Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | SÉRGIO ALMEIDA | ||
| Descritores: | MÉDICO RESPONSABILIDADE MÉDICA RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL ÓNUS DA PROVA CULPA DEVER DE CUIDADO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 12/13/2012 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | PARCIAL PROCEDÊNCIA | ||
| Sumário: | I. Não pode haver responsabilidade médica contratual e extra-contratual se nenhum negócio jurídico bilateral existe entre médico e paciente. II. Neste caso cabe ao lesado provar a culpa do lesante, nomeadamente os factos que demonstram a violação do dever de cuidado. (Sumário do Relator, art.º 713/7, do Código de Processo Civil). | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa RELATÓRIO Autor (A.): “A”. Réus (RR.): Centro Hospitalar “B” (que sucedeu aos Hospitais “E”, SA e “F”, SA); “C”, médico; e “D”, médico. O A. alegou que entrou no Hospital S. “E” (adiante “E”) com saúde, foi-lhe aplicado soro no serviço ambulatório na sequencia do que apareceu uma bactéria; e no Hospital “F” (adiante “F”) foi infectado por um fungo através do cateter das virilhas direita e esquerda e por uma bactéria contraída após a operação de enxerto de tecidos recolhidos da coxa direita para tapar a exposição do cotovelo. A bactéria que o infectou no “E” causou a abertura de uma fistula no braço direito, pelo que teve de ser submetido a intervenção cirúrgica para tapar a exposição do cotovelo provocada pelas incisões que aí foram feitas com o intuito de permitir a extracção das matérias da infecção que não tinham sido expulsas por essa fístula; a bactéria que o infectou no “F” foi contraída após esta operação e infectou-lhe os tecidos do braço direito bem como o trícipite, tendo os tecidos infectados de ser queimados com nitrato de prata e o A. novamente sujeito a cirurgia para remoção desses tecidos e excisão do trícipte; a bactéria contraída “F” determinou-lhe outra operação que consistiu em cozer o cotovelo ao abdómen para que se verificasse a transferência de tecidos de forma a forrar o cotovelo. Tanto a bactéria contraída no “E” como a bactéria que o infectou no “F” contribuíram directa e necessariamente para a incapacidade permanente que tem atualmente. Os fungos com que foi infectado no “F”, decorrentes da implantação dos cateteres nas virilhas direita e esquerda, contribuíram igualmente para o aumento do seu sofrimento físico e psicológico; sofreu muito nos meses em que esteve internado no “F”, em parte também pelas péssimas condições proporcionadas pelo Hospital, nomeadamente o serviço de enfermagem não foi eficiente e as instalações inadequadas à quantidade de doentes internados. Os RR. “C” e “D” não se certificaram que os instrumentos médicos utilizados estavam devidamente esterilizados e não actuaram com prontidão na marcação da operação relativa à cirurgia plástica para tapar a exposição em que se encontrava o cotovelo. O Autor entrou são no hospital e saiu cerca de três meses com o braço ainda manchado e o cotovelo desfigurado, ficou com a mão deformada, com uma cicatriz no abdómen com 30 cm, ficou impossibilitado de conduzir e de proceder sozinho à sua higiene pessoal diária, não levanta o braço a mais de 30.°, o antebraço não vai abaixo dos 45.° e não o levanta acima dos 60.° a 65.°, tendo também problemas de articulação da mão e da rotação do braço e mão, tudo isto em consequência directa das operações a que teve de ser sujeito devido à bactéria e fungos com que foi infectado, por culpa dos hospitais que não asseguraram os cuidados de saúde e demais serviços com qualidade e higiene e para os danos concorreu igualmente a conduta negligente dos 3.° e 4.° Réus. Pediu a final a condenação, solidária, dos Réus no pagamento de uma indemnização por danos físicos e morais no valor de € 40.000,00; e de uma indemnização pela incapacidade permanente, que se vier a apurar. Os RR. contestaram e pediram a absolvição do pedido, tendo os RR. médicos reconvindo. Os autos foram saneados e a matéria de facto condensada. Efectuado o julgamento a acção foi julgada improcedente e os RR. absolvidos dos pedidos. * Irresignado o A. apelou, formulando as seguintes conclusões: 1. A prova foi mal apreciada no que se refere ao artigo n.º 19 (por lapso de escrita refere 18) da B.I.. O boletim clínico não poderia ser usado para desconsiderar a prova testemunhal produzida como foi, uma vez que o que consta desse boletim foi contrariado objectivamente pela evolução da infeção do braço do Autor. (…) A situação do braço não podia estar a melhorar, se dias depois inchou tanto que abriu fístulas e uma loca, facto dado como provado (…). As testemunhas “G” e “H” (…) responderam: “Tinha aspecto...era uma coisa enorme, muito escura porque a mancha vermelha foi alastrando, e foi escurecendo e chegou a apanhar...era a mão toda e depois o braço todo. (...) Muito escuro, muito inchado, uma coisa grossíssima, aquilo engrossou imenso.” “G”, aos 7m15s “E ele chegou a uma altura em que isto era tudo negro. Eu vi-o assim e vi-o pior do que assim. Até por uma coisa: isto chegou aqui da ponta dos dedos até lá acima ao ombro. Era o braço todo e apanhava a mão toda.” “G”, aos 15m20s ‘..o braço continuou a inchar até quase rebentar. Para mim ele arrebentou sozinho mas não sei, não sei, não sou médica.” “H”, aos 12m20s. Devia ter sido dado como provado pelo menos que o braço do A. continuou a inchar nos dias seguintes e que a mancha ia da ponta dos dedos ao ombro. 2. A resposta ao numero 48 da B.I. não é compreensível (…) responde a algo diferente do que é perguntado (…que) era se, após a conversa com o Dr. “C”, em que este lhe diz que teria de aprender a usar o braço esquerdo, o A. se sentiu profundamente deprimido por pensar que o seu uso do braço poderia não melhorar (…e não) que o A. chegou a pensar que nunca sairia vivo do hospital. “M.A.: Olhe o seu...o A. aqui, já há pouco referiu isto, mas vou...há perguntas que às vezes se repetem um bocado...ficou bastante deprimido com esta situação de ficar a pensar que não se recompunha? T: Sim. Bastante. M.A.: Falou consigo, é? T: Sim, nalgumas ocasiões. Principalmente as... uma certa...a incerteza. Não era uma certa, era de facto as incertezas para a frente. O que é que isso ia significar na vida dele? Como é que iria ficara vida dele? O que é que ele podia ou não fazer? Isto numa fase posterior, porque numa fase anterior era aquela que ele achava que não ia sobreviver. Mas numa fase posterior, já um bocadinho melhor, sim. Conversámos várias vezes sobre esse assunto.” “G”, aos 25m35s Face ao depoimento da testemunha “G” (…) a resposta (…deve ser) “provado” 3. Os factos constantes dos artigos 92, 95, 96 e 98 da B.I. deveriam ter sido dados como não provados. Consta dos autos prova testemunhal e documental que oblitera a prova produzida pelos RR. neste sentido. Nomeadamente os relatórios das comissões de controlo de infecções hospitalares que são claros e provam a falta generalizada de locais onde lavar as mãos, falta de sabão, desconhecimento generalizado acerca de como e quando lavar as mãos, ausência de formação sobre esta matéria em 2003, deficiências generalizadas na limpeza de superfícies, entre outros pontos críticos. E ainda o depoimento da testemunha Prof. Dr. J”I”, especialista em infecciologia, que disse: M.A.: ... Tem havido relatórios da Inspecção Geral de Saúde que referem que 30 a 33 % das infecções com, com... estas pseudomonas, têm muito a ver também com os procedimentos das mãos. T: Isso é verdade. M.A.: Que em geral, que a partir de certa data, 2006 ou 2005, um grande combate nos hospitais para que as mãos sejam convenientemente desinfectadas. Quer dizer, que o factor “mão” é o factor mais... T: Eu sou mais céptico. Eu digo que há um grande combate do ponto de vista de papel, e de coisas e de coisas. Mas os lavatórios continuam entupidos, as torneiras continuam partidas, o sabão continua a não existir, etc... E se nós agarrarmos num hospital típico português, metade dos locais onde é suposto lavar as mãos, não se pode lavar. O que obviamente que prejudica os doentes.” Aos 27m do depoimento. 4. A Responsabilidade Civil Contratual é aplicável à responsabilidade por acto médico praticado por prestador de cuidados médicos inserido no S.N.S., podendo identificar-se nesta relação jurídica um contrato análogo a um contrato de seguro com plano de saúde nos seus elementos sinalagmáticos. 5. O apelante intentou a ação contra vários RR por desconhecer totalmente quem o tinha infetado e onde tinha sido infetado e o próprio momento. Alegou factos que preenchem a responsabilidade contratual e extra contratual. Não identificou o tipo de responsabilidade. É comummente aceite a teoria do cúmulo em que os tipos de responsabilidade podem andar juntos. Só no decurso da lide, do resultado da perícia e da prova é que o apelante passou a saber o que tinha sucedido. Até esse momento apenas conhecia os hospitais por onde passou e o nome dois médicos. Daí o tipo de factos e o pedido. O tribunal quo não estava vedado qualificar a responsabilidade como sendo contratual, pois os factos alegados nos artigos 65, 93, 101, 111,112, 122 a 124 da petição inicial configuram a responsabilidade contratual. 6. Um sistema de repartição do ónus da prova como o da responsabilidade civil extra-contratual aplicado à responsabilidade por acto médico constitui um verdadeiro obstáculo à efectiva reparação de danos culposos na esmagadora maioria dos casos, por ser impossível aos cidadãos conhecerem os procedimentos médicos adequados. In casu o apelante nunca poderia saber o nome de quem lhe fez a punção e como foi feita a mesma. A ninguém passa pela cabeça que de uma punção para retirar sangue possa surgir uma infeção quase mortal. 7. O apelante insistiu que não tinha malária (… e) apesar disso o médico quis confirmar e eis a infeção por pseudomonas que quase o mata. O apelante era saudável e nenhuma outra doença foi detetada; apenas a infeção provocada no R. Hospital. 8. Apesar disso face á prova produzida, designadamente ter sido a punção que provocou todos os danos no apelante, não lhe era exigível explicitar o que não é possível humanamente: o nome do agente e os seus procedimentos. Por isso mesmo à luz da responsabilidade extra-contratual o tribunal a quo devia ter condenado o R. Hosp. “E”. 9. Na verdade, em qualquer caso de responsabilidade civil por acto médico, o sistema de repartição do ónus da prova mais equitativo entre as partes, é um em que a culpa se presume. Com o recorrente concorda Álvaro Gomes Rodrigues em “Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos”, in Revista Direito e Justiça, 2000, XIV, p. 209 no que se refere à maior equidade processual de fazer o ónus recair sobre o devedor: “O ónus da prova da diligência recairá sobre o médico, caso o lesado faça prova da existência do vínculo contratual e dos factos demonstrativos do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso. Com isto em nada se está a agravar a posição processual do médico, que disporá de excelentes meios de prova no seu arquivo, na ficha clínica, no processo individual do doente, além do seu acervo de conhecimentos técnicos. Por outro lado, tal posição tem o mérito de não dificultar substancialmente a posição do doente que, desde logo, está numa posição processual mais debilitada, pois não sendo, geralmente, técnico de medicina não dispõe de conhecimentos adequados e, doutra banda, não disporá dos registos necessários (e, possivelmente, da colaboração de outros médicos) para cabal demonstração da culpa do médico inadimplente.” O apelante provou o nexo de causalidade entre a punção e todos os outros danos. (…) Nem o Hospital sabe quem fez a punção, quanto mais o desgraçado do apelante. Mesmo os Autores, como Miguel Teixeira de Sousa, que entendem que a presunção de culpa não se aplica à responsabilidade civil médica, reconhecem que o Tribunal deve levar em conta o carácter diabólico da mesma, e usar de mecanismos re-equilibradores: “Quer dizer, assiste ao tribunal a faculdade de considerar, na própria avaliação da prova, as naturais dificuldades da sua realização e de, nessas circunstâncias, julgar suficiente uma prova que, noutra situação, não seria bastante para a prova do facto. Convém acentuar, no entanto, que uma eventual diminuição no grau de exigência da prova produzida pelo paciente só é justificável na exacta medida em que tal seja necessário para criar uma situação de igualdade entre as partes na acção “- Teixeira de Sousa, “O ónus da prova nas acções de responsabilidade civil médica”, in Direito da Saúde e Bioética, Lisboa, AAFDL, 1996,p. 141. 10. A interpretação das normas de responsabilidade civil que restringe a aplicação do 798 aos casos de responsabilidade civil de prestador de cuidados de saúde privado, sem a existência de uma norma que inverta o ónus da prova nos casos de responsabilidade de prestador inserido no SNS, de forma a que a protecção jurídica em caso de dano culposo seja materialmente (e não apenas formalmente) igual à que é dada pelo sistema de repartição do ónus da prova contratual ou semelhante, resulta numa inconstitucionalidade por violação do n.º 1 do art. 139 e do n.º 1 do art. 202, ambos da C.R.P.. 11. A factualidade dada como provada permite dar por integralmente preenchidos todos os requisitos da responsabilidade por cumprimento defeituoso (…do) “E”, S.A. (…). 12. (… Ainda que assim não fosse) sempre deveria o Tribunal a quo ter, nos termos do n.º 3 do art. 264 aditado à B.I. matéria que pudesse resolver a matéria em questão e que foi esclarecida no depoimentos da testemunha Prof. Dr. “J”s, Prof. Dr. “I” e nos Relatórios de Auditorias ao R. “E”, S.A. de fls... Essa matéria seriam três novos quesitos em que se perguntasse “Se não houvesse a punção, não teria havido infecção?”, “Na altura da punção, havia um contexto generalizado de violações de procedimentos e regras de combate às infecções hospitalares no R. Hospital S. “E”?” e “Os grupos profissionais funcionários do R. “E”, S.A. demonstravam à data da punção um profundo desconhecimento sobre as normas da Leges Artis referentes a quando e como se deve lavar as mãos?”. 13. A resposta ao primeiro dos três referidos quesitos teria forçosamente de ser “provado” face à prova que já consta dos autos, nomeadamente o Relatório da peritagem ao A., e o depoimento do Prof. Dr. “J”, que aos 24 minutos da gravação do seu depoimento diz: M.A.: Se não tivesse havido aquela punção havia aquela infecção. T: Penso que não. 14. No que se refere aos dois restantes quesitos, a resposta também pode ser dada com a prova já constante dos autos, nomeadamente os Relatórios de Auditoria às condições de limpeza e qualidade dos procedimentos de lavagem de mãos juntos pela R. “E”, S.A., e pelo depoimento do Prof. Dr. “I”, especialista em Infecciologia, de cujo depoimento o trecho relevante já foi transcrito no ponto 3 das presentes conclusões. Findou pedindo a revogação da sentença, substituída por outra que condene o R. Centro Hospitalar “B”, E.P.E. em indemnização pedida pelos danos provocados. * O Centro contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso e concluiu deste modo: 2) Em termos de matéria factual andou bem o Tribunal «a quo» ao considerar como não provados os factos constantes nos artigos 19º e 48° da Base Instrutória e, bem assim, ao considerar provados os factos inclusos nos artigos 92°, 93°, 95º, 96º e 98° da mesma; 3) No que toca ao artigo 19° destaca-se que os depoimentos de “G” e “H” não atestam a factualidade ali contida, conforme se poderá constatar através da audição integral dos seus depoimentos, melhor requerida nas alegações deste recurso. 4) No que respeita ao artigo 48° invoca-se que o depoimento de “G” nada reflectiu a respeito do ora recorrente ter sofrido de uma depressão profunda, conforme se poderá constatar através da audição integral do seu depoimento, melhor requerida nas alegações deste recurso. 5) No que se reporta aos artigos 92°, 93°, 95°96° e 98° (…) o Tribunal «a quo» não podia decidir em sentido oposto, ou seja, não podia dar como não provada a matéria ali plasmada, em face de toda a prova produzida, designadamente ao nível do depoimento prestado por “J”, “K”, “I”, “L”, “M” e “N”, conforme se poderá constatar através da audição integral dos seus depoimentos, melhor requerida nas alegações deste recurso. 6) (…) Não se verifica qualquer tipo de contradição entre estes factos comprovados e os relatórios elaborados pela Comissão de Controlo de infecções do recorrido; 7) Em termos de direito (… o) recurso é infundado uma vez que (…) não se aplica o regime da responsabilidade civil contratual ao caso vertente, tendo designadamente em consideração, a matéria assente e, bem assim, a natureza e qualificação jurídicas do recorrido (entidade inserida no Serviço Nacional de Saúde); 8) (…) Não obstante o Tribunal «a quo» ter concluído, em síntese, que a punção originou o posterior quadro clínico do recorrido o recorrente não alegou matéria susceptível de imputar ao recorrido e seus agentes a violação das mais elementares regras de desinfecção e esterilização aquando da realização da mesma; 9) Razão pela qual nem sequer se pode discutir, ponderar e decidir sobre as circunstâncias de modo em que a aludida punção foi realizada; 10) Consequentemente, não se logrou estabelecer um nexo de causalidade entre a aludida punção e os danos sofridos pelo recorrente. * * FUNDAMENTAÇÃO Cumpre apreciar neste recurso – considerando que o seu objecto é definido pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e exceptuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela decisão dada a outras, art.º 684/3, 660/2 e 713, todos do Código de Processo Civil – : a) se merece censura a decisão recorrida, no que toca à matéria de facto, quanto às respostas aos quesitos 19, 48 92, 95, 96 e 98 da base instrutória (B.I); b) a qualificação da relação entre A. e R. Centro; c) a quem cabe o ónus da prova; d) se cabe aditar outros factos. * * A matéria de facto só pode ser alterada pelo Tribunal da Relação nas situações contempladas no n.º 1 do art.º 712.º do Código de Processo Civil, a saber: “a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º -B, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou”[1]. A justificação para que a matéria de facto possa ser modificada radica numa incorrecta convicção do juiz na apreciação da prova produzida. No nosso ordenamento jurídico, vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre (art.º 655.º do CPC), segundo o qual “O tribunal (…) aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”[2]. Ou seja, ao juiz cabe apreciar livremente as provas, sem constrangimentos nomeadamente quanto à natureza das provas, decidindo de harmonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido. O controlo da matéria de facto, nomeadamente com base na documentação (mormente na gravação), dos depoimentos prestados em audiência, está vinculado à observância dos princípios fundamentais do processo civil, entre os quais, além do próprio principio da livre apreciação das provas[3], o da imediação[4]. O que significa desde logo que a 1ª instância tem vantagem sobre o Tribunal de recurso dado que é aí que, por natureza, se concretizam os aludidos princípios[5]. Na verdade, é aquela que está em melhores condições de apreciar os depoimentos prestados em audiência, atento o imediatismo, impossível de obter na análise da matéria de facto na Relação, por ser quem conduz a audiência de julgamento e quem interage com a produção da prova e capta pormenores, reacções, hesitações, expressões e gestos, enfim os símbolos impossíveis de detectar em simples gravações[6]. Importa não esquecer que a maior parte da comunicação é, na realidade, não verbal, e ignorá-la é perder o seu verdadeiro significado[7]. O Decreto-Lei n.º 39/95, de 15.2, veio “prever e regulamentar a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida” em ordem a assegurar “a criação de um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais - e seguramente excepcionais - erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito”. Nesta sequencia, o acórdão do Tribunal Constitucional, de 03.10.2001, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 51°., págs. 206 e ss., decidiu que “a garantida do duplo grau de jurisdição não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas, e não se pode perder de vista que na formação da convicção do julgador entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova e factores que não são “racionalmente demonstráveis”, de tal modo que a função do Tribunal de 2ª Instância deverá circunscrever-se a apurar da razoabilidade da convicção probatória do 1º grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos. A questão é saber - a convicção vertida nas respostas cabe, razoavelmente, nesses elementos? Esses elementos suportam ou não essa convicção? O Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si”. Ou seja, à 2ª instância não pertence, no actual estágio legislativo, procurar uma nova convicção mas verificar se a convicção expressa pela 1ª instância tem razoável suporte nos elementos de prova. Dito de outro modo, o fundamento para a modificabilidade da matéria de facto baseia-se numa incorrecta convicção do julgador na apreciação da prova produzida de tal forma grave que assume proporções de sério erro de julgamento, de uma manifesta e clamorosa desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos. Só nos casos pontuais e excepcionais em que se verifique que as respostas dadas não têm qualquer fundamento face aos elementos da prova trazidos ao processo ou que estão profundamente desapoiados face às provas recolhidas é que se impõe a sua alteração[8]. Como escreveu o nosso mais alto Tribunal “a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, não pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas inserto no art.655º, nº1 do C.P. Civil - o tribunal colectivo aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. E na formação dessa convicção entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova - seja áudio, seja mesmo vídeo -, por mais fiel que ela seja das incidências concretas da audiência. Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis. Abrantes Geraldes[9], Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 2ª edição, pág.251, chamando a atenção para isso mesmo, cita Lopes Cardoso, BMJ nº80, págs. 220 e 221 como referindo a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga. E cita no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág.211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores». O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado» - Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág.348. O que ao tribunal de segunda jurisdição compete é, então, apurar da razoabilidade da convicção probatória do primeiro grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos” (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-05-2007). Em suma, o poder cognitivo do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não implica um novo julgamento de facto, limitando-se a verificar a razoabilidade da decisão. * O artigo 685.º- B CPC estabelece os ónus que impendem sobre quem recorre da decisão de facto, sob pena de rejeição do recurso[10]: - especificar quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados (nº 1, alínea a); - especificar quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida (nº 1, alínea b); - indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2, do artigo 522º-C, quando tenham sido gravados (nº 2). * O recorrente põe em causa a resposta negativa ao quesito 19, restritiva/explicativa ao n.º 48 e positiva aos n.º 92, 93, 95, 96 e 98. A decisão recorrida louvou-se, nesta parte, no seguinte: - documento de fls. 610-612 dos autos consistente num relatório elaborado pelo dr. “O” e cujo teor foi confirmado em sede de audiência pelo próprio, documento esse que, complementado com o referido depoimento, foi relevante para a resposta aos arts. (…) 19.º (este ultimo considerado não provado pois que resulta do depoimento de (… “O”) e do boletim médico do A. que, após a entrada no serviço de cuidados intensivos do “F”começou a haver uma evolução positiva, embora lenta, da infeção do A) (…); - depoimentos das testemunhas: - “O”, médico, cujo conhecimento dos factos resultou da circunstância de ter atendido o Autor nas urgências do Hospital “E” no dia 9 de Julho de 204 e que o voltou a tratar enquanto aquele esteve internado na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital “F”, até ao dia 10 de Agosto de 2004; o seu depoimento foi prestado de forma coerente, sem contradições, sendo, por isso, credível e foi relevante para a resposta aos arts. (…) 19 (dado como “não provado” pois que a testemunha referiu que após a entrada do A. na Unidade de Cuidados Intensivos do “F” houve uma regressão, embora lenta, da extensão dos sinais inflamatórios do braço), (…) 92.º, 93.º, 95.º, 96.º, 97.º, 98.º (…), todos da BI; - “M”, médica, no Hospital “E” até 2010 e a partir desta data no Hospital “F”, e Presidente da Comissão de Controlo de Infeções do Centro Hospitalar. Embora não tivesse conhecido o Autor ou participado no tratamento do mesmo, depôs com conhecimento sobre as condições hospitalares no que respeita à higiene, salubridade das instalações e equipamentos hospitalares, tendo o seu depoimento sido relevante para a resposta aos arts. 89.º, 92.º, 93.º, 95.º (…) da Base Instrutória; - “P”, “L” e ”N”, todos enfermeiros nas Urgências do Hospital “E” quando o Autor ali acorreu, em 9 de Julho de 2004, tendo todos eles confirmado o procedimento-regra na ministração de soro e realização de punções aos doentes, bem como a utilização exclusiva de materiais descartáveis e esterilizados (por exemplo “P” afirmou que desde meados dos anos 80 que não há reutilização dos materiais de punção e que este tipo de material é vertido em contentor próprio depois de utilizado e que todo o sistema de soro é aberto no momento do acto médico); todavia, nenhum deles se recordava de ter tratado do Autor no dia 9 de Julho, não podendo pois confirmar se a punção e a administração de soro ao autor foram realizados com os cuidados de higiene adequados; os seus depoimentos foram relevantes para a resposta aos arts. 89.º, 92.º, 93.º, 94.º, 95.º, 96.º, 97.º (…). Vejamos primeiro as respostas aos quesitos 19 e 48. Perguntava-se (n.º 19) se Nos dias seguintes [a 13.7.2004] o braço continua a inchar, “pesando uma tonelada”, e a mancha negra vai agora da ponta dos dedos até ao ombro?, e (48) O A. ficou num estado de profunda depressão, pois parecia que a sua situação hospitalar nunca se recomporia? Quanto ao 19, refere o relatório médico do Dr. “O” de fls. 610-612, invocado na decisão recorrida, que no dia 14.7. houve “contínuo agravamento do quadro de celulite do membro superior direito, … o doente apresentava-se agora em sepsis grave por celulite exuberante de todo o membro superior direito”. Apesar disso, conclui, “a evolução clínica inicial foi lenta mas em sentido favorável, do ponto de vista infeccioso”. Em depoimento afirma que “havia inflamação dos tecidos subcutâneos” (11:05 de dia 22.2); quando o A. chegou à unidade de cuidados intensivos da testemunha “havia um edema, um inchaço de todo o membro superior” (idem, 12:20 e ss.); que houve (o que diz face aos documentos) uma “regressão da área de inflamação” (idem, 38:30). De aqui resulta a resposta dada. É certo que duas testemunhas próximas do A. (“H”, mulher, e “G”, ex-nora), referiram que o braço ficou “mais medonho, mais escuro” (“G”) e “continuou a inchar quase até rebentar”. Estas testemunhas, porém, não demonstram conhecimentos técnicos na área da medicina (como diz a testemunha “G” no seu depoimento, 47:45), ao contrário do Dr. “O”. Os documentos em que este se louvou foram elaborados à data, por técnicos, merecendo, até prova em contrário, crédito. Por outro lado, as testemunhas não médicas nem sempre usaram, que se veja, linguagem (ainda que “profana”, i. é, no caso, não clinica) rigorosa, como foi o caso da testemunha “H”, que afirmou, de forma certamente figurada, que “para mim ele arrebentou”. Também não se vê que – como é natural – tenham registado, à data, num determinado suporte as suas observações, evitando que o mero decurso do tempo possa conduzir a alguma perda ou reelaboração das suas percepções. Tudo isto deixa dúvidas quanto a saber se o inchaço aumentou, não ultrapassadas pelas fotos do A., que o retratam num determinado momento. Quando ele chega à unidade de cuidados intensivos já havia, segundo a testemunha “O”, “um edema, um inchaço de todo o membro superior”. É certo ainda que se lhe abriu no braço “uma fistula na parte anterior” e que foram abertas duas incisões para extrair o liquido hemático e o desinfetar (31) e que em 25.7 foi isolado o fungo “cândida albicans” (28). O que, mostrando que a situação do A. era muito séria, não demonstra que o braço “continuou a inchar” pesava uma tonelada e a mancha também aumentou. Destarte, e considerando que, como já vimos, cabe censurar ao recorrido apenas decisões não razoáveis, mantém-se esta resposta. * Quanto ao 48 o A entende que “responde a algo diferente do que é perguntado (…) que era se, após a conversa com o Dr. “C”, em que este lhe diz que teria de aprender a usar o braço esquerdo, o Autor se sentiu profundamente deprimido por pensar que o seu uso do braço poderia não melhorar. Invoca para isso o depoimento da testemunha “G”, aos 25m35s, que transcreve: “M.A.: Olhe o seu...o Autor aqui, já há pouco referiu isto, mas vou...há perguntas que as vezes se repetem um bocado...ficou bastante deprimido com esta situação de ficar a pensar que não se recompunha? T: Sim. Bastante. M.A.: Falou consigo, é? T: Sim, nalgumas ocasiões. Principalmente as... uma certa...a incerteza. Não era uma certa, era de facto as incertezas para a frente. O que é que isso ia significar na vida dele? Como é que iria ficara vida dele? O que é que ele podia ou não fazer? Isto numa fase posterior, porque numa fase anterior era aquela que ele achava que não ia sobreviver. Mas numa fase posterior, já um bocadinho melhor, sim. Conversámos várias vezes sobre esse assunto.” Responde a R. que do depoimento da testemunha não resulta nada resulta sobre o estado de profunda depressão, conforme resulta da audição integral do seu depoimento, que pretende. Não se vê onde pretende chegar com esta argumentação: a testemunha refere-se efetivamente a esta matéria na transcrição apontada, e não se vê que contradite o que afirmou; e se contraditasse poderia o trecho correspondente ser identificado. De todo o modo, é certo que de aqui não resulta que tenha entrado em profunda depressão. A depressão é uma doença do foro psiquiátrica, caracterizada por perda de prazer nas atividades diárias, apatia, alterações cognitivas (diminuição da capacidade de raciocinar adequadamente, de se concentrar ou/e de tomar decisões), psicomotoras (lentidão, fadiga e sensação de fraqueza), alterações do sono (insónia), alterações do apetite (em regra perda do apetite), redução do interesse sexual, retraimento social, ideação suicida (veja-se os casos do pintor Vincent Van Gogh e do guarda redes de futebol Robert Enke), sentimentos de culpa e prejuízo funcional. Não tendo o paciente de manifestar todos estes sintomas tem, ainda assim, de, nos casos graves, manifestar vários deles durante certo período de tempo (ao menos 2 semanas). Já a situação de quem está deprimido (meramente) passa sobretudo por o sujeito sentir tristeza e angustia, porventura, aliás, meramente passageira. De lado nenhum resulta que o A. tenha entrado em depressão profunda (o que, de todo o modo, careceria de uma descrição mais detalhada e de algum comprovativo clínico). Mas resulta do depoimento que se sentiu deprimido. É, pois, razoável uma resposta restritiva, nos seguintes termos: 48: provado que o autor sentiu-se deprimido. * Matéria dos quesitos 92, 93, 95, 96 e 98. O recurso é, nesta parte, manifestamente improcedente. Com efeito, as respostas dadas estribam-se na prova produzida. Senão vejamos. “M”, médica patologista que designadamente exerceu funções na Comissão de Controlo de Infeções, que referiu que a infeção hospitalar é inevitável, de acordo com estudos realizados, por muito cuidado que haja, havendo limites para a prevenção (10:40 e 25:40), no hospital usa-se desde o inicio material descartável para a recolha de sangue (29:05 e ss. – quesito 96), as mãos estão higienizadas e em regra não há necessidade de usar luvas (29:40), há desinfeção da área e aplicação do medicamento (30:00), em regra as instalações estavam com limpeza acima da média (33:40; 33:55 e ss. especificamente aos 92 e 93, confirmando), o vestuário e calçado é higienizado pelo hospital, usando o pessoal vestimentas próprias (39 e ss. - 95); Das declarações de “P”, “L” e “N”, todos enfermeiros, verifica-se que depuseram no sentido das respostas dadas (seja quanto à esterilização dos equipamentos, limpeza nas urgências, vestuário usado) O desacordo do A. prende-se, pois, não com a falta de prova que suporte a decisão mas com o seu desacordo em relação à mesma. Isso não é motivo para censurar a decisão do Tribunal. Acresce que nem o prof. “I” se reporta concretamente ao caso nem dos relatórios da CICH ou outros (vg auditorias de limpeza e de lavagem das mãos) resulta prova do contrário. E nem se fale em contradição entre estes relatórios (fls. 916 e ss.) – que visam melhorar as condições dos estabelecimentos de saúde de modo a reduzir ao máximo o risco de contágio hospitalar – e as respostas. Por um lado, segundo a testemunha Drª “M” não é possível reduzir, a partir de certo patamar, tal risco; por outro tais relatórios visam exatamente levar à implantação de melhores práticas, sendo de esperar que sejam rigorosos e que sejam seguidos pela implementação de melhores práticas. * * São estes os factos provados, inserindo-se a cheio o facto aditado, sob o n.º 56b: 1. Em 2002 o Autor teve malária; 2. No dia 8 de Julho de 2004, pela tarde, o Autor começou a sentir febre. 3. No dia 9 de Julho, a febre manteve-se e que o Autor marcou uma consulta com o seu médico de família, o qual admitiu que a febre pudesse ser originada por malária e o aconselhou a fazer análises de sangue no hospital; 4. O Autor achava que não tinha malária, nomeadamente, porque não tinha diarreia nem vómitos; 5. No dia 9 de Julho de 2004, o Autor é atendido na Unidade de Cuidados Ambulatórios do Hospital “E”, onde lhe é feita uma colheita de sangue, no braço direito, a qual é enviada para análise por forma a detectar se o Autor teria malária; 6. Enquanto o Autor espera pelo resultado da análise, é-lhe aplicado soro, sendo transferido para o balcão «Homens»; 7. No Hospital “E” foi ministrado ao Autor soro e Nolotil diluído em 100 cc de soro fisiológico, no braço direito e por via intravenosa, por se considerar que era o tratamento mais adequado ao seu quadro clínico; 8. O médico que atendeu o Autor no Hospital “E”, dr. “O”, considerou que seria melhor fazer um tratamento preventivo da malária pois poderia ainda estar em desenvolvimento e não ter sido evidenciada na análise; 9. O Autor aceitou fazer o tratamento da malária que lhe foi sugerido pelo Dr. “O” 10. O Autor tem um historial clínico de malária cerebral e um internamento anterior ao da sua entrada no Hospital “F”; 11. O Autor tinha regressado recentemente de África; 12. No dia 10 de Julho, pela 1 hora da manhã, os resultados da análise realizada revelaram-se negativos, ou seja, o Autor não tinha malária; 13. No dia 9 de Julho, depois de ter saído do Hospital “E”, o Autor começou a sentir um ligeiro ardor no braço no local onde lhe tinha sido feita uma punção e, nesse mesmo local, apareceu uma mancha vermelha 14. No dia 10 de Julho, a mancha antes referida já tinha alastrado; 15. Após ter tomado os comprimidos para a malária, o Autor teve espasmos interiores; 16. No dia 11 de Julho, o Autor desmaiou; 17. O Autor passou o dia (11 de Julho) bastante incomodado e a mancha vermelha continuava a alastrar; 15. No dia 12 de Julho, a mancha no braço já havia crescido em direcção à mão e ao cotovelo, começando a envolver todo o braço; 16. Seguindo instruções do médico do Hospital “E”, o Autor dirigiu-se ao Instituto de Medicina Tropical, onde lhe foi feita nova recolha de sangue e análise à malária, cujo resultado foi de novo negativo; 17. No dia 12 de Julho de 2004, o Autor dirigiu-se ao Hospital “E”, queixando-se do que estava a suceder ao seu braço; 18. No dia 12 de Julho de 2004, o Autor deu entrada no serviço de urgência do Hospital “E” e ficou internado; 19. No dia 13 de Julho, o Autor é transferido para o Hospital “F”, SA, onde dá entrada na Unidade de «Medicina II»; 20. O Autor deu entrada no Hospital “F” com alterações visíveis desde a mão até ao terço, e com uma mancha que se estendia ao tórax e parte do pescoço; 21. O Autor deu entrada no Hospital “F” com uma septicemia, com falência renal, correndo risco de vida e com celulite (infecção da pele) e suspeita de gangrena gasosa, lesão muito destrutiva (destruição celular), caracterizada por uma multiplicidade de bactérias a qual leva muitas vezes à amputação dos membros; 22. No dia 14 de Julho de 2004, o Autor é transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital “F”, depois de ter estado no Serviço de Medicina II daquele hospital, sendo-lhe implantado um cateter na virilha direita, começando de imediato um tratamento com uma cobertura alargada de antibióticos pela via venosa, cobrindo organismos hospitalares; 23. A colocação de cateter central na via femoral direita foi necessário para a administração de antibiótico e para a monitorização hemodinâmica e a escolha desta via foi condicionada pela localização das lesões existentes; 24. O Autor sentia-se desconfortável; 25. Em resultado do tratamento, os sinais inflamatórios da infecção deixaram de se apresentar no pescoço e no ombro, focalizando-se no braço direito, e houve redução de edema; 27. O Autor foi informado que a sua situação clínica era grave e que afectava os tecidos moles do braço e antebraço direitos, as massas musculares e articulação do cotovelo; 28. No dia 25 de Julho, foi isolado um fungo denominado “cândida albicans”; 29. O fungo supra mencionado foi contraído já no Hospital “F”; 30. É implantado um novo cateter ao Autor, na outra virilha, implantação que causou dor ao Autor; 31. Abriu-se uma fístula na parte interior do braço e, como o sangue estava coagulado, foram abertas duas incisões na região do cotovelo do braço direito do Autor para permitir a extracção do líquido hemático e desinfecção; 32. Foi ministrada morfina ao Autor para minimizar a dor; 33. O Autor passou pelo menos uma noite muito incomodado pelo frio proveniente de um aparelho de ar condicionado; 34. No dia 30 de Julho, é isolado uma bactéria denominada Pseudomonas Aeruginosa no cateter da virilha esquerda; 35. O cateter foi removido, sendo-lhe implantado um “avocato” no pulso esquerdo; 36. O Autor chegou a pensar que nunca sairia vivo do hospital; 37. O Autor necessitou de cirurgia plástica para tapar a exposição do cotovelo provocada pelas incisões supra referidas (em 31) e uma loca que se desenvolveu durante o tratamento; 37. A operação veio a realizar-se no dia 24 de Agosto; 38. No dia 24 de Julho surge novo edema duro, com febre baixa e glóbulos brancos baixos; 39. No dia 25, a equipa de cirurgia geral é chamada e drena do edema uma colecção de 300 ml de líquido hemático; 40. Tal intervenção é realizada pelo dr. “Q”; 41. No dia 29 de Julho é feito penso, deixando-se dois drenos nas locas, juntando-se à medicação antibiótico com antifúngico; 42. No dia 2 de Agosto é pedida a intervenção dos médicos da equipa de cirurgia plástica, à qual pertencia o dr. “C” o qual acorreu no próprio dia; 43. Só a partir do dia 2 de Agosto é que se verifica a intervenção dos drs. “C” e “D” , enquanto membros da equipa de médicos de cirurgia plástica; 44. O manteve-se medicado e permaneceu na Unidade de Cuidados Intensivos até ao dia 10 de Agosto; 45. No dia 10 de Agosto o Autor foi transferido para o serviço de Medicina II por estar livre de perigo de vida e de não necessitar de cuidados intensivos, com indicação para fazer penso diário; 46. O Autor foi visto no dia 12 de Agosto pela equipa de cirurgia plástica e foi marcada a intervenção cirúrgica para o dia 24 de Agosto; 47. No dia 8 de Agosto o Autor estava em condições de ser operado; 48. No dia 17 de Agosto foi dada alta clínica ao Autor e no dia 21 de Agosto o Autor regressou ao Hospital “F” para preparação de operação agendada para o dia 24 de Agosto, tendo sido internado na Unidade de Cirurgia Plástica; 49. Só quando o Autor regressou ao Hospital “F”, em 21 de Agosto, é que lhe foi substituído o penso que havia sido colocado há 4 dias; 50. Entre 12 de Julho e 24 de Agosto, o Autor perdeu cerca de 20 Kg; 51. No dia 24 de Agosto procedeu-se à operação que consistiu no enxerto de tecidos recolhidos da coxa direita para tapar exposição do cotovelo direito; 52. A operação foi feita sob anestesia geral e durou cerca de 1 hora; 53. Ao recuperar da anestesia, o Autor tem o braço direito todo ligado e com uma tala; 54. A partir de então, o Autor ficou numa situação de grande dependência para se vestir, alimentar e proceder à higiene pessoal. 55. O penso que lhe foi colocado era renovado com a periodicidade indicada pelo cirurgião; 56. Em conversa com o Dr. “C” este diz ao Autor que ele teria de aprender a usar mais o braço esquerdo; 56 b. O autor sentiu-se deprimido; 57. Os tecidos expostos do braço direito do Autor foram queimados com nitrato de prata e o Autor sofreu dores com tal tratamento; 58. No dia 21 de Setembro, o Autor foi submetido a nova cirurgia, com anestesia geral, para remover os tecidos infectados e proceder à excisão do tricípte; 59. No dia 28 de Setembro, o Autor é submetido a uma cirurgia que consistiu em coser o cotovelo ao abdómen para que se verificasse a transferência de tecidos e para com a pele do abdómen forrar o cotovelo; 60. O Autor acordou numa situação extremamente desconfortável e dolorosa e que sentia o cotovelo ligado ao abdómen e que tinha a mão direito sobre o ombro esquerdo; 61. A partir do dia em que acorda da operação, o Autor não aguentava estar deitado, dormindo sentado; 62. No dia 27 de Outubro, o Autor é submetido a operação cirúrgica para separar o braço do abdómen, no qual lhe é, de novo, ministrada anestesia; 63. Quando o Autor recupera, verifica que o braço direito se encontra imobilizado e que tem problemas de rotação no antebraço e na mão; 64. O Autor teve alta hospitalar no dia 29 de Outubro; 65. O Autor deixou o Hospital com pontos e pensos no abdómen e braço; 66. O Autor saiu do Hospital “F” com o braço manchado e com o cotovelo desfigurado; 67. A mão permaneceu manchada ainda durante alguns meses; 68. O Autor ficou com uma cicatriz no abdómen inferior, em forma de “y”, com o maior ramo horizontal medindo 14 cm e ramos curtos medindo, respectivamente, 9,5 cm e 10,5 cm; 69. O Autor está impossibilitado de lavar as costas sozinho; 70. O braço direito do Autor encontra-se em flexão de 120.°, a amplitude de máxima flexão do cotovelo é inferior à do membro colateral e que não consegue levar a mão à nuca; 71. Os factos descritos em 74.° a 80.° da BI são as sequelas de uma infecção, causada por uma bactéria, que se desenvolveu no braço direito do Autor; 72. Em data não determinada, no Hospital “F”, o Autor pediu gelo para aliviar as dores que sentia e que o gelo foi-lhe dado dentro de uma luva para ser posto em cima do joelho; 73. A tala que foi colocada no seguimento de uma das várias operações causava desconforto ao Autor; 74. No serviço de Medicina II do Hospital “F”havia duas casas de banho, uma de mulheres e outra de homens, e as casas de banho apresentavam deficiências de higiene e limpeza; 75. Os drs. “C” e “D” não se certificaram que os instrumentos médicos utilizados estão devidamente esterilizados, com o esclarecimento de que não era a eles que competia fazer tal certificação pois os instrumentos são abertos por um enfermeiro com essa concreta função; 76. O Autor é um quadro superior da “R”; 77. O Autor era reconhecido como um trabalhador «competente»; 78. O Autor desenvolveu importantes funções em Moçambique; 79. O Autor era um homem bem disposto e saudável; 80. A recolha de sangue referida supra sob o n.° 5 foi realizada por pessoal técnico especializado e com utensílios esterilizados e descartáveis; 81. Toda a instalação e equipamentos do Hospital “E” são limpos por pessoal especializado com recurso a detergentes e desinfectantes; 82. Toda a instalação, equipamentos incluídos do “E” sujeita-se a limpezas diárias e sempre que necessário; 83. Nesse local, por norma, não é permitida a presença de qualquer tipo de pessoas estranhas ao serviço; 84. Por regra, todos os trabalhadores que ali prestam serviço usam vestuário e calçado adequado ao local e, quando as circunstâncias o exigem, utilizam luvas descartáveis de látex que, uma vez utilizados, são colocadas em contentor de recolha de resíduos próprios; 85. Todos os resíduos hospitalares são devidamente acondicionados em contentores próprios para o efeito; 86. As camas, cadeiras de roda e macas ali existentes são objecto de limpeza imediata quando tal é exigido pelas circunstâncias; 87. Os lençóis, cobertores e resguardos são sempre mudados, uma vez utilizados, sendo trocados por outros devidamente lavados; 88. O cateter para aplicação do soro foi introduzido e encontrava embalado em vácuo e em material adequado a mantê-lo devidamente esterilizado; 89. O soro aplicado ao Autor estava hermeticamente fechado, destinando-se exclusivamente a um doente; 90. A tubagem que liga o saco do soro ao cateter também é descartável e encontra-se devidamente esterilizada e embalada em vácuo e material adequado a manter a sua esterilização; 91. O Nolotil é hermeticamente acondicionado em ampolas, correspondendo cada frasco a uma dose única individual; 92. Uma vez terminado o tratamento foi retirado ao Autor o cateter; 93. A Comissão de Controlo de Infecções do Hospital “E” procede a acções de fiscalização das instalações e equipamentos periódicas, promove acções de formação profissional junto dos mais variados funcionários do hospital e promove acções de divulgação de medidas tendentes a evitar a existência e/ou propagação de agentes bacteriológicos no seio das instalações; 94. No Hospital “F”, o Autor foi observado e visto pelo menos duas vezes por dia por médicos e por enfermeiros, sempre que necessário; 95. Durante a sua permanência no Hospital “F”, o Autor foi observado, para além da equipa de Cuidados Intensivos e de Cirurgia Geral, pela Dermatologia, Otorrino e Cirurgia Plástica, sempre que necessário; 96. O Autor foi submetido a exames como eco-dopler e radiologia; 97. O caso clínico do Autor foi amplamente discutido por todos os elementos do serviço, sendo objecto de apresentação em reuniões clínicas; 98. O manteve-se medicado e permaneceu na Unidade de Cuidados Intensivos até ao dia 10 de Agosto; 99. Todos os seres humanos têm “cândida albicans” na pele; 100. A contaminação por “cândida albicans” é uma ocorrência possível no contexto em que o Autor se encontrava e este foi contaminado por aquele fungo; 101. A “candida albicans” existe abundantemente no intestino e na zona perineal e que um dos factores que favorece o seu desenvolvimento é o uso de antibióticos de largo espectro, os quais eram imprescindíveis para o tratamento clínico do Autor e o seu isolamento na ponta de cateter é uma situação comum; 102. A “pseudomonas sensível” é um agente que existe quer na comunidade quer em comunidades hospitalares; 103. No estado em que se encontrava, o Autor era muito sensível a quaisquer microorganismos; 104. A implantação de cateteres é um procedimento clínico que pode ser doloroso e que pode exigir uma anestesia local; 105. No que à cirurgia respeita, realizou-se um programa terapêutico de pensos e intervenções cirúrgicas seriadas, adaptado à evolução clínica do doente sempre que necessário, e executado no tempo que a equipa cirúrgica considerou adequado para o doente; 106. O Autor foi informado sempre da sua situação clínica e das soluções equacionadas; 107. Quando o Autor teve alta, foi-lhe dada indicação de que poderia dirigir-se ao hospital da sua área de residência para muda de penso ou, em alternativa, voltar ao “F”ou ao “E”; 108. Os pensos pré e pós cirúrgicos foram realizados com a frequência e de acordo com a prescrição de substâncias determinadas pela equipa cirúrgica e consoante e evolução clínica do doente: 109. O braço teve de ficar ligado com tala para que os enxertos ficassem viáveis e que o braço tinha de estar imobilizado: 110. O penso era mudado sempre que necessário, tanto de dia como de noite, durante o horário de trabalho da equipa cirúrgica e fora dele; 111. Os diversos pensos foram aplicados com respeito das regras de assepsia, com utilização exclusiva de matérias esterilizados e credenciados; 112. Apresentando os tecidos do braço áreas de granulação, o procedimento clínico habitual é a queima com nitrato de prata, substância excelente enquanto controlador de infecções, e as áreas a tratar eram mínimas; 113. Se não se conseguisse revestir o cotovelo, o braço do Autor poderia ter de ser amputado; 114. No pós-operatório o Autor foi visitado pelos diversos membros do serviço várias vezes durante o dia e a noite. * * Comecemos por ponderar a natureza da relação estabelecida entre A. e R.. Importa ter presente que enquanto na responsabilidade extracontratual ou aquiliana é sobre o lesado recai o ónus de prova da existência de culpa relativamente à prática do facto ilícito (art. 487º, nº 1, do CC), na responsabilidade contratual, provada que seja uma situação de incumprimento ou de cumprimento defeituoso da obrigação assumida, presume-se a culpa, recaindo sobre o prestador de serviços (devedor) o ónus da sua elisão (art. 799º, nº 1, do CC). É certo que, como diz o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 5.7.2001, CJ-STJ, II, 166, citado pelo recorrente, “a assistência médica surge, em regra, como um contrato de prestação de serviços, oneroso, sinalagmático com carácter pessoal de execução continuada, com vista ao tratamento do doente”. Se o doente beneficia de um seguro, é este o caso, mesmo que as partes do contrato sejam outras (é o caso, por todos, do seguro de acidentes de trabalho, que para o sinistrado trabalhador surge como um contrato a favor de terceiro, art.º 443 e ss. Código Civil). Mais evidente ainda é a situação em que o paciente se dirige a um consultório médico enquanto interessado na aquisição dos respectivos serviços. Neste caso, como escreve João Álvaro Dias, in “Procriação Assistida e Responsabilidade Médica”, Stvdia Ivridica, n° 21 - BFDC - Coimbra, 1996, 221-222, “a responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual. Médico e doente estão, no comum dos casos, ligados por um contrato marcadamente pessoal, de execução continuada e, por via de regra, sinalagmático e oneroso. Pelo simples facto de ter o seu consultório aberto ao público e de ter colocado a sua placa, o médico encontra-se numa situação de proponente contratual. Por seu turno, o doente que aí se dirige, necessitando de cuidados médicos, está a manifestar a sua aceitação a tal proposta. Tal factualidade é, por si só, bastante para que possa dizer-se, com toda a segurança, que estamos aqui em face dum contrato consensual pois que, regra geral, não se exige qualquer forma mais ou menos solene para a celebração de tal acordo de vontades. Em todos eles existe um vínculo contratual subjacente à prestação de cuidados de saúde. Se tal vínculo inexiste a responsabilidade civil só pode resultar da violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem. A responsabilidade extracontratual está prevista nos arts. 483º, a contratual encontra-se nos art.º 798 e ss, achando-se o regime comum da obrigação de indemnizar nos art.º 562º e ss, todos do Código Civil. A responsabilidade contratual pressupõe o incumprimento (art.º 798), a aquiliana a violação do direito de outrem, pelo menos negligente (art.º 483/1). Em qualquer caso, a responsabilidade civil supõe a culpa, apreciada in abstracto, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (487/2 e 799/2). São os mesmos os elementos constitutivos da responsabilidade civil, provenha ela de um facto ilícito ou de um contrato, a saber: o facto (controlável pela vontade do homem); a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Ora, é claro que a responsabilidade, no caso, não é contratual. Com efeito, inexiste qualquer vínculo obrigacional entre as partes ou entre o hospital e terceiro de que o A. seja beneficiário. Na verdade, o A. foi assistido no Hospital “E” e no hospital “F”, entidades inseridas no Serviço Nacional de Saúde[11]. Não faz sentido, pois, a argumentação de que não há, materialmente, “diferença entre o utente dum hospital do SNS, e, por exemplo, o utente titular de um seguro de saúde quando se desloca a um hospital privado incluído no seu plano. Este último utente, tal como o primeiro: a) paga uma prestação periódica a uma entidade distinta do prestador, b) esta prestação também é periódica e independente da concretização ou não da necessidade de tratamento, c) o utente também não paga directamente ao prestador de cuidados médicos, na eventualidade de ser efectivamente necessário tratamento, ou paga apenas uma franquia não correspondente ao efectivo valor do tratamento (semelhante à taxa moderadora). Apesar do elemento sinalagmático do contrato de seguro de saúde ser em tudo semelhante ao do contrato tácito do utente do SNS, ninguém disputa que haja uma relação contratual entre o segurado e o hospital privado, ainda que a contraprestação do utente seja paga por terceiro por força de uma outra relação contratual. No que se refere ao Serviço Nacional de Saúde, o utente paga impostos, dos quais uma parte serve para financiar o SNS. Em troca desta contribuição, o cidadão tem a expectativa (e o direito) a todos os cuidados médicos que possam vir a ser necessários. Isto é uma relação materialmente sinalagmática. E não se vislumbram motivos para o utente do exemplo ter menos protecção legal em caso de dano do que o utente do hospital privado pago pelo seu seguro de vida. Tanto mais que as 1s Rés eram, à data dos factos, sociedades anónimas regidas pelo direito privado”. E não faz porque a prestação de cuidados no âmbito de seguro de saúde depende de um contrato prévio[12], celebrado entre privados, sinalagmático, em que os cuidados de saúde são correspectivos ao pagamento de prémios pelo paciente (ou por terceiro em seu beneficio), enquanto os cuidados em hospital do SNS não dependem de qualquer convénio prévio, expresso ou tácito, nem de qualquer pagamento (seja a titulo de taxa moderadora – chama-lhe o A. franquia – seja de qualquer taxa ou imposto). Não colhe a pretensão de se ver no pagamento de impostos uma contra-prestação de carater afinal contratual: nem há qualquer liberdade contratual aqui, nem qualquer sinalagma, sendo os cuidados prestados mesmo a quem não contribuiu em sede fiscal. A natureza dos hospitais em causa à data não leva a outra conclusão: eram sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos, integrados no serviço nacional de saúde, como refere a sentença recorrida. E não se fale em inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, que não tem sentido perante realidades desiguais, como é o caso. De resto, quem pretende a fortiori beneficiar das vantagens da responsabilidade contratual tem sempre a alternativa de se dirigir a um estabelecimento de saúde privado. E nem por violação do direito de ação, a que as partes podem sempre aceder. O direito de ação não pressupõe a equiparação de todos os regimes legais, independentemente designadamente da sua natureza pública ou privada. * Como flui do exposto, e sintetizou o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 19.6.2001[13], “a nossa lei não prevê, no que toca à responsabilidade médica, casos de responsabilidade objectiva, nem casos de responsabilidade civil por factos lícitos danosos - tal responsabilidade assenta na culpa”. Há, pois, que provar os elementos próprios da responsabilidade civil: - o facto (controlável pela vontade do homem); - a ilicitude; - a culpa; - o dano; - o nexo de causalidade entre o facto e o dano[14]. A decisão recorrida entendeu que, face à colheita do sangue no braço direito, efetuado no “E”, onde lhe foi aplicado Nolotil e soro por via intravenosa, passando nesse dia a sentir ligeiro ardor no braço, aparecendo uma mancha vermelha no local da punção, a qual nos dias seguintes alastrou em direção à mão e ao cotovelo, tórax e parte do pescoço, e que quando foi transferido para o “F” 4 dias depois padecia de septicemia com falência renal, correndo risco de vida e com celulite (infeção da pele) e suspeita de gangrena gasosa, se provou o nexo causal entre a punção e a septicemia; radicando porém o óbice à condenação na falta de responsabilidade dos agentes, a provar pelo A. nos termos do art.º 342/1 do Código Civil. É contra o ultimo segmento que o A. se insurge, alegando que é impossível saber quem foi o agente, quanto mais provar. De aí conclui que fez a prova. João Álvaro Dias, in Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspetos Ressarcitórios, observa a propósito da responsabilidade do médico que a ilicitude pode resultar “da violação dos deveres contratualmente assumidos, quer da violação de um genérico dever de cuidado, do dever de informação, de uma norma de proteção, de um dever funcional ou, genericamente, da violação de qualquer direito de personalidade com que o tratamento ou intervenção direta ou indiretamente possa contender” (436-437). Na violação do dever de cuidado perfila-se a responsabilidade extra-contratual (“violação do dever de cuidado – escreve em nota de rodapé 969 – que mais não é do que uma específica forma de atuação negligente ou dolosa a que se referem as normas que nos diferentes ordenamentos jurídicos consagram as regras basilares em matéria de responsabilidade civil extra-contratual (vg art.º 483 Código Civil)” Estando, como vimos, no âmbito da responsabilidade extra-contratual, incumbe ao lesado provar a culpa do réu (em conformidade com o disposto no nº 1 do art. 487º, em matéria de responsabilidade civil extracontratual é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, excepto se houver presunção legal de culpa - Ac do STJ de 18-09-2012). Terá havido violação do dever de cuidado? Vejamos: uma coisa é provar-se o dano que efetivamente o A. sofreu; outra a aludida violação. E é isto – e não saber quem foi o agente – que a sentença nota, ao referir que a recolha foi realizada por pessoal técnico especializado e com utensílios esterilizados e descartáveis, bem como o cateter, o soro, a tubagem que liga o saco do soro ao cateter e o Nolotil, se encontravam nas condições adequadas aludidas nas respostas aos quesitos 80, 88, 90 e 91; existindo também limpeza nos móveis e instalações (81, 82, 85, 86, 87) e no pessoal (84). E que também no que toca ao “F” o emprego de antibióticos e cateteres era adequado. Não se demonstrou, pois, tal violação. Pretende o recorrente – é certo que invocando a responsabilidade contratual, que não se aplica aqui – repartir o ónus da prova com a parte contrária. Tal seria possível a entender-se que a punção constitui meio perigoso, nos termos do art.º 493 do Código Civil[15]. Entendemos que também aqui não errou a sentença recorrida: nem a prestação de cuidados de saúde é, em regra, perigosa, nem os meios empregues, designadamente a punção, o são, sendo, pelo contrário, necessário ao diagnóstico e tratamento do A. (cfr 3, 5, 7, 10 e 11 dos factos provados). De onde se conclui que o ónus da prova é do A.. * Não deve prosseguir-se sem chamara atenção para o erro da argumentação do A. ao pretender que na responsabilidade médica sempre coexistem a responsabilidade contratual e extra-contratual, pretendendo invocar o acórdão desta Relação de Lisboa de 20.01.2004. O que diz este aresto é que “a atuação do médico causadora de dano pode dar origem a responsabilidade por violação contratual a responsabilidade extra-contratual nos casos em que exista violação dos direitos do doente à vida ou, em certos casos de omissão, do dever de assistência imposto por lei”. Ou seja, havendo um vínculo obrigacional, a responsabilidade é contratual, podendo então coexistir a responsabilidade extra-contratual atentos os bens ofendidos (que sempre implicariam a responsabilidade do agente mesmo não havendo qualquer negócio jurídico bilateral)[16]. Neste caso “o lesado pode optar por uma ou outra, conforme os seus interesses, demandando o médico com base nos princípios que lhe forem mais favoráveis, seja em matéria de prescrição (arts.498º e 309º), de prova da culpa (arts.487º, nº1 e 799º, nº1), de actos praticados por pessoas que o médico utilizou como auxiliares (arts.500º, nº2 e 800º, nº1). Neste sentido, podem ver-se, entre outros, Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, ob.cit., pág.40, Rui de Alarcão, in Direito das Obrigações, pág.210, e Pinto Monteiro, in «Cláusulas Limitativas e de Exclusão da Responsabilidade Civil», in BFD, Sup. XXVIII, Coimbra, 1985, págs.398-400” (acórdão da Relação de Lisboa de 12-06-2012, fundamentação). Mas isso pressupõe a relação contratual, como refere aquele acórdão de 20.1.2004[17]. Não havendo tal relação, como é o caso, não pode haver concurso de responsabilidades extra-contratual e contratual. * Pretende, enfim, o recorrente que se aditem três novos artigos “Se não houvesse a punção, não teria havido infecção?”, “Na altura da punção, havia um contexto generalizado de violações de procedimentos e regras de combate às infecções hospitalares no R. Hospital “E”?” “Os grupos profissionais funcionários do R. “E”, S.A. demonstravam à data da punção um profundo desconhecimento sobre as normas da Leges Artis referentes a quando e como se deve lavar as mãos?”, a partir dos quais entende que, de todo o modo, procederia a ação. Não é de acolher a pretensão: por um lado, extraiu o Tribunal a ilação, conforme o recorrente cita, de que existe nexo causal entre a punção que lhe foi efetuada no braço e a septicemia e infeção de pele de que padecia quando em 13 de Julho deu entrada no “F”. Logo o 1º nada adiantaria. Os dois últimos contradizem a prova produzida, expressos nas respostas aos quesitos 81 e ss; e seriam ainda inconsequentes, já que sempre não concretizam onde teria havido a violação do dever de cuidado que levou designadamente à infeção. * * Conclui-se assim que a sentença não merece censura. DECISÃO Pelo exposto julga-se parcialmente procedente o recurso quanto à matéria de facto, que se altera nos termos do n.º 56-b, e improcedente no mais, confirmando-se assim a decisão recorrida. Custas pelo A. Lisboa, 13 de dezembro de 2012 Sérgio Almeida Lúcia Sousa Magda Geraldes ----------------------------------------------------------------------------------------- [1] Acrescenta o n.º 2 que “no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”. [2] Cf. também no direito substantivo cível art.º 396 (“A força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal”), 391 (“O resultado da inspecção é livremente apreciado pelo tribunal”) e 389 (“A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal”). [3] “O que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiencia de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas processuais. O que decide é a verdade material e não a verdade formal” (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Cb. Edit., 384). [4] “O princípio traduz-se principalmente no contacto pessoal entre o juiz e as diversas fontes de prova (Manuel de Andrade, idem, 386). [5] E ainda, acrescente-se, o da oralidade. [6] E o problema não está no mero áudio mas na natureza estática da documentação. Ainda que se grave som e imagem é fácil ver que só o Tribunal que recolhe a prova pode pôr as testemunhas à prova para dissipar duvidas, aperceber-se in loco de cumplicidades e tensões inconfessadas, etc. [7] “O investigador americano Mehrabian fez uma estimativa da proporção verbal/não verbal do comportamento e concluiu que 55% da mensagem é transmitida via linguagem corporal. Ainda segundo o mesmo estudo, a voz é responsável por 38% e as palavras apenas por 7%” (in wikipedia - cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Comunica% C3%A7%C3%A3o_n%C3%A3o_verbal). Sobre a comunicação não verbal já no Antigo Testamento se pode ler que “o homem iníquo tem a boca pervertida. Acena com os olhos, fala com os pés e faz sinais com os dedos” (Provérbios 6:12-13). [8] Não concordamos por isso com quem defende a busca de uma nova convicção. Contra, cf. acórdão da Relação de Lisboa de 27-05-2010. Como diz o acórdão desta mesma Relação de 16-03-2010 “a convicção do Tribunal não é, em princípio, sindicável. (…) O objectivo do legislador não é o da criação de um efectivo e universal segundo grau de jurisdição sobre toda a matéria de facto, mas apenas sobre pontos específicos sobre os quais não haja a possibilidade de sustentação da prova produzida” [9] Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II VoL, 3ª Ed. pag. 273 e ss., escreve que “a gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos (...) pode revelar-se insuficiente para fixar todos os elementos susceptíveis de condicionar ou de influenciar a convicção do juiz ou dos juízes perante quem são prestados. Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores”. [10] Art.º 685-A, n.º 2: “No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição”. [11] O que acontece, vulgarmente, por exemplo, com a assistência prestada em hospitais públicos às vitimas de acidentes de viação [12] Neste sentido, parece, António Henriques Gaspar, “A responsabilidade civil do médico”, in Colect. de Jurispª, ano III, 1978, p. 341: “O médico (ou o estabelecimento organizado sob forma comercial para a prestação de assistência, a clínica) aceita prestar ao doente a assistência de que necessite, mediante acordo, pagando este, de seu lado, a retribuição que for devida - muito embora este pagamento não seja elemento essencial”. [13] Os acórdãos citados sem menção da fonte estão disponíveis em www.dgsi.pt [14] Não se esqueça que, como diz o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 15.12.11 (fundamentação), “são os mesmos os elementos constitutivos da responsabilidade civil, provenha ela de um facto ilícito ou de um contrato, a saber: o facto (controlável pela vontade do homem); a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano”. [15] Refere o citado Ac do Supremo Tribunal de Justiça de 18-09-2012 que “No n.º 2 do art. 493º estabelece-se a presunção de culpa por parte de quem exerce uma actividade perigosa. É este que tem de provar, para se eximir à responsabilidade, que não teve culpa na produção do facto danoso. O art. 493º, nº 2, ao impor ao que exerce uma actividade perigosa o dever de empregar todas as diligências exigidas pelas circunstâncias para prevenir os danos reclama a diligência de um bom pai de família adaptada ao caso da actividade perigosa, ou seja, sendo perigosa essa actividade, um bom pai de família deve adoptar medidas ou providências especialmente adequadas a prevenir danos”. [16] Proclama assim o Acórdão desta Relação de 24-04-2007 que “aceite que a regra é a da natureza contratual da responsabilidade médica, fazendo recair sobre o médico a prova da conformidade da sua actuação com as leges artis, casos há em que a actuação ilícita do médico, causadora de resultados danosos para o doente, pode configurar uma situação de responsabilidade extracontratual” E na fundamentação cita CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA in “Os Contratos Civis”, pp. 81 in fine e 82, ao referir que «a responsabilidade delitual constitui meio exclusivo, quando contrato não haja, e concorre com a responsabilidade contratual, quando o médico viola um direito subjectivo absoluto incidente sobre a vida ou a saúde do paciente». Porém, «a violação de outros direitos, designadamente de natureza patrimonial, só é ressarcível em sede contratual». [17]“ A actuação do médico causadora de danos pode dar origem a responsabilidade por violação contratual e a responsabilidade extracontratual nos casos em que exista violação dos direitos do doente á saúde e à vida ou, em certos casos de omissão, do dever de assistência imposto por lei. Quando o médico por causa que lhe seja imputável, não efectue ou efectue defeituosamente a prestação de cuidados a que se obrigou, causando danos ao doente credor dessa prestação constitui-se no dever de reparar o prejuízo causado. (…) Mostram os autos que o SAMS – Serviços de Assistência Médico-Social do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, mediante inscrição e o pagamento das respectivas contribuições (do funcionário bancário e entidade patronal), têm os beneficiários direito a assistência médica a prestar por aqueles serviços. Trata-se da prestação de serviços de assistência médica e medicamentosa efectuada pelo SAMS, a quem cabe o recrutamento e contratação dos médicos e técnicos que, em cada caso concreto, prestarão a assistência por si assumida. A relação contratual forma-se pois, nestas situações, entre o paciente e o próprio SAMS, entidade que se compromete a prestar aos seus beneficiários assistência médico-social”. No mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.9.11 refere que “estamos perante responsabilidade derivada de “uma intervenção que se dá numa relação contratual de direito privado, entre um paciente e um médico por ele escolhido no exercício de clínica privada” (…). Em primeira mão, o que se põe é a questão da responsabilidade civil contratual, (…) Acontece, porém, que, estando em causa direitos absolutos como o direito à vida ou à integridade física, oponíveis, por isso erga omnes, a actuação incorrecta e danosa da intervenção médica pode ser vista também como a violação daqueles direitos, portanto, como integradora de responsabilidade delitual ou extracontratual, ainda que essa intervenção derive de contrato. |