Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
269/13.0PAPTS.L1-3
Relator: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA
Descritores: CRIME DE DANO
DIREITO DE QUEIXA
LEGITIMIDADE
ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/31/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONECEDIDO PROVIMENTO
Sumário: O que é construído em terreno alheio ou é destruído ou incorporado no terreno e passa a ser pertença do proprietário deste.
Se alguém começa obras em terreno que sabe não ser ainda seu, isto é, em terreno alheio, à luz da 1.ª parte do n.º 4 do art.º 1340, do CC, age de má fé.
Assim, no caso de processo que tem natureza processual penal o demandante não tem legitimidade para apresentar a queixa quanto ao dano provocado no muro construído por si uma vez que, estava relativamente à construção do mesmo, de má fé.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


Nos presentes autos veio ...recorrer da decisão que o condenou pela prática, em autoria material, de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz o montante global de € 540 (quinhentos e quarenta euros).

Julgou parcialmente procedente, por provada, a acção civil enxertada pelo demandante ...contra o demandado, ora arguido e, em consequência:
c)- Condenou o demandado a pagar ao demandante a quantia a liquidar em execução de sentença, correspondente ao custo do material e mão de obra necessárias à edificação da parte do muro destruída, quantia essa que não pode exceder o valor máximo peticionado.

Para tanto juntou as seguintes conclusões:

foi alegada pelo arguido que o queixoso ..., que nos presentes autos assume o estatuto de ofendido e demandante" não é efectivamente proprietário de qualquer prédio nos termos em que alega("), facto esse que de per se, assume relevância, não só no que tange à apreciação da pretensão cível enxertada à presente acção penal, mas necessariamente, e salvo melhor opinião, ao conhecimento do mérito dos presentes autos penais.

Com efeito, a questão da propriedade do solo onde o muro danificado se encontra implantado, não é pois despicienda/inócua, para aferição dos requisitos de procedibilidade da presente acção penal, designadamente, no que toca à legitimidade do titular da acção penal.

Na verdade, em face da natureza semi-pública do ilícito penal em causa, o qual depende do exercício do direito de queixa ( cfr. n. 2 3 do art.? 212.2 do CP), deveria o tribunal a quo, pronunciar-se previamente, sobre a questão da legitimidade do MP para deduzir acusação pública, e bem assim, à montante, da própria legitimidade do ofendido em apresentar queixa-crime, uma vez que, pelo arguido, foi alegado, que o ali demandante/queixoso, que assumia o estatuto de ofendido, não tinha legitimidade para exercer o direito de queixa, em face do estatuído no n.21 do artº 113º2 do CP.

Desta feita, e salvo melhor opinião, o tribunal a quo, ao não emitir pronúncia sobre aquela concreta questão aventada pelo arguido na sua contestação penal, omitiu pronúncia sobre uma concreta questão, sobre a qual estava vinculado a se pronunciar, encontrando-se desta feita afectada intrinsecamente pelo vício de nulidade a sentença sub judice, designadamente, da nulidade tipificada na norma legal supra referida, e que ora se argui para todos e os devidos efeitos legais.

Conforme resulta da fundamentação da douta sentença de que se recorre, refere-se que" ( ... ) O arguido efectivamente, destruiu parte do muro edificado pelo demandante, certamente na parte que delimitava a faixa de terreno que, mais tarde, o tribunal veio a reconhecer como sendo dos seus cunhados de acordo com a certidão da sentença proferida no processo n. º 167/15.3T8PTS, que constituiu causa prejudicial da presente acção, e que consta dos autos a fls 150 a 173. ( ... l". - negrito e sublinhado nosso.

Conforme resulta do excurso da fundamentação da douta sentença, o douto tribunal, segrega, autonomiza duas realidades:
i)- por um lado o muro edificado pelo lesado;
ii)-  e por outro lado o solo/ prédio rústico sobre o qual foi implantado o referido muro cuja destruição, o tribunal imputou a sua autoria ao aqui arguido, ora recorrente.

10. Contudo, a segregação de tais realidades por parte do tribunal a quo, não lhe permitiu, salvo o devido e merecido mui respeito, e ainda melhor opinião, autonomizar o tratamento, que cada uma dessas mesmas realidades, e o conjunto das mesmas no presente caso reclamavam.
11. Na verdade, se é certo que não se pode descurar que o muro de per se constitui, quer em termos jurídico-civis, quer em termos jurídicos-penais, uma " coisa", enquanto "substância corpórea, material, com valor juridicamente relevante", a verdade é que, o tribunal a quo, não pode atender, para efeito de julgamento e prolação da decisão a proferir nos presentes autos, à essa mesma realidade, isto é, a destruição do muro, desligada da verdadeira realidade dos factos, isto é, da destruição de um muro, que não se encontrava desprovido de área de implantação  designadamente de solo onde estava efectivamente incorporado.
12. Vale isto por dizer, que o muro, cuja destruição, constitui objecto dos presentes autos, não existia de per se, como uma realidade autónoma, a se, mas antes, existia enquanto realidade" ligada umbilicalmente/intrinsecamente" à uma outra realidade material/ à um outro substracto que lhe dava sustentação.
13. É pois essa ligação/ essa incorporação do muro noutra realidade corpórea, designadamente no solo que compõe o prédio rústico, cujo direito de propriedade foi reconhecida como sendo propriedade que não do ofendido, que fora no nosso entendimento, descurada pelo tribunal a quo, no que respeita na aplicação do direito ao caso em concreto.
14. Nos presentes autos, não podemos, salvo melhor opinião olvidar a questão do local onde o muro construído se encontrava incorporado, pois o muro enquanto edificação, à medida que se incorpora e se " arvora" a partir do solo de um prédio, já não podem ser encaradas como realidades autónomas, separadas, com tratamento jurídico diferenciados, mas sim como uma realidade una, a que a ordem jurídica atribuiu um tratamento unitário.
15. Por conseguinte importa atender que, o muro em causa, enquanto elemento imóvel, incorporado no solo, não é de per se uma realidade autonomizável, " destacável", do prédio onde o mesmo se encontrava implantando, mas antes "parte integrante" desse mesmo prédio, na medida em que nele está incorporado.
16. Aliás, o reconhecimento, da relevância do tratamento unitário/conjunto dessas duas realidades, esteve subjacente à decisão do douto tribunal a quo, que ordenou a suspensão da presente instância, reconhecendo o carácter prejudicial que a determinação do direito de propriedade do solo em que o muro estava implantado, teria na resolução do presente conflito penal, desde logo, no que respeita à aferição da própria legitimidade para o exercício do direito de queixa.
17. Na verdade, e consubstanciando-se o objecto da acção neste tipo legal de crime em apreço, na destruição, danificação, desfiguramento ou inutilização de coisa corpórea alheia, torna-se pois relevante aferir, efectivamente quem é o proprietário do muro que viera a ser danificado, não descurando que o muro foi edificado não em prédio do ofendido- demandante mas antes no prédio de terceiros, designadamente do cunhados do aqui arguido, conforme ficou expendida na douta sentença.
18. Ora, desta feita, e conforme reconhece o douto tribunal, em sede de fundamentação da sentença recorrida, o muro em causa, encontrava-se implantado no prédio, cujo direito de propriedade, vier a  ser reconhecido e declarado a favor dos cunhados do aqui arguido.
19. Por conseguinte, estamos perante, uma edificação de um muro em prédio alheio, o que nos leva, necessariamente, para efeitos de determinação do direito de propriedade- questão prévia que se impõe à questão penal que se coloca nos presentes autos, à lançar mão do instituto jurídico da acessão industrial imobiliária.

20. Com efeito, nos termos do disposto no 1325.º do CC: " Dá-se a acessão, quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que lhe não pertence.".
21. Sendo que, no caso em concreto, importaria, recorrer aos critérios plasmados no art.º 1340.º do CC, atento ao facto de estarmos perante uma acessão do tipo industrial imobiliária.
22. Por conseguinte, é por referência à propriedade do solo onde o muro está integrado, que se irá por regra determinar quem é o titular do " direito de propriedade" dessa realidade composta quer pelo solo, quer pelo muro que nele foi edificado. A lei civil, impõe que à estas duas realidades seja atribuído um tratamento unitário, não sendo, salvo melhor opinião, admissível constituir-se um direito   de propriedade sobre um muro que está implantado sobre um prédio alheio ( quanto muito, quem edificou tal muro, poderá, ser proprietário da totalidade desse prédio, ou então vir a ser titular de um direito de crédito relativamente ao dono do solo, nos termos e condições previstas no artº 1340º do CC).
23.  Assim, estando provado que a faixa de terreno sobre a qual o demandante edificou o muro destruído, constitui propriedade que não lhe pertence ( al c) dos factos julgados como não provados), tal obra-muro, nele incorporado, foi adquirida originariamente, por via de acessão imobiliária industrial, por parte dos proprietários daquela faixa do solo, que são por conseguinte os ..., conforme certidão de sentença junta aos autos. ( salvo se, se verificar a situação prevista no n.º 1 do art. 1340º do CC).

24. Ou seja, essa coisa alheia- que nos presentes autos, não se poderá reconduzir exclusivamente ao muro edificado pelo demandado, atento ao facto de se encontrar implantando em solo que não lhe pertencia, e nesta medida, ter-se-á que atender e atribuir em face do supra exposto a tais "coisas" - solo e muro - um tratamento unitário, e não fragmentado - , só seria alheia, no sentido de ser atribuída a titularidade da propriedade ao demandante, na eventualidade de se ter demonstrado em juízo ( já que ficou demonstrado documentalmente que o prédio onde o muro foi edificado e implantado, constituir propriedade de terceiros que não o demandante), que:
a)- o demandante desconhecia sem culpa que edificava tal muro em prédio que não fosse o seu;
b)- que o muro em causa trouxe um valor maior à faixa de terreno supra referido. 
ln casu, do texto da própria sentença, não resulta, que o tribunal a quo haja feito essa indagação probatória, nem tampouco, resulta, apurada tal factologia, pelo que, para além de nos parecer que a decisão em causa efémera de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude a a) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, afigurasse-nos que o tribunal a quo fez uma incorreta interpretação do n.º 1 do artº 212.º do CP, designadamente, no que concerne, ao elemento do tipo de ilícito-objectivo " coisa alheia", na medida em que, atribui ao muro edificado em prédio alheio um tratamento autónomo, fazendo incidir sobre o mesmo um direito de propriedade "autónomo", quando efectivamente, não se tratando de algo que se pudesse "destacar que fosse amovível daquele prédio, cuja propriedade não pertence ao demandante, jamais, poder-se-ia considerá-lo como seu proprietário ( sem prejuízo, de assim, poder vir a ser reconhecido, nessa qualidade, da globalidade do solo e do muro, ao abrigo do disposto no artº 1340.º do CC, e desde que fossem realizadas as diligências probatórias nesse sentido).

Termos em que e nos mais de direito deverá ser julgado procedente o presente recurso, Pois só assim se fará a habitual e sã justiça!

Respondeu o MP ao recurso em primeira instância dizendo que:

1. O arguido alegou na contestação que o ofendido demandante não era o proprietário do terreno em causa, sendo que o que foi objecto da acusação foi a propriedade do muro edificado pelo arguido.
2.  O terreno veio a ser, posteriormente à data da prática dos factos, reconhecido em acção judicial, como sendo propriedade dos cunhados do arguido, de terceira pessoa.
3. O tribunal não deu como provado que o arguido tivesse agido por ordem ou sob instruções ou a mando dos seus cunhados, pelo que o condenou como autor material dos factos descritos na acusação, por prática de crime de dano.
4. Não se coloca, deste modo, um problema de legitimidade, quer do ofendido demandante, a quem assistia um interesse legítimo, na data da prática dos factos, quer do Ministério Público, nos termos dos artigos 113.° e 212.°, nº 3 do Código Penal.
5. O recorrente alega que o muro terá sido edificado em prédio alheio, pelo que, se verifica a acessão industrial imobiliária, nos termos plasmados no artigo 1340.° do Código Civil.
6. Contudo, os alegados beneficiários da acessão, no caso, os cunhados do arguido, nunca adquiriram a propriedade da coisa incorporada, pagando, adquirindo após licitação, adquirindo ou exigindo a demolição ou adquirindo pagando após três meses, nos termos dos artigos 1339.°,1340.°, n." 1, n." 2,1341.° e 1343.° do Código Civil.
7. Assim sendo, o beneficiário da acessão, seriam sempre os cunhados do arguido, e não resultando que os mesmos tivessem exercido o direito potestativo, por qualquer forma, à data da prática dos factos e à data em que foi exercido o direito de queixa, o proprietário do muro era o ofendido, titular do direito de queixa.
8. Não nos parece, salvo o devido respeito, que o tribunal a quo, deixou de pronunciar-se sobre questões que devia conhecer sendo essenciais à boa decisão da causa ou, ainda menos que a douta sentença padece de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada.
9. Do mesmo modo, não nos parece que a douta sentença nos termos do artigo 379.° do Código de Processo Penal, enferme de omissão de pronúncia o que acarreta a nulidade da decisão proferida.
10. O Mmo Juiz de Direito fundamentou a sua decisão citando jurisprudência de Tribunais Superiores já divulgada em matéria controvertida, não deixando de argumentar e de fazer a análise crítica da prova em que apoiou a sua decisão, pelo que não se vislumbra o alegado erro de interpretação e violação do disposto no artigo 212.°, n." 1 do Código Penal.

Mas Vossas Excelências Venerandos Juízes Desembargadores Como Sempre Farão
JUSTIÇA
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Pronunciou-se o assistente no sentido de que o recurso se encontra desatempado esquecendo a data do correio.

CUMPRE DECIDIR:

Questão prévia recurso desatempado :
Esquece o assistente ao invocar a questão prévia em causa que  o recurso foi enviado a 27.3 por correio  e que é dessa data que se conta o prazo. Acresce que pagou multa e sendo assim o prazo terminava a 28.3. Está pois em tempo pelo que deve ser conhecido o seu conteúdo.
Improcede a questão prévia invocada.
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Vejamos agora relativamente às conclusões de recurso do recorrente
Diz o recorrente que existe omissão de pronuncia relativamente à  legitimidade para exercer o direito de queixa, em face do estatuído no n.º1 do art.º 113.º do CP, por entender que, efectivamente, o preenchimento/verificação do tipo de ilícito - objetivo, estar condicionado à prévia determinação do direito de propriedade.
Erro na interpretação e violação do disposto no artº 212º do CP já que há que ter em conta a propriedade do prédio na determinação do crime já que ficou demonstrado que o muro foi edificado e implantado, constituir propriedade de terceiros que não o demandante.
Insuficiência da matéria de facto.
Inexistência de queixa e  falta de legitimidade do MP

Está em causa um crime de dano, destruição de um muro num terreno cuja propriedade e segundo se provou, pertence aos cunhados do arguido que intentaram uma ação cível de reconhecimento de propriedade.
Acresce que tal ação judicial foi considerada como diz o Exmo Procurador junto deste Tribunal, questão prejudicial para o prosseguimento dos presentes autos por crime de dano contra o recorrente arguido.
Vejamos que factos foram dados como provados desde já.

1. No dia 12 de Novembro de 2013, cerca das 17.00 horas, no Sítio da Meia Légua, concelho da Ribeira Brava, o arguido, ..., usando um instrumento, partiu vários blocos de cimento que faziam parte de um muro propriedade de ....
2. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente quando desferiu vários golpes no muro, bem sabendo que, desse modo, provocava estragos no mesmo, que ele não lhe pertencia e que agia contra a vontade do proprietário e em seu prejuízo, como logrou.
3. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
4. O arguido não tem antecedentes criminais.
5. O arguido aufere rendimentos variáveis com a sua actividade profissional; vive com esposa em casa própria; possui o 4º ano de escolaridade.
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Provaram-se, ainda,os factos,constantes da acção civil enxertada .

Da sentença ainda resulta como não provado o seguinte:
Também não se provaram os seguintes factos, constantes da acção civil enxertada:
d)- Que o muro estava construído em terreno também pertencente ao demandante.
e)- Que, alguns dias depois, o arguido, deliberadamente, colocou pedras, entulho e materiais de construção em cima ou sobre o referido palheiro e terreno adjacente, pertencente ao demandante, destruindo e rompendo a cobertura em zinco do dito palheiro e uma latada ou corredor de arame, existente no mesmo local e propriedade do demandante.
f)- Que, para retirar do seu terreno o entulho, pedras e outros materiais, deixando o terreno no estado em que se encontrava anteriormente, o demandante gastou a importância de € 800, devido ao tempo despendido e a trabalhadores a quem teve de pagar para o efeito.
g)- Que, por causa da destruição do corredor ou latada e destruição da cobertura de zinco do referido palheiro, o demandante gastou a quantia de € 700, para substituir o material destruído e o arranjo dos estragos.
h)- Que, no dia 15 de Janeiro de 2014, o demandado derrubou um pilar de betão, na residência do demandante, que segurava uma varanda.
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Da fundamentação da decisão podemos ler.

A convicção do tribunal relativamente aos factos provados fundou-se numa análise crítica e global da prova produzida, considerando-se as declarações do demandante civil, os depoimentos das testemunhas e os documentos juntos aos autos.
O arguido, no uso de uma prerrogativa legal, não prestou declarações, a não ser às suas condições pessoais e económicas.
O demandante civil disse que teve uma disputa com os cunhados do arguido, proprietários do terreno que confina com o seu, a propósito da faixa de terreno delimitada, do lado das passadas, pela parte do muro que o arguido destruiu, e onde estava um corredor de arame com uma latada. O muro foi construído por si e o palheiro por cima de onde foi deitado o material descrito na acusação também era seu. Não presenciou o arguido a destruir efectivamente o muro ou a deitar ou a dar instruções para deitar o material em cima do palheiro ou do corredor. Computou os seus prejuízos em cerca de € 2.000. Reconheceu que o tribunal acabou por dar razão, no que respeita à faixa de terreno em causa, aos cunhados do arguido mas que os factos objecto da acusação aconteceram antes da decisão judicial.
Atento o seu óbvio interesse na causa e o modo como depôs – revoltado não apenas com o arguido e os seus familiares mas com a própria decisão judicial proferida na acção civil - o depoimento do demandante civil foi encarado com sérias reservas pelo tribunal.
As testemunhas Maria, vizinha, já idosa, depôs de modo sereno e sincero, por forma a merecer a credibilidade do tribunal. Disse que viu o arguido a rebentar o muro edificado pelo queixoso com um malho. A esposa do arguido também estava lá e disse ao marido que ele tinha feito “muito bem”. Nada sabe acerca dos danos no palheiro.
Praticamente semelhante foi o depoimento de Maria, também vizinha, de alguma idade, que também mereceu credibilidade do tribunal pelo modo seguro como depôs. Disse que, alertada pelo barulho das pancadas, veio até ao exterior da casa onde estava e viu o arguido a “esmigalhar” parte do muro do “palheiro do ...”, com recurso a um malho. Disse que, mais tarde, fizeram obras no terreno de cima e deitaram terra e entulho para a “regueira”, abaixo do muro do lado de baixo, tendo caído algum desse material em cima do zinco do palheiro que era do demandante. Não sabe, porém, quem foi o responsável por esta acção.
Do conjunto desta prova pode extrair-se a conclusão de que o arguido, efectivamente, destruiu parte do muro edificado pelo demandante, certamente na parte que delimitava a faixa de terreno que, mais tarde, o tribunal veio a reconhecer como sendo dos seus cunhados, de acordo com a certidão da sentença proferida no processo nº 167/15.3T8PTS, que constituiu causa prejudicial da presente acção, e que consta dos autos a fls 150 a 173. Mas, uma vez que o arguido optou por não prestar declarações e não houve outra prova nesse sentido (tendo a defesa prescindido da prova testemunhal que arrolou), não se pôde dar como provado que o arguido tenha agido a mando de quem veio a ser declarado legítimo proprietário do terreno delimitado pela parte do muro destruída – cuja imagem (da destruição) se vê na segunda fotografia de fls. 21 e na fotografia de fls. 239.
Porém, da mesma prova, não se pode retirar que o despejar de materiais de construção vindos de obra feita no terreno dos aludidos cunhados, habitualmente ausentes no estrangeiro (petição inicial daquela acção de fls. 125 e ss e procuração de fls. 251 e 252) – cuja licença não existia (fls. 245) – tenha sido da responsabilidade do arguido. Ninguém o viu a despejar tal entulho e se os trabalhadores dessa alegada obra o despejaram a mando de alguém também não se apurou ao certo de quem – até porque o terreno nem era do arguido e a procuradora do proprietário marido era, de acordo com o documento de fls. 251-2, a mulher do arguido. Por fim, das declarações da testemunha ...., conjugadas com a análise das fotografias de fls 20 e 21 e 239, não se conseguiu retirar que o entulho tenha destruído o que quer que fosse da propriedade do queixoso.
Relativamente às testemunhas apresentadas na acção civil, a primeira, Luís ., limitou-se a dizer que fez um orçamento, a pedido do demandante, de cerca de € 2.000, não se recordando bem dos pormenores do mesmo.
A segunda, José ., disse que esteve cerca de 8 dias a remover o entulho e outros materiais provenientes da obra do terreno de cima do que era do demandante, que lhe pagava cerca de € 50 por dia. Que consigo estava outro trabalhador, que esteve o mesmo tempo que ele e ganhava o mesmo que si. O depoimento desta testemunha não mereceu credibilidade, pelo menos na parte em que foram necessários oito dias de trabalho de dois homens para a limpeza, dada a exiguidade da faixa de terreno em causa (conforme se constata da análise das fotografias de fls. 20 e 21 – e ainda a de fls 239).
Resta acrescentar, quanto aos factos provados, que a ausência de antecedentes criminais do arguido se funda na análise do certificado de registo criminal de fls. 238.
Quanto aos factos não provados, a convicção do tribunal resulta da circunstância de sobre eles não ter sido produzida prova ou prova bastante, conforme se retira das considerações supra expendidas.
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Vejamos

O muro terá sido construído pelo demandante cível sobre um terreno que na altura da construção existia a dúvida de a quem pertencia o mesmo. Veio depois a verificar-se através da acção competente  que o terreno pertencia aos cunhados do arguido.

Posteriormente desenrolaram-se os factos que trouxeram o arguido a tribunal tendo o muro sido destruído pelo arguido, acção presenciada por testemunhas e não vista pelo demandante cível.
A questão apresenta-se-nos quase que só como uma questão cível. Na verdade toda a questão gira à volta da propriedade do terreno, da construção do muro e  depois de todos os confrontos e quezílias da destruição do mesmo antes de estar definida pelo tribunal a propriedade do terreno onde o muro assentava.
E se o  assistente construiu por teimosia um muro num terreno que sabia não estar definido como seu,  o que sucede é que este muro ficou incorporado claramente de forma abusiva num terreno alheio.
Tal pode não legitimar a actuação do arguido mas levanta-nos a questão do direito de queixa e da legitimidade para o mesmo.
Na verdade, construído muro em terreno alheio o que sucede é estarmos presente a figura da acessão industrial imobiliária.
Esta tem lugar quando
a)- a incorporação realizada resulte de um acto voluntário do interventor na feitura de uma obra, sementeira ou plantação;
b)- essa incorporação seja efectivada em terreno que não lhe pertença ou seja propriedade de outrem;
c)- os materiais utilizados pertençam ao interventor/autor da incorporação;
d)- da incorporação resulte a constituição de uma unidade inseparável, permanente, definitiva e individualizada entre o terreno e a obra, sementeira ou plantação;
e)- o valor acrescentado pela obra, sementeira ou plantação adicione valor (económico e substantivo) àquele que o prédio possuía antes de ter sofrido a incorporação;
f)- o interventor tenha agido de boa fé (psicológica);
g) actue potestativamente de modo a formular uma pretensão de adquirir para si o direito de propriedade da coisa que sofreu a sua intervenção.

Pode-se perguntar se tal foi praticado de boa ou má fé mas, se dos autos resulta que se existiam dúvidas como acontece resultar dos documentos juntos aos autos e se foi interposta uma ação para esclarecer a propriedade do terreno onde foi construído o muro, concluímos que o demandante sabia que podia estar a construir dentro de um terreno que podia não ser seu.
Não age de boa fé quem sabe ou admite que a construção é feita em terreno alheio, ou admite que assim possa acontecer, uma vez que não desconhecia o demandante que o terreno podia  ser alheio e que  a incorporação podia portanto, não ser autorizada pelos donos do terreno e nem sequer existia no momento da construção.
As consequências também são conhecidas e resultam da figura jurídica em causa ou seja, o que é  construído em terreno alheio ou é destruído ou incorporado no terreno e passa a ser pertença do proprietário deste.
Se alguém começa obras em terreno que sabe não ser ainda seu, isto é, em terreno alheio, à luz da 1.ª parte do n.º 4 do art.º 1340, do CC, age de má fé.
Assim, no caso deste processo que tem natureza processual penal o demandante não tinha legitimidade para apresentar a queixa uma vez que estava relativamente  à construção do muro de má fé.

Na verdade o tribunal dá como provado o seguinte:
Provaram-se, ainda, os seguintes factos, constantes da acção civil enxertada.

E ainda coloca o seguinte na fundamentação:
O arguido tem alguma justificação para a sua apurada conduta, pois que o tribunal decidiu que a faixa de terreno delimitada pelo muro não era do queixoso.

Assim sendo temos de concluir como concluiu o Exmo. Procurador Geral adjunto junto deste tribunal que, não existindo queixa, não pode o MP prosseguir com o procedimento criminal e, portanto só há que ordenar o arquivamento dos autos.

Nestes termos concede-se provimento ao recurso  ordenando o arquivamento dos autos por falta de queixa.

 
Lisboa, 31 de Janeiro de 2018



Adelina Barradas de Oliveira (DN Ac elaborado e revisto pela relatora)
Jorge Raposo