Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3054/09.0TVLSB.L1-2
Relator: FARINHA ALVES
Descritores: DELIBERAÇÃO SOCIAL
VOTAÇÃO
NULIDADE
VALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/01/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: A existência de um voto nulo não torna anulável uma deliberação social que, para além desse voto nulo, foi votada favoravelmente por associados que perfazem a maioria necessária à sua aprovação.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Projectos, S.A. e outras vieram intentar contra a APPC..., a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que:
a) Seja anulada, nos termos dos arts. 177° e 178° do Código Civil, a deliberação do ponto dois da ordem de trabalhos da Assembleia Geral da A.P.V.P. ... "apreciação e aprovação do Projecto de Fusão, por incorporação, da APVP...., na APPC....", que teve lugar em 05 de Março de 2009;
b) Seja declarada nula a escritura de fusão, por incorporação, das associações APVP... e APPC...., realizada em 25.05.2009, no Cartório Notarial de (…);
c) A Ré seja condenada a reconhecer que a deliberação identificada na alínea a) do pedido padece do vício de anulabilidade por ter sido tomada em violação dos respectivos estatutos e, por via disso, condenada a reconhecer que a fusão aludida na alínea b) do pedido padece igualmente do vício de nulidade e,
d) A Ré seja condenada a restituir à APVP... todo o património que incorporou desta associação em virtude da fusão identificada na alínea b) do pedido, constante do balanço da associação incorporada existente no projecto de fusão, acrescida dos respectivos juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento a contar da citação, a liquidar em sede de execução de sentença.
Alegaram, para tanto, em síntese:
A A.P.V.P.... foi uma associação de fins não lucrativos, das quais as RR, foram associadas.
De acordo com os respectivos estatutos, os sócios honorários têm o direito de intervir nas Assembleias Gerais para que forem convidados, mas sem direito a votar.
Também de acordo com os mesmos Estatutos, as deliberações são tomadas por maioria absoluta de votos dos sócios presentes e as deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva requerem o voto favorável de três quartos do número de todos os associados.
No dia 16 de Fevereiro de 2009 foi publicada convocatória da Assembleia Geral da APVP, fazendo parte do ponto 2 da Ordem de Trabalhos a apreciação e aprovação do Projecto de Fusão, por incorporação, da APVP na R.
No dia 5 de Março de 2009, teve lugar a Assembleia Geral da APVP, na qual veio a ser aprovado o Projecto de Fusão em causa, com 33 votos a favor, 6 votos contra e 2 abstenções, estando ausentes 3 associados do número total de 44 que faziam parte da associação.
As ora AA. não votaram esta deliberação.
Mas João, sócio honorário, votou, contrariando o estabelecido na alínea c) do n°3 do art. 5.º e alínea a) do nº 2 do artigo 8° dos Estatutos.
Pelo que os 32 votos a favor, validamente expressos, não perfazem a maioria de 3/4 de todos os associados, necessária para aprovação daquela deliberação.
Sendo a mesma anulável.
Com base nessa deliberação foi outorgada escritura de fusão das duas associações em 25/5/2009, mediante a transferência global do património da associação incorporada (APVP) para a associação incorporante (APPC), com a consequente extinção daquela.

Citada, a R. contestou, aceitando, na generalidade, os factos alegados na petição inicial, mas impugnando a sua valoração jurídica.
Defendeu que, vista a natureza imperativa do preceituado no art. 175º do C.Civil, nenhum associado, nem o honorário, podia ser excluído do direito de voto nas deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da associação.
E que a fusão entre associações não constitui, afinal, uma verdadeira dissolução de qualquer delas, sendo suficiente para a aprovação da respectiva deliberação a maioria de três quartos do número de associados presentes.

Seguiu-se, prontamente, a decisão onde a acção foi julgada improcedente. Entendeu-se que da deliberação aprovada não resultou a extinção da associação, mas antes a sua transformação, pelo que bastava a essa aprovação o voto favorável de três quartos do número de associados presentes.
Maioria que tinha sido atingida, apesar da invalidade do voto expresso pelo sócio honorário.

Inconformadas, as AA. apelaram do assim decidido, tendo apresentado alegações onde formulam as seguintes conclusões:
A) Salvo o devido respeito por melhor opinião, a douta sentença de que se recorre fez uma errada aplicação do direito, além de se entender que é nula na medida em que os fundamentos estão em oposição com a própria decisão nos termos do disposto no art. 668, n.º 1, al. c) do C.P.C..
B) As questões a decidir nestes autos e, consequentemente, também neste recurso, são duas e muito simples:
1° Se um sócio honorário poderia ter votado?
2° Em caso negativo, se a deliberação em causa padece de alguma invalidade?
C) Face à matéria de facto provada temos que:
- As ora Apelantes não votaram a deliberação do ponto 2 da Ordem dos Trabalhos; e
- João, na qualidade de sócio honorário, participou e votou nessa mesma deliberação.
D) Contrariando o disposto na alínea c) do n° 3 do art. 5 e alínea a) do n° 2 do art. 8 dos Estatutos, que o impediam de votar, votando e favoravelmente o ponto 2 da Ordem dos Trabalhos.
E) Deste modo, correspondendo 33 votos ao número de ¾ de todos os Associados (44), necessários à aprovação da deliberação do ponto 2 da Ordem dos Trabalhos, temos que apenas foram expressos, respeitando os estatutos, 32 votos favoráveis.
F) O que equivale a dizer que a "Aprovação do projecto de fusão, por incorporação, mediante a transferência global do património da APVP para a APPC" constante do ponto 2 da Ordem dos Trabalhos, não teve a maioria necessária de 3/4 de todos os Associados e como tal foi rejeitada nessa Assembleia Geral.
G) Nos termos do n.º 4 do art. 175 do Código Civil as deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva requerem o voto favorável de três quartos do número de todos os associados.
H) De acordo com o art. 177 do C.C. as deliberações da assembleia geral contrárias à lei ou aos estatutos, seja pelo seu objecto, seja por virtude de irregularidades havidas na convocação dos associados ou no funcionamento da assembleia, são anuláveis.
I) De acordo com o art. 1, n° 1 dos estatutos da APVP, esta regia-se pelos estatutos, pelo seu regulamento interno e pela lei portuguesa.
J) Sendo que, pelo art. 5, n° 3, al. c) dos estatutos da APVP: "3. São direitos dos sócios honorários: c) Intervirem nas Assembleias Gerais para que forem convidados sem direito a votar.
K) E segundo o art. 8, n.º 2, al. a) dos estatutos da APVP: "a) Poderão participar na Assembleia Geral, com direito a intervir mas sem direito a voto, os sócios honorários expressamente convidados para o efeito pela Direcção".
L) E pelo n.º 7 do art. 8 dos estatutos:
"7. As deliberações são tomadas por maioria absoluta de votos dos sócios presentes.
d) Os sócios podem fazer-se representar por outro sócio, desde que o munam de uma carta a autorizá-lo expressamente nesse sentido.
e) As deliberações sobre as alterações dos estatutos exigem o voto favorável de três quartos do número dos sócios presentes.
f) As deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva requerem o voto favorável de três quartos do número de todos os associados.".
M) Prescrevendo o n.º 1 do art. 178 do Código Civil que a anulabilidade prevista nos artigos anteriores pode ser arguida, dentro do prazo de seis meses, pelo órgão da administração ou por qualquer associado que não tenha votado a deliberação.
N) E nos termos do n.º 1 do art. 117 do Código das Sociedades Comerciais, a nulidade da fusão só pode ser declarada por decisão judicial, com fundamento na falta de escritura pública ou na prévia declaração de nulidade ou anulação de alguma das deliberações das assembleias-gerais das sociedades participantes.
O) Na douta sentença de que se recorre, o Tribunal a quo incorreu logo em erro quando, no início, em vez de colocar como questão a decidir da validade da deliberação, achou por bem que as questões a decidir nesta acção eram:
- causa de extinção das pessoas colectivas/dissolução;
- fusão por incorporação/forma de modificação da associação.
P) Mais, o próprio Tribunal a quo, se repararmos, não acompanha a linha de argumentação da Apelada e considera que o sócio honorário não pode votar, chegando ao ponto de dizer que tal voto tem de ser declarado nulo sob pena de violar a própria natureza de associado honorário, atento o que consta do artigo 5°, n° 3 dos estatutos.
Q) Situação esta que gera desde logo uma nulidade na sentença na medida em que os fundamentos se encontram em oposição com a decisão, nos termos do disposto no art. 668, n° 1, al. c) do C.P.C..
R) Simplesmente, depois porque entende que estamos perante uma deliberação que apenas carece de ¾ dos presentes (por se tratar de uma transformação de sociedade) e não de ¾ de todos os associados (extinção de sociedade), acaba por "convalidar" uma deliberação que ab initio padece de um vício.
S) Raciocínio este no mínimo curioso porque, no limite, admitindo hipoteticamente que tenha razão, levará ao absurdo de concluir a validade de todas as deliberações existentes em que participe alguém que não pode expressamente votar desde que as maiorias de voto em concreto sejam alcançadas.
T) Ora, se os estatutos em causa prevêem expressamente que os sócios honorários podem participar nas assembleias gerais mas não podem votar e se, de acordo com o art. 177 do Código Civil, "As deliberações da assembleia geral contrárias à lei ou aos estatutos, seja pelo seu objecto, seja por irregularidades havidas na convocação dos associados ou no funcionamento da assembleia, são anuláveis.",
U) Nunca poderia o Tribunal a quo ter decidido como decidiu declarando que a deliberação não era inválida!
Acabou assim o Tribunal a quo por violar os arts.175, n° 4, 177, 178 e 289, n° 1 do Código Civil, os arts. 1°, n° 1, 5°, n° 3, al. c), 8°, n° 2, al. a) e n° 7 dos Estatutos da APVP, o art. 117, n° 1 do Código das Sociedades Comerciais e o a art. 46 da Constituição da República Portuguesa, além da sentença ser nula nos termos da al. c) do n.º 1 do art. 668 do Código de Processo Civil.
A apelada contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.

Sendo o objecto dos recursos delimitado pelas respectivas conclusões, verifica-se que as apelantes identificaram ali duas questões, enunciadas sob a conclusão B), nos seguintes termos:
B) As questões a decidir nestes autos e, consequentemente, também neste recurso, são duas e muito simples:
1° Se um sócio honorário poderia ter votado?
2° Em caso negativo, se a deliberação em causa padece de alguma invalidade?

Noutros pontos das suas alegações e conclusões as apelantes reafirmam que as deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva requerem o voto favorável de três quartos do número de todos os associados, mas, tanto quanto nos é dado avaliar, não questionam a decisão recorrida na parte onde se conclui que a fusão de associações não é causa de dissolução, mas apenas de transformação. Deste modo, entende-se que não vem questionada no presente recurso a maioria necessária para se obter a aprovação da deliberação de fusão.
Como quer que seja, e uma vez que se trata de uma questão de direito, que sempre tem a ver com a questão da validade da deliberação, que é, afinal, a única questão suscitada no recurso, julga-se que esta questão foi proficientemente tratada na decisão recorrida, em termos que suscitam inteira aprovação e nenhuma reserva ou censura.
Posto isto, e quanto às questões identificadas pelas apelantes, a primeira quase não chega a sê-lo, uma vez que a decisão recorrida reconheceu razão às apelantes neste ponto, considerando nulo o voto expresso pelo sócio honorário, decisão que não vem questionada pela parte contrária e que também se subscreve sem reservas.
Também aqui não se vê necessidade de outras considerações, confirmando-se inteiramente o decidido.
Consequentemente, temos como única questão a resolver a de saber se a existência de um voto nulo torna anulável a deliberação social que, para além do voto nulo, foi votada favoravelmente por mais de dois terços dos associados presentes na assembleia com direito a voto.
A matéria de facto a considerar é a que foi fixada na decisão recorrida, que não vem impugnada nem suscita alterações oficiosas.
Assim sendo, e porque a factualidade determinante está contida no enunciado da questão a resolver, dispensa-se a transcrição do conjunto dos factos provados, antes se remetendo, nessa parte, para a decisão recorrida, ao abrigo do disposto no art. 713.º, n.º 6, do CPC.
Com interesse concreto para a decisão, importa ter em conta, em especial, que:
- Através da deliberação ora impugnada foi aprovado um “Projecto de Fusão, por incorporação, da APVP... na APPC...”:
- O projecto aprovado fora disponibilizado pela APVP aos seus Associados.
- Dos 44 Associados existentes na APVP, participaram na mencionada Assembleia 41, incluindo um sócio honorário.
- A deliberação foi considerada aprovada com 33 votos a favor, incluindo o do sócio honorário, João, seis votos contra e duas abstenções.
O Direito
Já em momento anterior se assentou, remetendo-se para a decisão recorrida, em que a fusão de associações não dá causa à sua extinção, mas tão-só à sua transformação, pelo que a respectiva deliberação se considera aprovada com os votos favoráveis de três quartos dos associados presentes com direito a voto.
Esta questão foi desenvolvidamente tratada na decisão recorrida, em termos que não foram impugnados, nem suscitam qualquer dúvida ou reserva.
Assim sendo, a aprovação da deliberação em causa carecia do voto favorável de trinta associados, correspondentes a ¾ do número dos associados presentes na assembleia com direito a voto.
Tendo participado na assembleia 41 associados, um dos quais sem direito a voto, essa maioria corresponde a 30 votos. E, uma vez que houve 31 votos favoráveis validamente expressos, a deliberação não pode deixar de ser considerada aprovada.
A questão que as apelantes ainda colocam é a de saber se o facto de ter sido expresso um voto nulo inquina a deliberação, de modo a torná-la anulável. Mas esta é, ressalvado o devido respeito pela posição das recorrentes e pelos interesses que as mesmas visam defender, uma questão desprovida de sentido. Em termos simples, um voto nulo será, apenas, um voto que não conta, que, independentemente do seu sentido, é insusceptível de produzir quaisquer efeitos na validade dos votos validamente expressos. A deliberação aprovada com um voto nulo, valerá o que valerem os demais votos, devendo ser considerada validamente aprovada se tiver obtido o número de votos favoráveis necessários à sua aprovação. Com todo o respeito, nem a dúvida se entende.
No sentido do exposto pode ver-se, de resto, Jorge Manuel Coutinho de Abreu in Curso de Direito Comercial, Vol. II, 3.ª Ed. pag. 501 e ss. Como ali defende o ilustre professor, há que atender à teleologia das normas e verificar se o vício verificado, ou a nulidade cometida, tiveram, ou eram susceptíveis de ter, influência no resultado da votação. E, no caso soa autos, até porque o sócio honorário não estava inibido de participar na discussão do projecto de fusão, não é identificável qualquer possibilidade de o seu voto poder influir no sentido de voto dos demais associados, nem isso foi alegado, pelo que terá concluir-se pela sua irrelevância.
Bem andou, pois, a decisão recorrida, em termos que, segundo se julga, não são fundadamente postos em causa no presente recurso, que não poderá deixar de ser julgado improcedente.
Termos em que se acorda em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida
Custas pelas apelantes.
Lisboa, 01-07-2010
(Farinha Alves)
(Tibério Silva)
(Ezagüy Martins)