Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7232/04.0TVLSB.L1-1
Relator: MARIA JOSÉ SIMÕES
Descritores: VENDA POR AMOSTRA
DEFEITOS
DENÚNCIA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/13/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Quando alguém se obriga a fornecer um bem fabricado por encomenda com base em amostra, sem necessidade de nele se operarem consideráveis adaptações, está-se perante um contrato de compra e venda sobre amostra.
2. A interpretação que se tem por correcta para o art. 471º do C.Com., em conjugação com o que estabelece o art. 916º nºs 1 e 2 do C.Civ. ex vi da remissão do art. 3º daquele primeiro Código que manda aplicar subsidiariamente este segundo corpo de normas, é a de que o comprador tem 8 dias, após o conhecimento respectivo ou após o momento em que podia conhecê-los se fosse devidamente diligente, para denunciar os defeitos que detecte na coisa adquirida no âmbito de um contrato de compra e venda comercial, reclamando deles junto do vendedor.
3. Cabe ao comprador a prova sobre a tempestividade da denúncia dos defeitos, pois só em face de uma denúncia tempestiva poderá o comprador exercer junto do vendedor os direitos daí decorrentes.
(Súmário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

         I – RELATÓRIO

         “A, Lda.” veio propor a presente acção declarativa de condenação contra “B, S.A.” pedindo a condenação desta no pagamento das seguintes quantias:
- € 8.548,8872, a título de danos emergentes;
- € 8.548,8872, a título de lucros cessantes e,
- juros legais vencidos desde 19 de Maio de 2004 até ao presente e vincendos até integral e efectivo pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese que:
É titular de estabelecimento comercial no qual exerce o comércio a retalho de confecções dedicando-se à venda de vestuário de senhora de marcas conceituadas, importado, de qualidade e preço elevado, confeccionado com perfeição e com tecidos de qualidade;
A. e R. celebraram em 18/2/97 um contrato de compra e venda sob amostra tendo por objecto a factura emitida pela Ré;
A A. comunicou à Ré a anulação da encomenda e não recebeu a mercadoria;
A R. instaurou no Tribunal Cível da Comarca do Porto uma acção contra a A. na qual, por sentença transitada em julgado foi a ora A. (Ré naqueles autos) condenada a pagar à ora Ré (A. naquele processo) o preço correspondente à mercadoria encomendada;
A ora A. procedeu a tal pagamento e interpelou a R. para proceder à entrega da mercadoria;
Em Maio de 2004, a Ré remeteu à A., 3 caixas com mercadoria tendo verificado que as mesmas não continham a mercadoria encomendada em 1997;
O estado e a qualidade dos produtos entregues, impede a A. de os pôr à venda no seu estabelecimento comercial;
Sofreu danos patrimoniais equivalentes ao valor do que pagou pelas mercadorias - o dobro desse valor dado que a mercadoria seria vendida no estabelecimento comercial da A. por um preço correspondente a um acréscimo de 100% em relação ao valor da aquisição (danos emergentes e lucros cessantes).

A R. contestou, alegando, em síntese que exerce a actividade de representação de firmas estrangeiras no território português que consiste em vender através da sua rede de vendedores e nos seus showrooms, certas colecções ou amostras, realizando os clientes compradores, notas de encomenda dos artigos seleccionados que pretendem adquirir; Esta selecção é feita através de amostra que para o efeito é facultada para venda pelo representante; As referidas notas de encomenda são realizadas com uma antecedência de quase seis a oito meses em relação ao tempo de entrega das mercadorias; As notas de encomenda são enviadas pela R. aos respectivos fornecedores que posteriormente as entregam na sede da primeira, nas datas contratualmente estabelecidas existindo, usualmente, um prazo de trinta dias para proceder à anulação de notas de encomendas enviadas ao fornecedor. Após tal data, quando o fornecedor começa a trabalhar as encomendas deixa de ser possível qualquer anulação; Neste caso era tal prazo que assistia à A. como ela bem sabia; A A. foi, em tempos, representante exclusiva da marca “C” em Portugal;
A partir de Janeiro de 1997 e prosseguindo contactos entre a “C” e a R. esta começou a distribuir a marca em Portugal, vendendo as suas colecções através da sua rede de vendedores e mostrando as colecções em showrooms; A A. perdeu a distribuição da marca a favor da R.; Na 1ª estação de venda da R. da marca “C”, em Fevereiro de 1997, a A. efectuou a nota de encomenda no showroom, com data de 18/7/97; Decorridos seis meses sobre a data da encomenda a A. veio a pedir a nota de anulação que não foi aceite pela Ré que procedeu ao envio à A. da mercadoria em Maio de 2004; A mercadoria foi devolvida pela A. tendo voltado para as instalações da Ré nunca mais tendo a A. procedido ao pagamento, razão pela qual a ora Ré propôs acção de condenação no Porto que veio a ser julgada procedente; A A. não recebeu a mercadoria porque a tal se recusou;
Após sentença transitada em julgado a mercadoria foi enviada à A. em 18 de Maio de 2004; Após tal data nunca mais houve qualquer contacto entre as partes nem por parte da A. foi apresentada qualquer reclamação; Somente após sete meses e pela via judicial veio a A. reclamar os defeitos; A mercadoria foi enviada através de um transportador tendo o mesmo enviado em 21/5/04 documento à R. dando-lhe conta do furto de uma caixa tendo sido entregues 3 das caixas; Em 26/5/2004, a R, solicitou à A., por meio de carta, que a informasse da mercadoria em falta com vista a que o respectivo montante fosse accionado junto do seguro, carta que não obteve resposta por parte da A. tendo entretanto decorrido o prazo para accionar tal extravio junto da seguradora; Muitas das peças da “C” vieram a ser devolvidas por clientes da Ré alegando falta de qualidade ocasionando inúmeras notas de crédito por parte da “C” à Ré;
A “C” enfrentava problemas internos que vieram a culminar na sua falência e ruptura de relações com a Ré; A R. aceita assim como possível que algumas das peças tenham defeitos de produção. No entanto, as reclamações deveriam ter sido feitas atempadamente.
A “C” está agora encerrada, não tendo a Ré qualquer relação com a mesma; Foi a Autora quem se colocou nesta situação ao ter recusado a mercadoria que havia encomendado tendo-se ainda recusado a proceder ao seu pagamento tendo vindo a proceder-se à entrega da mesma só após o pagamento coercivo tendo somente a Autora reclamado os defeitos decorridos sete meses sobre a entrega;
Caso seja devida alguma indemnização não é a pedida pela Autora porquanto os cálculos feitos pela Autora baseiam-se numa situação normal de compra e venda, o que não é o caso, pois que as mercadorias vendidas em Fevereiro são saldadas em Agosto com 80% ou mais de desconto;
A Autora encomendou os artigos sob amostra e celebrou assim um contrato de compra e venda sob amostra incumbindo à Autora ter conferido a mercadoria no acto de entrega com vista à reclamação imediata dos defeitos ou reclamação dos mesmos no prazo de oito dias; Não tendo reclamado as referidas mercadorias no prazo contratual incumbe-lhe provar a desconformidade da mercadoria com a amostra utilizada pela Autora na venda bem como a existência dos defeitos;
No caso dos autos e admitindo a existência de defeitos nas peças não houve por parte da Ré qualquer culpa porque os artigos saíram das suas instalações em condições de serem comercializados e no que diz respeito aos defeitos respeitantes a troca de tamanhos, cores, quantidades e qualidades de tecidos, estes a existirem só podem dever-se à própria “C”;
Foi deduzido pedido reconvencional alegando que todas as acções que são contra alguém vão necessariamente pôr em causa o bom nome comercial e a reputação das empresas que sejam Rés e no caso presente a existência de uma acção contra si intentada faz presumir problemas de liquidez e atrasos no pagamento assim como abala a reputação da Ré. Deduz, com estes fundamentos, pedido de condenação da Autora em € 2.500,00 a título de danos patrimoniais.
Foi indeferido o pedido reconvencional por se ter considerado que o mesmo não se movia dentro da mesma relação jurídica que foi invocada pela Autora.

A final foi proferida sentença que julgou a presente acção improcedente por não provada e, consequentemente, absolveu a ré “B, S.A.” dos pedidos contra si formulados.


Inconformada, apelou a autora, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
1. Ao considerar provado que «A Autora e a Ré celebraram em 18 de Fevereiro, um contrato de compra sobre amostra», o Tribunal a quo subverteu a ordem natural da fundamentação da sentença recorrida, pois não se compreende, face ao acervo factual alegado e demonstrado – designadamente, face aos factos provados – como pôde considerar que «em consideração à factualidade adquirida que o presente contrato de compra e venda comercial foi feito sobre amostra».
2. Na realidade, o Tribunal não dispunha do necessário acervo factual, para considerar que o contrato de compra e venda foi realizado sobre amostra, partindo apenas – e sem que nada mais exista nos autos – de uma qualificação jurídica alegada pelas partes.
3. E ainda que – reconhecendo-o – tal facto resulte de uma deficiente alegação pela própria (ora) recorrente, certo é que tal circunstância não vincula o Tribunal a pressupor um facto, necessário para apurar o Direito aplicável.
4. O que desemboca numa tripla causa de nulidade da sentença recorrida. Em primeiro lugar, a total inexistência de fundamentação, relativamente à matéria de facto assim apurada, considerando que «A Autora e a Ré celebraram, em 18 de Fevereiro, um contrato de compra sobre amostra», de que decorre a nulidade prevista no artº 668º nº 1 al. d) do CPC.
5. Em segundo lugar, verifica-se ainda a nulidade prevista no artº 668º nº 1 al. d) do CPC, tendo o Tribunal conhecido de factos que, efectivamente, não foram alegados pelas partes, ou conhecido de uma questão de facto, sem que dos autos conste o acervo factual necessário para o efeito.
6. O que leva a concluir que a sentença recorrida é igualmente nula, por insuficiência dos factos provados para fundamentar a decisão proferida, circunstância que determina a anulação, ainda que oficiosamente, da decisão recorrida, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação da mesma: artº 712º nº 4 do CPC.
7. É facto assente que a Ré vendeu à A. “gato por lebre”, porquanto do relatório pericial de fls.., junto em 27 de Julho de 2007, consta que: «(…) é da opinião do perito que não é necessária a realização de exames complementares, dado que, nas peças onde se questiona a composição, ou as peças não contém a indicação da composição infringindo deste modo o Decreto-Lei nº 59/2005, relativo à etiquetagem e marcação de produtos têxteis, ou contém uma etiqueta que indica uma composição diferente da composição mencionada na factura, o que indica que o artigo comprado não corresponde ao artigo entregue».
8. A sentença recorrida é injusta, aplicando o regime previsto no artigo 471º do Código Comercial e determinando que a A. nada possa reclamar, quando lhe foram entregues bens que nada têm a ver com aqueles que encomendou.
9. Na medida em que o artº 471º do C.Comercial não contempla a hipótese de dolo, e perante tal lacuna do Código Comercial, são de aplicar, subsidiariamente, as correspondentes disposições do Código Civil (artº 3º do C. Comercial), o que ocorre igualmente, porquanto a unidade do sistema jurídico leva a interpretar o artigo 471º do C.Comercial de forma análoga ao estabelecido no artº 916º do CC.
10.  Assim, com vista à protecção do comprador, o artº 913º nº 1 manda observar, com as devidas adaptações, o prescrito na secção relativa aos vícios do direito ou venda de bens onerados (artº 905º e segs.), em tudo quanto não seja modificado pelas disposições reguladoras dos vícios da coisa.
11. O artº 905º do Código Civil, concede ao comprador o direito à anulação do negócio por erro ou dolo, verificados os respectivos requisitos, de relevância do erro sobre o objecto do negócio (artº 251º).
12. Tendo a ré declarado, na factura emitida com o nº 0706110 e datada de 8 de Outubro de 1997, que os produtos eram aqueles que a Autora encomendara, e verificando-se – demonstrando-se, como provado está na presente acção – que não o eram, ter-se-á que considerar que insinuou a existência infundada de certa qualidade na coisa e dissimulou o erro em que o adquirente, por causa dessas facturas, se encontrava, quanto às propriedades essências dos bens.
13. Na anulação por dolo, a indemnização abrange, imperativamente (o artº 908º não se encontra enumerado entre as disposições supletivas constantes do artº 912º) os danos emergentes (ou seja, o preço pago pela ora recorrente, pelos bens que foram entregues pela ré) e também os lucros cessantes (correspondente, in casu, à margem de lucro da autora) referidos no artº 564º nº 1, visto que o artº 908º não limita o objecto de ressarcimento.
14. Ora, não obstante a conformação jurídica diversa que a A. deu á acção, assim instaurada, certo é que os efeitos jurídicos que pretende ver declarados, são justamente aqueles que decorrem do disposto no artº 908º, ex vi artº 913º nº 1: indemnização por danos emergentes e por lucros cessantes, cumulativamente.
15. Porém, conforme se decidiu em Ac. do STJ de 26.06.2001 (CJ (STJ), 2001-II-134), as razões que motivaram os prazos curtos em nome da segurança e em desfavor muitas vezes da justiça, não têm de ser face ao dolo.
16. Pelo exposto, conforme (expressamente) se decidiu no Acórdão do STJ de 07-10-2003 (nº de documento: SJ200310070026636), embora a A. não tenha feito, na formulação do pedido, expresso apelo ao dolo, e porque o Tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, embora só possa servir-se dos factos por elas articulados – artº 664º do CPC – é mister observar se os factos apurados integrarão o conceito de dolo, ou se eventual erro não terá sido provocado por dolo relevante.
17. Do disposto no nº 1 do artº 916º do Código Civil, resulta que havendo dolo, o comprador não tem o ónus de denunciar o defeito, podendo intentar a acção de anulação no prazo de uma ano a contar do momento em que teve conhecimento do vício ou da falta de qualidade (artº 287º nº 1), independentemente de denúncia.
18.  Não sendo de aplicar o artº 471º do Cód. Comercial, mas antes o artº 913º do Código Civil, foram as referidas disposições violadas, como bem assim foram violadas os artigos 908º, aplicável ex vi artº 913º nº 1, todos do Código Civil e ainda, concomitantemente, o artº 287º nº 1 do mesmo código, devendo, em consequência ser revogada a sentença recorrida.


Foram apresentadas contra-alegações pela ré, cujas conclusões são as seguintes:
1. A decisão recorrida porque faz uma correcta aplicação do direito aos factos, deverá ser mantida.
2. Conforme bem referiu a sentença recorrida, a recorrente viu caducar o seu direito em reclamar os defeitos da mercadoria adquirida à ré, por não ter atempadamente reclamado da mesma.
3. A transacção ocorrida entre as partes é uma transacção comercial, uma vez que ambas são comerciantes e que o negócio entre si celebrado é uma acto de comércio, como tal traduzindo-se num contrato de compra e venda mercantil, sendo-lhe aplicável o disposto nos artºs 469º e 471º do Cód. Comercial.
4. De facto e reportando-nos aos factos dados como provados nas alíneas a, b, c, g, h, i e j, dos que apenas foram transcritos pela recorrida para a presente peça processual, pode retirar-se a linear conclusão estar-se perante um contrato de compra e venda sobre amostra mercantil, conforme correctamente foi qualificado pelo Mmº Juiz do Tribunal a quo.
5. Como tal e nos termos do artº 471º do Cód. Comercial, o comprador ao encomendar as mercadorias ao vendedor, no acto da venda sobre amostra, encontra-se a celebrar o respectivo contrato de compra das mercadorias encomendadas.
6. Contrato este que será por sua vez tido como perfeito se, nos termos do mesmo artigo, o comprador examinar as coisas compradas no acto da entrega e não reclamar a sua qualidade ou qualidade ou não as examinando, não as reclamar no prazo de oito dias.
7. Incumbia como tal à aqui recorrente ter conferido a mercadoria no acto de recepção da mesma, ou seja em 18 de Maio de 2004, com vista à reclamação imediata dos defeitos nesta verificados.
8. Ou então reclamar dos mesmos no prazo máximo de oito dias a contar daquela data.
9. Em Fevereiro de 1997 a recorrente efectuou a nota de encomenda junta aos autos.
10. A entrega da mercadoria foi recusada pela recorrente em 08.10.97 (vide factos considerados provados por sentença proferida no âmbito do processo 96/98 que correu termos no 6º Juízo Cível 2ª Secção do Porto).
11. Face à condenação ao pagamento ocorrido por sentença judicial, a recorrente procedeu ao depósito, à ordem dos autos, de praticamente a totalidade da quantia em dívida, tendo a mercadoria em causa sido enviada à recorrente em 18 de Maio de 2004.
12. Somente após sete meses da data da entrega da mercadoria e através da instauração da presente acção, é que a recorrente reclamou defeitos da mercadoria, não tendo provado ou demonstrado que antes do decurso do referido prazo de oito dias não tivera conhecimento dos defeitos existentes na mercadoria.
13. Ónus da prova que lhe cabia, face ao disposto no artº 471º do C.Comercial.
14. Aliás e, no rigor dos princípios, não se devia sequer contabilizar o referido prazo para reclamar quaisquer defeitos da mercadoria desde a data em que esta foi efectivamente entregue à recorrente, ou seja em Maio de 2004.
15. Tendo em conta que a recorrente recusou a sua entrega, por parte da recorrida, que a pretendeu entregar em 08.10.97, ou seja, 7 anos antes.
16. Existe assim manifesto abuso de direito por parte da recorrente ao recusar a entrega de uma mercadoria para depois mais tarde vir, com manifesta extemporaneidade invocar defeitos na mesma.
17. Não se aplica ao caso dos autos o disposto no artº 916º do CC, por se tratar de uma transacção comercial.
18. A existir, o que por mera conjectura se admite, sempre a recorrida estaria obrigada a denunciar à recorrida os eventuais vícios nas encomendas vendidas no prazo de trinta dias após o conhecimento do defeito, prazo este que mais uma vez foi ultrapassado.
19. Caducaram assim quaisquer direitos da recorrente em reclamar eventuais vícios da mercadoria entregue.
20. Não existiu qualquer dolo nem qualquer atitude incorrecta ou com má fé por parte da recorrente, pelo que a ser aplicado, in casu, o disposto no artº 916º do CC, sempre estaria a recorrida obrigada a denunciar os defeitos encontrados.
21. De todo o circunstancialismo apurado nos autos se conclui ter a recorrida tido uma actuação em consonância com os ditames da boa fé contratual, exigidos numa relação comercial como a presente.
22. Como tal e, em conclusão, não existe qualquer direito da recorrente em anular o negócio de compra e venda sob amostra celebrado com a recorrida, nem tão pouco direito a qualquer indemnização.
23. Não mercê como tal censura a douta sentença proferida pelo Mmº Juiz do Tribunal a quo, a qual deverá, na íntegra, ser confirmada, improcedendo, por isso, as conclusões da recorrente e, concomitantemente, o recurso.  


Foram colhidos os vistos legais.


         II – AS QUESTÕES DO RECURSO

         Como resulta do disposto nos artºs 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 e 4 do CPC e vem sendo orientação da jurisprudência, o objecto do recurso é balizado pelas conclusões, sem embargo de haver outras questões que sejam de conhecimento oficioso.
         Ora, tendo presentes essas conclusões, as questões colocadas no presente recurso são as seguintes:
1. Qualificação do negócio jurídico.
2. Ocorre ou não a caducidade do direito de reclamar os defeitos da mercadoria.


III – FUNDAMENTOS DE FACTO

Foram considerados provados na 1ª instância os seguintes factos:
1. A Autora é titular de um estabelecimento comercial no qual exerce o comércio a retalho de confecções;
2. A Autora dedica-se em exclusivo à venda de vestuário de senhora de marcas conceituadas, importado, de qualidade e preços elevados;
3. O estabelecimento comercial da Autora situa-se na Avenida…;
4. A Ré exerce a actividade de representação de firmas estrangeiras e/ou nacionais e o comércio por grosso de pronto-a-vestir e artigos de moda;
5. A Autora e a Ré celebraram em 18 de Fevereiro de 1997 um contrato de compra e venda sobre amostra, tendo por objecto as mercadorias discriminadas na factura emitida pela Ré, com o nº 0706110, datada de 8 de Outubro de 1997, no valor de 1.713.898$00 (€ 8.548,8872);
6. A Autora comunicou à Ré a anulação da encomenda;
7. A ora Ré instaurou no Tribunal Cível da Comarca do Porto uma acção contra a ora Autora, que correu termos sob o nº 96/98;
8. A ora Autora pagou o preço;
9. Em 18 de Maio de 2004 a Autora recebeu da Ré, 3 caixas com a mercadoria a que se refere o ponto 5., referindo, no entanto, a guia de transporte 4 caixas;
10. As peças de vestuário encomendadas pela A. são encomendadas de Itália pela Ré;
11. As notas de encomenda efectuadas à Ré são-no com uma antecedência de seis (6) a oito (8) meses em relação ao tempo de entrega das mercadorias, sendo enviadas pela Ré aos respectivos fornecedores, que posteriormente as entregam na sua sede;
12. Neste tipo de comércio existe um prazo geral de trinta (30) dias para proceder à devolução de qualquer nota de encomenda enviada ao fornecedor, já que, após esse período, o fornecedor começa a produzir os artigos encomendados;
13. A Autora foi até Janeiro de 1997 representante exclusiva da marca "“C”" em Portugal;
14. A nota de encomenda dos artigos referidos na alínea 5. tem a data de 18 de Fevereiro de 1997;
15. Com data de 26 de Maio de 2004 a Ré enviou à Autora carta informando de que através da empresa transportadora teve conhecimento da falta de entrega de 1 volume solicitando à Autora que a informasse dos artigos em falta, a fim de apresentar reclamação;
16. Em Maio de 2004 a Ré remeteu à Autora 3 caixas com a mercadoria referida no nº 5;
17. Em Maio de 2004 a Ré remeteu à Autora 4 caixas com a mercadoria referida no artigo 1º da base instrutória tendo uma delas sido extraviada no decurso do transporte;
18. A Autora encomendou um par de luvas côr 22;
19. A Autora encomendou quatro cintos 100% pele sendo dois de tamanho 44, um de tamanho 46 e outro de tamanho 48;
20. A Autora encomendou quatro casacos 100% cupro sendo dois de tamanho 42 e dois de tamanho 44 todos da mesma côr (côr 15), tendo-lhe sido entregues quatro casacos todos de tamanho 48 e de duas cores diferentes apresentando etiqueta referindo como composição 96% poliester e 4% elastan;
21. A Autora encomendou cinco pares de calças 100% algodão da côr 42 sendo umas de tamanho 42, duas de tamanho 44 e duas de tamanho 46";
22. As calças entregues são de fibras sintéticas e são duas de tamanho 40, duas de tamanho 44 e uma de tamanho 46;
23. A Autora encomendou três casacos castanhos com fecho éclair 72% de lã, 20% poliamida e 8% caxemira sendo um de tamanho 42, um de tamanho 44 e outro de tamanho 46, tendo sido entregue três casacos castanhos;
24. A Autora encomendou quatro camisas azuis 100% algodão sendo duas de tamanho 42 e duas de tamanho 44 tendo sido entregues quatro camisas azuis, duas de tamanho 42 e duas de tamanho 44;
25. A Autora encomendou três camisas 55;-0 viscose, 45% algodão sendo 2 de tamanho 42 e 1 de tamanho 44;
26. Tendo sido entregues duas camisas de tamanho 40 e uma camisa de tamanho 42, apresentando etiqueta da qual consta a composição 67% poliester, 30% nylon; 3% Lycra;
27. A Autora encomendou três saias padrão ursos brancos 100% lã sendo uma de tamanho 44, uma de tamanho 46 e outra de tamanho 48;
28. A A. encomendou três saias de pregas acastanhadas com cinto plástico, 72% lã, 20% poliamida e 8% caxemira sendo uma de tamanho 42 e duas de tamanho 44;
29. A Autora encomendou uma mala dourada 70% acrílico, 30% pele de côr 39 da marca "“C”" tendo-lhe sido entregue uma mala dourada sem referência à marca “C”;
30. A Autora encomendou dois coletes pretos 100% cupro de tamanho 42 tendo-lhe sido entregues dois coletes pretos, tamanho 38, apresentando uma etiqueta cosida na lateral referindo como composição 100% poliester;
31. A Autora encomendou três casacos de malha de padrão axadrezado de cores fuxia e castanho, cor 52 sendo dois de tamanho 42 e outro de tamanho 44;:
32. A Autora encomendou três calças de padrão axadrezado da mesma cor dos artigos enunciados no número anterior sendo duas de tamanho 44 e outro de tamanho 46;
33. A Autora encomendou quatro calças de padrão axadrezado de cores azul e castanho 80% de lã, 15% poliamida e 5% elastano sendo duas de tamanho 44 e duas de tamanho 46;
34. A Autora encomendou três casacos de cor verde seco (cor 188) 100% lã sendo um de tamanho 44, um de tamanho 46 e outro de tamanho 48;
35. A Autora encomendou seis saias de cor verde seco (cor 188) 100% lã sendo um de tamanho 44, duas de tamanho 46, duas de tamanho 48 e outra de tamanho 50;
36. Alguns dos artigos entregues não tinham etiquetas de composição;
37. Os botões são de plástico e não são botões originais da marca "“C”" , que têm neles inscrito o símbolo da marca, conferindo-lhes a sua originalidade, com excepção dos botões dos camiseiros a que se refere o ponto 24;
38. As peças entregues não fazem conjunto entre si;
39. A marca "“C”" tem três (3) temas (itens) distintos que a caracterizam sendo eles "Jeans" (roupa prática), "Prêt-a-Porter" (roupa casual-quotidiana) e "Couture" (toilette) ;
40. Não foram entregues cabides nem plásticos protectores da marca "“C”";
41. Foi remetida à Autora a factura comprovativa das mercadorias entregues em 2004;
42. A mercadoria encomendada pela Autora à Ré destinava-se a ser vendida no estabelecimento comercial por um preço correspondente a 100% do valor correspondente ao da aquisição;
43. A Ré vendia os artigos das colecções representadas nos livros de encomenda que para o efeito eram enviadas pelo fornecedor, o que acontecia que em muitas situações poderia estar a vender peças da linha "Couture" ou " Prêt-a-Porter" nos livros com a indicação "“C” Jeans" sendo no entanto as peças distinguidas entre si pelo número de referência.


IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Qualificação do negócio jurídico

A sentença recorrida qualificou o contrato realizado entre a autora/recorrente e a ré/recorrida como um contrato de compra e venda comercial feito sobre amostra.
A recorrente discorda de tal entendimento, por entender que tal qualificação não tem qualquer suporte fáctico.
Vejamos então se lhe assiste razão.
Em primeiro lugar, convém dizer que a recorrente não impugna a matéria de facto dada como assente, pelo que não é possível, a este Tribunal indagar da justeza ou não das respostas dadas aos quesitos, razão pela qual, esta Relação considera como assentes os factos dados como provados pelo Tribunal a quo.
E, em segundo lugar realçar a estranheza da ora invocada qualificação do negócio jurídico efectuada por parte do Tribunal a quo, quando é a própria recorrente que na petição inicial assim o classifica (veja-se artº 6º da p.i. a fls. 3 dos autos).
Mas, analisemos o acervo factual apurado a fim de concluirmos ou não pela justeza da qualificação do negócio jurídico efectuada pelo Tribunal de 1ª instância.
Com interesse para a apreciação desta questão, nos autos está provado que:
- A Autora é titular de um estabelecimento comercial no qual exerce o comércio a retalho de confecções (ponto 1);
- A Ré exerce a actividade de representação de firmas estrangeiras e/ou nacionais e o comércio por grosso de pronto-a-vestir e artigos de moda (ponto 4);
- A Autora e a Ré celebraram em 18 de Fevereiro de 1997 um contrato de compra e venda sobre amostra, tendo por objecto as mercadorias discriminadas na factura emitida pela Ré, com o nº, datada de 8 de Outubro de 1997, no valor de 1.713.898$00 (€ 8.548,8872) (ponto 5);
- Em 18 de Maio de 2004 a Autora recebeu da Ré, 3 caixas com a mercadoria a que se refere o ponto 5., referindo, no entanto, a guia de transporte 4 caixas (ponto 9);
- As peças de vestuário encomendadas pela A. são encomendadas de Itália pela Ré (ponto 10);
- As notas de encomenda efectuadas à Ré são-no com uma antecedência de seis (6) a oito (8) meses em relação ao tempo de entrega das mercadorias, sendo enviadas pela Ré aos respectivos fornecedores, que posteriormente as entregam na sua sede (ponto 11);
- Neste tipo de comércio existe um prazo geral de trinta (30) dias para proceder à devolução de qualquer nota de encomenda enviada ao fornecedor, já que, após esse período, o fornecedor começa a produzir os artigos encomendados (ponto 12);
Decorre desta factualidade e do que consta dos pontos 18 a 35 da matéria provada que o que a autora pretendia era que a ré lhe fornecesse determinadas quantidades de peças de vestuário e acessórios que lhe havia encomendado anteriormente com base em amostra, para posteriormente vender no seu estabelecimento comercial, sendo o fornecimento dessas peças a própria finalidade do contrato.
Com efeito, quando alguém se obriga a fornecer um bem fabricado por encomenda com base em amostra, sem necessidade de nele se operarem consideráveis adaptações, está-se perante um contrato de compra e venda sobre amostra. [1]
De resto, a comercialidade do contrato deriva das actividades comerciais desenvolvidas quer pela autora/compradora quer pela ré/vendedora, sendo-lhe aplicáveis os preceitos dos artºs 469º e segs. do Cód. Comercial.
Por isso, somos levados a concordar com o Mmº Juiz a quo ao qualificar este negócio jurídico como um contrato de compra e venda comercial, previsto no art. 463º/1 do C.Com. que considera como tal “as compras de coisas móveis para revender, em bruto ou trabalhadas, ou simplesmente para lhes alugar o uso”. E de entre as vendas comerciais previstas naquele Código, tratou-se também, sem dúvida, de um contrato subsumível à previsão do art. 469º do mesmo Código, que estipula que “as vendas feitas sobre amostra de fazenda, ou determinando-se só uma qualidade conhecida no comércio, consideram-se sempre como feitas debaixo da condição de a coisa ser conforme à amostra ou à qualidade convencionada”.
Por isso, improcede a invocada nulidade da sentença recorrida prevista no artº 668º nº 1 al. d) do CPCivil.
De facto, verifica-se a existência desta nulidade por omissão de pronúncia quando, desrespeitando o comando fixado no nº 2 do artº 660º do CPC, o Juiz deixa de pronunciar-se sobre questões que as partes submeteram à sua apreciação ou por excesso de pronúncia se são conhecidas questões de que não podia tomar-se conhecimento.
       Mas, em nosso entender, a recorrente labora nalguma confusão quando refere que a sentença se mostra ferida da apontada nulidade, por uma tripla causa. A primeira pela total inexistência de fundamentação da matéria de facto apurada; a segunda por o Tribunal ter conhecido de factos que não foram alegados pelas partes ou conhecido de uma questão sem que dos autos conste o acervo factual necessário para o efeito e, por último, pela insuficiência dos factos provados para fundamentar a decisão proferida.
       É que a recorrente está a esquecer-se que a primeira das apontadas causas, integra a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artº 668º do CPCivil e a recorrente em lado algum faz menção a esta nulidade nem concretiza onde se verifica a falta de fundamentação relativamente à matéria de facto apurada.
       Igualmente não concretiza quais os factos que não foram alegados pelas partes e que foram conhecidos pelo Tribunal a quo.
         Quanto a ter conhecido de uma questão sem que dos autos conste o respectivo acervo factual, como já vimos supra, a factualidade apurada e não impugnada pela recorrente, é manifestamente suficiente para a caracterização do negócio jurídico firmado entre as partes como um contrato de compra e venda comercial com a especificidade de ter sido realizado sobre amostra, razão pela qual cai por terra a argumentação da recorrente de que os factos apurados são insuficientes para fundamentar a decisão proferida, tanto mais, que, mais uma vez a recorrente não concretiza em lado algum quais os factos que, no seu entender seriam necessários apurar para caracterizar o aludido contrato.  
         Como tal não se reputa deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre a matéria de facto apurada, nem se mostra, a nosso ver, necessário efectuar qualquer ampliação da matéria de facto, nos termos do artº 712º nº 4 do CPCivil.
         Concluímos, assim, não se mostrar verificada a apontada nulidade, mantendo-se a qualificação jurídica do negócio tal como efectuado no tribunal recorrido, improcedendo, desta forma  e nesta parte, as conclusões de recurso.


2. Ocorre ou não a caducidade do direito de reclamar os defeitos da mercadoria.


Mantida que se mostra a qualificação jurídica do negócio realizado ente as partes, vejamos, então, o regime estabelecido no artº 471º do CCom., a que este contrato de compra e venda comercial sobre amostra está sujeito.
Dispõe este preceito que:
“As condições referidas nos dois artigos antecedentes haver-se-ão por verificadas e os contratos como perfeitos, se o comprador examinar as coisas compradas no acto da entrega e não reclamar contra a sua qualidade, ou, não as examinando, não reclamar dentro de oito dias.
§ único: O vendedor pode exigir que o comprador proceda ao exame das fazendas no acto da entrega, salvo caso de impossibilidade, sob pena de se haver para todos os efeitos como verificado”.
Segundo Ferrer Correia relativamente ao momento da perfeição do contrato, este preceito define uma solução bastante diferente da civil (art. 925º nº 2 do C.Civ.), pois “ao impor ao comprador o ónus de analisar a mercadoria e de a denunciar ao vendedor no acto da entrega ou no prazo de oito dias, qualquer diferença em relação à amostra ou à qualidade tidas em vista ao contratar, sob pena de o contrato ser havido como perfeito, pretende a lei fundamentalmente tornar certo num prazo muito curto a compra e venda mercantil (…)”, acrescentando ainda que “este regime tem na base a ideia de que a rescisão de um contrato pode causar ao comércio entorpecimentos ou danos no sentido de que envolve insegurança para os direitos, perturba a rapidez das actividades e, ao originar a ineficácia de uma operação já realizada, transtorna ou impede o encadeamento económico das operações sucessivas”. [2]
Na esteira deste pensamento, pronunciou-se Vaz Serra, ao considerar que “a razão do art. 471º está na vantagem de não deixar por muito tempo exposto o vendedor a reclamação por defeitos da coisa vendida e nas necessidades do tráfico comercial: deve, portanto, o comprador examinar tão depressa quanto possível a coisa comprada, a fim de verificar se ela tem vícios, e denunciá-los tão depressa quanto possível ao vendedor”, tanto mais que apesar daquele normativo não dizer “desde quando se conta o prazo de oito dias”, parece “que deve contar-se da data em que o comprador descobre o vício da coisa comprada ou, ao menos, daquela em que o teria descoberto se agisse com a diligência exigível no tráfico comercial”. [3]
Também Romano Martinez defende que “(…) sendo o art. 471º CCom. omisso quanto a este aspecto, há quem considere que o prazo, na compra e venda comercial, se inicia com a entrega. Em defesa desta tese têm sido apresentados dois argumentos: a lei comercial é mais exigente do que a civil no que respeita ao dever de exame do comprador; o prazo de oito dias não se pode contar do conhecimento do defeito, porque tal interpretação não tem correspondência com a letra do art. 471º CCom.. De facto, a lei comercial é mais exigente do que a civil, mas desse aspecto não se pode concluir no sentido de que a denúncia do defeito deva ser feita antes de ele poder ser descoberto. Por outro lado, a letra do artigo em causa nada esclarece, nem num sentido nem noutro, pois limita-se a dispor que, a partir do momento em que o comprador recebe a mercadoria, o contrato haver-se-á como perfeito, se os defeitos não forem reclamados dentro de oito dias; da letra da lei não se pode inferir que esse prazo esteja relacionado com a entrega. Perante a omissão do diploma mercantil, são de aplicar as correspondentes disposições do Código Civil (art. 3º CCom.). Acresce, que sendo este último diploma posterior, e tendo nele o legislador assentado, claramente, no sentido de que o prazo se inicia com a descoberta, a unidade do sistema jurídico leva a interpretar o art. 471º CCom. de forma análoga ao estabelecido no(s) art(s). 916º nº 2 (e 1220º nº 1)”. [4]
A solução defendida por estes Autores de que o prazo de oito dias, fixado no art. 471º do C.Com., deve contar-se a partir do momento em que o comprador tomou conhecimento dos defeitos da coisa ou do momento em que podia ter tomado conhecimento deles se usasse da normal e devida diligência (e não do momento da recepção da mesma), tem também sido a adoptada de modo unânime pelos nossos Tribunais Superiores. [5]  
A nós, também nos parece ser esta a solução mais coerente com a realidade da vida pois, muitas vezes, o defeito não é imediatamente detectável, não fazendo sentido, nesses casos, que se exija ao comprador que reclame no acto da entrega/recepção da coisa ou nos oito dias seguintes de defeitos que não sabe se se verificarão.
Em conclusão, a interpretação que se tem por correcta para o art. 471º do C.Com., em conjugação com o que estabelece o art. 916º nºs 1 e 2 do C.Civ. ex vi da remissão do art. 3º daquele primeiro Código que manda aplicar subsidiariamente este segundo corpo de normas, é a de que o comprador tem 8 dias, após o conhecimento respectivo ou após o momento em que podia conhecê-los se fosse devidamente diligente, para denunciar os defeitos que detecte na coisa adquirida no âmbito de um contrato de compra e venda comercial, reclamando deles junto do vendedor;
No entanto, tal denúncia ou reclamação nunca pode exceder o prazo de seis meses, contado após a data da entrega/recepção da coisa. [6]
Feita esta abordagem quanto à interpretação do aludido preceito legal, importa agora apurar sobre quem recai o ónus da prova: se é ao vendedor que compete demonstrar que o comprador não denunciou/reclamou os vícios/defeitos da coisa dentro daqueles dois prazos ou se, pelo contrário, é o comprador que tem que provar que os denunciou/reclamou dentro desses prazos.
Relativamente a este aspecto, a Jurisprudência é unânime e considera que cabe, naturalmente, ao comprador a prova sobre a tempestividade da denúncia dos defeitos, já que só em face de uma denúncia tempestiva poderá o comprador exercer junto do vendedor os direitos daí decorrentes: opor-lhe os vícios para obstar ao pagamento do preço da coisa, exigir a eliminação desses vícios e/ou exigir dele uma indemnização por prejuízos derivados dos mesmos. [7]
Assim, no caso sub judice, competia à autora provar (alegando previamente os pertinentes factos):
. a impossibilidade de exame das peças de vestuário e acessórios (fornecidas pela ré) ou de detecção dos vícios/defeitos alegados no momento da entrega/recepção delas;
. o momento em que cessou a impossibilidade de detecção dos vícios;
. a data em que detectou os defeitos
. e a data em que os reclamou perante a autora, sendo certo que, como atrás se fez referência, esta reclamação teria, necessariamente, que ser feita dentro dos seis meses seguintes à data da entrega/recepção das peças de vestuário.
Porém, a autora/compradora, na petição inicial não alegou, em parte alguma, o/os momentos em que a detecção dos defeitos das peças de vestuário (e que, ficaram provados, conforme se constata dos pontos 20. a 38. da matéria assente) se lhe tornou possível, ou a/as datas em que os detectou e a/as datas em que os reclamou perante a ré/vendedora.
Limitou-se apenas a dizer o seguinte: “A A., após a abertura das (3) três caixas, verificou que o conteúdo das mesmas não correspondia à mercadoria encomendada em 1997 (…) – cfr. artº 15º da p.i.; que “foram detectados vários defeitos nas peças de vestuário entregues à A. pela ora R.” – cfr. artº 17º da p.i..
Assim, face à ausência, por um lado, de qualquer facto concreto a datar o conhecimento, pela autora, dos aludidos defeitos e a respectiva denúncia/reclamação à ré e, por outro, resultando à evidência que a petição inicial foi apresentada após o decurso do prazo de seis meses contado a partir da data da entrega das peças de vestuário (as peças de vestuário foram-lhe entregues em Maio de 2004 e a petição inicial apenas deu entrada em juízo a 15/12/2004, é por demais evidente que a autora não fez a prova, que lhe competia, da tempestividade dos defeitos que alegou (e que ficaram provados).
Uma ultima nota apenas para dizer que a autora em lado algum da petição inicial invocou ter existido erro sobre o objecto do negócio, constituindo a alegação de tal questão em sede de alegações, uma questão nova e, como tal insusceptível de ser conhecida por este Tribunal. 
Deste modo, outro desfecho não pode ter a acção que não seja a respectiva improcedência, por terem caducado todos os direitos que a autora poderia invocar com base nos defeitos das peças de vestuário se os tivesse denunciado/reclamado tempestivamente.
Improcedem, assim, in totum, as conclusões de recurso.


V – DECISÃO
           
         Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.

         Custas pela apelante.

         (Processado por computador e integralmente revisto pela Relatora)

Lisboa, 13 de Outubro de 2009

                                                       
Maria José Simões                                          
                                                                                                      Maria da Graça Araújo

José Augusto Ramos
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[1] Vide Ac. TRL de 14/02/2002, pº nº 0007286 (relator Salvador da Costa), disponível em www.dgsi.pt.
[2] In “Reforma da Legislação Comercial Portuguesa”, Rev. da Ord. dos Advogados, Maio/1984, pg. 26, nota 1 e in “Lições de Direito Comercial”, vol. I, 1973, pg. 26.
[3] In Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 104º, pg. 254.
[4] In “Cumprimento Defeituoso – Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada”, Colec. Teses, Almedina, 2001, pgs. 375 e 376..
[5] A título de exemplo, seguiram esta tese os Acs. do STJ de 23/11/2006, in CJ-STJ ano XIV, 3, 132; de 28/03/2001, relator: Cons. Abílio Vasconcelos, in www.dgsi.pt/jstj; de 26/01/1999, nº convencional JSTJ00035426, in www.dgsi.pt/jstj, bem como os Acs. do TRP de 15/01/2008, in CJ ano XXXIII, 1, 167; de 09/05/2002, in CJ ano XXVII, 3, 174; de 14/07/1987, in CJ ano XII, 4, 206 e recentemente o Ac. de 06/01/2009 nº convencional JTRP00042038; do TRC, o Ac. de 27/05/1993, CJ ano XVIII, 3, 115 e de 24/01/1989, in CJ ano XIV, 1, 46 e do TRL de 06/12/1988, in CJ ano XIII, 5, 114.
[6] È este o entendimento perfilhado por Romano Martinez na ob. citada em 3. e é esta também a orientação perfilhada nos citados Acs do TRP de 09/05/2002 e 15/01/2008. De facto, defende-se no primeiro destes arestos que “seria incongruente admitir a inexistência de qualquer limite temporal para o exercício do direito de denúncia dos defeitos e para a subsequente acção judicial” não obstante a “maior exigência da lei comercial, revelada pelo encurtamento do prazo de denúncia para oito dias, e uma mais premente relevância, neste domínio, das razões que justificam a aludida brevidade de prazos”.
[7] Neste sentido, vejam-se, designadamente, os Acs. do STJ de 23/11/2006, de 28/03/2001 e de 26/01/1999 e do TRP de 15/01/2008 e de 09/05/2002, todos já supra mencionados.