fraude e a evasão fiscais encontra o fundamento no que se pode considerar como uma violação intolerável de elementares deveres de cidadania. A jurisprudência tem admitido –os recorrentes também assim entendem na motivação – que os documentos e elementos recolhidos pela Administração Fiscal junto dos contribuintes, ao abrigo de um dever geral de colaboração ou na sequência de deveres de informação que a estes são impostos, não constituem prova proibida. E sendo validamente recolhidas no âmbito da fase administrativa, tais provas deverão ser tomadas em consideração no processo criminal em que sejam arguidas as pessoas que entregaram esses elementos. No acórdão do n.º 340/2013, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma resultante da interpretação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, d), e 125.º, do Código de Processo Penal, com o sentido de que os documentos obtidos por uma inspecção tributária, ao abrigo do dever de cooperação imposto nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n.º 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de Dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, e 59.º, n.º 4, da LGT, podem posteriormente vir a ser usados como prova em processo criminal pela prática do crime de fraude fiscal movido contra o contribuinte. Na situação processual concreta destes autos, haverá que considerar um conjunto de elementos, onde avultam a natureza dos documentos, o relevo assumido na condenação e a intensidade da compulsão ou coercividade para a entrega. Os documentos foram solicitados, sem invocação de qualquer cominação em caso de recusa e, ao que tudo indica, para um melhor esclarecimento, na sequência de argumentação da defesa. Não se indicia qualquer elemento de “engano” ou de “indução em erro” dos arguidos pelo tribunal. Neste âmbito, será importante considerar que na audiência de julgamento, o arguido L..., depois de advertido quanto ao seu direito ao silêncio, prestou declarações, respondeu a todas as perguntas do tribunal, do Ministério Público e do Defensor e confessou integralmente e sem reservas os factos constantes da acusação (cfr. acta a fls. 1223). Na sentença, o tribunal fundou a sua convicção sobre a matéria de facto provada, designadamente quanto aos valores de IVA efectivamente recebidos e não entregues nas Finanças, não só nos documentos aqui em causa e entregues pelos arguidos mas em diversos documentos já existentes no processo. Os elementos documentais objecto de entrega pelos arguidos se isoladamente considerados, nunca seriam suficientes para fundamentarem a condenação criminal. Em segundo lugar, os documentos entregues não foram “incorporados” directamente na matéria de facto provada. Eles serviram de base a análise e informação da Autoridade Tributária. Como nota o Ministério Público na resposta à motivação do recurso, são documentos da contabilidade que devem estar sempre acessíveis às autoridades de investigação fiscal. Nem se vislumbra forma de obtenção daqueles documentos sem a restrição do direito dos arguidos à não auto-incriminação. Sopesando em conjunto estes elementos, concluímos que a restrição do direito dos arguidos a não contribuírem para a sua condenação decorrente da entrega e valoração dos documentos, revela-se necessária, adequada e proporcional para a garantia das específicas necessidades de apuramento da verdade material e de investigação de crime de abuso de confiança fiscal. Em conclusão, não existe nulidade de valoração da prova nos termos dos artigos 126º n.ºs 1 a 3 do Código Penal nem desrespeito do artigo 32º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, pelo que se mantêm a decisão da matéria de facto provada e improcedem os recursos dos arguidos. 6. Em caso de decaimento ou improcedência total do recurso, há lugar ainda a condenação de cada um dos arguidos recorrentes nas custas pela actividade processual a que deu causa (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal). De acordo com o disposto no artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, as custas incluem, além dos encargos, uma taxa de justiça, a fixar a final, entre três e seis UC. Tendo em conta a complexidade do processo, com realização de audiência, julga-se adequado fixar essa taxa em quatro UC para cada um dos arguidos. 7. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento aos recursos dos arguidos L..., ME... e Os LN..., Comércio de Produtos Agrícolas, Lda, e em confirmar na íntegra a sentença recorrida. Pelo decaimento no recurso, vai cada um dos arguidos recorrentes condenado em quatro UC de taxa de justiça. Lisboa, 14 de Março de 2018. Texto elaborado em computador e revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem. João Lee Ferreira Ana Paula Grandvaux Moraes Rocha [1] Dias, Augusto Silva e Ramos, Vânia Costa, O Direito à Não Auto-Inculpação (Nemo Tenetur Se Ipsum Accusare) No Processo Penal e Contra-Ordenacional Português, Coimbra Editora, 2009, p.23 |