Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5294/2004-7
Relator: PIMENTEL MARCOS
Descritores: EXECUÇÃO
REQUERIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/08/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: Ao introduzir no nosso ordenamento jurídico a obrigatoriedade de o requerimento executivo ser apresentado no Tribunal em formulário próprio, o art. 810º nº 2, do CPC, o Dec. Lei nº 200/03 e a Portaria nº 985-A/03 retiraram ao exequente a possibilidade de apresentar em juízo o seu próprio requerimento executivo.
O princípio da protecção da confiança legítima constante do art. 2º da CRP decorre que o intérprete da lei deve depositar confiança nos comandos decorrentes dos textos legislativos bem como na ordem jurídica, por forma a que cumpridos os ditos comandos nenhuma consequência negativa possa resultar para si.
Não é inepto o requerimento executivo constante daquele impresso por não constar expressamente do formulário a expressão “indicação do pedido” ou outra semelhante, por a mesma já resultar tacitamente de outros campos.
Decisão Texto Integral: Vem o presente recurso interposto do despacho que julgou inepto o requerimento executivo com fundamento na não indicação do pedido, absolvendo os executados da instância.

A CGD instaurou execução
Contra
P... e outros, ao abrigo do disposto no Dec. Lei nº 38/2000, de 08.03, utilizando para  efeito o requerimento executivo constante do modelo legalmente aprovado e que é o que consta do endereço electrónico previsto na alínea a) do nº 3 da portaria nº 985-A/2003, de 15 de Setembro.
Sobre tal requerimento recaiu o referido despacho de indeferimento liminar, absolvendo os executados da instância, com o fundamento de que o requerimento/petição inicial é inepto por omissão do pedido, nos termos dos artigos 193º, 288º, nº 1 al. b), 493º, nº 2 e 494º, al. b) do CPC.
Dele agravou a exequente, formulando as seguintes conclusões:
(…)

O M.º juiz sustentou o seu despacho.

.....
Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir, com base nos factos referidos.

A única questão a decidir é saber se pode ser indeferido liminarmente o requerimento executivo com o fundamento de que nele não existe (ou não foi formulado) o pedido.
Considerou o Mmº juiz do tribunal “a quo” que o requerimento executivo é inepto por nele não ter sido formulado o pedido, e que tal ineptidão gera a nulidade do processo, o que conduziria à absolvição dos executados da instância.
A presente execução foi instaurada quando já se encontrava em vigor o DL 38/2003, de 08.03, o qual alterou profundamente o regime da acção executiva, passando o artigo 810º, nº 2 do CPC a prever que “o requerimento executivo consta de modelo aprovado por decreto lei”.
Este modelo foi aprovado pelo DL 200/2003, de 10.09.
O seu artigo 1º aprovou o modelo de requerimento executivo em suporte de papel, constante de anexo ao mesmo diploma, sendo dele parte integrante.
Mas, nos termos do nº 1 do artigo 3º “as partes que constituam mandatário (como é o caso) devem entregar o requerimento executivo em formato digital, através de transmissão electrónica de dados, nos termos a regular por portaria do Ministro da Justiça”.
Como consta do preâmbulo do DL 200/2003, “a uniformização deste processo facilita o registo de dados pelas secretarias judiciais, assim como a verificação da conformidade do requerimento executivo com os requisitos legais” e o grande número de execuções entradas nos tribunais “aconselha a adopção de um sistema de tratamento automatizado das peças processuais com que se iniciam tais processos”.
Portanto, este DL aprovou o modelo de requerimento executivo, remetendo para portaria a definição da forma de entrega do mesmo em formato digital.
Esta portaria é a nº 985º-A/2003, de 15.09.
Assim:
- a entrega em formato digital do requerimento executivo deve ser feita por transmissão electrónica, em formulário próprio a disponibilizar pela Direcção Geral da Administração da Justiça em página informática de acesso público (nº 1 da portaria).
- desse formulário devem constar os campos do modelo em papel aprovado pelo DL 200/2003 (nº 2).
Portanto, quando a execução tenha valor superior à alçada do tribunal da 1ª instância, o requerimento executivo deve ser elaborado em suporte electrónico, através de página informática na Internet e entregue através da página informática da Direcção Geral da Administração da Justiça em www.tribunasnet.mj.pt .
Ao introduzir no nosso ordenamento jurídico a obrigatoriedade de o requerimento executivo ser apresentado no Tribunal em modelo/formulário próprio, o artº 810º nº 2, o DL 200/2003 e a portaria 985A/2003 retiraram ao exequente a possibilidade de apresentar em juízo o seu próprio requerimento executivo, em modelo próprio, ao contrário do que antes se verificava, devendo, pelo contrário, adoptar o modelo/formulário legalmente imposto.
Este modelo adoptado pelo legislador não é, assim, adaptável pelo exequente ao seu próprio critério, subjectivo e pessoal, não podendo, por exemplo, acrescentar-lhe novos campos ou quadros ou adaptando-o ao seu “estilo”. Trata-se de um “modelo estandardizado”.
Não está em causa que a ora agravante tenha utilizado tal modelo, em conformidade com a respectiva portaria.
Porém entendeu-se no despacho recorrido que tal formulário “enferma de uma grave lacuna que não poderá ser ignorada, sob pena de violação dos mais elementares requisitos de forma processual”. Essa lacuna consistirá precisamente na “omissão do pedido no requerimento inicial”.
Ainda segundo este douto despacho, a exequente alegou os factos e quantificou um suposto prejuízo, mas nada pediu, e ainda: “uma coisa é quantificar ou liquidar um prejuízo, outra é formular ao tribunal o pedido que se pretende e este não foi nem podia ser afastado, dado que o artigo 467º, nº 1 a. e) do CPC não sofreu qualquer alteração, sendo certo que o artigo 810º, nº 3 do mesmo diploma remete para aquela norma”.
É certo que do modelo/formulário não consta qualquer espaço, sítio ou campo onde possa ser designado expressamente o pedido, nem tão-pouco foi criado qualquer anexo para o efeito. Ou seja: nenhum dos anexos constantes do formulário se destina especificamente à indicação do pedido, tal como é (e tem sido) geralmente entendido.
Mas, por um lado, o exequente não pode alterar o formulário e, por outro, cremos existir nele campo de manobra suficiente para que se possa considerar formulado o pedido, sem necessidade de qualquer outra formalidade.
A petição inicial é o articulado em que o autor/exequente, além do mais, expõe os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção e formula o respectivo pedido (artº 467º e 810º). O nº 3 deste último artigo determina expressamente que o requerimento executivo deve conter o pedido e a exposição sucinta dos factos que o fundamentam, quando não constem do título executivo (alínea b).
Na anterior redacção estabelecia o artigo 811º que o exequente (na execução para pagamento de quantia certa) requereria que o executado fosse citado para pagar ou nomear bens à penhora. E nos termos da alínea a) do nº 3 do actual artigo 810º, do requerimento executivo deverá constar a indicação do fim da execução, o que é equivalente.
A causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que deriva o direito que o autor pretende fazer valer (artº 498º do CPC).
A execução tem, necessariamente, de se basear num documento que corresponde à causa de pedir (embora nas acções executivas tenha sido discutido o que deve entender-se por causa de pedir, é questão que aqui não tem interesse considerar)[1]. A verdade é que, em regra, como a execução tem de ser acompanhada do título executivo, o exequente só em casos excepcionais terá de indicar factos complementares para fundamentar o pedido - alínea b) do nº 3 do artº 810º. E por isso Anselmo de Castro diz que o título executivo é o instrumento que é considerado condição necessária e suficiente da acção executiva[2].
O pedido consiste no efeito jurídico que o autor se propõe obter com a acção, traduzindo-se na providência que solicita ao tribunal. Por isso se estabelece no nº 3 do artigo 498º que há identidade de pedidos quando em duas ou mais acções se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
Como resulta do nº 3 do artigo 4º do CPC, as acções executivas são aquelas em que o autor requer as providências adequadas à reparação efectiva do direito violado. E para efeitos de processo aplicável, o fim da execução pode consistir no pagamento de uma quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo, quer negativo (artº 45º, nº 2).
No caso sub judice trata-se de uma execução para pagamento de quantia certa. Por isso deverá o exequente pedir que o executado lhe pague uma determinada quantia (é a quantia exequenda).
O artigo 812º prevê os casos de indeferimento liminar. Mas o seu nº 4 determina que o juiz deve convidar o exequente a suprir as irregularidades do requerimento executivo, bem como a sanar a falta de pressupostos. E este só será indeferido se o exequente, dentro do prazo marcado, não suprir o vício ou corrigir a falta (nº 5 do mesmo artigo).
Vejamos o caso sub judice:
Na capa do requerimento executivo (quadro nº 01) consta nomeadamente: finalidade da execução; título executivo; valor da execução.
E a exequente preencheu respectivamente: pagamento de quantia certa; escritura e documento particular; 98.796,34 euros.
Daqui se conclui com toda a facilidade que se trata de uma execução para pagamento de quantia certa e que o valor da acção é o indicado (sendo o título executivo uma escritura e um documento particular, que foram juntos aos autos). E, como resulta dos artigos 305º e 306º, se na acção se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa. Temos assim o valor da acção e a quantia que o exequente pretende obter (o pedido).
Do anexo C3 consta a identificação dos executados.
Do anexo C4 (quadro 10) consta: “exposição dos factos”. E aí se refere que “quando não constem exclusivamente do título” deve ser preenchido o campo 04 desse quadro.
E a exequente expôs de forma sucinta, mas muito clara, os factos que fundamentam o pedido, além de ter junto os respectivos documentos.
Com efeito, no anexo destinado à exposição dos factos (CF4), expressou e referiu concretamente a existência da dívida, a sua quantificação, concretamente expressando que lhe são devidas as quantias peticionadas a título de capital, juros e despesas, expressando ainda que são igualmente devidas as despesas extrajudiciais e as custas do processo.
E referiu expressamente:
“Os executados não cumpriram com as suas obrigações contextuais tendo-se constituído em mora quanto ao empréstimo para a aquisição da casa a partir de 25.09.2002, e, quanto ao outro empréstimo a partir de 25.06.2002, pelo que actualmente, à data de 12.11.03, é devida á exequente a quantia de 93.444,39 euros referente ao empréstimo á habitação, e 5.351,95 euros referente ao outro empréstimo...quantia esta á qual acrescem os juros vincendos á taxa de 10,785% ao ano calculados sobre o capital global (dos 2 empréstimos) no montante de 92.972.06, o que perfaz 28,92 ao dia (27,36+1.56) tudo desde 12.11.03 até ao efectivo e total pagamento bem comas despesas extrajudiciais e custas de processo». E no quadro 11 campo 05 do mesmo anexo:“...é, assim, devida a quantia total de 98.796,34 euros a partir de 12.11.03, inclusive vencem-se juros vincendos á taxa de 10,785% ao ano calculados sobre o capital dos empréstimos de 92.972.06 euros o que perfaz 28,92 euros ao dia até a data de pagamento integral... acrescendo ainda as despesas extrajudiciais e as custas do processo tudo a cargo do devedor.”
Portanto, sob o título “liquidação da obrigação” foi indicado o valor líquido do pedido (92.972,06) e o valor dependente de simples cálculo aritmético (5.824,28), o que perfaz o total de 98.796,34 ou seja o montante pedido, e que equivale ao valor da execução.
Como diz a exequente, o princípio da protecção da confiança legítima constante do art. 2º da CRP decorre que o intérprete da lei deve depositar confiança nos comandos decorrentes dos textos legislativos bem como na ordem jurídica, por forma a que cumpridos os ditos comandos nenhuma consequência negativa possa resultar para si.
    Terá entendido o legislador que seria desnecessário fazer constar expressamente do formulário do requerimento executivo a expressão “indicação do pedido” ou outra semelhante, por a mesma já resultar tacitamente doutros campos. Poderá ser discutível se não se deveria ter feito constar expressamente a indicação do pedido, assim se evitando situações como sesta. Todavia entende-se desnecessário fazê-lo, ou, pelo menos, não se considera essencial que se faça.
Mas o facto de não constar do formulário tal expressão não quer dizer que não resulte suficientemente claro qual o pedido formulado pela exequente.
E muito menos se poderá aceitar que se diga que a petição é inepta por falta de indicação do pedido, com a consequente absolvição dos executados da instância.
E uma coisa é certa: ninguém poderá duvidar de qual seja o pedido da exequente, pela simples leitura do formulário nos termos como foi preenchido e tendo em consideração o que foi aqui referido.
Caso assim se não entendesse, sempre a exequente deveria ter sido convidada a suprir essa falta (artº 812º, nº 4) ou esclarecer o pedido formulado. O que não pode é pura e simplesmente ser prejudicada por eventual erro do legislador. A não ser assim haveria que indeferir liminarmente todos os requerimentos executivos com o mesmo fundamento.
Não existe, pois, a mínima razão para que seja indeferido o requerimento executivo, com absolvição dos executados da instância.
Só um excesso de formalismo poderia justificar tal decisão (e não justifica).
**
Por todo o exposto acorda-se em conceder provimento o agravo, revogando-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que ordene o prosseguimento da execução, se a tanto não obstarem outras circunstâncias.

Sem custas (artº 2º g. do CCJ)

Lisboa, 08.07.2004.

Pimentel Marcos
Jorge Santos
Vaz das Neves.
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[1] Ver, por exemplo, Lebre de Freitas, in Acção Executiva, pag. 64 e 65.
[2] Acção Executiva Singular, Comum e Especial, pag. 14.