Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ILÍDIO SACARRÃO MARTINS | ||
Descritores: | CONVENÇÕES INTERNACIONAIS TRANSPORTE AÉREO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/11/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | - As normas de direito internacional prevalecem sobre as normas de direito ordinário, tendo em conta o disposto no artigo 8º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português. - A Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, feito em Montreal em 28 de Maio de 1999, e aprovada pelo Decreto nº 39/2002, de 27 de Novembro (Convenção de Montreal) sobrepõe-se ao Regulamento (CE) nº 261/2004, de 11 de Fevereiro de 2004. (sumário elaborado pelo relator) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I - RELATÓRIO M... intentou acção com processo comum contra I..., com sede ..., pedindo a condenação da ré: (i) no ressarcimento do valor de € 1.113,48, referente a passagem aérea comprada junto da ré ou, em alternativa, o ressarcimento do valor da passagem não utilizada, no valor de € 556,74; (ii) no pagamento do valor de € 738,00, a título de preço pago à T... para compra de passagem do Rio de Janeiro para Lisboa; (iii) no pagamento de uma indemnização de € 10.000,00 a título de danos morais, pelo abalo psíquico e moral sofrido pela autora. Alegou, em síntese, que é cidadã brasileira e que comprou à ré uma passagem aérea entre Lisboa e Rio de Janeiro, Brasil, e regresso, com escala em Madrid, Espanha, para os dias 18 de Dezembro de 2012 e 13 de Janeiro de 2013. Ao apresentar-se no aeroporto do Rio de Janeiro para regressar a Portugal, país onde residia legalmente, foi impedida de embarcar por funcionários da ré com fundamento na falta de requisitos dos documentos que apresentava e que não permitiam entrar em Espanha. Contudo, a autora possuía todos os documentos necessários para entrar em Portugal, incluindo autorização de residência, pelo que a actuação foi ilícita. Face à posição da ré, foi obrigada a contratar com a companhia T... o transporte para Portugal, o que lhe provocou prejuízos. A ré contestou, invocando a prescrição do direito de indemnização da autora ao abrigo do Decreto 39/2002, de 27 de Novembro, que aprova a Convenção de Montreal, pelo decurso do prazo de 2 anos. Reconhece que não permitiu que a autora embarcasse no voo, apesar da mesma ter bilhete, por não ter os documentos necessários para entrar em Espanha, o que, se acontecesse, obrigava a ré a suportar a viagem de volta ao Brasil. Convidada a pronunciar-se sobre a excepção peremptória de prescrição, a autora veio dizer que o diploma citado pela ré não prevê a situação de recusa de embarque, sendo a situação contemplada pelo Regulamento (CE) 261/2004, pelo que o prazo de prescrição é de 20 anos. Caso não seja este entendimento, o artigo 498º do Código Civil prevê o prazo de prescrição de 3 anos, o que seria aqui aplicável. No despacho saneador foi julgada procedente a excepção peremptória de prescrição do direito de indemnização pelos prejuízos invocados pela autora, absolvendo a ré do pedido. Não se conformando com tal decisão, dela recorreu a autora, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES: 1ª – A r. sentença de piso julgou procedente a excepção peremptória de prescrição do direito de indemnização arguida pelo réu, ora recorrido. 2ª - A excepção contida na contestação do réu, ora recorrido, carece de fundamento jurídico, uma vez que o Decreto-Lei 39/2002 (Convenção de Montreal) não é aplicável ao caso concreto desta acção pelos motivos expostas acima, e ainda, porque o referido diploma não possui nenhuma previsão sobre a recusa de embarque, somente possui previsão sobre atrasos e danos a pessoas e mercadorias. 3ª - Importante esclarecer que existe uma norma específica para o caso de recusa de embarque, qual seja, o Regulamento (CE) nº 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Fevereiro o qual estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos. Portanto, este regulamento é posterior ao Decreto-Lei 39/2002 e prevê casos de recusa de embarque, o que novamente contraria a r. sentença de piso, uma vez que a Convenção de Montreal não pode ser a norma aplicada neste caso. Portanto, neste caso deve-se invocar o princípio da especialidade, o qual aplica-se a norma específica em detrimento da norma geral, qual seja, o Regulamento (CE) nº 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Fevereiro. 4ª - O ordenamento jurídico nacional possui previsão quanto a prescrição para a responsabilidade civil contratual no artigo 309º do Código Civil o qual prevê um prazo vinte anos, que é o caso desta acção, portanto, não há que se falar em prescrição. Contudo, caso não seja este o entendimento deste Eg. Tribunal quanto ao tipo de responsabilidade existente entre a recorrente e o recorrido, o art. 498º do Código Civil prevê o prazo prescricional de três anos em casos de responsabilidade aquiliana (ou extracontratual). O referido prazo teve início em 14 de Janeiro de 2013, e a presente acção foi distribuída em 26 de Novembro de 2015, sendo assim, não há que se falar em prescrição do direito de indemnização requerido nesta acção, seja quanto a responsabilidade aquiliana (art. 498º) ou quanto a responsabilidade contratual (artº 309º). 5ª - A jurisprudência corrobora o entendimento da recorrente, conforme os julgados citados nesta apelação, ou seja, mais um motivo para a r. sentença de 1ª instância ser reformada por este Eg. Tribunal. 6ª - Ora N. Desembargadores, qual seria a relevância do Regulamento (CE) nº 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Fevereiro no ordenamento jurídico português, se no caso em tela, foi utilizado uma norma genérica para fundamentar o julgamento da lide? Repita-se, o Regulamento do Parlamento Europeu possui previsão específica sobre recusa de embarque, conforme inclusive foi verificado pelo MM. Juízo de 1º grau. 7ª - Diante do acima exposto, resta claro que o Decreto-Lei 39/2002 de 27 de Novembro (Convenção de Montreal) não é o ordenamento jurídico aplicável a esta acção, sendo assim, a excepção arguida pelo recorrido não merece prosperar, devendo, data venia, ser reformada a r. sentença de piso, e consequentemente, seja determinada a abertura da fase instrutória para que a recorrente possa comprovar os factos alegados, e que o mérito da presente acção seja apreciado pelo MM. Juízo a quo, por ser esta a medida da mais lídima justiça. Não houve contra-alegações. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II -FUNDAMENTAÇÃO A) Fundamentação de facto Mostra-se assente a seguinte matéria de facto: 1º - No dia 11 de Novembro de 2012, a autora e o seu namorado compraram duas passagens aéreas directamente no balcão de atendimento da ré localizada no aeroporto de Lisboa, para o trajecto Lisboa – Rio de Janeiro, bem como Rio de Janeiro – Lisboa, ambos com escala em Madrid, para os dias 18 de Dezembro de 2012 e 13 de Janeiro de 2013, respectivamente. 2º - No dia 18 de Novembro de 2012, a autora e o seu namorado embarcaram no voo para o Rio de Janeiro sem problemas. 3º - No dia 13 de Janeiro de 2013, a autora apresentou-se no aeroporto do Rio de Janeiro e foi impedida de embarcar no voo da ré com fundamento na falta de documentos necessários para entrada no território europeu. 4º - Em consequência do facto referido em 3º, a autora viajou para Lisboa num voo da companhia T...
B) Fundamentação de direito A questão colocada e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, consiste em saber se ocorreu a prescrição do direito à indemnização peticionado pela autora. A apelante insurge-se contra a aplicação feita na decisão recorrida acerca da Convenção de Montreal, referindo que se aplica o Regulamento (CE) nº 261/2004, de 11 de Fevereiro de 2004. A acção foi intentada tendo como fundamento da responsabilidade civil contratual, já que a autora fundamenta o pedido na celebração de um contrato de transporte e na recusa pela ré de executar a prestação a que se tinha obrigado e que consistia no transporte da autora do Brasil para Portugal. As normas de direito internacional prevalecem sobre as normas de direito ordinário, tendo em conta o disposto no artigo 8º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português”. Sobre o âmbito de aplicação, o artigo 1º nº 1 daquela Convenção preceitua que “ a presente Convenção aplica-se a todas as operações de transporte internacional de pessoas, bagagens ou mercadorias em aeronave efectuadas a título oneroso. A presente Convenção aplica-se igualmente às operações gratuitas de transporte em aeronave efectuadas por uma empresa de transportes aéreos”. O artigo 35º (Prescrição) dispõe o seguinte: 1 - O direito à indemnização extinguir-se-á se não for intentada uma acção no prazo de dois anos a contar da data da chegada ao destino, da data em que a aeronave deveria ter chegado ou da data da interrupção do transporte. 2 - O método de cálculo deste prazo será determinado pela lei do tribunal que conhece a acção. O artigo 29º da Convenção (Fundamento dos pedidos), estabelece o seguinte: No transporte de passageiros, bagagens e mercadorias, as acções por danos, qualquer que seja o seu fundamento, quer este resida na presente Convenção, em contrato, em acto ilícito ou em qualquer outra causa, só podem ser intentadas sob reserva das condições e limites de responsabilidade previstos na presente Convenção, sem prejuízo da determinação de quais as pessoas com legitimidade para a acção e de quais os direitos que lhes assistem. Em tais acções, as transportadoras não podem ser condenadas no pagamento de indemnizações punitivas, exemplares ou outras indemnizações não compensatórias. Concordamos com a douta sentença quando, em notável síntese, refere que “esmiuçando a norma, verificamos que a mesma admite acções por danos resultantes do transporte de passageiros, bagagens e mercadorias, decorrente de quatro fundamentos: - em primeiro lugar, com os fundamentos que constam expressamente da Convenção (indemnização por morte e lesão corporal, por avarias de bagagens e danos a mercadorias e atrasos); - em segundo lugar, com fundamento em contrato (responsabilidade contratual); - em terceiro lugar em ato ilícito (responsabilidade civil extracontratual); - por último, residualmente, em qualquer outra causa. Ainda que a acção tenha qualquer um destes fundamentos, as acções só podem ser intentadas sob reserva das condições e limites da responsabilidade previstos na presente convenção. Isto que dizer que a Convenção pretende que as normas relativas às condições e limites da responsabilidade (previstas na Convenção) tenham aplicação em qualquer acção de responsabilidade civil emergente de transporte de passageiros, bagagens e mercadorias, ainda que fora das situações da indemnização por morte e lesão corporal, por avarias de bagagens e danos a mercadorias e atrasos. A norma relativa à prescrição, prevista no artigo 35º, diz respeito a condições e limites de responsabilidade? Temos que concluir que sim. Efectivamente, a prescrição consiste num instituto que mediante alguém se pode opor ao exercício de um direito pelo facto deste não ter sido exercido durante um prazo definido por lei. Impondo um determinado prazo de prescrição, a lei está a condicionar e a limitar as condições em que alguém é responsável por qualquer dano e às quais pode aceder ao tribunal. Dependendo das posições doutrinais, pode-se qualificar a prescrição como um facto extintivo da obrigação ou modificativo (porquanto transforma uma obrigação civil numa obrigação natural). Consequentemente, por se tratar de uma norma cujo escopo é limitar e condicionar a responsabilidade da transportadora aérea, a mesma é directamente aplicável a todas as acções decorrentes do transporte de passageiros, bagagens e mercadorias, ainda que fora das situações expressamente previstas na Convenção. Destarte, tendo a presente acção com fundamento a responsabilidade civil contratual (resultante da recusa de embarque) é aplicável o prazo de dois anos de prescrição, a contar da data de chegada ao destino, da data em que a aeronave deveria ter chegado ou da data da interrupção do transporte, nos termos do artigo 35º da Convenção. Tendo em conta a presente configuração do direito aplicável, importa tirar conclusões no caso concreto. Relativamente ao início do prazo de prescrição, não temos dúvida em indicar o dia 13 de Janeiro de 2013, por ser o dia em que ocorreu a interrupção do transporte. Deste modo, caso não viesse a ocorrer qualquer circunstância que suspendesse ou interrompesse o prazo de dois anos, a prescrição ocorreria no dia 14 de Janeiro de 2015 (artigo 279º, alínea c) do Código Civil). Por outro lado, verifica-se que a acção só foi intentada no dia 26 de Novembro de 2015, tendo a ré sido citada no dia 2 de Dezembro de 2015. Não se vislumbra qualquer circunstância que suspenda ou interrompa o prazo de prescrição, nomeadamente as que constam dos artigos 318º a 327º do Código Civil). Deste modo, consideramos que a pretensão indemnizatória da autora é inviável, porquanto ainda que a mesmo lograsse provar os factos que alega mostrar-se-iam decorridos os prazos que possibilitam a ré recusar o cumprimento da prestação (artigo 304º do Código Civil)”. Alega a autora, ora apelante que é aqui aplicável, não a Convenção de Montreal, mas, por ser mais recente, o Regulamento (CE) nº 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) nº 295/91. Mais uma vez, a douta sentença, com acerto e de forma sintética, decidiu que “A eventual sobreposição de diplomas não se resolve, a nosso ver, com a consideração simplicista do regime mais recente, uma vez que estamos perante normas constantes de convenções internacionais ratificadas por Portugal e, por outro lado, perante normas emanadas das instituições europeias, tendo a primeira carácter mais alargado que a segundo. Ainda assim, admitimos que as regras relativas ao estabelecimento de um prazo curto de prescrição sejam compatíveis com as disposições do Regulamento. Independentemente da complexidade de um eventual conflito entre estes dois diplomas, parece-nos que a questão não se põe nestes autos. Na verdade, consta do artigo 1º do Regulamento que o mesmo visa estabelecer os direitos mínimos dos passageiros, em caso de: a) Recusa de embarque contra a sua vontade; b) Cancelamento de voos; c) Atraso de voos. A autora alega que a ré recusou-lhe o embarque. Contudo, analisando as normas constantes do Regulamento percebe-se que a recusa de embarque mencionada no diploma diz respeito a situações operacionais da própria transportadora aérea (v.g. sobrelotação), daí que estabelece obrigações para a companhia aérea de protecção dos consumidores (artigo 4.º), nomeadamente negociação de lugares, assistência e indemnização. Concluímos, assim, que a recusa de embarque não abarca as situações de recusa de embarque motivada por razões burocráticas não relacionadas com a empresa. Com efeito, o artigo 2º, alínea j) define Recusa de embarque como a recusa de transporte de passageiros num voo, apesar de estes se terem apresentado no embarque nas condições estabelecidas no n.º2 do artigo 3.º excepto quando haja motivos razoáveis para recusar o embarque, tais como razões de saúde, de segurança ou a falta da necessária documentação da viagem. Entendemos, assim, que o objecto deste litígio não se enquadra no âmbito de aplicação do Regulamento. Ainda que assim não se entendesse, consideramos que a disposição do artigo 35º da Convenção de Montreal seria sempre aplicável porquanto compatível com as outras disposições citadas”. Terminando, para concluir: - As normas de direito internacional prevalecem sobre as normas de direito ordinário, tendo em conta o disposto no artigo 8º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português. - A Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, feito em Montreal em 28 de Maio de 1999, e aprovada pelo Decreto nº 39/2002, de 27 de Novembro (Convenção de Montreal) sobrepõe-se ao Regulamento (CE) nº 261/2004, de 11 de Fevereiro de 2004. Nesta conformidade, improcedem as conclusões das alegações da apelante.
III - DECISÃO Atento o exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida. Custas pela apelante.
Lisboa, 11/05/2017 Ilídio Sacarrão Martins Teresa Prazeres Pais Isoleta de Almeida Costa |