Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | A. AUGUSTO LOURENÇO | ||
| Descritores: | ABUSO DE CONFIANÇA QUALIFICADO ARQUIVAMENTO APROPRIAÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 03/21/2018 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
| Sumário: | No crime de abuso de confiança a ilegitimidade da apropriação decorre da circunstância de o agente, contra a vontade do legítimo possuidor, integrar a coisa entregue no seu património, de forma arbitrária, e com o propósito de não a restituir ou de lhe dar um destino diverso daquele que lhe era destinado, existindo, assim, inversão do título de posse da coisa efectuada pelo agente. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa RELATÓRIO No âmbito do inquérito nº 33/15.2TSXL, em que são assistentes V... e M... e arguidos, J... e MA..., o Ministério Público, findo o inquérito, proferiu despacho de arquivamento dos factos denunciados contra os arguidos, por considerar insuficientes os indícios da prática do crime de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelos artigos 202º al. b) e 205º nº 1 e 4 al. b) ambos do cód. penal. Inconformados, os assistentes requereram a abertura de instrução, tendo a final a Juíza de Instrução decidido: - «Nesta conformidade, por tudo o exposto, decide o Tribunal, não pronunciar os arguidos, J... e MA... pela prática do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º do cód. penal que lhes é imputado pelos assistentes no requerimento de abertura de instrução, nem pela prática de qualquer outro». * Inconformados com tal decisão, os assistentes, V... e M... interpuseram o recurso de fls. 940 a 951, pugnando pela respectiva revogação daquele despacho e pronúncia dos arguidos, concluindo nos seguintes termos:«1. Dispõe-se no artigo 205º do Código Penal que quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade, será punido como autor de um crime de abuso de confiança. 2. São elementos constitutivos do tipo legal de abuso de confiança: a apropriação ilegítima; de coisa móvel; entregue por título não translativo de propriedade, sendo a apropriação o agente fazer sua coisa alheia, invertendo o título de posse e não a restituindo; coisa móvel, neste caso, as quantias em dinheiro; e a entrega por título não translativo de propriedade que a coisa haja sido entregue validamente ao agente embora este não a possa fazer sua, devendo restituí-la ou afectá-la a determinado fim. 3. Os recorrentes aceitam o elenco de prova recolhida declarada pelo tribunal a quo na decisão instrutória, quer quanto à recolhida no inquérito quer quanto à recolhida na instrução, aceitando-se ainda o que o tribunal a quo refere como prova resultante das inquirições das testemunhas no âmbito do inquérito e até mesmo na instrução, discordando apenas do que o tribunal a quo entende não estar indiciado e da não suficiência dos indícios para pronunciar os arguidos. 4. A decisão do tribunal a quo padece de vício de raciocínio lógico e subestimação dos elementos objectivos constantes dos autos, denunciadores de actos de apropriação ilegítima por parte dos arguidos. 5. Usando a prova indiciária recolhida, e que o tribunal cita, os recorrentes entendem que não existe dúvida que a falecida e o seu único herdeiro, aqui recorrente, não deram autorização aos arguidos para fazerem os levantamentos e transferências em causa nos autos nem para fazerem seu esse dinheiro e o existente no lar e na casa sita na Rua A..., entendendo, pelo contrário, que resulta indiciado que não o fizeram nem essa foi a sua vontade. 6. Também resulta indiciado que existia dinheiro no lar e na casa sita na Rua A..., qual o seu montante e que era da propriedade da falecida, ao qual os arguidos tiveram acesso e tinha acesso exclusivo, tendo ficado com ele, apropriando-se dele, indevidamente. 7. E resulta indiciado que ME... estava pelo menos debilitada quando os arguidos começaram a movimentar dinheiro, transferindo-o e levantando-o. 8. Resulta isso, desde logo, do que disse a testemunha O... no auto de inquirição de fls. 173 a 175. 9. Sendo certo que na instrução a testemunha referiu que quando ME... foi internada no Hospital, o arguido J... disse à testemunha que ME... tinha € 6.000,00 no Lar que o arguido levou consigo, e disse ainda que numa ocasião se deslocou com ME... à residência sita na Rua A..., da qual ME... tinha a chave, e esta lhe mostrou uma maço de notas que J... disse comporem 30.000 euros e mais tarde disse já não existirem na totalidade. 10. Também resultam indiciados os factos que, pelos assistentes, são referidos nos artigos 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 14º, 15º, 20º, 21º, 22º, 23º, 25º, 26º, 27º, 32º, 40º, 47º e 52º do requerimento de abertura de instrução. 11. E que: - as contas bancárias do Novo Banco (BES) com o nºs 000... e 0002... eram co-tituladas por ME..., MA... e J..., em regime de conta solidária, desde 26/02/2008; - a conta bancária da Caixa Geral de Depósitos com o NIB 0035..., conta para a qual foram efectuadas as transferências bancárias denunciadas, era co-titulada por J... e ML... tendo a mesma sido cancelada em 25 de Novembro de 2014; - os cheques nº 3303882480 emitido em 29/0112014, nº 6503882498 emitido em 02/02/2014 e nº 3803882501 emitido em 04/03/2014 foram depositados na conta bancária com o NIB 0035..., co-titulada por J... e ML...; - tais cheques foram descontados da conta titulada por ME... e pelos arguidos, com os seguintes valores e datas: € 4.243 em 05/02/2014 (dia do óbito da falecida M... com data de emissão 29/01/2014), € 2.393 em 06/02/2014 (dia seguinte a óbito com data de emissão de 02/02/2014) e € 1.600 em 10/03/2014; - dessa mesma conta bancária do Novo Banco, titulada por ME... e pelos arguidos, foram efectuadas transferências para a conta da CGD, titulada pelo arguido J..., nos seguintes montantes e datas: € 18.500, em 27/06/2013, € 15.000 em 01/07/2013 e € 5.000, em 03/1212013; - Todo o dinheiro existente na conta do Novo Banco titulada pela falecida ME... e pelos arguidos era proveniente unicamente de rendimentos pensões/poupanças auferidas pela própria. 12. Resultando indiciado que quando o arguido J... transferiu as quantias monetárias referidas, assim como procedeu ao levantamento dos cheques em causa nos autos, depositando tais valores na conta bancária de que era titular, conta essa exterior à titularidade da co-titular ME... e do recorrente, seu único herdeiro, colocou tais quantias na sua disponibilidade exclusiva. 13. E que não existe qualquer testamento, doação ou qualquer outro meio legal de tradição dos bens que confira o direito ao arguido de actuar como descrito. 14. Estes factos são suficientes para concluir, de forma indiciária, que o arguido J..., ou até mesmo a arguida MA..., inverteram o título de posse e apropriaram-se do dinheiro existente na conta bancária co-titulada por ME... sem o conhecimento ou autorização desta e sem o conhecimento ou consentimento do aqui recorrente, seu único e universal herdeiro. 15. Sendo certo que as cópias dos cheques juntos aos autos, de fls., os quais foram levantados pelos arguidos, se verifica que a letra do preenchimento dos cheques, incluindo o seu valor e data, é totalmente diferente da letra da assinatura que será de ME... e o cheque de 1.600,00 euros, datado de 04-03-2014, nem sequer foi assinado por ela mas pelos arguidos. 16. Os recorrentes entendem resultar indiciado que os arguidos apenas se aproximaram e acompanharam ME..., e inicialmente também o seu marido, com o firme propósito de se aproveitarem dos seus rendimentos, tendo até logrado ser co-titulares da conta da falecida, não tendo sido por acaso e não ser natural, no entender dos recorrentes, que apesar da conta ser co-titulada pelos arguidos desde 26 de Fevereiro de 2008 (cfr. fls. 106 a 120), as transferências e levantamentos de cheques só tenham ocorrido a partir do momento em que ME... fica de alguma forma debilitada e depois da sua morte e logo nos instantes seguintes à sua morte. 17. Não se pode entender que a co-titularidade da conta pelos arguidos representa a vontade de ME... de que ficassem com o dinheiro aí existente, carecendo de título e de justificação a apropriação pelos arguidos desse dinheiro. 18. Os conflitos existentes entre ME... e o seu filho, ou desta para com o seu filho, não são causa bastante de justificação para o comportamento dos arguidos na medida em que não podem contrariar-se as disposições legais relativas à forma e formalidades essenciais de determinados negócios, assim como não se pode presumir a vontade de uma pessoa falecida, contrariando os elementos objectivos existentes nos autos, e nem sequer o direito do recorrente à herança de ME..., por ser seu único e universal herdeiro, que efectivamente foi violado pois resulta dos documentos bancários juntos aos autos que a conta co-titulada por ME... ficou praticamente a zero depois dos movimentos dos arguidos. 19. Os arguidos sabiam que o dinheiro era apenas da propriedade da falecida, que a falecida tinha um filho, seu único e universal herdeiro. 20. Estão indiciados os elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de confiança, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 202º alínea b) e 205º/1 e 4 alínea b) do C. Penal., porquanto indiciam os autos que pelos arguidos houve uma apropriação ilegítima de dinheiro que a titular lhes confiara, o qual sabiam não lhes pertencer, fazendo-o seu e não o restituindo. 21. Está indiciado que os arguidos actuaram de modo livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal e que causariam ao assistente um prejuízo correspondente ao dinheiro de que se apropriaram, o que efectivamente aconteceu. Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve a decisão instrutória de não pronúncia recorrida ser revogada, determinando-se que seja proferida outra em substituição dela que pronuncie os arguidos nos termos do requerimento de abertura de instrução, aditando ainda os factos que se entenderem praticados, pela prática do crime de abuso de confiança, agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 202º alínea b) e 205º/1 e 4 alínea b) do Código Penal. Com o que farão V. Exas. a esperada e costumada Justiça»! * O Ministério Público, em 1ª instância, respondeu ao recurso de nos termos de fls. 993/994, defendendo a improcedência do recurso de forma liminar:- «Salvo melhor opinião, entendemos que nenhuma razão assiste aos assistentes, pelo que a douta decisão instrutória de não pronúncia deverá ser integralmente mantida, pelas razões que dela constam, com as quais concordamos na íntegra. Termos em que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a douta decisão instrutória de não pronúncia nos seus precisos termos e assim se fazendo como já é hábito, Justiça!». * Neste Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o Douto parecer de fls. 1005 a 1010, tendo-se pronunciado no sentido da improcedência do recurso. * O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido.Colhidos os vistos, cumpre decidir. * FUNDAMENTOSO âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente, da respectiva motivação , que, no caso "sub judice", se circunscreve à apreciação do despacho de “não pronúncia“ e consequente arquivamento dos autos naquela parte. * TRANSCRIÇÃO INTEGRAL DA DECISÃO INSTRUTÓRIADeclaro encerrada a instrução. O tribunal é competente. Não existem excepções ou quaisquer outras questões prévias ou incidentais que obstem, neste momento, à prolação da decisão instrutória. * Nos presentes autos, o Ministério Público decidiu, findo o inquérito, proferir despacho de arquivamento.Inconformado com tal despacho vieram os assistentes, V... e M..., requerer a abertura da Instrução nos termos do disposto do artigo 287º, nº.1, al. b), do Código de Processo Penal, atentos os fundamentos de facto e de direito referidos a fls. 336 a 352, e que aqui damos por integralmente reproduzidos, pugnando pela pronúncia dos arguidos J... e MA..., melhor identificados a fls. 226 e 255, pela prática do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º do Código Penal. Para tal, alegam, em suma, que: - A 12/02/2008 faleceu F... deixando como herdeiros a sua esposa ME..., e o seu filho, o aqui denunciante V..., não tendo sido feita na sequência daquele óbito habilitação de herdeiros nem partilha dos bens deixados por F.... - ME... faleceu em 05/02 2014, no Hospital Garcia de Horta, local onde estava internada desde Janeiro de 2014, deixando como único herdeiro o denunciante, casado no regime de comunhão geral de bens com a denunciante. - O denunciante comunicou o óbito ao Novo Banco, instituição bancária onde a falecida era titular de conta bancária, tendo então recebido a relação de activos e passivos da conta titulada pela falecida, cópia dos cheques eventualmente movimentados na mesma e extractos relativos ao período entre 10 de Outubro de 2011 e 25 de Março de 2014, tendo os denunciantes verificado que foram feitos levantamentos de cheques de €2.000 em 09/12/2010, €4.243 em 05/02/2014 (dia do óbito da falecida M… com data de emissão 29/01/2014), €2.393 em 06/02/2014 (dia seguinte ao óbito com data de emissão de 02/02/2014) e €1.600 em 10/03/2014. - M... foi internada no Hospital Garcia da Horta, em Janeiro de 2014, onde ficou até falecer, não compreendendo aqueles como a falecida, em estado de tal forma debilitada que teve que ser internada, poderia ter emitido os referidos dois cheques dias antes da sua morte, sendo que a assinatura constante dos cheques não corresponde à assinatura de M.... - A referida conta bancária tinha como co-titulares M..., MA... e J..., sendo que os valores depositados na mesma pertenciam exclusivamente a M... correspondendo a transferências das pensões que constituíam o seu único rendimento num montante mensal de pelo menos €750, pelo que MA... e J..., sem prejuízo de serem co-titulares da conta em causa, não poderiam dispor livremente das quantias que a integravam sem autorização de M... ou, após a morte desta, do denunciante, seu único herdeiro, autorização que não lhe foi dada por este porquanto tal quantia pertencia ao mesmo. - O cheque emitido em 10/03/2014 está assinado pelos outros dois co-titulares da conta, MA... e J..., sendo que o mesmo pertencia a M... uma vez que é o nome desta que surge ao lado da identificação do banco e que os cheques emitidos em 29/01/2014, 02/02/2014 e 04/03/2014 têm números sequenciais. - Os cheques foram todos depositados em conta da Caixa Geral de Depósitos e foram ainda realizadas transferências bancárias para a conta da Caixa Geral de Depósitos n.º 0035... de €18.500 em 27/06/2013, €15.000 em 01/07/2013 e €5.000 em 03/12/2013, verificando-se assim uma diminuição de pelo menos € 48.936, entre valores de cheques e transferências, no património da herança, desconhecendo os denunciantes para quem e a que título foram emitidos aqueles cheques e efectuadas aquelas transferências. - Em Julho de 2014 os denunciantes foram informados por O..., proprietária do lar de idosos onde M... residia, que até à data do seu óbito M... tinha cerca de €5.000 em numerário guardados no seu quarto no lar, quantia esta que despareceu após o seu falecimento. - M... vendeu a MA... a sua residência sita na Rua A..., n.º 10, 1º Esq., Corroios, Seixal, juntamente com outra propriedade, pelo montante de €50.000, sendo que, ainda assim e apesar dessa venda, era M... quem pagava a água, electricidade e gás do referido imóvel por débito directo na conta supra referida. - M... manteve todos os seus bens nesse imóvel, que não foram nem vendidos com o mesmo, nem doados à sua nova proprietária, nem nunca dali saíram pela mão de M..., nomeadamente libras de ouro, Krugerrands em ouro, diversas moedas comemorativas da África do Sul, ouro herdado por M... e pelo seu cônjuge dos respectivos pais, diversos objectos em ouro como cordões, anéis e fios e toda a mobília da casa (designadamente mobília de sala, da casa de jantar, dois frigoríficos, um fogão, mobília de dois quartos, máquinas de lavar, candeeiros e demais recheio da casa) que continuava a pertencer a M.... - A falecida M... tinha ainda cerca de € 40.000 a € 50.000 em dinheiro nessa residência, quantia essa compatível com o produto da venda acima referida e que nunca foi depositada na sua conta. - O denunciante, único herdeiro de M..., refere que todos estes bens lhe pertencem, e que após o óbito tentou por diversas vezes aceder ao imóvel em causa, tendo-lhe sido recusado o acesso ao mesmo. * Foi aberta a instrução.Nesta fase foram inquiridas as testemunhas O... e A..., assim como foram solicitados e juntos documentos referentes às contas bancárias tituladas por ME... e os arguidos e à conta bancária do arguido J.... * Realizou-se o debate instrutório, com observância do disposto nos artigos 298º, 301º e 302º, todos do Código de Processo Penal cumprindo agora, nos termos do disposto no artigo 308º do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória. * II – SaneamentoO tribunal é competente. O assistente tem legitimidade para o exercício da acção penal. Inexistem nulidades, excepções e questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa. * III – FundamentaçãoCumpre, assim, na presente fase processual, averiguar se existem indícios suficientes da prática de crimes, de modo a pronunciar os arguidos. A instrução, de acordo com o preceituado no nº. 1 do artigo 286° do Código de Processo Penal, "visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento" e a sua direcção compete a um juiz de instrução (nº. 1 do artigo 288° do mesmo C.P.P.). E "se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia" (artigo 308° 1, do C.P.P.). Por outro lado, define o nº 2 do artigo 283° do C.P.P., que "consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança". A questão de saber quando é que os indícios são suficientes e, nomeadamente, o que deve ser entendido por "possibilidade razoável' de futura condenação, tem dividido a doutrina e a jurisprudência. Uma posição inicial defendia que para que os indícios fossem considerados suficientes bastava a mera possibilidade de futura condenação em julgamento - neste sentido referia Germano Marques da Silva que "para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais da ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade de que foi cometido o crime pelo arguido" (in Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, p. 183). Uma outra posição defende que os indícios só são suficientes se deles resultar uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento, exigindo-se uma "possibilidade particularmente qualificada" ou uma "probabilidade elevada" de condenação (neste sentido cfr. Jorge Gaspar, Titularidade da Investigação Criminal e Posição Jurídica do Arguido, in Revista do Ministério Público, nº. 88, p. 101 e segs.; Carlos Adérito Teixeira, Indícios Suficientes: Parâmetros de racionalidade e instância de legitimação, in Revista do CEJ, nº 1, p. 160); e Paulo Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, 2003, p. 90 e ss.). Todavia, temos para nós que a posição mais acertada é uma posição intermédia entre aquelas duas, denominada "teoria da probabilidade dominante" e que, reconhecidamente, é a que tem mais apoio na letra da lei. De acordo com esta tese, os indícios são suficientes para acusar ou pronunciar alguém sempre que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição. Neste sentido diz Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, I, 1984, p. 133) que "os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição" - cfr. ainda o Acórdão do STJ de 8.10.2008, no Proc. 07P031 (in Internet, www.dgsi.pt), onde se refere que "possibilidade razoável' é a que se baseia num juízo de probabilidade, "uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha"; e o Acórdão do STJ de 16.06.2005, no Proc. 05P1938 (também in Internet, www.dgsi.pt), que defende que "aquela 'possibilidade razoável' de condenação é uma possibilidade mais razoável, mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é (mais) provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição". Pelo que, os indícios serão suficientes sempre que, por via deles, o juiz de instrução chegue a um juízo de prognose em que a condenação do arguido é mais provável do que a absolvição, caso em que deve proferir despacho de pronúncia. Assim, finda a instrução, se o Juiz de instrução concluir pela suficiência dos indícios recolhidos proferirá despacho de pronúncia, caso contrário, o despacho será de não pronúncia. Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade do arguido ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual. * Vejamos, então, o ilícito penal pelo qual os assistentes pretendem que os arguidos sejam pronunciados.Do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º, nº. 1, do Código Penal. Dispõe o nº 1 do artigo 205º do C.P. que, «quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa». De acordo com a tipicidade descrita no preceito citado, são elementos objectivos do tipo de crime em causa: a) a apropriação ilegítima; b) de coisa móvel alheia; c) entregue ao agente por título não translativo de propriedade (ou seja, mediante título que importe a obrigação de restituição ou de apresentação). Por apropriação ilegítima entende-se o acto por via do qual o agente faz sua coisa alheia, depois de a mesma lhe ter sida confiada. Ou seja, tendo o agente uma detenção precária e em nome de terceiro, passa a dela dispor em nome próprio, como se sua fosse. A ilegitimidade da apropriação decorre assim da circunstância de o agente, contra a vontade do legítimo possuidor, integrar a coisa entregue no seu património, de forma arbitrária, e com o propósito de não a restituir. A caracterizar este elemento típico, adianta o S.T.J., em Acórdão de 26/02/1992, in C.J., 1992, T. 1, pág. 40, as situações de descaminho, dissipação ou simples apropriação. A questão essencial delimitativa deste tipo legal decorre, assim, da inversão do título de posse da coisa efectuada pelo agente “que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela – naturalmente através de actos objectivamente idóneos e concludentes em termos gerais – uti dominu” (cfr. “Comentário Conimbricense do Código Penal”, T. II, p. 103). E nesta inversão do título que se encontra o núcleo essencial que permite identificar o elemento essencial da “apropriação” para si, a que se refere o citado artigo 205º do Código Penal. O conceito de coisa móvel não suscita particulares questões de determinação, sendo certo que a jurisprudência integra neste tipo criminal a apropriação ilegítima de quantias em dinheiro. Assim, a título exemplificativo, vide Ac. R.E., de 19/07/1984, in C.J., 1984, T. 4, pág. 304; Ac. S.T.J., de 26/02/1992, in C.J., 1992, T. 1, pág. 40. Por fim, e para que se verifique o preenchimento do terceiro elemento típico, impõe-se que a coisa haja sido entregue validamente ao agente, embora este esteja investido na obrigação de a restituir posteriormente, ou de a afectar a um fim determinado. Relativamente ao tipo subjectivo do crime de abuso de confiança, tratando-se de um crime doloso, em que o dolo consiste na vontade de inverter o título de posse, por se querer transformar de possuidor alieno domine em possuidor uti dominus, com a consciência de agir contra o direito, quer não restituindo a coisa, quer não lhe dando o destino devido. O dolo traduz-se, pois, neste aspecto, na vontade consciente de apropriação de coisa móvel alheia. Por sua vez, se a coisa móvel de que o agente se apodera for de valor consideravelmente elevado, a moldura penal é agravada – cfr. artigo 205º, nº 4, al. b), por referência ao artigo 202º, al. b), todos do Código Penal. * Postas estas considerações jurídicas, importa apreciar a prova até agora produzida e efectuar sobre a mesma uma análise crítica, por forma a apurar se a mesma é susceptível de sustentar os indícios que o assistente entende por suficientes para determinar a prolação de um despacho de pronúncia dos arguidos.Há então que apreciar toda a prova recolhida, quer na fase de inquérito, quer na fase de instrução, e que tenha relevância para a questão aqui em apreço. * Prova recolhida em fase de Inquérito:- queixa crime de fls. 1 a 12; - assento de óbito de F..., de fls. 15 a 17; - documentação clínica de ME..., de fls. 11 e 192 a 200; - assento de óbito de ME..., de fls. 21 a 23; - escritura de habilitação de herdeiros, de fls. 25 a 27; - documentação bancária do BES e cheques, referente à conta titulada por ME..., de fls. 35 a 69; - contrato de compra e venda, outorgado em 10/11/2005, do imóvel sito na Rua A..., nº. 10 e Rua de Niza, nºs. 23, 23ª e 23B, Alto do Moinho, por ME..., por si e na qualidade de procuradora com poderes para o acto do seu marido F..., declarando vender, por € 50 000,00, a MA...- cfr. fls. 73 a 76; - certidão do registo predial do imóvel, de fs. 170 a 171; - documentação bancária de fls. 92 a 157, 160, 260 a 292 e 297 a 306; - auto de inquirição de O..., de fls. 173 a 175: declarou, em síntese, ser a responsável pela casa de repouso “DINA” sita em Vale de Milhaços, local onde ME... permaneceu desde Dezembro de 1999 até à data do seu falecimento. Inicialmente foi para o lar o marido da mesma, o Sr. F..., que ali permaneceu sozinho durante uns meses até Dezembro de 1999, altura em que entrou a esposa M.... Decorrido algum período de tempo o casal deixou de ter contacto com o único filho V... por motivos relacionados com o empréstimo de quantias monetárias, tendo este deixado de efectuar o pagamento do lar, pagamento esse que passou a ser assegurado pela falecida D. ME.... Aquando do falecimento do Sr. F..., a D. ME... deu instruções à testemunha para não comunicar o óbito ao filho, instruções que a testemunha não acatou porquanto havia sido aquele que tinha colocado o pai no lar, sendo que ainda antes do falecimento, e perante o estado grave de saúde do Sr. F..., a testemunha perguntou ao mesmo se pretendia ver o filho tendo aquele declinado tal intenção. Desde a entrada no lar o Sr. J... acompanhou e manteve contactos regulares com o casal, sendo que após o casal se ter zangado com o filho o Sr. J... passou a ser a única visita do casal e, após o falecimento do Sr. F..., era a única visita da D. ME... porquanto esta não queria qualquer contacto com o filho. Ainda antes do falecimento do Sr. F... a D. ME... terá vendido um apartamento e um lote de terreno a terceiros que a testemunha desconhece, e vendeu ainda um carro ao Sr. J.... Durante o período em que o casal, e posteriormente só a D. ME..., permaneceu no lar era o Sr. J... que os acompanhava para todo o lado, sendo que a partir de determinada altura passou a ser o Sr. J... a efectuar o pagamento do lar porquanto a D. ME... não conseguia administrar o pagamento do lar por motivos de saúde. Durante o período em que a D. ME... permaneceu no lar, a testemunha levou aquela por diversas vezes à sua residência, sendo que em determinado dia que não consegue precisar a D. ME... mostrou-lhe o local onde tinha uma elevada quantia monetária em numerário. Nesse dia a testemunha advertiu que era perigoso ter tanto dinheiro na residência sendo que depois dessa altura a ora testemunha nunca mais ali se dirigiu, tendo todavia advertido o Sr. J... de tal facto, e bem assim do perigo da existência de tanto dinheiro, sendo que o mesmo referiu ter conhecimento de tal facto porquanto havia sido ele, a pedido da D. ME..., que ali havia colocado tal quantia. A determinada altura foi diagnosticado à D. ME... um tumor no intestino sendo que antes do internamento a testemunha, e porque a D. ME... apresentava já debilidade a nível de conseguir cuidar de si e dos seus bens, procurou no quarto da D. ME... todos os bens com valor que ali se encontravam. Nessa sequência detectou objectos em ouro e duas chaves da residência, tendo entregue o ouro e uma das chaves ao Sr. J..., e colocou a outra chave em local seguro, nomeadamente no cofre do lar. Posteriormente, aquando do segundo internamento, o Sr. J... deslocou-se ao lar e verificou no quarto da D. ME... se encontrava uma quantia monetária de cerca de 5 a 6 mil euros, quantia essa que o mesmo levou nesse dia tendo ainda a testemunha entregue ao Sr. J... a chave da residência da D. ME... que estava no cofre. Após estes factos a D. ME... veio a falecer no hospital, não tendo a ora testemunha tido contacto com os bens da mesma. Mais referiu que entre o primeiro e o segundo internamento, a testemunha entrou em contacto com o filho informando-o do estado de saúde da mãe e, nessa sequência, o filho e a nora começaram a visitar a D. ME... no lar, altura em que a ora testemunha informou também o filho de tudo o que atrás referiu, nomeadamente da existência do dinheiro em casa e da entrega do ouro ao Sr. J.... Nesse período o filho da D. ME... e o Sr. J... encontram-se por uma vez em data que não consegue precisar, tendo sido ouvido pela ora testemunha uma conversa entre os dois na qual o Sr. J... disse à nora que tinha na sua posse um documento assinado pela D. Esmeralda dando-lhe todos os bens e que só apresentaria esse documento em Tribunal. Mais referiu que a D. ME... até cerca de dois anos antes do seu falecimento sempre permaneceu lúcida e responsável pela administração de todos os seus bens, sendo que foi a D. ME... que lhe confidenciou tudo o referido. Referiu ainda que durante o período em que ali esteve o casal, e posteriormente sozinha a D. ME..., foi sempre o Sr. J... que deu atenção e prestou o devido acompanhamento, não permitindo que aqueles permanecessem sozinhos e sem acompanhamento. Finalmente, referiu que MA... era sobrinha do casal. - Auto de inquirição de Sérgio Bernardo, de fls. 176 a 177: declarou, em síntese, que a sua esposa D... adquiriu em 24 de Janeiro de 2008 um lote de terreno rústico sito na Q…, em Vale de Milhaços e inscrito na Matriz da freguesia de Amora sob o art.º ... da secção J e descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora sob o nº … do livro B – .., tendo celebrado escritura publica em Notário particular na Charneca da Caparica. No referido acto, a proprietária do lote, MA..., fez-se representar através de procuração por ME... tendo a ora testemunha efectuado o pagamento através de cheques no montante global de €50.000. Mais referiu que posteriormente, em conversa, foi questionado pela proprietária de uma churrascaria sita no Alto do Moinho sobre tal negócio tendo a testemunha facultado inclusive o nº dos cheques respeitantes ao pagamento do valor, julgando a testemunha tratar-se da denunciante M…. Acrescenta ainda que constatou que o lote rústico acima descrito se encontrava para venda através de uma placa que se encontrava no local a qual continha o número de telemóvel 936236237 utilizado por um senhor que conhece apenas por J..., pessoa com quem negociou. Desconhece quaisquer outros factos e nenhum outro contacto teve com os denunciantes ou com qualquer outra pessoa interveniente no processo. - Auto de inquirição de V…, de fls. 211 a 212: reiterou o teor da queixa apresentada esclarecendo que a conta bancária no Novo Banco da sua mãe tinha ainda uma conta poupança associada com o n.º 0002... e que em nome do seu pai F... existia ainda uma conta bancária no Novo Banco com o n.º 263... tendo associadas as contas nºs 2631... e 26311.... - Auto de inquirição de M..., de fls. 215 a 217: reiterou o teor da queixa apresentada esclarecendo que a residência sita na Rua A... n.º 10 – 1.º Esq., Corroios, Seixal, entretanto foi arrendada por MA.... - Autos de interrogatório dos arguidos J... e MA..., de fls. 229 a 230 e 251 a 254: declararam não pretenderem prestar declarações. Prova recolhida em fase de Instrução: - documentação bancária do BES, de fls. 544 a 601, 839 a 842 e 848 a 849; - documentação clínica de ME...; - documentação bancária da CGD, de fls. 609 a 610, 612, 616 a 772, 853 a 874 e 885 a 896; - documentação do IGFSS, IP, de fls. 835 a 846; - documento de fls. 882: declaração de venda, datada de 10/11/2005, de ME... declarando que vendeu a MA..., pelo preço de € 500,00 o recheio do imóvel sito na Rua A...; - Reinquirição de O...: declarou, em síntese ME..., ainda em vida, lhe confidenciou que se encontrava zangada com o filho e nora, em virtude de ter emprestado dinheiro ao filho para este adquirir uma casa, acordando com o mesmo que este lhe pagaria o Lar, o que este não fez. Mais referiu que a prestação do Lar ascendia a € 750,00 mensais e que ME... sempre pagou as prestações devidas. O arguido J..., durante um evento festivo ocorrido no Lar, aproximadamente no ano de 2002, reencontrou ME... e o marido desta, F..., pessoas que já conhecia por todos terem residido em África do Sul onde iniciaram e mantiveram uma relação de amizade. Desde essa altura, o arguido J... começou a frequentar o Lar com assiduidade para visitar ME... e o marido desta, continuando a fazê-lo mesmo após ME... ter ficado viúva. Referiu ainda que ME... esteve sempre lúcida e consciente, até ao primeiro internamento que antecedeu o seu falecimento e que sabia gerir o seu património, apercebendo-se que a mesma tinha uma relação próxima com o arguido J.... Acrescentou que ME... “era muito desconfiada, mas com o Sr. J... ela não era desconfiada”. ME... confidenciou-lhe ainda que foi com o arguido J... e com a sobrinha MA..., que também se deslocava ao Lar onde se encontrava ME..., ao BES, colocando-os como co-titulares da conta. Referiu ainda que houve alturas em que foi J... quem pagou o Lar e que, numa ocasião, a testemunha deslocou-se com ME... à residência sita na Rua A..., da qual ME... tinha a chave, e esta tirou do interior de um armário um grande maço de notas e, após ter questionado J... sobre o que vira, este disse-lhe que eram € 30 000,00. Posteriormente, J... disse-lhe que na residência da Rua A... apenas lá estavam € 18 000,00 e que alguém teria retirado o resto do dinheiro. Quando ME... foi internada no Hospital, o arguido J... disse à testemunha que aquela tinha € 6 000,00 no Lar que o arguido levou consigo. Numa ocasião a testemunha disse ao arguido J... que ME... não tinha pago o lar e este mostrou-se surpreendido por saber que ME... tinha dinheiro para o efeito, dizendo-lhe este que teriam sido as empregadas do Lar a retirar o dinheiro de ME..., o que foi de imediato refutado pela testemunha que lhe disse que as suas empregadas eram de confiança. Referiu ainda que, após o falecimento do marido de ME..., a assistente M... disse-lhe que o marido, aqui assistente, tinha sido deserdado, pois teve conhecimento que ME... havia vendido a casa sita na Rua A.... Concretizou que, por vezes, ME... saía do Lar acompanhada pelo arguido J... e diziam que iam visitar a sobrinha, a arguida MA.... Mais concretizou que ME... sempre esteve lúcida até três meses antes do primeiro internamento hospitalar, referindo que “ela esquecia-se das coisas mas não estava maluquinha” e referindo que estava capaz de assinar documentação/cheques. Por fim, declarou desconhecer quem efectuou o pagamento das despesas do funeral de ME... ou até se ME... deu o dinheiro ao arguido J.... - Inquirição de A.... Declarou, em síntese, ter trabalhado na casa de repouso “Dina”, tendo deixado de trabalhar nesse local em data que não pode concretizar, mas anterior ao falecimento do marido de ME.... Mais referiu que o arguido J... visitava assiduamente ME... e o marido, no Lar e, quando ME... se deslocava à residência na Rua A... acompanhada pela testemunha, para efectuar limpezas, da qual tinha a chave, era o arguido J... quem as transportava, concretizando que, nessa altura, J... não tinha a chave da casa. Descreveu ME... como uma pessoa lúcida e perfeitamente capaz de gerir os seus bens. Foi esta a prova produzida. * Fazendo uma análise crítica da prova até então recolhida, importa apurar se existem indícios suficientes dos quais resulte uma possibilidade razoável de aos arguidos vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.Ora, face dos elementos probatórios supra mencionados desde já diremos que podem dar-se como indiciados os factos que, pelos assistentes, são referidos nos artigos 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 14º, 15º, 20º, 21º, 22º, 23º, 25º, 26º, 27º, 32º, 40º, 47º, e 52º do seu requerimento de abertura de instrução. Tal factualidade não é, no entanto, suficiente para considerar ser a conduta dos arguidos subsumível ao crime de abuso de confiança. Na verdade, não se mostra sequer suficientemente indiciado que: - ME... ficou impossibilitada de gerir o seu património cerca de dois anos antes do seu falecimento nem que a mesma, à data do seu falecimento, não se encontrava lúcida; - que o recheio do imóvel sito na Rua A..., nº. 10, 1º Esqº., em Corroios não foi vendido ou doado à arguida MA...; - que ME... possuía cerca de € 50 00,00 em numerário, guardados no imóvel sito na Rua A..., nº. 10, assim como que, à data da sua morte, possuía cerca de € 5 000,00 a € 6 000,00 em dinheiro, guardados no seu quarto, no Lar onde residia, e que tais quantias foram retiradas pelo arguido J...; - que os arguidos se apoderaram de dinheiro e bens de ME..., sem o conhecimento e consentimento desta e contra a sua vontade. E a falta de indiciação destes supra referidos factos deve-se à circunstância dos mesmos não encontrarem sustentação na prova que foi produzida, quer na fase de inquérito, quer na fase de instrução. Senão, vejamos. Desde logo, pese embora a testemunha O... tivesse referido, quando inquirida na fase de inquérito, que ME... sempre se manteve lúcida e responsável pela administração do seu património mas até cerca de dois anos antes do seu falecimento (situando tal situação até início do ano de 2012, tendo como referência a data do falecimento daquela, em 05/02/2014), em fase de instrução, veio a mesma testemunha a referir que ME... se manteve lúcida e capaz de gerir o seu património até cerca de três meses antes do seu primeiro internamento hospitalar (o qual ocorreu em Junho de 2013, logo, situando essa falta de capacidades de gerir o património em Março de 2013), mas, ainda assim concretizou que, nessa altura, ME... “esquecia-se das coisas mas não estava maluquinha. Ela estava capaz de assinar documentação/cheques”. Por outro lado, da documentação clínica junta aos autos, referente aos períodos dos dois internamentos hospitalares a que a mesma foi sujeita antes do seu falecimento, resulta que, em ambas as ocasiões, ME... encontrava-se lúcida e orientada. Resulta assim evidente, na falta de qualquer outra prova, e perante a apontada fragilidade do depoimento da testemunha O... e da documentação clínica junta aos autos, que o Tribunal não pode dar como indiciado que ME... ficou impossibilitada de gerir o seu património cerca de dois anos antes do seu falecimento nem, tão pouco, que a mesma, nos dias que antecederam o seu falecimento, não se encontrava no uso pleno das suas capacidades mentais. Relativamente à venda do recheio do imóvel sito na Rua A..., nº. 10, em Corroios, pese embora a convicção dos assistentes de que o mesmo não foi vendido ou doado por ME..., o que é certo é que resulta da conjugação dos documentos juntos a fls. 73 a 76, 170 a 171 e 822, que se indicia que, em 10/11/2005, ME... vendeu à arguida MA..., não apenas o imóvel, como também o recheio nele existente, razão pela qual, a convicção os assistentes, que não assenta em qualquer elemento de prova objectivo, acaba por ser infirmada pela prova documental junta aos autos e que não foi, de algum modo, posta em causa no decurso dos autos, tanto mais que, da prova produzida, é pacífico que, à data da concretização do negócio da venda do imóvel, tanto ME... como o seu marido estavam perfeitamente capazes de gerir o seu património. É certo que as testemunhas O... e A... referiram que, as vezes que se deslocaram à residência sita na Rua A..., nº. 10, com a entretanto falecida ME..., esta se comportava como proprietária da casa. Todavia, não foi feita qualquer prova sobre o período temporal em que tal aconteceu (se antes, se depois de 10/11/2005 – data da celebração da escritura de compra e venda do imóvel em causa) e, mesmo admitindo a possibilidade de tal ter ocorrido após a formalização da venda, nenhuma prova foi produzida que permitisse, de alguma forma, excluir a possibilidade de a adquirente (aqui arguida MA...) ter permitido ME... de frequentar a residência que já fora desta, enquanto permanecesse no Lar. No que concerne às quantias monetárias que os assistentes referem encontrarem-se no interior do imóvel sito na Rua A... e no interior do Lar, igualmente se impõe reconhecer que a prova desta factualidade, é muito frágil e não permite ao Tribunal dá-la como indiciada. Na verdade, a única prova que foi produzida acerca desta matéria factual assentou no depoimento da testemunha O..., que referiu que, em tempos, viu um maço de notas no imóvel sito na Rua A... e que o arguido lhe referiu que ME... tinha entre € 5 000,00 a € 6 000,00 no Lar onde residia. Os arguidos optaram, legitimamente, por não prestar declarações e nada mais se provou acerca desta factualidade, não permitindo também a documentação bancária junta aos autos, mais concretamente os extractos bancários da conta de que o arguido J... era titular, da CGD, indiciar que os depósitos nela efectuados correspondiam a dinheiro pertencente a ME.... Encontra-se, sim, indiciado, em face da recolha efectuada dos elementos fornecidos pela entidade bancária que detinha a conta titulada pela falecida ME... e pelos arguidos, e da entidade bancária que detinha a conta titulada pelo arguido J... que: - as contas bancárias do Novo Banco (BES) com o nºs 000... e 0002... eram co-tituladas por ME..., MA... e J..., em regime de conta solidária, desde 26/02/2008; - a conta bancária da Caixa Geral de Depósitos com o NIB 0035..., conta para a qual foram efectuadas as transferências bancárias denunciadas, era co-titulada por J... e ML... tendo a mesma sido cancelada em 25 de Novembro de 2014; - os cheques n.º 3303882480 emitido em 29/01/2014, n.º 6503882498 emitido em 02/02/2014 e n.º 3803882501 emitido em 04/03/2014 foram depositados na conta bancária com o NIB 0035..., co- titulada por J... e ML... - tais cheques foram descontados da conta titulada por ME... e pelos arguidos, com os seguintes valores e datas: € 4.243 em 05/02/2014 (dia do óbito da falecida ME… com data de emissão 29/01/2014), € 2.393 em 06/02/2014 (dia seguinte ao óbito com data de emissão de 02/02/2014) e € 1.600 em 10/03/2014; - dessa mesma conta bancária do Novo Banco, titulada por ME... e pelos arguidos, foram efectuadas transferências para a conta da CGD, titulada pelo arguido J..., nos seguintes montantes e datas: € 18.500, em 27/06/2013, € 15.000, em 01/07/2013 e € 5.000, em 03/12/2013; - Todo o dinheiro existente na conta do Novo Banco titulada pela falecida ME... e pelos arguidos era proveniente unicamente de rendimentos/pensões/poupanças auferidas pela própria. Ora, resultando indiciado que as quantias monetárias que constituíam o saldo da conta bancária do BES, titulada pela falecida ME... e pelos arguidos, eram, apenas e tão só, provenientes dos rendimentos/pensões auferidas por ME..., não resultando qualquer prova de que qualquer dos arguidos ali tivesse efectuado qualquer depósito, tais quantias pertenciam, em exclusivo, à herança de ME... (cfr. artigo 516º do C. Civil). Tal conta bancária, ainda que co-titulada por ME... e pelos arguidos, e com natureza solidária, a verdade é que a presunção de meação decorrente de tal tipo de depósito se mostra ilidida, porquanto os montantes ali depositados não foram quantias obtidas pelos arguidos, logo, não lhe eram pertencentes. Por outro lado, quando o arguido J... transferiu as quantias monetárias supra referidas assim como procedeu ao levantamento dos supra referidos cheques, depositando tais valores na conta bancária de que era titular, conta essa exterior à titularidade da co-titular ME..., colocou tais quantias na sua disponibilidade exclusiva. Acresce ainda que não existe junto aos autos qualquer testamento, doação ou qualquer outro meio legal de tradição dos bens que confira o direito ao arguido de actuar como descrito. Mas serão estes factos suficientes para concluir, ainda que de forma indiciária, que o arguido J..., ou até mesmo a arguida MA..., inverteram o título de posse e apropriaram-se do dinheiro existente na conta bancária co-titulada por ME..., sem o conhecimento ou autorização desta? Somos do entendimento que não, mesmo após fazermos apelo às regras da lógica e da experiência comum. É certo que são elevados os montantes monetários levantados da conta co-titulada por ME... e pelos arguidos, num período em que ME... já estaria, admite-se, algo debilitada pela doença (levantamentos de Junho, Julho e Dezembro de 2013), assim como são elevados os montantes titulados pelos cheques descontados da mesma conta bancária, logo após o falecimento de ME.... Todavia, resulta indiciado nos autos que ME... mantinha uma forte ligação de amizade e de grande proximidade com o arguido J..., e até mesmo com a arguida MA..., únicas pessoas que a visitavam no Lar onde residia e, em especial, o arguido J..., pessoa com quem já havia mantido uma relação próxima na África do Sul. E esta relação de proximidade com o arguido J... gerou-se após o reencontro ocorrido no Lar entre o arguido e ME... e o marido, ainda em vida desde, ou seja, desde, sensivelmente, o ano de 2002. Resultou do depoimento de O... que o arguido J... prestava todo o seu auxílio e acompanhamento a ME... e F… a partir do momento em que os mesmos entraram no lar de idosos, recusando aqueles inclusive o acompanhamento pelo filho, o aqui assistente, face ao conflito familiar existente. E esta proximidade e acompanhamento passavam não apenas pelo apoio emocional e pessoal como também pela administração dos bens, resultando dos autos que as contas bancárias do Novo Banco passaram a ser co-tituladas pelos arguidos em 26 de Fevereiro de 2008 (cfr. fls. 106 a 120), pouco tempo após o falecimento do marido de ME... e numa altura em que esta estava perfeitamente lúcida e capaz de gerir o seu património, permitindo desta forma que os arguidos tivessem acesso e efectuassem movimentações das mesmas. Mais resulta indiciado que ME..., era uma pessoa lúcida e capaz, decidida e autónoma, que tomava as suas decisões sozinha (desconfiada, como referiu O..., mas nunca em relação ao arguido J...), ou seja, resulta fortemente indiciada a total confiança de administração financeira de ME... nos arguidos, e que perdurava desde 26/02/2008. Assim, suscitam-se dúvidas se efectivamente ME... pretendia que os arguidos fossem os exclusivos beneficiários do dinheiro, em detrimento dos direitos do seu filho, o aqui assistente, com quem se encontrava de relações cortadas, e se os arguidos não terão agido sobre ordens e instruções dadas antes do óbito por ME... na sequência do conflito familiar grave existente entre aquela e o assistente, seu filho, conflito este tão intenso que F... recusou ver o assistente quando se encontrava num estado de saúde grave, bem assim ME... não pretendeu sequer que fosse comunicado o óbito daquele ao filho. Perante o ilícito criminal aqui em apreço, a ilegitimidade da apropriação decorre da circunstância de o agente, contra a vontade do legítimo possuidor, integrar a coisa entregue no seu património, de forma arbitrária, e com o propósito de não a restituir ou de lhe dar um destino diverso daquele que lhe era destinado, existindo, assim, inversão do título de posse da coisa efectuada pelo agente “que recebera a coisa uti alieno, e que passa, em momento posterior, a comportar-se relativamente a ela uti dominu”. Não logrou, porém, apurar-se a razão pela qual foram efectuados os aludidos levantamentos monetários e os descontos dos cheques supra referidos da conta de que ME... era co-titular com os arguidos. Em suma, não logrou apurar-se a ilegitimidade da apropriação por parte dos arguidos, e, consequentemente, a intenção e vontade dos mesmos de se apoderarem de valores contra a vontade de ME..., sendo que, na falta de qualquer outra prova que se afigurasse pertinente, apenas os arguidos poderiam explicar. Sucede, porém, que os mesmos exerceram, legitimamente, o direito ao silêncio. Se é certo que os arguidos não podem ser prejudicados por exercerem tal direito, nem, tão pouco, podem ser beneficiados com o seu silêncio, também é certo que, num processo penal de estrutura acusatória, não é aos arguidos que compete provar a sua inocência mas antes, ao Ministério Público (no caso de deduzir acusação) ou aos assistentes (no caso de pretenderem a pronúncia dos arguidos) que compete provar a sua culpabilidade. * Por tudo quanto vimos de expor e considerando a inexistência de indícios suficientes da prática, pelos arguidos de factos subsumíveis ao tipo de crime de abuso de confiança ora em apreço, resta apenas concluir pela prolação de despacho de não pronúncia.No presente caso, afastada a responsabilidade criminal dos arguidos. A actuação destes, decorrente do prejuízo causado ao assistente, único e universal herdeiro da falecida ME... deverá ser avaliada, discutida e apreciada nos meios cíveis. Não se deve esquecer o princípio da subsidiariedade do direito penal, segundo o qual a intervenção do direito criminal só é legítima quando a tutela dos bens jurídicos em causa não puder ser garantida por outras vias que implicam custos menos drásticos – Ac. STJ de 1/7/98, CJ-STJ, tomo II, pg. 226. Assim, ponderando tudo exposto, entende-se ser manifesto que os elementos disponíveis nos autos não são suficientes para submeter os arguidos a julgamento, existindo fortíssimas probabilidades da sua absolvição futura. Impõe-se, por esta razão, proferir despacho de não pronúncia. * IV – DecisãoNesta conformidade, por tudo o exposto, decide o Tribunal, não pronunciar os arguidos J... e MA... pela prática do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º do Código Penal que lhes é imputado pelos assistentes no requerimento de abertura de instrução, nem pela prática de qualquer outro. * Custas a cargo dos assistentes nos termos do disposto no artigo 515º, nº1, al. a), do C.P.P, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) Ucs».* DO DIREITOO que está em causa, no recurso interposto, é apenas a decisão de não pronunciar os arguidos pelo crime de abuso de confiança p. e p. pelos artº 202º al. b) e 205º nº 1 e 4 al. b) do cód. penal, com base nos factos que foram apurados. Segundo os recorrentes, não se trata de insuficiência de factos, mas de deficiente interpretação jurídica dos mesmos, quanto à prova indiciária deles decorrente. Os assistentes, V... e M..., insurgem-se contra a não pronúncia pelo seguinte: - “Os recorrentes aceitam o elenco de prova recolhida declarada pelo tribunal a quo na decisão instrutória, quer quanto à recolhida no inquérito quer quanto à recolhida na instrução, aceitando-se ainda o que o tribunal a quo refere como prova resultante das inquirições das testemunhas no âmbito do inquérito e até mesmo na instrução, discordando apenas do que o tribunal a quo entende não estar indiciado e da não suficiência dos indícios para pronunciar os arguidos, (cls. 3). - A decisão do tribunal a quo padece de vício de raciocínio lógico e subestimação dos elementos objectivos constantes dos autos, denunciadores de actos de apropriação ilegítima por parte dos arguidos, (cls. 4). - Usando a prova indiciária recolhida, e que o tribunal cita, os recorrentes entendem que não existe dúvida que a falecida e o seu único herdeiro, aqui recorrente, não deram autorização aos arguidos para fazerem os levantamentos e transferências em causa nos autos nem para fazerem seu esse dinheiro e o existente no lar e na casa sita na Rua A..., entendendo, pelo contrário, que resulta indiciado que não o fizeram nem essa foi a sua vontade, (cls. 5). - Também resulta indiciado que existia dinheiro no lar e na casa sita na Rua A..., qual o seu montante e que era da propriedade da falecida, ao qual os arguidos tiveram acesso e tinha acesso exclusivo, tendo ficado com ele, apropriando-se dele, indevidamente, (cls. 6). - E resulta indiciado que ME... estava pelo menos debilitada quando os arguidos começaram a movimentar dinheiro, transferindo-o e levantando-o”, (cls. 7). Defendem que existe nos autos prova indiciária suficiente para levar os arguidos a julgamento e eventualmente virem a ser condenados. No despacho de não pronúncia dos arguidos, a Srª Juíza “a quo” fundamentou de forma exaustiva a sua decisão, decorrendo da análise da fase instrutória, que o tribunal procurou, através dos meios disponíveis, recolher elementos indiciários conducentes a eventual pronúncia ou não dos arguidos, (aliás, os recorrentes o reconhecem no seu recurso), todavia, ainda que se vislumbrem indícios de eventual apropriação excessiva de bens, eles são francamente muito frágeis, permitindo-nos qualificá-los, (ainda que de forma pleonástica), de “meros indicíos de indicíos” e não os necessários indícios fortes que permitam um juízo de prognose positiva quanto a eventual condenação em julgamento. Sobre as diversas teorias quanto ao que se deve entender por prova indiciária, louvamo-nos na boa fundamentação expressa no despacho recorrido, dispensando-nos de repetir o que ali se escreveu, que inteiramente subscrevemos. O que se impõe avaliar são efectivamente as provas obtidas e saber até que ponto elas são ou não suficientes para pronunciar os arguidos pelo crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artº 205º do cód. penal. Neste ponto, o despacho recorrido não nos merece qualquer reparo ou censura, porquanto o Tribunal “a quo” analisou de forma detalhada os factos objectivamente indiciados e fez deles uma análise crítica pragmática, consentânea com as regras de experiência comum e cuja conclusão se mostra igualmente acertada. A grande falácia da argumentação dos assistentes, quando concluem e afirmam que nem o legítimo herdeiro, nem a falecida, sua mãe, deram autorização para que os arguidos levantassem o dinheiro ou ficassem com bens móveis na casa adquirida, reside precisamente na total ausência de prova de que a ME... não tivesse querido doar e/ou pagar serviços e apoio prestado pelos arguidos enquanto esteve no Lar. Não se pode ignorar o grave contencioso entre o assistente V... e os seus pais, que durava há mais de uma década, ao ponto deste ter deixado de pagar o Lar e nem sequer queriam que ele fosse informado da morte do pai. O recorrente não só deixou de pagar as despesas como nunca mais os visitou, situação que não é normal. Serve esta observação para reflectir sobre a forte possibilidade da falecida ME... querer realmente dissipar os seus bens, doando-os, pagando o apoio de terceiros, que eram amigos de longa data e vendendo-os enquanto esteve nas suas faculdades. Não foi por acaso que terá aberto contas solidárias com os arguidos, quando ninguém questionava as suas faculdades físicas e psíquicas, que de acordo com prova testemunhal e relatórios médicos, só terá ficado reduzida escassos meses (3) antes de falecer em 2014. Ao contrário do que alegam os recorrentes, não é possível considerar sequer, suficientemente indiciado que, ME... tenha ficado impossibilitada de gerir o seu património cerca de dois anos antes do seu falecimento, nem que a mesma, à data do seu falecimento, não estivesse suficientemente lúcida para saber o que queria. Como se refere no despacho recorrido, não ficou igualmente indiciado que: - “O recheio do imóvel sito na Rua A..., nº. 10, 1º Esqº., em Corroios não fosse vendido ou doado à arguida MA...; - ME... possuísse cerca de € 50.0,00 em numerário, guardados no imóvel sito na Rua A..., nº. 10, assim como que, à data da sua morte, possuía cerca de € 5.000,00 a € 6.000,00 em dinheiro, guardados no seu quarto, no Lar onde residia, e que tais quantias foram retiradas pelo arguido J...; - Os arguidos se apoderaram de dinheiro e bens de ME..., sem o conhecimento e consentimento desta e contra a sua vontade”. Ainda que no inquérito a testemunha O... tivesse referido que a ME... esteve lúcida e capaz de administrar os seus bens até dois anos antes do primeiro internamento, chamada a clarificar este ponto, esclareceu que só piorou cerca de 3 meses antes daquela ocorrência, mas referindo que tal debilidade se resumia a isto: “esquecia-se das coisas mas não estava maluquinha. Ela estava capaz de assinar documentação/cheques”. Por outro lado, da documentação clínica junta aos autos, referente aos períodos dos dois internamentos hospitalares a que a mesma foi sujeita antes do seu falecimento, resulta que, em ambas as ocasiões, ME... encontrava-se lúcida e capaz. Mais resulta indiciado que ME..., era uma pessoa que tomava as suas decisões sozinha e que as pessoas em quem mais confiava eram o arguido J... e a sobrinha (co-arguida), MA..., cuja amizade com aquele remontava aos tempos em que estiveram na África do Sul ao ponto de os tornar co-titulares das suas contas e lhes entregar a administração financeira desde 26/02/2008. É um facto que não existe junto aos autos qualquer testamento, doação ou qualquer outro meio legal de tradição dos bens que confira o direito ao arguido de actuar como descrito, todavia também não existe a mínima prova indiciária de que a ME... não tivesse querido dar-lhe aqueles bens, por retribuição dos cuidados e apoio material e afectivo que lhes dispensou desde 2002 até à sua morte em 2014, por amizade de longa data ou por que simplesmente quisesse subtraí-los ao património do único herdeiro, dado que o corte de relações com o filho e ora assistente, assumia contornos de alguma gravidade, ao ponto de F... não querer ver o filho quando estava prestes a morrer e a ME..., ter querido omitir do filho, a morte do seu próprio pai. É razoável concluir, como o fez o Tribunal recorrido, pela existência de dúvidas sobre se efectivamente ME... pretendia que os arguidos fossem os exclusivos beneficiários do dinheiro, em detrimento dos direitos do seu filho, com quem se encontrava de relações cortadas, e se os arguidos não terão agido sobre ordens e instruções dadas antes do óbito por ME.... Os indícios exigidos de imputação do crime de abuso de confiança neste contexto dissipam-se, dado que a ilegitimidade da apropriação decorre da circunstância de o agente, contra a vontade do legítimo possuidor, integrar a coisa entregue no seu património, de forma arbitrária, e com o propósito de não a restituir ou de lhe dar um destino diverso daquele que lhe era destinado, existindo, assim, inversão do título de posse da coisa efectuada pelo agente, o que não se indicia no caso. Diz-nos o artº 205º do cód. penal: «1. Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido (...) (…) 4. Se a coisa referida no nº 1 for: a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias; b) De valor consideravelmente elevado, o agente e punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. 5 – Se o agente tiver recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos». O crime de abuso de confiança apresenta como elementos típicos: - Recebimento lícito de coisas móveis ou valores por título que produza para o agente a obrigação de restituir a mesma coisa ou valor equivalente, ou de lhe dar destino determinado; - No descaminho de tais coisas por parte de quem a recebeu; e - Na existência de prejuízo ou perigo dele para o proprietário ou detentor dos bens móveis ou valores; e ainda, - Um elemento subjectivo consubstanciado no facto do agente saber que tais coisas ou bens se encontram em seu poder por título que implica a obrigação de restituir e ainda assim querer desencaminhá-lo em prejuízo do seu proprietário ou detentor; - Ter pleno conhecimento de que a sua conduta constitui crime, (Cfr. Ac. STJ de 24.06.93 in JP Simas Santos e Leal Henriques, 560). Em conclusão, ressalta à evidência que o Tribunal recorrido fez uma correcta interpretação e apreciação da prova carreada, recolhida e constante dos presentes autos - quer de inquérito, quer de instrução ao caso sub júdice, - resultando evidente que a srª Juíza de Instrução fez um esforço na fase de instrução para apurar a existência ou não de indícios, sem que os tivesse logrado obter. No entanto, apesar de se mostrarem insuficientes os indícios de responsabilidade criminal, para levar os arguidos a julgamento, tal não exclui a possibilidade de se averiguar pelos meios civis, a existência de outro tipo de responsabilidade, pois não se tendo demonstrado que o assistente foi legalmente deserdado pelos autores da herança, importa saber se os bens alienados ofenderam a legítima, em conformidade com as disposições legais previstas nos artº 2156º e seguintes do cód. civil, situação que não é da competência material deste Tribunal. Pelo exposto, o recurso é de improceder. * DECISÃONestes termos, acordam os juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelos assistentes V… e M.... * Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cinco unidades de conta) - artº 513º nº 1 do cód. penal.* Lisboa 21 de Março de 2018A. Augusto Lourenço João Lee Ferreira |