Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2833/15.4T8LRS.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/02/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-A transferência do direito de propriedade, por efeito da Sentença, não implica a condenação do promitente vendedor a efectuar o registo da propriedade a favor da promitente compradora, bem como a realizar o cancelamento de eventuais ónus anteriormente registados sobre o imóvel, nomeadamente hipotecas e penhoras.
II- Ao estabelecer o regime da execução específica do contrato-promessa o legislador previu apenas no artº 830º nº 4 do Código Civil a faculdade de o adquirente (promitente-comprador), sendo caso de expurgação de hipoteca ao abrigo do artº 721º do Código Civil, requerer para esse efeito que a sentença “condene também o promitente faltoso a entregar-lhe o montante do débito garantido, ou o valor nele correspondente à fracção do edifício ou do direito objecto do contrato e dos juros respectivos, vencidos e vincendos, até pagamento integral”.
III- O direito de retenção é um direito real de garantia de créditos, de dívidas de dinheiro ou de valor, conferindo ao seu titular (credor), que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor, o direito de executar a coisa retida e de se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores.
IV- No contrato-promessa, o direito de retenção pressupõe, para além da “traditio”, a existência de um crédito do promitente-comprador, resultante do não cumprimento ou incumprimento definitivo imputável à outra parte.
V- O promitente-comprador para quem foi transferida a coisa objecto da promessa, não goza do direito de retenção sem previamente demonstrar que é titular de crédito contra o promitente vendedor, resultante de não cumprimento da promessa imputável a este.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Decisão em texto integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA :
I – Relatório
1) ... ... ... instaurou acção declarativa de condenação, com a forma de processo comum, contra “... Portugal – Negócios, S.A.”, pedindo que :
-Se declare o incumprimento culposo da R. relativamente ao contrato-promessa em causa.
-Seja proferida sentença que, nos termos do artº 830º do Código Civil, substituindo-se à declaração de vontade negocial da R., decrete a transferência da titularidade do imóvel para a A., livre de ónus e encargos.
-Se ordene a inscrição no registo predial da propriedade a favor da A. e o cancelamento das inscrições ou registos incompatíveis com essa aquisição.
-Até lá seja reconhecido o direito de retenção da A. sobre o imóvel.
Para fundamentar a sua pretensão, a A. alega, em síntese, que em 24/8/2011 a A. e a R., respectivamente nas qualidades de promitente-compradora e promitente-vendedora, celebraram contrato-promessa de compra e venda da fracção “B”, correspondente a rés-do-chão e 1º andar para habitação, com garagem, arrecadação, piscina e logradouro, do prédio urbano sito na Urbanização Casal da ..., EN 566, Lote 1, descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o nº 3066/19900524 da extinta freguesia da ... e inscrita na respectiva matriz sob o artº 4666 da União das freguesias da ... e ..., pelo preço de 85.000 €, já integralmente pago.
Aquando da celebração do contrato-promessa a A. entregou à R. a quantia de 50.000 € a título de sinal e princípio de pagamento, e o remanescente do preço, no montante de 35.000 €, pagou-o no prazo de 180 dias após aquela data, tal como previsto no contrato-promessa, tendo a A. ficado a habitar na dita fracção (a qual já anteriormente habitava, a coberto de contrato de arrendamento com opção de compra).
Ficou acordado que a escritura de compra e venda seria outorgada no prazo de 12 meses a contar da celebração do contrato promessa e que incumbiria à R. a sua marcação, devendo notificar a A. do dia, hora e local, por carta registada com aviso de recepção com a antecedência de 15 dias, o que a R. não fez, conduzindo a que a A., usando da faculdade contratualmente prevista, tivesse procedido ela à marcação da escritura, do que notificou a R..
Porém a R., pese embora tenha recebido essa notificação, não compareceu nem se fez representar na data marcada para a realização da escritura, do que a Srª Notária lavrou o correspondente certificado.
Invoca ainda a A. que no contrato promessa as partes acordaram atribuir eficácia real ao mesmo e conferir direito de retenção à A. em caso de incumprimento da R..
2) Regularmente citada, a R. não contestou.
3) Foi proferido despacho a considerar confessados os factos alegados pela A., nos termos do artº 567º do Código de Processo Civil.
4) De seguida foi elaborada Sentença a julgar a acção parcialmente procedente, constando da sua parte decisória :
“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal julga a acção parcialmente procedente e, em consequência, em substituição da declaração negocial da R., atribui à A. o direito de propriedade sobre a fracção “B”, correspondente a casa de r/c e 1º andar para habitação, varandas, terraço, anexos para garagem e arrecadação, piscina e logradouro, sita na Urbanização Casal da ... EN 566, lote 1, descrita na CRPredial da ... sob o nº 3066 da extinta freguesia da ... e inscrita da matriz urbana sob o artº 4666 da União de freguesias da ... e ....
Julgam-se improcedentes os demais pedidos.
Custas por A. e R., na proporção de 1/3 para aquela e de 2/3 para esta (sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que a A. goza).
Registe e notifique”.
5) Desta decisão interpôs a A. recurso de apelação, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões :
“a) A sentença agora posta em crise considerou parcialmente procedente o pedido no que respeita à “substituição da declaração negocial da R., atribuindo à A. o direito de propriedade sobre a fracção “B”, correspondente a casa de r/c e 1º andar para habitação, varandas, terraço, anexos para garagem e arrecadação, piscina e logradouro, sita na Urbanização Casal da ... EN 566, lote 1, descrita na CRPredial da ... sob o nº 3066 da extinta freguesia da ... e inscrita da matriz urbana sob o artº 4666 da União de freguesias da ... e ...”.
b) Como considerou procedente o pedido da condenação da Recorrida nas custas do processo, tendo fixado para esta o pagamento de 2/3 das custas.
c) Considerou improcedentes todos os outros pedidos formulados pela Recorrente, tendo condenado a Recorrente no pagamento de 1/3 das custas (sem prejuízo do benefício do apoio jurídico de que a Recorrente beneficia).
Com o devido respeito, não tem razão.
d) Os direitos consignados a quem tem a tradição e a eficácia real, mas que ainda não tenha pago a totalidade do preço, não podem ser negados a quem tenha sido concedida a tradição do bem, tenha a posse, e ao contrato promessa tenha sido atribuída eficácia real.
e) A não ser assim, o que só por mera hipótese académica se concede, estaria em condição privilegiada sobre a Recorrente um qualquer outro promitente-comprador que num contrato promessa de compra e venda duma fração equivalente à prometida comprar pela Recorrente, em que também tivesse havido a tradição do bem e a posse se mantivesse, e que no contrato tivesse sido atribuída eficácia real, tivesse pago metade do preço da coisa prometida vender, e que, por culpa do promitente vendedor o contrato fosse resolvido.
f) No caso da hipótese académica, o promitente-comprador teria direito à devolução do sinal em dobro, isto é, a totalidade do preço, por o sinal ter sido de 50% do preço.
g) E teria o direito de retenção sobre o imóvel, enquanto não entregasse a coisa retida, com a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o podia fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor, direito de retenção que prevalecia sobre a hipoteca, ainda que esta tivesse sido registada anteriormente
h) Aceitando-se que à Recorrente não seja reconhecido o direito a que lhe seja devolvido o que prestou, em dobro,
i) E aceitando-se também que a titularidade do bem passe para seu nome,
j) Não se pode negar à Recorrente os mesmos direitos que são reconhecidos a quem tivesse na condição de ter pago uma qualquer parte do preço, com o reconhecimento da eficácia real e da tradição e posse.
k) Poderemos até extrapolar para a hipótese, de novo meramente académica, do promitente-comprador que, para além de reunir as condições reais de que a Recorrente é titular, tivesse pago sinal equivalente a 95% do preço.
l) Pensemos que o preço era exatamente os 85.000,00 € pagos pela Recorrente, dos quais o promitente-comprador havia pago 80.750,00 € (95%).
m) Nas condições já referidas, o promitente-comprador teria o direito de retenção até que lhe fosse prestado o montante de 161.500,00 € (dobro do sinal), montante muito superior ao preço do imóvel.
n) Do absurdo dos exemplos teremos de concluir que ao promitente-comprador que tenha pago a totalidade do preço não podem ser concedidas garantias inferiores àquelas que tem um qualquer promitente-comprador que não tenha prestado sinais que não perfaçam a totalidade do preço.
o) Estando ambos na posse do bem, por ter havido tradição dele, e ao contrato tiver sido atribuída eficácia real.
p) O pedido feito, e não concedido, de que seja ordenado o cancelamento de registos de direitos reais para garantia de créditos anteriores, ou posteriores, ao registo do contrato promessa de compra e venda, com eficácia real, deve ser concedido.
q) Só assim a Recorrente ficará em patamar igual àquele que é concedido ao promitente-comprador que requeira a resolução do contrato promessa, por factos imputáveis ao promitente vendedor, e que nos termos do artigo 759º do Código Civil tem a faculdade de executar o bem, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor, direito de retenção que, nos termos do número 2 do mesmo artigo 759º prevalece nesta caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente.
r) Pelo exposto, e porque o Recorrente beneficia do apoio jurídico na modalidade de total dispensa do pagamento de custas e demais encargos com o processo, a sentença deveria ter ordenado o cancelamento de todas as inscrições ou registos incompatíveis com a aquisição do imóvel pela Requerente, livre de quaisquer ónus ou encargos.
s) Ainda pelo que foi exposto a sentença deveria ter declarado culposo o incumprimento pela Recorrida do Contrato Promessa de Compra e Venda, de 24 de Agosto de 2011.
t) Uma vez que a Recorrente beneficia do apoio judiciário na modalidade de total dispensa de custas e demais encargos com o processo, a sentença deveria ter ordenado que se procedesse à inscrição no Registo Predial da aquisição da mencionada Fração ({B" a favor da Recorrente.
Em resumo,
u) A sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância deve ser revogada na parte em que julgou improcedente parte dos pedidos da Requerida,
v) E substituída por outra que julgue procedentes todos os pedidos formulados pela Recorrente,
E desse modo V. Exªs, Venerandos Desembargadores, farão a vossa costumada Justiça”.
6) Não foram apresentadas contra-alegações.

* * *

II – Fundamentação
a) A matéria de facto a considerar é a seguinte :
1- Em 24/8/2011, a A. e a R., respectivamente nas qualidades de promitente-compradora e promitente-vendedora, celebraram contrato-promessa de compra e venda da fracção “B”, correspondente a rés-do-chão e 1º andar para habitação, com garagem, arrecadação, piscina e logradouro, do prédio urbano sito na Urbanização Casal da ..., EN 566, Lote 1, descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o nº 3066/19900524 da extinta freguesia da ... e inscrita na respectiva matriz sob o artº 4666 da União das freguesias da ... e ..., pelo preço de 85.000 €, já integralmente pago.
2- Aquando da celebração do contrato-promessa a A. entregou à R. a quantia de 50.000 € a título de sinal e princípio de pagamento, e o remanescente do preço, no montante de 35.000 €, pagou-o no prazo de 180 dias após aquela data, tal como previsto no contrato-promessa, tendo a A. ficado a habitar na dita fracção (a qual já anteriormente habitava, a coberto de contrato de arrendamento com opção de compra).
3- Ficou acordado que a escritura de compra e venda seria outorgada no prazo de 12 meses a contar da celebração do contrato promessa e que incumbiria à R. a sua marcação, devendo notificar a A. do dia, hora e local, por carta registada com aviso de recepção com a antecedência de 15 dias, o que a R. não fez.
4- A A., usando da faculdade contratualmente prevista, procedeu ela à marcação da escritura, do que notificou a R..
5- Porém a R., pese embora tenha recebido essa notificação, não compareceu nem se fez representar na data marcada para a realização da escritura, do que a Srª Notária lavrou o correspondente certificado.
6- No contrato promessa as partes acordaram atribuir eficácia real ao mesmo e conferir direito de retenção à A. em caso de incumprimento da R..
b) Como resulta do disposto nos artºs. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões da alegação da recorrente, as questões em recurso consistem em determinar :
-Se deve ser declarado que o incumprimento contratual por parte da recorrida deve ser declarado culposo.
-Se o Tribunal pode determinar a inscrição da fracção em causa a favor da recorrente, bem como o cancelamento de todas as inscrições ou registos incompatíveis com essa aquisição, à custa da recorrida.
-Se deve ser reconhecido o alegado direito de retenção da recorrente.
c) Antes de mais, há que referir que, considerando verificados os respectivos pressupostos legais, a 1ª instância proferiu, ao abrigo do estatuído no artº 830º nº 1 do Código Civil, Sentença que, produzindo os efeitos da declaração negocial da recorrida, promitente faltosa, operou a transmissão para a apelante do direito de propriedade relativamente ao prédio urbano objecto do contrato-promessa que haviam outorgado no dia 24/8/2011.
Alcançou, assim, a recorrente, promitente-compradora, a execução específica do contrato-promessa de compra e venda.
Transitado em julgado este segmento da decisão, por não ter sido impugnado, formou-se sobre o mesmo caso julgado material (artºs. 619º nº 1 e 621º do Código de Processo Civil).
Trata-se, assim, de decisão que permanecerá inalterável.
d) Vejamos, então, a primeira questão suscitada.
Antes de mais, defende a apelante, que se “deveria ter declarado culposo o incumprimento pela Recorrida do Contrato Promessa de Compra e Venda, de 24 de Agosto de 2011”.
Ora, ficou acordado que o contrato definitivo (a escritura de compra e venda) seria celebrado no prazo de 12 meses a contar da celebração do contrato promessa, incumbindo à apelada a sua marcação. Esta não o fez.
A apelante, usando da faculdade contratualmente prevista, procedeu ela à marcação da escritura, do que notificou a recorrida.
No entanto, esta, apesar de ter recebido essa notificação, não compareceu nem se fez representar na data marcada para a realização da escritura.
Esta actuação da recorrida integra, por si só, uma situação de incumprimento.
Isto porque, como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 18/1/1996 (in Col. 1/1996, pg. 95), aliás de acordo com doutrina e jurisprudência, que cita, “o comportamento do promitente-vendedor que exprima a vontade de não querer cumprir, reconduz-se ao conceito de recusa de cumprimento, o que permite considerá-lo inadimplente de forma definitiva”.
E integra uma situação de incumprimento culposo imputável à apelada, uma vez que o contrato-promessa está submetido ao regime legal aplicável à generalidade dos contratos, regime em que o devedor que não cumpre uma obrigação incorre numa presunção de culpa.
Com efeito, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento não procede de culpa sua, sendo que a culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil (artº 799º do Código Civil), ou seja, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artº 487º nº 2 do Código Civil).
Operando-se a determinação da culpa segundo o critério da diligência de um bom pai de família, através do recurso aos deveres de diligência exigíveis do homem comum, existirá culpa sempre que o agente não proceda como procederia, no caso concreto, uma pessoa normalmente precavida.
No caso sob recurso a apelada não elidiu a presunção de culpa estabelecida na lei, pois que nem sequer contestou a acção.
Por outro lado, ao não marcar a escritura e ao não comparecer no dia marcado pela recorrente, actuou sem a diligência exigível ao homem médio, isto é, actuou culposamente.
Deste modo, a pretensão da apelante, de que o Tribunal devia ter considerado o comportamento da apelada como culposo já está, de algum modo, implícito na decisão proferida, pois a execução específica, para operar, implica a verificação de um incumprimento (cf. artº 830º nº 1 do Código Civil).
Deste modo, não vemos qualquer necessidade de alterar a decisão na parcela condenatória, aditando a referência de que o incumprimento da recorrida foi culposo, pois isso já resulta da mesma.
Deste modo, nesta parte não procede o recurso.
e) Vejamos, agora, se o Tribunal pode determinar a inscrição da fracção em causa a favor da recorrente, bem como o cancelamento de todas as inscrições ou registos incompatíveis com essa aquisição, à custa da recorrida.
No recurso que interpôs, a apelante insurge-se contra o entendimento de que tal pretensão não é legal, antes defendendo que deve ser ordenado, oficiosamente, a inscrição registal a favor da recorrente, bem como o cancelamento dos registos de hipoteca, penhora, ou quaisquer outros ónus ou encargos.
Conforme se verifica da leitura da certidão do registo predial cuja cópia se encontra a fls. 21 a 25 verifica-se que sobre a fracção em causa incide o registo de uma hipoteca voluntária e duas penhoras, sendo a recorrida o sujeito passivo das mesmas.
A execução específica do contrato-promessa judicialmente declarada na presente acção substituiu a declaração negocial da recorrida, promitente-vendedora. Com a Sentença proferida nestes autos operou-se a transferência do direito de propriedade, produzindo-se os efeitos reais do contrato definitivo (contrato de compra e venda) no momento em que a sentença constitutiva adquiriu força de caso julgado.
A transferência do direito de propriedade, por efeito da Sentença, não implica a condenação do promitente vendedor a efectuar o registo da propriedade a favor da promitente compradora, bem como a realizar o cancelamento de eventuais ónus anteriormente registados sobre o imóvel, nomeadamente hipotecas e penhoras.
Aliás, apenas é inoponível à recorrida, compradora, qualquer encargo ou direito conflituante com o seu direito de propriedade que um terceiro tenha eventualmente adquirido posteriormente.
Ao estabelecer o regime da execução específica do contrato-promessa o legislador previu apenas no artº 830º nº 4 do Código Civil a faculdade de o adquirente (promitente-comprador), sendo caso de expurgação de hipoteca ao abrigo do artº 721º do Código Civil, requerer para esse efeito que a sentença “condene também o promitente faltoso a entregar-lhe o montante do débito garantido, ou o valor nele correspondente à fracção do edifício ou do direito objecto do contrato e dos juros respectivos, vencidos e vincendos, até pagamento integral”.
Existindo penhora ou penhoras registadas anteriormente, a transmissão do direito de propriedade de um imóvel penhorado, sendo possível por se tratar de um acto de disposição jurídica do bem, não afecta a garantia conferida pela penhora a terceiros credores, verificando-se, apesar da validade e eficácia da transmissão, uma ineficácia relativa da mesma em relação à eventual execução, a qual prossegue como se o bem penhorado se mantivesse na titularidade do executado (cf. artº 819º do Código Civil e Anselmo de Castro, in “A Acção Singular, Comum e Especial”, 3ª ed., pg.156).
No caso em apreço, resulta da certidão junta a fls. a fls. 21 a 25 que a hipoteca e as duas penhoras que recaem sobre o imóvel adquirido pela apelante foram registadas em data anterior à da propositura da acção.
Sendo a inscrição da hipoteca e das penhoras no registo predial anterior à aquisição do direito de propriedade pela recorrente (que, obviamente, ainda irá ser concretizado), não é tal aquisição, ainda que judicialmente declarada, oponível aos credores exequentes que gozam da garantia conferida pela penhora ou pela hipoteca, verificando-se quanto a estes a aludida ineficácia relativa da transmissão do direito de propriedade.
Assim, esta acção declarativa não constitui a sede própria para os promitentes-compradores (“in casu” a recorrente), lograrem obter o cancelamento das hipotecas e penhoras que oneram o bem imóvel que adquiriram (neste sentido, cf. Acórdão do S.T.J. de 18/6/2015, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Por fim, sempre se dirá que não encontra qualquer apoio legal a posição defendida pela apelante de que, pelo facto de beneficiar de apoio judiciário, tal implicará que oficiosamente o Tribunal determine o cancelamento dos ónus e encargos incidentes dobre o bem.
Tal significa que não pode proceder a pretensão da recorrente, razão pela qual, nesta parte, o recurso improcede.
f) Apreciemos, por fim, o alegado direito de retenção da recorrente em relação ao imóvel.
De acordo com o artº 442º do Código Civil, o promitente-comprador que tenha constituído sinal, e a quem o promitente vendedor haja concedido a tradição do imóvel a que respeita o contrato prometido, goza do direito à execução específica do contrato, nos termos do nº 3 do mesmo preceito, bem como à indemnização, em alternativa, prevista no citado artº 442º nº 2 do Código Civil, no caso de o promitente vendedor faltar culposamente ao cumprimento do contrato.
E como garantia deste crédito à dupla indemnização, em alternativa, goza o promitente-comprador do direito de retenção sobre o imóvel coberto pelo contrato prometido.
Com efeito, o artº 754º do Código Civil estabelece que “o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza de direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”.
Por sua vez, o artº 755º nº 1 do Código Civil, ao consagrar casos especiais de direito de retenção, atribui-o na sua al. f) ao “beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º”.
O direito de retenção consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele.
Face ao disposto no artº 754º do Código Civil são os seguintes os requisitos do direito de retenção :
-A detenção lícita de uma coisa que deve ser entregue a outrem.
-Apresentar-se o detentor, simultaneamente, credor da pessoa com direito à entrega.
-A existência de uma conexão directa e material entre o crédito do detentor e a coisa detida, quer dizer, resultante de despesas realizadas com ela ou de danos pela mesma produzidos.
A conexão de créditos constitui pois o alicerce básico do direito de retenção. Já o artº 755º nº 1, al. f) do Código Civil, acima transcrito, prevê um caso especial de direito de retenção.
Deste preceito, resulta, em primeiro lugar, que goza do direito de retenção o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa objecto do contrato prometido, donde resulta que o titular do direito de retenção é o beneficiário de qualquer contrato-promessa com “traditio rei” (coisa móvel ou imóvel, rústica ou urbana, para habitação, comércio, indústria, etc.).
Em segundo lugar, o direito de retenção existe para garantia do crédito decorrente do não cumprimento imputável à parte que promete transmitir ou constituir um direito real, o que vale por dizer que está em causa o crédito emergente do incumprimento definitivo do contrato-promessa (dobro do sinal, valor da coisa, indemnização convencionada nos termos do artº 442º nº 4 do Código Civil.
O direito de retenção conferido ao promitente-comprador tem pois a finalidade de garantir o pagamento do respectivo crédito emergente do contrato-promessa, designadamente o relativo ao dobro do sinal.
Mas o direito de retenção não tem apenas uma função de garantia.
Desempenha, também, cumulativamente, uma função de pressão sobre o devedor para o determinar a pagar as despesas por causa da coisa legitimamente retida ou por causa dos danos por ela causados.
Ou seja, é necessária uma conexão objectiva entre o crédito e a coisa, pelo que, para que a retenção se verifique, é necessário que entre a coisa, cuja restituição é pedida, e o crédito, interceda uma relação de causa e efeito, apresentando-se ambos interligados por uma autêntica conexão material ou objectiva.
Assim, o promitente-comprador para quem foi transferida a coisa objecto da promessa não goza do direito de retenção sem previamente demonstrar que é titular de um crédito contra o promitente-vendedor, resultante de não cumprimento da promessa imputável a este (cf. Acórdão do S.T.J., de 26/2/1992, consultado na “internet em www.dgsi.pt).
É que o direito de retenção existe precisamente “para garantia do crédito resultante do não cumprimento imputável à parte que promete transmitir ou constituir um direito real. Vale por dizer, por outras palavras, que está em causa o crédito (dobro do sinal, valor da coisa, indemnização convencionada nos termos do nº 4 do artº 442º) derivado do incumprimento definitivo” (cf. Calvão da Silva, in “Sinal e Contrato-Promessa”, 1988, pg. 111).
Ora, no caso em apreço, a apelante não alega sequer ser titular de qualquer crédito sobre a recorrida, podendo, até, concluir-se do teor da petição que o não é, tanto mais que pretende, em primeira via, obter a execução específica do contrato-promessa. O que desde logo significa que o contrato não foi resolvido (por incumprimento definitivo imputável à promitente vendedora) e, consequentemente, ainda lhe não foi atribuído qualquer crédito sobre aquela.
Como escreve Lebre de Freitas (in “A Acção Executiva”, 2ª ed., pág. 231, nota 24), “direito de retenção sobre a coisa só o tem o beneficiário da promessa que, após o incumprimento definitivo, tenha optado pela indemnização compensatória, nos termos dos artºs. 442-2 e 755-f CC”.
O que não é o caso.
Deste modo, bem andou o Tribunal “a quo” ao entender que a apelante “optou por exercer o direito à execução específica do contrato-promessa, por via da qual obtém os mesmos efeitos do contrato prometido, isto é a transmissão da propriedade sobre a fracção “B”, e por conseguinte, não é titular de qualquer direito de crédito com fundamento no incumprimento que pudesse sustentar hipotético direito de retenção”. E acrescenta-se na decisão apelada, a nosso ver com acerto, que “o direito de retenção é ilógico e inexiste quando a coisa que se pretende reter é da titularidade do próprio : Retém-se um bem do nosso devedor como forma de garantia do nosso crédito sobre ele, crédito esse que terá de ter uma relação directa com a coisa retida”.
Assim sendo, entendemos que, também nesta parte, o recurso improcede.
g) Deste modo, nada há a censurar à Sentença sob recurso, improcedendo a apelação, pelo que haverá que confirmar a decisão em causa.
i) Sumário :
I- A transferência do direito de propriedade, por efeito da Sentença, não implica a condenação do promitente vendedor a efectuar o registo da propriedade a favor da promitente compradora, bem como a realizar o cancelamento de eventuais ónus anteriormente registados sobre o imóvel, nomeadamente hipotecas e penhoras.
II- Ao estabelecer o regime da execução específica do contrato-promessa o legislador previu apenas no artº 830º nº 4 do Código Civil a faculdade de o adquirente (promitente-comprador), sendo caso de expurgação de hipoteca ao abrigo do artº 721º do Código Civil, requerer para esse efeito que a sentença “condene também o promitente faltoso a entregar-lhe o montante do débito garantido, ou o valor nele correspondente à fracção do edifício ou do direito objecto do contrato e dos juros respectivos, vencidos e vincendos, até pagamento integral”.
III- O direito de retenção é um direito real de garantia de créditos, de dívidas de dinheiro ou de valor, conferindo ao seu titular (credor), que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor, o direito de executar a coisa retida e de se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores.
IV- No contrato-promessa, o direito de retenção pressupõe, para além da “traditio”, a existência de um crédito do promitente-comprador, resultante do não cumprimento ou incumprimento definitivo imputável à outra parte.
V- O promitente-comprador para quem foi transferida a coisa objecto da promessa, não goza do direito de retenção sem previamente demonstrar que é titular de crédito contra o promitente vendedor, resultante de não cumprimento da promessa imputável a este.

* * *

III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso confirmando na íntegra a decisão recorrida.
Custas : Pela recorrente (artº 527º do Código do Processo Civil

Processado em computador e revisto pelo relator
Lisboa, 2 de Maio de 2017


(Pedro Brighton)

(Teresa Sousa Henriques)