Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10181/06-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: OPOSIÇÃO À AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2007
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: OPOSIÇÃO À AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE
Decisão: INCOMPETÊNCIA
Sumário: I- A Constituição não consagra um princípio geral de proibição de emissão de leis retroactivas.
II- Em processo civil, lei nova é de aplicação imediata aos processos pendentes, mas não possui qualquer eficácia retroactiva.
III- Da submissão a esta regra exceptua-se, evidentemente, o caso de a lei nova ser acompanhada de normas de direito transitório.
IV- IV- A Lei Orgânica, n.º 2/2006, de 17 de Abril, apresenta-se, na hierarquia das leis em sentido lato, como de grau superior, ao da Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro.
(E.M)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: O Exm.º Magistrado do M. P. Intentou a presente acção com processo especial de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa, contra M E, residente na Guiné-Bissau, pedindo que, julgada procedente aquela oposição, seja ordenado o arquivamento do processo conducente ao registo do Requerido, pendente na Conservatória dos Registos Centrais.

Alegando para tanto, e em suma, que a Requerida tem nacionalidade guineense e que, através do seu pai, prestou declaração para aquisição de nacionalidade portuguesa, em 21 de Dezembro de 2005, na 2ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, com base na circunstância de ser filha menor de indivíduo que adquiriu a mesma nacionalidade.
Tendo sido questionada, na Conservatória dos Registos Centrais, onde foi instaurado o processo respectivo, a ligação da Requerida à comunidade Portuguesa.
Circunstância pela qual razão pela qual o registo não chegou a ser efectuado.
Pelo que deverá ser julgada procedente a oposição, ordenando-se o arquivamento do processo conducente a esse registo pendente na Conservatória dos Registos Centrais.

Citada a Requerida, na pessoa de seus pais, foi deduzida oposição.

II- Nos termos do disposto no art.º 2º, da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro – Lei da Nacionalidade – na redacção introduzida, por último, pela Lei n.º 25/94, de 19 de Agosto, “Os filhos menores ou incapazes de pai ou mãe que adquira a nacionalidade portuguesa podem também adquiri-la, mediante declaração”.
Trata-se de forma de aquisição da nacionalidade determinada pela vontade do interessado.
Todavia, a declaração de vontade nesse sentido – proferida por quem se encontre na particular situação assim prevista no citado art.º 2º – não tem como consequência necessária a aquisição de nacionalidade. À produção desse efeito pode obstar a fundada oposição do Ministério Público, deduzida na sequência de participação, in casu, pelo Conservador dos Registos Centrais, de quaisquer factos susceptíveis de a fundamentarem, vd. art.ºs 9º e 10º, n.º 2, daquela Lei.
O art.º 9º, alínea a), da referida Lei n.º 37/81, na sua versão originária, instituía como fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa por efeito da vontade “a manifesta inexistência de qualquer ligação efectiva à comunidade nacional”.
Por força da alteração introduzida neste preceito legal pela Lei n.º 25/94, de 19 de Agosto, passou a ser fundamento de oposição "a não comprovação, pelo interessado, de ligação efectiva à comunidade nacional”.
E, segundo o art. 22°, n.º 1, aI. a) do Dec.-Lei 322/82, de 12 de Agosto - Regulamento da Nacionalidade Portuguesa - na redacção introduzida pelo Dec. Lei 253/94, de 20 de Outubro, “Todo aquele que requeira registo de aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adopção deve: Comprovar por meio documental, testemunhal ou qualquer outro legalmente admissível a ligação efectiva à comunidade nacional”.
Assim, enquanto no âmbito da versão originária a não ligação efectiva funcionava como facto impeditivo da aquisição de nacionalidade - cabendo a sua prova àquele que deduzia a oposição (art. 342°, n.º 2 do Cód. Civil) - na versão da Lei n.º 25/94 a referida ligação configura-se como facto constitutivo do direito a tal aquisição, recaindo sobre quem o pretende fazer valer o ónus da respectiva alegação e prova.
A oposição procederia necessariamente se o requerente não tiver feito prova daquela ligação efectiva à comunidade nacional, por tal equivaler à falta de verificação de um dos pressupostos legalmente exigidos para a aquisição da nacionalidade.
Caracterizando-se tal “ligação”, como era entendimento dominante, por uma comunhão efectiva do estrangeiro com os valores da comunidade portuguesa, pela existência de um sentimento de pertença a essa mesma comunidade, o que será evidenciado por factores vários como sejam o domicílio, o conhecimento da língua portuguesa, relações familiares, de amizade ou de convívio com nacionais portugueses, a adopção por ele de hábitos e práticas culturais próprias dos portugueses, a sua integração económico-profissional, etc.(1).

A Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril, veio porém alterar o quadro legal de referência, e assim, designadamente, ao introduzir nova redacção no sobredito art.º 9º da Lei da Nacionalidade, que passou a dispor, relativamente à “Oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade ou da adopção”, e no segmento em causa:
“Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa: a) A inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional”.

Retomando pois o legislador de 2006, a configuração da ausência de ligação efectiva do interessado à comunidade nacional como facto impeditivo da aquisição da nacionalidade, com prova a cargo de quem deduzisse oposição àquela.

A referida Lei n.º 2/2006, e de acordo com o seu art.º 9º, “entra em vigor na data do início do diploma referido no art.º 3º”, ou seja, do diploma que proceder “às necessárias alterações do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 322/82, de 12 de Agosto, alterado…”.
Tal diploma regulamentador veio a ser o Dec.-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro.
O qual, no seu art.º 3º, opera a revogação do supracitado Dec.-Lei 322/82.
E, no art.º 4, determina a sua própria entrada em vigor “no dia 15 de Dezembro de 2006”, e a sua aplicação “aos processos pendentes, salvo no que respeita ao disposto no art.º 2º e às normas relativas à competência para a decisão dos pedidos de aquisição de nacionalidade portuguesa por naturalização, bem como ao regime relativo à sua tramitação, constantes do anexo ao presente decreto-lei, que dele faz parte integrante”.
Reproduzindo aliás, no seu art.º 56º, n.º 2, os fundamentos de oposição já enunciados no alterado art.º 9º da Lei da Nacionalidade.

Tendo-se pois, e no concernente aos processos de oposição à aquisição de nacionalidade por efeito da vontade – como assim é o caso, vd. art.º 8º do nouvel Regulamento, e à semelhança do que já ocorria no domínio do anterior Regulamento, cfr. art.º 10º - que são desde logo aplicáveis as disposições da nova Lei da Nacionalidade…como do novo Regulamento.
Deixando pois esta Relação de deter competência para a decisão do correspondente pedido, mesmo relativamente aos processos pendentes.

E já que, nos termos do art.º 26º da Lei da Nacionalidade, na redacção introduzida pela citada Lei Orgânica n.º 2/2006, “Ao contencioso da nacionalidade são aplicáveis, nos termos gerais, o estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e demais legislação complementar.”.
Sendo que de acordo com o art.º 56º, n.º 1, do novo Regulamento, caberá ao M.º P.º promover “nos tribunais administrativos e fiscais a acção judicial para efeito de oposição à nacionalidade, por efeito da vontade ou por adopção, no prazo de um ano a contar da data do facto de que depende a aquisição da nacionalidade. “.
Assim se passando a deferir a competência para a preparação e decisão de tais acções aos tribunais administrativos.

Contra isto, poder-se-ia, desde logo, pretender objectar com o disposto no art.º 22º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 3799, de 13 de Janeiro.
De acordo com aquele normativo, “1- A competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente. 2- São igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa”.
É a consagração da perpetuatio jurisdictionis (semel competens semper competens).

De facto, a doutrina geral aceite no direito civil é a de que a nova lei só rege para o futuro, não se aplicando aos factos pretéritos.
Sendo que orientação paralela, elevada ao plano superior dos princípios constitucionais, vigora no domínio das leis penais incriminadoras, cfr. art.º 29º, da Constituição da República Portuguesa.
Como assinalam Antunes Varela. J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora,(2) “outra é, no entanto, a orientação geral que tem prevalecido na própria doutrina em relação às normas do processo”.
Nesse sector tem-se entendido que a nova lei processual deve aplicar-se imediatamente, não apenas às acções que venham a instaurar-se após a sua entrada em vigor, mas a todos os actos a realizar futuramente, mesmo que tais actos se integrem em acções pendentes, que o mesmo é dizer, em causas anteriormente propostas.
A ideia proclamada no art.º 12º do Código Civil, “de que a lei dispõe para o futuro significará, nesta área do direito processual, que a nova lei se aplica às acções futuras e também aos actos futuros praticados nas acções pendentes.”(3).
Em matéria de competência dos tribunais, uma tal directriz geral requer adaptações.
Assim, quando se dispõe, no art.º 22º, da L.O.F.T.J., que “A competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente”, estabelece-se a regra “da aplicação imediata da nova lei apenas quanto às acções futuras. Relativamente às acções pendentes, a regra é a da aplicação da lei vigente à data da proposição da acção.”(4)

Simplesmente:
A Lei Orgânica, n.º 2/2006, de 17 de Abril, apresenta-se, na hierarquia das leis em sentido lato, como de grau superior, ao da Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro.
Pois que se trata, a primeira, de lei de “valor reforçado”, respeitante a área de reserva absoluta de competência da Assembleia da República, tendo carecido de aprovação, na votação final global, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, cfr. art.ºs 112º, n.º 3, 164º, al. f), 166º e 168º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Ao passo que a Lei n.º 38/87, respeita a área da reserva relativa de competência da Assembleia da República, sem atribuição de valor reforçado, vd. cit. art.º 112º, n.º 3, e art.º 165º, n.º 1, al. p), da Constituição da República Portuguesa.(5)

Tratando-se as normas ora em análise, relativas ao desaforamento dos processos de oposição à nacionalidade, de verdadeiras normas, especiais, de direito transitório, e, assim, por natureza, reguladoras da “aplicação no tempo de cada uma das leis novas que alterem as disposições da lei de processo em vigor”(6) em sobrelevância, quando seja essa a opção do legislador, como assim é, incontornavelmente, o caso, relativamente aos princípios nessa matéria acolhidos.

Como também refere Teixeira de Sousa,(7) “Quanto à aplicação no tempo da lei processual civil, a regra é a mesma que vale na teoria geral do direito (cfr. art.º 12º, n.º 1, CC): a lei nova é de aplicação imediata aos processos pendentes, mas não possui qualquer eficácia retroactiva. Da submissão a esta regra exceptua-se, evidentemente, o caso de a lei nova ser acompanhada de normas de direito transitório…”.

Que prevalecerão sobre aquela, cuja aplicação, in casu, resulta assim derrogada.

De resto, como se decidiu no recente Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 691/2006,(8) de 19 Dezembro de 2006, o princípio da não retroactividade da lei encontra-se consagrado na Constituição, de modo expresso, unicamente para a matéria penal (desde que a lei nova não seja mais favorável ao arguido) – art.º 29º, n.os 1 e 4 – para as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias— art.º 18º, n.º 3 – e para o pagamento de imposto – artigo 103º, n.º 3 – podendo, consequentemente, dizer-se que a Constituição não consagra um princípio geral de proibição de emissão de leis retroactivas.

Declarada a superveniente, e assim sobrelevante, incompetência material desta Relação, impõe-se – transitado que seja o presente despacho – a remessa dos autos aos Tribunais Administrativos e Fiscais de Lisboa – cfr. art.ºs 16º e 22º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – ex vi do disposto no art.º 64º do Código de Processo Civil.
Como ora se ordena.
Notifique.
Lisboa, 2007-02-06
(Ezagüy Martins)

____________________________________________________
1 Vd. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-03-1998, in BMJ 475º; 621, e de 11-06-2002, in CJASTJ, Ano X, tomo, II, págs. 104-106, neste último sustentando-se que a exigência legal “Proclama uma ligação efectiva com o Estado, no sentido de que este é a primeira condição da sociabilidade normativa da nação, devendo o requerente comungar e realizar, ou participar na realização efectiva, dos valores que são fundamentais à sociabilidade, não apenas como nação, na expressão cultural, e até de afectos”.
2 In “Manual de Processo Civil”, 2ª Ed., Coimbra Editora, 2004, pág. 47.
3 Idem, pág. 49.
4 Vd. autores e op. cit., págs. 50-51.
5 Não se trata de lei cuja aprovação esteja obrigatoriamente sujeita a maioria de dois terços – cfr. art.º 168º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa – nem que, por força da Constituição, seja pressuposto normativo necessário de outras leis ou que por outras deva ser respeitada, vd. Jorge Miranda. Rui Medeiros, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Tomo II, Coimbra Editora, 2006, pág. 270.
6 Vd. Lopes do Rego, in “Reforma do Código de Processo Civil – Disposições Transitórias”, 1997, Centro de Estudos Judiciários.
7 In “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, LEX, 1997, pág. 14.
8 Processo n.º 937/2006, in Diário da República, 2.ª série, n.º 22, de 31 de Janeiro de 2007.