Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
879/10.8TBMTJ.L1-8
Relator: CARLOS M. G. DE MELO MARINHO
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
REQUISITOS
APREENSÃO DE VEÍCULO
JUSTO RECEIO DE EXTRAVIO OU DISSIPAÇÃO DE BENS
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. No âmbito de incidência dos Decretos-Lei n.ºs 54/75, de 24 de Fevereiro e 149/95, de 24 de Junho, dispensa-se a prova do «periculum in mora»; trata-se, porém, de um regime processual particular, especial, insusceptível de translação ou integração por analogia nos demais casos; estes antes se devem submeter às regras comuns, designadamente ao n.º 1 do art. 389.º do Código de Processo Civil, que não dispensa tal demonstração;
2. O perigo tem que ser avaliado à luz do direito que o demandante refere pretender proteger e, mais tarde, tutelar de forma definitiva; é assim, desde logo, porque o que a providência visa é acautelar a perda do direito e não a sua reintegração ou reconstituição plástica;
3. Neste contexto interpretativo, «não pode (...) ser confundido o eventual direito da apelante a uma indemnização, com o seu direito de retirar o veículo ao locatário»;
4. Perante tal objecto e num tal quadro, é adequado presumir (no âmbito de uma presunção natural ou de facto) que um veículo utilizado indevidamente por quem não é seu dono nem paga os alugueres devidos pelo seu uso se encontra em processo de substancial depreciação, bem como sob risco de destruição parcial ou total .
(sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO

BANCO, S.A., intentou procedimento cautelar comum contra F, LDA., solicitando que fosse ordenada a entrega judicial imediata do veículo automóvel de…, com a matrícula indicada nos autos.
Alegou, para o efeito, que:
Celebrou com a Requerida um «Contrato de Aluguer de Veículo Automóvel sem Condutor» no âmbito do qual declarou ceder-lhe o gozo de viatura automóvel, tendo sido estipulado, nesse acordo, o pagamento de 60 rendas mensais no valor unitário de 235,22 €, acrescido de IVA.; para o efeito, a Requerente adquiriu o veículo mencionado nos autos pelo preço de 15.147 € e entregou-a à Requerida ; a partir de Junho de 2009, esta deixou de proceder ao pagamento das rendas devidas; enviou à Demandada uma comunicação escrita, por carta registada datada de 12 de Janeiro de 2010, nos termos da qual declarou considerar resolvido o contrato de aluguer; a Requerida não procedeu ao pagamento da quantia em dívida, nem à restituição da viatura, impedindo-a de dispor livremente da mesma, designadamente celebrando outros contratos; como é do conhecimento comum, a utilização de um veículo, ou simplesmente o mero decurso do tempo, deprecia-o e diminui-lhe o valor, o que se traduz num prejuízo irreparável; existe ainda a possibilidade de a Requerente vir a ser responsável pelo risco em qualquer acidente de que resulte responsabilidade civil; o decretamento da providência poderá evitar a perda total ou parcial do veículo; enquanto a mesma não for entregue à Requerente, é provável que o seu direito sofra lesão grave e de difícil reparação, por via da desvalorização e de eventuais despesas em caso de acidente.
O Tribunal avaliou liminarmente esta pretensão, tendo-a indeferido com fundamento na insuficiente alegação da existência de «periculum in mora».
É dessa decisão que vem o presente recurso, interposto pela sociedade Requerente, que formulou as seguintes conclusões:
Ficou, nomeadamente, provado que foi celebrado um contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor entre a Requerente que a Requerida deixou de pagar os alugueres acordados e que a Requerente a interpelou para pagar os montantes em dívida ou, não pagando, entregar o veículo, considerando-se resolvido o contrato; a Requerida não entregou tal veículo; provou-se, ainda, que a utilização de uma viatura automóvel a deprecia e diminui o seu valor, o mesmo acontecendo com o mero decurso do tempo; para que seja decretada uma providência cautelar não especificada devem ser preenchidos os requisitos constantes dos n.ºs 1 e 2 do artigo 381.º do Código do Processo Civil, e que, sumariamente, são que: muito provavelmente, exista o direito tido por ameaçado; haja fundado receio que o direito a defender esteja ameaçado de lesão grave e dificilmente reparável; ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos artigos 393.º a 427.º do Código de Processo Civil; a providência Requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar; o Tribunal a quo, atenta a matéria constante dos pontos 10 a 12, só podia concluir pelo preenchimento de todos os requisitos enunciados e que são os constantes do artigo 381.º do Código de Processo Civil; o periculum in mora tinha de ter sido apreciado em face da situação concreta, ou seja, relativamente à viatura objecto da providência e não à possibilidade económica de a Requerida vir a ressarcir a Requerente, pressuposto que se deve analisar em sede de arresto, o que não está, aqui, claramente, em causa; o que estava em causa era o direito de propriedade do veículo objecto dos autos, direito subjectivo da Requerente relativamente àquele veículo concreto; assim, é manifesto que o prejuízo para a Requerente, decorrente do facto de a Requerida se encontrar na posse do veículo, sem legitimidade para isso, é de difícil reparação; um veículo automóvel está sujeito a um conjunto de vicissitudes físicas e jurídicas que não permitem que se possa concluir que o decurso de três ou quatro anos, (tempo médio para se chegar à execução para entrega de coisa certa), não gera uma prejuízo dificilmente reparável; tendo em conta a natureza do bem, os prejuízos dificilmente reparáveis para a Requerente começam no facto de um veículo de sua propriedade estar a circular em circunstâncias físicas e jurídicas que ela não controla; tem, desta forma, a ora Requerente, no seu activo, um bem que em vez de lhe potenciar um proveito, se lhe apresenta como passível de lhe causar prejuízos decorrentes de um uso ilegítimo por parte de terceiro; acresce que a natureza perecível do automóvel foi reconhecida pelo legislador no Decreto-Lei n.º 54/75, de 24 de Fevereiro e no Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, que regulou as providências que visam assegurar o não perecimento do direito de propriedade sobre automóveis, com dispensa da prova do periculum in mora, critério que tem estreito paralelismo com o caso em apreço; a decisão recorrida fez uma errónea interpretação e aplicação do disposto no artigo 381.° e 387.°, n.º 1 do Código de Processo Civil ao não analisar o periculum in mora face ao direito de propriedade mas sim face à capacidade de a Requerida vir a indemnizar a Requerente pelos prejuízos causados em função do incumprimento contratual; trata-se de uma tese que se afasta da jurisprudência dominante em todas as instâncias.
Concluiu dever ser julgado procedente por provado o presente recurso, anulando-se ou revogando-se a decisão recorrida, com as consequências legais.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
É a seguinte a questão a avaliar:
Com vista a demonstrar a existência do periculum in mora necessário para justificar o decretamento de providência cautelar em que se solicite a entrega judicial imediata de veículo automóvel basta alegar e demonstrar que tal viatura se encontra a circular em circunstâncias físicas e jurídicas que a proprietária não controla, já que o que se visa é assegurar o não perecimento do direito de propriedade incidente sobre a mesma?

II. FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentação de facto
Atenta a fase processual em que foi proferida a decisão posta em crise, não estão ainda demonstrados factos relevantes, sendo que o juízo a realizar é, essencialmente, de natureza jurídica e, na vertente fáctica, apenas dependente da análise do conteúdo do requerimento inicial.

Fundamentação de Direito
A tese da Recorrente contém alguma ambiguidade já que, simultaneamente, parece sustentar a dispensa do periculum in mora no caso em apreço e a concretização de tal requisito enquanto dirigido ao direito de propriedade invocado e não materializado nos termos conformados na sentença impugnada.
Refere, mesmo, a existência de «paralelismo» com o regime da locação financeira, apesar de se revelar consciente de não estar perante contrato assim qualificável (que o Tribunal, sem discrepância, qualificou como contrato de aluguer de veículo sem condutor regido pelo Decreto-Lei n.º 354/86 de 23 de Outubro). Esgrimiu, para o efeito, com o sistema normativo emergente dos Decretos-Lei n.ºs 54/75, de 24 de Fevereiro e 149/95, de 24 de Junho, particularmente com o que brota do art. 21.º deste último diploma legal que, atendendo, segundo ela, à necessidade de «assegurar o não perecimento do direito de propriedade sobre automóveis», dispensa a prova do periculum in mora.
Assim é quanto a essa figura contratual – vd., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.02.2008, documento SJ200802070046222, do qual foi relator o M.mo Juiz Conselheiro Pereira da Silva, assim sumariado: «Na providência cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo a que se reporta o artº 21º de DL nº 149/95, de 24 de Julho, alterado pelo DL nº 265/97, de 2 de Outubro, não se exige a alegação e prova de periculum in mora, este fluindo implícito da natureza do contrato de locação financeira e do expectável degradamento do bem locado na pendência da acção definitiva» (em http://www.dgsi.pt).
Já não tem razão se pretender, de alguma forma, a importação das suas regras específicas na quadro sob ponderação.
Trata-se de um regime processual particular, especial, insusceptível de translação ou integração por analogia no caso em apreço.
O presente quadro antes se submete às regras comuns consagradas, no que a esta questão importa, no n.º 1 do art. 389.º do Código de Processo Civil, que não dispensa a demonstração do «periculum in mora», aliás em congruência com o disposto na parte final do n.º 2 do art. art. 2.º do mesmo código. Nem a Recorrente parece defender tal importação, ficando-se pelo caminho no processo técnico explicativo.
Exige-se, pois, na situação sob avaliação, a demonstração da «inadequação entre o tempo da produção da tutela, e o tempo que esta admite para se manter eficaz, ou entre o tempo que o objecto processual fixado pede e o tempo que o processo exige», (PINTO, Rui, A questão de Mérito na Tutela Cautelar (…), Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pág. 524) ou seja, que se patenteie o «periculum in mora».
O que importa saber, aqui, é qual o perigo a que se quer obviar, qual o risco potencialmente produzido pelo curso do tempo que medeia entre o momento presente e o da protecção definitiva do direito cuja existência se alega ainda que sob um singelo e perfunctório fummus boni juris.
Se atendermos, como devemos, ao pedido inicial da Recorrente, temos que concluir que esta pretende a apreensão da viatura referenciada no requerimento inicial com vista a acautelar o efeito útil da acção a propor em que visará recuperar tal veículo com fundamento no seu direito de propriedade e no não pagamento de prestações de aluguer, ou seja, exercer o direito consagrado nos artigos 1038.º alíneas a) e i) e 1045.º, ambos do Código Civil e no n.º 4 do art. 17.º do Decreto-Lei n.º 354/86, de «retirar ao locatário o veículo alugado» (…) «com fundamento em incumprimento das cláusulas contratuais».
É este, em primeira linha, o direito que merece ponderação no quadro da providência. É face a ele que se deve avaliar a materialização do risco emergente da demora. Não parece tecnicamente aceitável que, num tal contexto, de imediato se pondere a indemnização por sucedâneo pecuniário, considerada pelo legislador como de segundo grau ou mera alternativa – cf. o n.º 1 do art. 566.º do Código Civil.
O perigo tem que ser avaliado, pois, à luz do direito que o demandante refere pretender proteger e, mais tarde, tutelar de forma definitiva, ou, nas palavras de PINTO, Rui, supra-invocado (ibidem, pág. 526) do «litígio que é objecto da acção – o quadro de facto e de direito fixado no objecto processual, i.e., o ilícito já ocorrido ou mesmo o ilícito/dano que se pretende prevenir» (e que) «vai sofrer prejuízo em consequência de um facto que é externo a esse objecto processual: o decurso do tempo que se desenvolverá até ao cumprimento da utilidade geral das normas de processo» e não face a intervenções de recurso, substituição ou compensação gizadas pelo sistema jurídico com vista à protecção do credor. É assim desde logo porque que a providência visa é acautelar a perda do direito e não a sua reintegração ou reconstituição plástica.
Neste âmbito interpretativo, «não pode, pois ser confundido o eventual direito da apelante a uma indemnização, com o seu direito de retirar o veículo ao locatário» (conforme patenteado com acerto no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.07.2009, do qual foi Relatora a M.ma Juíza Desembargadora Joana Salinas Calado do Carmo Vaz, in http://www.dgsi.pt) ou, como referido pelo M.mo Juiz Desembargador Manuel Tomé Soares Gomes no seu voto de vencido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.03.2004 (ibidem) «o próprio direito à restituição do bem locado constitui um efeito típico do contrato de aluguer estatuído, em termos gerais para a locação, nos artigos 1038°, alínea i), e 1043°, n° 1, do CC»
Perante tal objecto e num tal contexto, julga-se adequado presumir (no âmbito de uma presunção natural ou de facto) que um veículo utilizado indevidamente por quem não é seu dono nem paga os alugueres devidos pelo seu uso se encontra em processo de substancial depreciação (basta atentar nos índices de preços das viaturas usadas, seus ciclos anuais de desvalorização e critérios usados para a ponderação desses valores assentes no tipo de uso e cuidados dedicados à manutenção e guarda), bem como sob risco de destruição parcial ou total que, dizem-nos a experiência comum e os números da sinistralidade nacional, são de relevante dimensão.
Claro que a parte contrária não surge inerme face a este entendimento nem se diga que se geram aqui automatismos que deixam os demandados desprotegidos perante o salto lógico que a presunção sempre implica ao bastar-se com a prova da respectiva base. Assim é, desde logo, porque, como se sabe, as simples presunções naturais admitem sempre contraprova (vd., neste sentido, VARELA, Antunes e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 504 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.01.1948, aí invocado).
É, pois, possível e perfeitamente cogitável que um requerido patenteie ter o veículo locado guardado num espaço coberto e apropriado para a conservação de viaturas, devidamente mantido por profissionais, sem utilização na via pública, o que afastaria, seguramente, a noção da existência de risco de circulação. Já quanto à depreciação por mero curso do tempo, mais dificuldades probatórias se divisariam, mesmo numa situação destas, a menos que estivéssemos perante veículo de colecção e generosamente valorizável em atenção à sua raridade intrínseca e valor museológico.
Face ao exposto, a providência deve prosseguir com a produção de prova indicada pela Requerente.

III. DECISÃO
Pelo exposto, julgamos a apelação procedente por provada e, em consequência, anulamos a decisão recorrida e ordenamos o prosseguimento dos autos para avaliação do peticionado pela Requerente.
Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 13 de Julho de 2010

Carlos Manuel Gonçalves de Melo Marinho (Relator)
José Albino Caetano Duarte (1.º Adjunto)
António Pedro Ferreira de Almeida (2.º Adjunto)