Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7354/2006-1
Relator: MARIA JOSÉ SIMÕES
Descritores: FALÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/30/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Sumário: I – A regulamentação do artº 12º da Lei 17/86 e do artº 4º da Lei nº 96/01 assegura a prevalência dos créditos dos trabalhadores em relação aos restantes credores.
II – A regra ínsita no artº 666º do CC cede perante situações de privilégio mobiliário geral, como é o caso dos créditos laborais.
III - Tal entendimento veio igualmente a ser plasmado no artº 377º nº 1 al. a) do Cód. Do Trabalho (Lei nº 99/2003 de 27/08), quando veio prever que os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, continuam a gozar de privilégio mobiliário geral.
III – Tratando-se de regime especial prevalecente sobre o regime geral do CC, o crédito laboral de um trabalhador deve ser graduado à frente do crédito garantido por penhor.
(MJS)
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
A, LDA., veio em 14 de Novembro de 1991, requerer acção com processo especial, de recuperação de empresa e de protecção dos credores.
Por despacho de 18 de Fevereiro de 1993, nos termos do artº 17º nº 3 do DL nº 177/86 de 02/07, foi decretada a falência da requerente, A LDA., por ter decorrido o prazo de oito meses, sem que a assembleia de credores se tivesse constituído como definitiva.
A requerente interpôs recurso de apelação desse despacho, recurso que foi admitido e ao qual o Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 7 de Julho de 1994, negou provimento, confirmando a decisão recorrida, que transitou em julgado em 26 de Setembro de 1994.
Por despacho complementar de 20 de Dezembro de 1994, foi fixado em 60 dias, o prazo para reclamação de créditos nos termos do disposto no artigo 1181º do CPC (na redacção vigente à data da declaração de falência), prazo que terminou em 8 de Novembro de 1995.
Foram, dentro do prazo, apresentados requerimentos de reclamação de créditos e apensados processos que haviam sido instaurados contra a falida.
Após parecer do Sr. Administrador foi proferido despacho saneador onde se declararam reconhecidos alguns dos créditos e organizada Base Instrutória quanto a outros créditos.
Foi proferida sentença, em que foram reconhecidos créditos e graduados da seguinte forma:
1. Crédito da trabalhadora E, referido em D).f);
2. Crédito de impostos referido em D).J);
3. Crédito da Segurança Social referido em C).d), todos gozando de privilégio mobiliário geral;
4. Os demais créditos indicados em E) (1 a 5) e em F) (1 a 2), são comuns.

Desta sentença, recorreu a credora reclamante C, SA, tendo apresentado as suas alegações que terminaram com as seguintes conclusões:
1. Conforme consta da p.i. de reclamação de créditos, os créditos do ex-B provêem de:
. Esc. 3.307.391$00 de letras descontadas,
. Esc. 1.340.614$20 dos respectivos juros,
. Esc. 11.923.694$00 de saldo de conta corrente caucionada e,
. Esc. 5.076.553$60 dos respectivos juros.
2. Tal conta caucionada foi garantida por penhor constituído sobre 03 máquinas de impressão HEIDELBERG.
3. Tal contrato garantia todo e qualquer montante de capital até Esc. 15.000.000$00, respectivos juros e despesas judiciais e extrajudiciais.
4. E, no artº 6º, in fine, da já referida p.i. de reclamação de créditos, tal penhor é expressamente referido.
5. A reclamação apresentada não foi objecto de qualquer contestação, sendo o crédito de ex-B reconhecido nos termos em que foi reclamado, no despacho saneador.
6. As referidas máquinas continuaram sempre na posse e nas instalações da falida, constituindo duas delas as verbas nºs 15 e 18 do auto de apreensão de bens.
7. Nos termos do artº 200º nº 2 do CPEREF, “a sentença é geral para os bens da massa falida e é especial para os bens que respeitam direitos reais de garantia”.
8. Tal significa que os bens sujeitos a garantia respondem preferentemente pelos créditos que garantem, apenas satisfazendo os créditos comuns na parte remanescente.
9. Ora a sentença de graduação de créditos de que se recorre ignorou a existência do penhor constituído sobre as referidas máquinas, “esquecendo-se”, pois, de graduar o crédito do ex-B na parte que se refere à referida conta caucionada e quanto ao produto da venda das referidas máquinas, como crédito preferente.
10. Tais verbas já foram vendidas devendo, nos termos do artº 209º do CPEREF, ser pago preferentemente o credor com garantia real.
11. Assim, deverá a presente sentença ser revogada parcialmente na parte referente aos créditos do ex-B, considerando o montante de Esc. 17.000.247$00 (Esc. 11.923.694$00 de saldo de conta corrente caucionada + Esc. 5.076.553$60 dos respectivos juros), isto é, € 84.796,87 como crédito preferente, graduado em 1º lugar, no que se refere às verbas 15 e 18 do Auto de apreensão de bens, dadas em penhor.
12. O seu remanescente (se o houver) bem como a quantia de Esc. 4.648.005$20 (Esc. 3.307.391$00 de letras descontadas + Esc. 1.340.614$20 dos respectivos juros) manter-se-á graduado como crédito comum.

Foram apresentadas contra-alegações pelo Mº Pº, as quais finalizaram com as seguintes conclusões:
1 – Uma parte dos créditos reclamados pela apelante estão garantidos por penhor sobre as verbas nº 15 e nº 18 do auto de apreensão de bens, já vendidas, pelo que, neste particular, a apelante goza da preferência prevista no artº 666º nº 1 do CC.
2 – Estes créditos garantidos por penhor não sofrem a concorrência de quaisquer outros créditos, salvo o estabelecido em lei especial.
3 – Desde logo, em face do que previam nesta sede a Lei nº 17/86 e a Lei nº 96/2001 e veio entretanto prever o Código de Trabalho, aprovado pela Lei nº 99/2003, no respectivo artº 377º nº 1 al. a), ocorre uma excepção à regra geral resultante do disposto nos artºs 666º nº 1 e 749º do CC, pelo que os créditos laborais devem ser graduados à frente do crédito garantido por penhor.

Foram colhidos os vistos legais.

II – QUESTÕES A RESOLVER
Como se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (artºs 684º nº 3 e 690º nº 1 do CPC), importando, assim, decidir as questões nelas colocadas – e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso - exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – artº 660º nº 2 também do CPC.
Assim, em face das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
1. Os créditos da apelante encontram-se garantidos por penhor, no que respeita a duas verbas constantes do auto de apreensão de bens?
2. Os créditos da apelante, na parte em que estão garantidos por penhor, gozam de preferência sobre os demais credores e, como tal devem ser graduados em 1º lugar?

III – FUNDAMENTOS DE FACTO
Os factos com interesse para a presente decisão são os seguintes:

- Pelo BANCO , S.A., foi reclamado em 14 de Março de 1995, a fls. 57, o montante de 21.648.152$80, sendo 3.307.391$00 de letras descontadas, 1.340.514$20 dos respectivos juros até 18.02.1993, 11.923.694$00 de saldo de conta corrente caucionada e 5.076.553$60 dos juros correspondentes de 14 de Agosto de 1991 até 18 de Fevereiro de 1993.
- Por E, foi reclamado o pagamento de 166.095$00, referente a salários e outras retribuições devidas pelo trabalho prestado, acrescido dos juros vencidos e vincendos desde 3 de Abril de 1992 até integral pagamento.

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Os créditos da apelante encontram-se garantidos por penhor, no que respeita a duas verbas constantes do auto de apreensão de bens?

A parte dos créditos impugnados pela apelante reconduzem-se a Esc. 11.923.694$00 de saldo de conta corrente caucionada e a Esc. 5.076.553$60 dos respectivos juros.
Vejamos, então, se estes créditos estão garantidos por penhor, no que respeita a duas verbas constantes do auto de apreensão de bens.
Com a reclamação de créditos, o ex-B juntou aos autos um contrato de penhor, datado de 11/04/90, no qual a sociedade falida dá em penhor à apelante, livre de ónus ou encargos, os bens que por título legítimo lhe pertencem, com o valor de Esc. 15.100.000$00, cuja discriminação e localização estão indicadas na parte final do contrato, em garantia do pagamento, de todas e quaisquer responsabilidades ou obrigações até ao montante em capital de Esc. 15.000.000$00 que a sociedade falida tenha ou venha a assumir, em conjunto ou separadamente e em qualquer quantidade perante o Banco, quer derivem do empréstimo em conta corrente concedido pelo Banco à referida sociedade nos termos do contrato celebrado, quer provenham de alguma outra operação ou título em direito permitidos, dos juros compensatórios e das despesas judiciais e extrajudiciais (Clª 1ª).
Assim, para garantia da mencionada conta caucionada foi constituído penhor sobre 3 máquinas de impressão HEIDELBERG, melhor descritas na Clª 8ª do referido contrato de penhor.
Tais máquinas estão localizadas nas instalações da sociedade falida e continuam em seu poder.
Ora, consta do auto de apreensão de bens, duas máquinas com as mesmas características das que constam do contrato de penhor celebrado em 11/04/90, identificadas como verbas nºs 15 e 18, ainda que não estejam tão exaustivamente descritas como no contrato.
Não restam, assim, dúvidas de que parte dos créditos da apelante se encontram garantidos por penhor, no que diz respeito a duas verbas constantes do auto de apreensão de bens, pelo que, procedem, nesta parte, as conclusões da apelante.

2. Os créditos da apelante, na parte em que estão garantidos por penhor, gozam de preferência sobre os demais credores e, como tal devem ser graduados em 1º lugar?
Já vimos na abordagem da questão anterior que parte do crédito da apelante se encontra garantido por penhor.
Vejamos agora em que lugar deve tal crédito ser graduado.
A sentença recorrida graduou tal crédito em 4º lugar, como crédito comum.
A apelante pretende que o mesmo seja graduado em 1º lugar, como crédito preferente.
O Mº Pº pugna pela graduação dos créditos laborais à frente do crédito da apelante garantido por penhor.
Da conjugação do preceituado nos artºs 666º nº 1 e 669º nº 1 do CC, o penhor confere o direito à satisfação do crédito e juros com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, mas só produz os seus efeitos pela entrega da coisa empenhada ou de documento que confira a exclusiva disponibilidade dela, ao credor ou a terceiro.
Dessa forma, a parte acima referida do crédito da apelante, na medida em que beneficia daquela garantia real (penhor), deveria, em princípio, ter sido graduada em primeiro lugar.
No entanto, tal regra sofre uma excepção, na medida em que existe um crédito laboral de uma trabalhadora para graduar, cujo privilégio se encontra previsto em lei especial.
Efectivamente, o legislador dotou os referidos créditos laborais de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário geral.
Os privilégios creditórios encontram-se definidos no artº 733º do CC, consistindo na “faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros”.
Assim, consoante a natureza dos bens sobre que incide, o privilégio creditório será mobiliário ou imobiliário (artº 735º do CC).
O artº 735º do CC de 1966 estabelece que os privilégios imobiliários seriam sempre especiais.
Após a data do início da vigência do CC foram criadas, uma série de excepções a este princípio, instituindo-se a figura do privilégio imobiliário geral. Como exemplos de excepções à norma constante do artº 735º nº 3 do CC, temos o artº 12º da Lei 17/86 e o artº 4º da Lei 96/01 (caso dos privilégios concedidos a créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação) e as contribuições em dívida à Segurança Social.
Os privilégios imobiliários serão gerais quando abranjam o valor de todos os bens imóveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente.
Quanto aos privilégios mobiliários, de acordo com o que consta do CC, podem ser gerais e especiais: gerais se abrangem o valor de todos os bens móveis do devedor existentes no seu património e especiais se apenas abrangem certos bens móveis (artº 735º do CC).
Na origem da elaboração e publicação das Leis 17/86 e 96/01 estiveram circunstâncias sociais resultantes das inúmeras situações de retribuições em atraso e de violação dos contratos de trabalho.
Com a publicação de tais leis pretendeu-se dotar os trabalhadores de um instrumento que lhes permitisse solucionar a crise contratual originada pela existência de retribuições em atraso e pela existência dos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação.
Como reforço desta ideia de protecção do trabalhador credor da entidade patronal, o legislador quis atribuir aos seus créditos um privilégio geral.
O legislador criou um mecanismo que, permite que, na prática, os trabalhadores surjam na primeira linha de credores a serem pagos pelas respectivas entidades patronais.
A regulamentação do artº 12º da Lei 17/86 e do artº 4º da Lei nº 96/01 assegura, pois, a prevalência dos créditos dos trabalhadores em relação aos restantes credores.
Não obstante o preceituado no artº 666º do CC, o certo é que tal regra, cede, perante situações de privilégio mobiliário geral, como é o caso dos créditos laborais.
Tal entendimento veio igualmente a ser plasmado no artº 377º nº 1 al. a) do Cód. do Trabalho (Lei nº 99/2003 de 27/08), quando veio prever que os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, continuam a gozar de privilégio mobiliário geral.
Pelo que, tratando-se de regime especial prevalecente sobre o regime geral do CC, o crédito laboral da trabalhadora deve ser graduado à frente do crédito garantido por penhor.
Em consonância com o exposto, necessário se torna reformular a graduação dos créditos reconhecidos, o que se passa a fazer da seguinte forma:
1º - Crédito da trabalhadora Elizabete, referido em D).f);
2º - Crédito do ex-B (Esc. 17.000.247$00, actualmente € 84.796,87 = Esc. 11.923.694$00 de saldo de conta corrente caucionada + Esc. 5.076.553$00 do respectivos juros), no que se refere às verbas 15 e 18 do auto de apreensão de bens, dadas em penhor;
3º - Crédito de impostos referido em D).j);
4º - Crédito da Segurança Social referido em C).d);
5º - Os demais créditos, onde se inclui o remanescente do crédito do ex-B no montante de Esc. 4.648.005$20 (Esc. 3.307.391$00 de letras descontadas + Esc. 1.340.614$20).

V – DECISÃO
Termos em que, sem necessidade de qualquer outra consideração, acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se, em consequência, parcialmente a sentença recorrida, relativamente à graduação quanto aos móveis objecto de penhor, a qual se substitui por outra com a graduação nos termos sobreditos, confirmando-se em tudo o mais a graduação constante da sentença recorrida.
Custas pela apelante na proporção do decaimento.
Lisboa, 30/01/2007
(Maria José Simões)
(Azadinho Loureiro)
(Ferreira Pascoal)