Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4764/03.1PCAMD.L1-2
Relator: LÚCIA SOUSA
Descritores: ESTABELECIMENTO COMERCIAL
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
PERSONALIDADE JURÍDICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/02/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: A denominação do estabelecimento comercial e o próprio estabelecimento comercial, não têm personalidade jurídica nem judiciária e, por isso, são insusceptíveis de ser demandados e de demandar
Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

M..., instaurou acção com processo sumário contra a firma, K.... – M. C. F., na pessoa do seu legal representante, L...., sedeada na Rua ...., pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 2.520,00, correspondente ao sinal em dobro, e ainda o montante de € 180,00 despendido no pagamento da reparação das obras mal executadas pela Ré, bem como a pagar-lhe o valor de € 6,74, despendidos no pagamento de fotocópia do cheque junto da entidade bancária, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data do incumprimento (13/5/2003).
Alegou para tanto e resumidamente, que em 31/3/2003, contratou com a Ré o fornecimento de uma cozinha, nos moldes descritos no orçamento junto, a ser executada no prazo de 30 dias e mediante o valor de € 3.150,00, tendo a Autora entregue à Ré, na pessoa do seu legal representante, L..., um cheque do montante de € 1.260,00, correspondente a 40% do valor total.
Apesar dos mais diversas insistências, o tempo foi decorrendo sem que a Ré iniciasse os trabalhos, tendo apenas efectuado uns buracos na parede para colocação de ficha para o exaustor, mas no local errado, aplicando os fios directamente no cimento sem qualquer protecção e feito o buraco para passagem do tubo da chaminé em redondo em vez de quadrado como tinha sido escolhido, demorando cerca de dois dias e em igual prazo edificou a parede para fechar a divisão da cozinha, não procedendo aos restantes trabalhos.
A Ré desinteressou-se da obra e não obstante ter sido notificada para terminar os trabalhos no prazo de 12 dias sob pena de se considerar definitivamente incumprido o contrato, aquela nada fez, recusando-se a devolver o sinal.
A Autora viu-se obrigada a contratar outrem para terminar as obras e reparar as anomalias deixadas pela Ré.
A solicitadora que procedeu à citação, tendo verificado que a Ré já não existia no local indicado, procedeu aquela na pessoa da responsável da empresa, MCF.
A contestação apresentada embora referindo no cabeçalho “K... – MCF” e no seu teor a Ré, a verdade é que a procuração foi passada por L..., em seu nome.
Na sequência de renúncia ao mandato veio a ser notificada a referida MCF, a qual veio requerer que se considerasse nula a sua notificação por ser estranha aos autos, o que foi deferido.
A Autora veio requerer a intervenção principal da dita MCF e de L.... por serem os gerentes da Ré, o que não foi admitido.
Considerando-se que a Ré era “K- MCF”, convidou-se a Autora a comprovar a personalidade e capacidade judiciárias da mesma, o que aquela não logrou, tendo apenas explicitado que de acordo com o orçamento o legal representante da Ré era o L...., mas o NIF ali constante era de MCF, mulher deste e que “K – MCF”, representada por L...., comerciante, não se encontrava registada na competente Conservatória do Registo Comercial.
Reafirmando que a Ré era “K – MCF” e que possuía organização e praticava regularmente actos de comércio, entendia a Autora que aquela possuía personalidade e capacidade jurídicas e judiciárias.
Assim não o entendeu o Meritíssimo Juiz que julgando a Ré destituída de personalidade jurídica e judiciária, absolveu a mesma da instância.
Inconformada, agravou a Autora concluindo textualmente nas suas alegações pela forma seguinte:
1. A injustificada morosidade verificada nos presentes autos constitui um acto de séria lesão dos interesses da A., a quem assiste o direito constitucional e legal de obter a decisão da causa em prazo razoável (cfr. art° 20°/3 da CRP; e art° 6° da CEDH), o que não ocorre;
2. A sentença de que ora se recorre não contém a assinatura do/a magistrado/a, nem manualmente, nem electronicamente, e as respectivas folhas também não se encontram rubricadas, omissões que implicam a respectiva nulidade (cfr. art° 157°/ 1; e art° 668°/1-a), ambos do CPC), além da omissão dos fundamentos de facto e de direito da decisão notificada, em reforço da respectiva nulidade da decisão;
3. Deverá considerar-se o R. como comerciante em nome individual, e não como estabelecimento comercial, com todas as consequências legais dai resultantes;
4. Se as decisões dos órgãos jurisdicionais competentes não nos deixarem outra alternativa, logo se requererá a fiscalização concreta de constitucionalidade da alínea c) do art° 494° do CPC, quando aplicada aos comerciantes em nome individual, por violação dos artigos 200/1 e 205°/ 1, ambos da Constituição;
5. Não é devido o pagamento de taxa de justiça.
Não foram apresentadas contra alegações.
O Meritíssimo Juiz sustentou o seu despacho.
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COLHIDOS OS VISTOS LEGAIS, CUMPRE DECIDIR.
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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, são questões a dirimir:
a) A nulidade da sentença;
b) A possibilidade de se considerar a Ré como comerciante em nome individual.
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Com interesse para a decisão consideram-se os seguintes factos:
1. A Agravante/Autora instaurou a acção contra K – M.C.F.....”, na pessoa do seu legal representante L.....
2. O número de contribuinte aposto no orçamento, nº ...., corresponderá a MCF e o L... será possuidor do número fiscal de contribuinte nº .....
3. A Ré “K – M.C.F...”, não se encontra registada na conservatória do registo comercial.
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As conclusões 1ª, 4ª e 5ª, não são de conhecer, sendo que a última resulta do facto da Agravante ser beneficiária de apoio judiciário na modalidade que a não obriga a tal pagamento, a primeira só a poderemos entender como um desabafo, que este tribunal não pode remedia e a 4ª é um direito que assiste a qualquer cidadão de nos termos e condições legais, requerer que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a constitucionalidade de preceitos legais e suas interpretações.
Entende a Agravante que a sentença é nula por não conter a assinatura do juiz, nem as folhas se encontrarem devidamente rubricadas.
O artigo 157º, nº 1, do Código de Processo Civil dispõe que as decisões judiciais são datadas e assinadas pelo juiz ou relator, que devem rubricar ainda as folhas não manuscritas.
Nos termos do nº 5, do artigo 138º do referido diploma legal, é permitido o uso de meios informáticos no tratamento e execução de quaisquer actos ou peças processuais, desde que se mostrem respeitadas as regras referentes à protecção de dados processuais e se faça menção desse uso.
Não se vislumbra qualquer violação das regras que permitem o uso de meios informáticos e no final da sentença, após a data e antes do espaço respeitante à assinatura consta: “texto elaborado em computador e integralmente revisto pelo(a) signatário(a)”, pelo que se pode concluir de foram observadas as regras do uso de meio informático.
Dispõe o artigo 668º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, que é nula a sentença quando não contenha a assinatura do juiz.
No entanto, essa nulidade é sanável, como decorre do nº 2 deste mesmo preceito legal.
Apesar de como se referiu esta nulidade ser sanável (a eventual falta de rubrica não constitui nulidade), a mesma não se verifica, já que, contrariamente ao alegado pela Agravante, a sentença foi assinada electronicamente e para tanto basta atentar no rosto da sentença onde consta claramente: “Documento assinado electronicamente. Esta assinatura electrónica substitui a assinatura autografa. Dr(a) J---”.
Não se verifica, pois a alegada nulidade.
Defende ainda a Agravante que a sentença é nula por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (artigo 668º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil).
Como refere o Professor José Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume V, pág. 140: Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto..
Não deixa de se estranhar a arguição de semelhante nulidade quando o Meritíssimo Juiz explanou claramente as razões pelas quais a Ré, estabelecimento comercial, não tem personalidade jurídica nem judiciária, tendo, inclusivamente, recorrido e bem, ao sustentado pelo Professor Castro Mendes, in Direito Processual Civil, Volume II, pág. 33 da Universidade de Lisboa – Faculdade de Direito.
Não se constata também a existência da arguida nulidade.
A personalidade jurídica é concedida as todas as pessoas singulares e às pessoas colectivas nos termos do artigo 158º do Código Civil, bem como às sociedades comerciais e civis sob a forma comercial (artigos 5º e 1º, nº 4, do Código das Sociedades Comerciais), podendo ainda a lei atribuí-las a outras entidades.
Não se inclui em nenhum destes normativos, nem se vislumbra qualquer outro que atribua personalidade jurídica ao estabelecimento comercial, como se afigura ser o caso dos autos, mais não passará do que uma actividade exercida pelo L.... e pela MCF, que girarão exercício do seu comercio com aquela denominação de “K – M. C. F....”.
Nos termos do artigo 5º, nº 2, do Código de Processo Civil, quem tem personalidade jurídica tem personalidade judiciária, consistindo esta na susceptibilidade de ser parte (artigo 5º, nº 1 do mesmo diploma).
Todavia a lei admite e confere personalidade judiciária a entes que não são dotados de personalidade jurídica, como são o caso dos patrimónios autónomos e outros referidos no artigo 6º do Código de Processo Civil, cuja enumeração não deve ser considerada taxativa, pois como refere Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª Edição, Lex, Lisboa 1997, a pág. 138 e 139: “Não se deve excluir que outros patrimónios autónomos também possam ter personalidade judiciária: é o caso, por exemplo, do Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada, regulado pelo Decreto-Lei nº 248/86, de 25/8 (cfr. RL – 13/2/1992, CJ 92/1, 156)”.
Não foi alegado, nem nos autos está demonstrado que a Ré seja um Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada (EIRL), já que para ser considerado como tal teria de constituir-se por escritura pública e a sua firma incluir sempre a expressão “Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada” ou a sigla “EIRL”.
Veja-se neste sentido, entre outros, o citado acórdão da Relação de Lisboa de 13/2/1992, in JTRL00009472 e o acórdão também desta Relação de 2/12/2007, Proc. 8281/2007-1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt..
O que se afigura resulta do caso sub judice é, como já atrás se referiu, que os ditos L... e/ou MCF utilizarão no exercício da sua actividade comercial a denominação de “K – M. C. F...”, que pode bem ter como tradução “K – MCF” e daí o facto de no orçamento constar o número de identificação fiscal da mesma.
A denominação do estabelecimento como se afigura ser o caso da Ré, não tem personalidade jurídica nem judiciária e, por isso é insusceptível de ser demandada, vendo-se também a este propósito, entre outros o acórdão da Relação de Lisboa de 17/12/2008, proc. 8513/2008-4, igualmente disponível em www.dgsi.pt..
Ora, não possuindo a Ré personalidade jurídica, a qual é insanável, outro caminho não restou ao Meritíssimo Juiz do que absolver a Ré da instância.
O que a Agravante deveria ter feito era instaurar a acção contra o L... e/ou MCF, atendendo à denominação comercial, com que giram, ao disposto, se for o caso, no artigo 1691º, nº 1, alínea d), do Código Civil e sem esquecer a faculdade e o benefício que resultam do artigo 289º do Código de Processo Civil.
Neste circunstancialismo, improcedem as conclusões das alegações.
Assim, face ao exposto, nega-se provimento ao agravo e, em consequência, confirma-se o douto despacho recorrido.
Custas pela Agravante sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 2 de Julho de 2009.
Lúcia Sousa
Farinha Alves
Tibério Silva