Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6092/05.9TBOER-8
Relator: CARLOS M. G. DE MELO MARINHO
Descritores: SIMULAÇÃO
REQUISITOS
NULIDADE DO CONTRATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/07/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I-Para que se verifique a nulidade do negócio simulado é necessário que exista: a) acordo simulatório («pactum simulationis» ou, na terminologia legal, «acordo entre declarante e declaratário»); b) «intuito de enganar terceiros» («animus decipiendi», gerador da chamada «simulação inocente», ao qual acresce ou se cumula, por vezes, a forma agravada da simulação fraudulenta ou simulação com «animus nocendi») e c) «divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante» (ou, na referência de PINTO, Mota, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1976, pág. 357, «intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração»).
II- Para a exigência “enganar terceiros” ter significado, é necessário que o engano seja relevante, ou seja, que produza efeitos ao nível dos interesses englobados na esfera jurídica de terceiro.
III- Não há que cominar com a nulidade o negócio simulado, quando a simulação funcionou, como mero vínculo interno de protecção do proprietário relativamente à efectiva transmissão do direito de propriedade e sem saliência ou reflexo na esfera jurídica de terceiros
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
JOAQUIM instaurou acção declarativa de condenação com processo ordinário contra MARIA, pela qual solicitou ao Tribunal que declarasse a nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre o Autor e a Ré tendo por objecto fracção autónoma melhor identificada na petição inicial e que ordenasse o cancelamento do respectivo registo predial de aquisição, condenando a Demandada a reconhecer que a aludida fracção é sua propriedade, bem como a entregar-lha livre e desocupada.
Alegou, para o efeito, que:
Desde 1999, o A. e a R. viviam como marido e mulher apesar de não serem casados um com o outro; enquanto viveram em comunhão de casa, cama e mesa, residiam numa fracção autónoma que o A. havia adquirido em 2000; em meados de 2003, o A. quis adquirir uma outra fracção para nela passar a viver; para concretizar tal aquisição, necessitava de vender a fracção antes mencionada; contactou, para o efeito, diversas empresas de mediação imobiliária; não surgiram, porém, quaisquer compradores, pelo que acordou com a R. efectuar uma venda meramente fictícia da aludida fracção, de forma a, com o dinheiro realizado através do mutuo hipotecário, obter os fundos necessários para proceder ao pagamento da entrada para compra da que projectava adquirir, ficando a fracção em nome da R. até se conseguir um comprador para efectivar a venda real; foi em concretização de tal acordo que, em 30 de Junho de 2004, foi outorgada a escritura de compra e venda da fracção autónoma melhor identificada no primeiro articulado, nela intervindo o A. como vendedor e a R. como compradora; foi declarado na escritura que a venda foi efectuada pelo preço de € 75.000,00 tendo, na mesma data, sido celebrado um mútuo hipotecário no qual a R. figurou como mutuária e o A. como fiador; não foi intenção do A. proceder à venda à R. nem intenção da Demandada adquirir a fracção ao Demandante; o preço declarado foi irrealista, pois que tendo o A. colocado a fracção à venda por preço não inferior a € 140.000,00, nunca a venderia por € 75.000,00; esta quantia era a que o A. necessitava para adquirir a que projectara comprar; tal aquisição veio efectivamente a concretizar-se no dia 16 de Julho de 2004; a R. não procedeu ao pagamento ao A. de qualquer quantia decorrente da venda, pois que as prestações do mutuo hipotecário decorrente do contrato são pagas e suportadas pelo A.; o Demandante e a Ré passaram a habitar na fracção adquirida.
Na sua contestação, a Demandada sustentou que a acção fosse julgada improcedente por não provada.
Alegou que:
O Autor começou a dizer-lhe, de forma constante e reiterada, que ela deveria assegurar o seu futuro e adquirir a sua própria casa, pois que não eram casados e ele era bastante mais velho que ela; a Ré, por diversas vezes, disse ao A. que não podia comprar a casa pois que não tinha dinheiro para realizar tal compra; perante a insistência do Demandante, a Ré acabou por concordar na compra mas, ao adquiri-la, tinha verdadeira intenção de o fazer; a Ré encontra-se a pagar as prestações da casa que adquiriu.
Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente por não provada.
Tal decisão foi objecto de recurso de apelação interposto pelo Autor.
Nas suas alegações, o Recorrente peticionou que fosse revogada a sentença posta em crise.
Apresentou as seguintes conclusões:
A declaração negocial subjacente ao negócio impugnado está ferida por reserva mental, traduzindo a escritura um negócio simulado e verificando-se, cumulativamente, os requisitos desta figura, inclusivamente no que se reporta ao engano a terceiros; o terceiro é, no presente caso, a Caixa Geral de Depósitos que, por via do negócio simulado, veio a proceder a um financiamento hipotecário nos termos mais favoráveis atribuídos aos seus funcionários, como é o caso do ora recorrente; de outro modo, não haveria razão que explicasse que o recorrente vendesse á recorrida uma fracção sem receber qualquer preço; a sentença recorrida violou os arts. 240.º 244.º 281.º e 294.º do Código Civil.
Contra-alegando, a recorrida pugnou pela manutenção da decisão impugnada. Apresentou, em tal contexto, as seguintes conclusões:
O Recorrente não logrou provar que existisse um negócio simulado, pois não resultaram preenchidos os pressupostos e conceito de negócio simulado; o referido acordo entre o Recorrente e a Recorrida tinha apenas como único intuito permitir que o aquele obtivesse meios económicos para a aquisição da fracção através do empréstimo concedido à Recorrida; o Recorrente não logrou provar que a simulação tenha sido feita com o intuito de enganar terceiros ("animus decipiendi "); não pode vir o Recorrente alegar que pretendia enganar a Caixa Geral de Depósitos (C.G.D.) para a obtenção de um empréstimo; a C.G.D. celebrou um contrato de mútuo com a Recorrida e sobre a fracção constituiu hipoteca, pelo que não se pode retirar que aquela entidade tenha sido enganada; não se pode falar de reserva mental no caso em apreço, uma vez que o Recorrente logrou provar que houve um acordo entre as partes no sentido de o Recorrente vender a casa à Recorrida e, posteriormente, esta ficou registada em nome da Recorrida; a reserva mental não constitui uma declaração negocial, não existe acção, apenas "propositus in mente retentus", um processo de motivação psicológico não exteriorizado, pelo que é irrelevante no caso em apreço, já que houve um acordo entre as partes.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Ao abrigo do disposto no n.º 6 do art. 713.º do Código de Processo Civil, remete-se, aqui, no que respeita à matéria de facto, para os termos da decisão da primeira instância que decidiu tal matéria.
Fundamentação de Direito
Extrai-se dos factos dados como adquiridos nos autos que a Autora e o Réu declararam falsamente pretender celebrar negócio jurídico de compra e venda incidente sobre fracção autónoma quando, na realidade, apenas pretendiam criar as condições necessárias à concessão de um mútuo bancário com vista à obtenção de capital necessário à aquisição de uma outra fracção. A Ré não pretendia comprar, o Demandante não queria vender e não foi feita qualquer entrega pecuniária.
Depois deste percurso de falta à verdade, foi pedida a tutela do sistema jurídico por quem a ela faltou.
A protecção que o sistema confere é a vertida no art. 240.º do Código Civil.
Essa protecção pode ser utilizada pelos próprios simuladores desde a prolação de Assento de 10 de Maio de 1950 e está consagrada no n.º 1 do art. 242.º do invocado encadeado normativo.
Por força do estatuído no n.º 2 deste artigo, o negócio simulado está ferido de nulidade.
Para que esta gravíssima consequência contratual surja, torna-se necessário, conforme imposto pelo n.º 1 do invocado artigo, que exista: a) acordo simulatório («pactum simulationis» ou, na terminologia legal, «acordo entre declarante e declaratário»); b) «intuito de enganar terceiros» («animus decipiendi», gerador da chamada «simulação inocente», ao qual acresce ou se cumula, por vezes, a forma agravada da simulação fraudulenta ou simulação com «animus nocendi») e c) «divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante» (ou, na referência de PINTO, Mota, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1976, pág. 357, «intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração»).
Os requisitos da simulação (que o direito romano apelidava de «contractus imaginarius») referidos em a) e c), estão claramente preenchidos, face à matéria julgada demonstrada.
Verifica-se, em concreto, uma simulação absoluta, já que as partes fingiram realizar um determinado negócio quando, na realidade, não pretendiam vincular-se juridicamente de nenhuma forma (“colorem habet, substantiam vero nullam”).
O que subsiste para apreciar e constitui a questão chave deste recurso é o problema da concretização da previsão normativa relativa à existência de intuito de enganar terceiros, isto é, de iludir alguém alheio ao conluio.
Este intuito constitui, manifestamente, elemento situado entre a matéria de facto, a demonstrar nos termos gerais. Assim, por força do disposto no n.º 1 do art. 342.º do invocado Código, o ónus da prova deste pressuposto cabia, insofismavelmente, ao Demandante.
Para o esclarecimento da questão cuja resolução foi pedida a este Tribunal, é fulcral definir o sentido da palavra «enganar», usada pelo legislador.
Em termos semânticos, o vocábulo, com origem na palavra latina ingannáre, com o sentido inicial de «escarnecer», designa, no âmbito que aqui importa e no contexto do português moderno, «fazer cair em erro», «iludir» (FIGUEIREDO, Cândido, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Lisboa, 1986) «usar de enganos com», «lograr» (Dicionário da Língua Portuguesa – versão digital 1.0 – Priberam e Porto Editora, 1996).
Quando duas pessoas se conluiem com reserva mental, para declarar celebrar um negócio jurídico que, na realidade, não desejam, não estão, obviamente, a iludir-se a si próprias mas ao mundo que as rodeia. Se bastasse a mera produção de ilusão para fazer emergir a figura, dir-se-ia não fazer sentido a exigência constante do n.º 1 do art. 240.º do Código Civil, já que sempre surgiria tal encenação enganadora de terceiros e sempre a mesma teria que ser imputada à vontade das partes no negócio simulado que não poderiam, em condições ao menos comuns e pré-figuráveis, deixar de conhecer estarem a lançar um sinal falso à comunidade jurídica circundante e, logo, susceptível de nela produzir logro.
Afastada que está, a partida, a relação com o intuito de prejudicar (vd., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-02-2008 – documento: SJ20080214001802 in http://www.dgsi.pt – do qual foi relator o Sr. Juiz Conselheiro Oliveira Rocha) qual será o mais, id est, o elemento específico exigido pelo legislador que terá justificado a exigência e a menção autónoma?
As Ordenações Filipinas (livro II, título XXIII, § 33) referiam apenas a simulação fraudulenta (com menção expressa ao «fim de defraudar os direitos de terceiros»). O mesmo fazia o Código Civil de 1867, no seu artigo 1031.º, embora o acolhimento do relevo da simulação inocente se extraísse já de diversos preceitos, entre os quais se distinguia o art. 643.º, conforme deu nota MENDES, João de Castro, em Direito Civil Teoria Geral, vol. III, Lisboa, 1979).
Porém, à luz da legislação vigente, não se exige este fim e a distinção entre simulação fraudulenta e inocente perdeu relevo e interesse prático.
No caso em análise, o terceiro visado com a declaração deslocada foi a Caixa Geral de Depósitos.
Dos factos colhidos não se extrai, em momento algum, a existência de intenção de a prejudicar. A aludida instituição de crédito não viu, em nenhum ponto os seus direitos postos em crise ou atingidos. Celebrou um mútuo e garantiu-o com hipoteca, nos termos habituais. Não se patenteou, sequer, que tenha concedido qualquer regime de favor quanto a juros do qual pudesse emergir a percepção de menores proventos económicos e, logo, prejuízo.
Engano sempre houve; todo o meio circundante foi enganado com a falsidade e com a consequente projecção da mesma na criação de um negócio não querido. Nesse sentido, também a instituição de crédito foi atingida.
Mas esse é o sentido tautológico que não mereceria, na nossa opinião, tratamento autónomo na norma.
Para a exigência ter significado, parece necessário que o engano seja relevante, ou seja, que produza efeitos ao nível dos interesses englobados na esfera jurídica de terceiro. E porquê relevante? Desde logo porque o legislador não se ocupa de minudências ou de situações que não mereçam a tutela do Direito, isto é, sem importância à luz dos fins visado no quadro da produção normativa.
Será que, iluminados pelos factos dados como demonstrados, podemos concluir que a simulação teve algum relevo para a Caixa Geral de Depósitos?
Crê-se que não. Não se acolheram elementos que nos digam que a simulação tenha assumido relevância para a emergência da vontade contratual e definição dos contornos negociais do mútuo celebrado. Nada inculca a noção de que a actuação da entidade financiadora fosse diferente se as partes quisessem mesmo o negócio ficcionado e, sobretudo, não resulta de qualquer dado fáctico que da falta à verdade tenha brotado evento contratual digno de ressalto ou desvalor marginal não querido, no âmbito do negócio de financiamento.
A simulação funcionou, pois, como mero vínculo interno de protecção do proprietário relativamente à efectiva transmissão do direito de propriedade e sem saliência ou reflexo na esfera jurídica de terceiros.
Por assim ser, parece assistir razão ao tribunal recorrido na avaliação da questão que lhe foi pedido que solucionasse.
III. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 7 de Maio de 2009
Carlos Manuel Gonçalves de Melo Marinho (Relator)
José Albino Caetano Duarte (1.º Adjunto)
António Pedro Ferreira de Almeida (2.º Adjunto)