Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8363/2004-6
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
INJUNÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/20/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: Com a adesão ao sistema de via verde estabelece-se uma relação contratual entre a Brisa e o utente das auto estradas concessionadas àquela;
A Brisa pode socorrer-se do procedimento de injunção para obter um título executivo com vista à cobrança do crédito por não pagamento do serviço de auto estrada através do sistema via verde.
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

Brisa – Auto Estradas de Portugal, S.A., com sede na Quinta da Torre da Aguilha, S. Domingos de Rana, intentou em 16.04.03, no Tribunal da comarca de Cascais, acção executiva com processo sumário, ao abrigo do DL nº 274/97, contra (F), com domicílio na Rua..., Abrantes, para obter o pagamento da quantia de € 386,26, acrescida de juros legais.
Para tanto, alegou ter obtido a aposição da fórmula executória no requerimento de injunção que moveu contra o executado com base numa dívida deste emergente do acesso e utilização do Sistema da Via Verde, relativa ao período temporal de 12 de Maio a 11 de Outubro de 1997.
Por despacho de fls. 9 a 12, o Sr. Juiz, invocando o disposto no art. 811º-A, nº1, alínea a) do Cód. Proc. Civil, indeferiu liminarmente o requerimento executivo com fundamento na inexistência de título válido para fundar a execução.
Inconformada com esta decisão, a Exequente agravou, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. O título executivo apresentado pela Agravante para fundamentar o requerimento de execução apresentado não é, ao contrário do que se sugere no despacho recorrido, aparente. Considerá-lo como tal é violar o art. 14º, nº 1 do DL nº 269/98 de 1/9, e consequentemente, o art. 46º, alínea d) do Cód. Proc. Civil.
2. O título executivo apresentado pela Agravante é suportado por um procedimento de injunção, sendo reconhecido nos termos do art. 46º, al. d) do CPCivil, logo perfeitamente válido e eficaz.
3. O indeferimento liminar, contido no art. 811º-A, nº 1 a), do CPCivil, visa, tão só, aferir da regularidade do requerimento executivo e não da conformação do título executivo com o direito que lhe está subjacente. Não cabe ao juiz, em sede de processo executivo, emitir juízo de valor acerca de um título executivo perfeitamente legal, regularmente constituído e suficiente para fundamentar o requerimento interposto.
4. Efectivamente, o juíz só pode indeferir liminarmente o requerimento executivo, nos termos do art. 811º-A, em nenhuma das alíneas contidas no nº1 do citado artigo se encontra disposição que permita ao juiz apreciar oficiosamente o direito que dá causa ao título executivo. A existir desconformidade do direito com o título executivo, cabe ao devedor invocá-lo, quer em sede de procedimento de injunção quer em sede de embargos de executado.
5. O contrato de adesão ao sistema Via Verde, como forma de pagamento das taxas de portagem devidas em auto-estrada e outros pontos em que essas portagens são devidas, é fonte directa do pedido formulado no procedimento de injunção. Efectivamente, e ao contrário do sustentado pelo Mº juiz a quo, no despacho agravado, o pedido formulado no requerimento de injunção não diz respeito a sanções ou indemnizações devidas pelo não pagamento tempestivo das taxas de portagem.
6. Embora, entenda a Agravante que o juiz a quo não pode retirar força executiva a um documento a que a lei a atribuiu, e não pode apreciar na acção executiva o direito que fundamenta o título executivo, sempre se rebate o argumento de que a Agravante não pode recorrer ao procedimento de injunção para cobrar as obrigações pecuniárias emergentes do contrato “via verde”, através de parecer do Prof. Menezes Cordeiro que aqui se dá por integralmente reproduzido.
Assim, na “...sequência da adesão à via verde, surge-nos uma obrigação bastante diversa da inicialmente resultante das taxas: uma obrigação contratual, com vicissitudes e um funcionamento totalmente remodelados pela vontade das partes.”
Na verdade, como ensina aquele ilustre Professor (parecer citado), a BRISA, através do esquema de adesão à via verde, de acordo com a intervenção de todos os intervenientes, substitui a inicial obrigação pecuniária, derivada da taxa, por uma outra de base contratual. Ou seja a adesão à via verde provoca:
- “ A concessão a uma terceira entidade – a Via Verde Portugal SA – de um mandato destinado a cobrar certa importância;
- O recurso a um esquema específico de pagamento: transferência electrónica com recurso a um identificador;
- Obrigações instrumentais, com relevo para a de adquirir o identificador, a de o colocar devidamente e a de o manter associado a um cartão multibanco operacional;
- Sanções específicas, com relevo para a denúncia, pela concessionária, na hipótese de utilização abusiva;
- A possibilidade de alteração das condições, por iniciativa da concessionária.”
Pelo que dando-se com a adesão ao sistema “via verde” a novação da obrigação inicialmente existente, de cariz administrativo, por uma outra, de índole contratual privada, nada obsta a que a ora Agravante, recorra ao procedimento de injunção para exigir o cumprimento das obrigações pecuniárias que (e tal como) emergem desses contratos, lhe sejam devidas.
7. Concluindo, o despacho do tribunal “a quo”, ora recorrido, violou o art. 14º, nº1 do DL nº 269/98 de 1/9, e os art.s 46º, d) e 811º-A, al. a), ambos do CPCivil.
Com as alegações a Agravante juntou um douto parecer do ilustre Professor da Faculdade de Direito, Doutor Menezes Cordeiro.
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Fundamentação de facto.
Para além dos factos já referidos no relatório deste acórdão, importa ainda considerar os seguintes factos:
I - Em 24 de Fevereiro de 2003 a Brisa Auto Estradas de Portugal, SA, dirigiu ao Senhor Secretário do Tribunal Judicial de Cascais um requerimento no qual solicitou a notificação de (F) no sentido de lhe pagar a quantia de € 385,47, capital e juros;
Como causa de pedir consta no referido requerimento: “fornecimento de bens ou serviços”; como descrição da origem do crédito, “o contrato nº 20 850 800 216, datado de 07.12.95, período a que se refere 12.05.97 a 11.10.97” e ainda o seguinte:
“07.12.95, aquisição, validação e aceitação do contrato de adesão nos termos das cláusulas 2.1 – 2.5 e 2.11, das condições gerais de acesso e utilização do sistema da Via verde;
De 12.05.97 a 11.10.97 – incumprimento por violação designadamente das cláusulas 4.1 e 4.2 do contrato de adesão face à inibição do cartão multibanco, associado ao identificador, que não permitiu efectuar por transferência electrónica, as operações de débito das taxas de portagem devidas pela utilização das AE concessionadas à Brisa, durante este período;
Em 10.10.97, o notificando foi interpelado por carta registada para proceder de acordo com o preceituado na claúsula 2.5 do contrato para suprir o incumprimento. Verificada a continuidade do incumprimento culposo do devedor, aquele tornou-se definitivo em 28.09.99, data em que a Brisa denunciou o contrato nos termos da alínea b) da cláusula 5.1 e 2.15, ambas do contrato de adesão.”

II – No referido requerimento mostra-se aposta a seguinte expressão “este documento tem força executiva”, seguindo-se a data e a assinatura do Secretário Judicial, sob o selo branco do Tribunal.

Apreciação e decisão.
Constitui objecto deste recurso saber se é lícito à Brisa recorrer ao processo de injunção para obter um título executivo para cobrança de um crédito resultante do não pagamento de portagens em sistema de Via Verde.
Entendeu o Sr. Juiz da comarca de Cascais que não deveria ter sido conferida força executiva ao requerimento apresentado pela Agravante, por o pedido não se ajustar à finalidade do procedimento (art. 14º, nº 2 do DL n 269/98), inexistindo, assim, título válido para fundar a execução.
Na base do despacho impugnado está o entendimento de que inexiste uma relação contratual entre a Brisa e o utente da auto- estrada, não constituindo o não pagamento da portagem um ilícito contratual, o que afasta a possibilidade de o credor poder recorrer ao procedimento de injunção para haver o que lhe é devido. Mais se diz no despacho agravado que o não pagamento da taxa é punível como contravenção, “sendo irrelevante para efeitos de prática da referida transgressão o facto de o utilizador/utente da auto estrada concessionada à Brisa ser ou não aderente ao sistema da via verde” (sic).
Vejamos.
Como é sabido, toda a execução tem por base um título pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva (art. 45º do Cód. Proc. Civil).
À execução apenas podem servir de base os títulos enunciados no art. 46º do mesmo diploma, entre os quais os compreendidos na alínea d): “os documentos a que, por disposição especial, seja atribuida força executiva”.
Um título que se inclui na referida alínea d) é a injunção, procedimento cujo regime jurídico consta do DL nº 269/98 de 1 de Setembro.
A respectiva noção consta do art. 7º do anexo ao DL 269/98, aí se dispondo que:
“Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o art. 1º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo DL nº 32/2003 de 17 de Fevereiro.”
Por seu turno, o referido art. 1º menciona:
“:...os procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância...”.
A fórmula executória é-lhe dada pelo secretário do tribunal que, verificada a não dedução pelo requerido de oposição tendo sido notificado, aporá no requerimento de injunção a fórmula “este documento tem força executiva” (art. 14º nº 1 do anexo).
Trata-se, assim, de um processo pré-judicial, com vista à criação de um título executivo extra-judicial, na sequência de uma notificação para pagamento da quantia em dívida, sem a intervenção de um orgão jurisdicional, sob condição de o requerido, pessoalmente notificado, não deduzir oposição.
Do respectivo regime jurídico resulta que só podem ser objecto de injunção as obrigações pecuniárias emergentes de contratos, estando afastadas as obrigações emergentes de outras fontes tais como gestão de negócios, responsabilidade civil.
Expostos estes breves princípios, é altura de olharamos para o caso em apreço, desde já se adiantando que a razão está com a Agravante, não podendo manter-se o despacho recorrido.

Parece-nos indiscutível que com a adesão ao sistema da Via Verde, entre o executado e a Brisa surgiu uma relação contratual, inconfundível com a que resulta da simples utilização da auto estrada tendo como contrapartida o pagamento de uma taxa.
A adesão ao sistema da Via Verde consubstancia um típico contrato de adesão, uma vez que se verificam todos os requisitos que se associam a este tipo de contrato: o fornecedor do serviço faculta aos interessados um impresso contendo as cláusulas gerais do contrato, denominadas “contrato de adesão à Via Verde”, acompanhado de um formulário de adesão, apenas restando ao interessado aceitar, ou não, as condições do contrato sem poder discutir o seu conteúdo.
Ao aderir ao sistema o interessado assume algumas obrigações, designadamente a de adquirir um identificador, que terá de colocar no pára-brisas do carro, e a obrigação de o manter associado a um cartão de Multianco válido; em contrapartida, beneficia das vantagens de pagar electronicamente a importância devida com a viatura em movimento, o que representa maior comodidade, evita perdas de tempo, poupa a mecânica e combustível, etc.
Ou seja, com a adesão ao sistema da Via Verde estabelece-se uma relação contratual entre a Brisa e o aderente utilizador das auto estradas concessionadas àquela, da qual resultam direitos e obrigações para ambas as partes.
Mas mesmo que a utilização da auto estrada se faça mediante o simples pagamento da taxa/portagem não deixa de existir aqui uma relação contratual.
Na verdade, deve entender-se que quando o utente pretende circular por certo troço de auto estrada, se estabelece um contrato inominado entre ele próprio e a Brisa, como concessionária da sua exploração, em que ao pagamento da taxa-portagem, por parte do utilizador corresponde a prestação por parte da concessionária, de aceder à circulação pela auto estrada, com comodida e segurança. Uma típica relação contratual de facto, não nascida de declarações de vontade mas assente em puras actuações de facto, concludentes quanto ao seu sentido (cf. Antunes Varela, Das Obrigações I, 9ª edição, pag.231-236, e na jurisprudência, o Ac. do STJ de 17.02.2000, CJ AcSTJ ano VIII, tomo 1, pag, 107).
Esta conclusão não é de modo algum prejudicada pelo facto de entre a Brisa e o Estado existir um contrato de concessão, em relação ao qual os utentes da auto estrada são terceiros. Os contratos são distintos, de um lado o contrato de concessão entre o Estado e a Brisa e do outro a relação contratual que se estabelece entre a Brisa e o utente da auto estrada.
No caso vertente, a causa de pedir invocada no requerimento de fls. 2 é totalmente alheia ao referido contrato de concessão, filiando-se, como já vimos, no incumprimento pelo executado do contrato de adesão à Via Verde.
Isto sem embargo de a recusa do pagamento de portagem poder ser punida como transgressão ou contravenção (Base XVIII, anexa ao DL 315/91 de 20.08, com a redacção do DL 193/92 de 08.09)
Acontece que o executado deixou de pagar o serviço de auto estrada de que beneficiou entre 12.05.97 e 11.10.97, o que perfaz um crédito a favor da requerente no montante de € 385,47, mais os juros legais entretanto vencidos.
Significa isto, pois, o incumprimento pelo executado do contrato de adesão à Via Verde que celebrou. Assim, a requerente ao apresentar o requerimento que constitui fls. 2 dos autos, não mais pretende que obter o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de contrato que, atento o seu valor, é compatível com o procedimento de injunção (neste sentido decidiram os Acórdãos desta Relação de 27.04.2004, CJ 2004, tomo II, pag. 107, e de 27.05.04, disponível em www.dgsi.pt/jtrl).
Assim, e ao contrário do que decidiu a 1ª instância, o requerimento de fls.6, após lhe ter sido aposta a fórmula executória, é um título executivo, existindo perfeita adequação entre a pretensão da Agravante e o procedimento de injunção utilizado

Uma última nota: o indeferimento liminar baseou-se no disposto na alínea a) do nº 1, art. 811º-A, do CPCivil, segundo o qual “o juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando seja manifesta a falta ou insuficiência do título”.
O indeferimento liminar ao abrigo da referida alínea a) contempla as seguintes situações: não existência de título executivo, por o exequente não o exibir nem a ele aludir no requerimento executivo; apresentação como executivo de título diverso dos elencados no art. 46º, ou sem os requisitos de exequibilidade referidos no mesmo artigo e seguintes (cf. Cons. Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 3ª edição, pag. 114).
No caso vertente, o indeferimento não teve como causa nenhuma das hipóteses referidas, mas sim a apreciação da conformidade entre o título apresentado e o direito que lhe está subjacente, que se julgou não existir.
Entendemos, todavia, que o art. 811º-A não consente ao juiz indagar sobre a existência do direito invocado subjacente ao título executivo, pelo que também por este motivo não pode manter-se o despacho impugnado.
O título dado à execução não enferma de qualquer irregularidade, sendo, pelo contrário, válido e eficaz, pelo que o requerimento inicial não deveria ter sido indeferido liminarmente.
Decisão.
Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso, pelo que se revoga o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que ordene o prosseguimento da execução.
Sem custas (art. 2º, nº 1, al. g) do Cód. das Custas Judiciais).

Lisboa, 20 de Janeiro de 2005

Ferreira Lopes
Manuel Gonçalves
Aguiar Pereira