Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
154/12.3TBVPV.L1-1
Relator: MARIA DO ROSÁRIO BARBOSA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURADORA
DIREITO DE REGRESSO
TAXA DE ALCOOLÉMIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA
Sumário: Se o condutor dá causa ao acidente (qualquer que seja a causa) e, se conduzia com uma taxa de alcoolémia superior à permitida por lei, a seguradora tem direito de regresso contra ele.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da relação de Lisboa
CM interpõe recurso de apelação da sentença que julgando procedente a acção que lhe foi intentada por Companhia de Seguros AC, S.A., o condenou no pagamento à referida Companhia de Seguros na quantia de 8.313,73 C (oito mil trezentos e treze euros e setenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa anual de 4 %, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
São as seguintes as conclusões de recurso apresentadas pelo Apelante:
1. A sentença objeto de recurso condenou o R. no pedido.
2. Salvo o devido respeito, o recorrente não aceita tal condenação, no seguimento do exercício do direito de regresso.
3. Não ficou provado que a condução do recorrente ficou a dever-se à ingestão de bebidas alcoólicas.
4. E que em consequência tenha invadido a faixa de rodagem contrário ao seu sentido de marcha.
5. A mera culpa do condutor para que opere o referido direito de regresso é insuficiente.
6. É pacífico na jurisprudência, que terá de ser feita prova que foi a condução com álcool que condicionou a condução.
7. Com interesse para o objeto do recurso temos os fatos provados das alíneas b) e e), ou seja, que o recorrente invadiu a hemi-faixa de rodagem da sua esquerda, perdendo o controlo e saído da estrada e que conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 1, 66 g/1.
8. Essa factualidade é insuficiente para dizer que foi o estado do recorrente que determinou o seu modo de conduzir, com inferior capacidade reflexiva e de reação.
9. Assim sendo, o tribunal a quo deveria ter absolvido o recorrente do pedido.
10. Por outro lado, o tribunal recorrido também não poderia ter dado como provado que o recorrente invadiu a faixa de rodagem contrário quando não se apurou o local de embate.
11.Do croquis constante da participação de acidente nada resultou nesse sentido.
12. O agente da PSP ouvido em julgamento, não confirmou tal local: JN, cujo depoimento foi prestado a 28.05.2013 (vide ata de julgamento), e se encontra gravado no sistema áudio dos tribunais, Habílus, desde o minuto 10:44:41 até ao minuto 11 :07:41 refere-se ao local de embate como sendo na hemi-faixa de rodagem contrária, atento o sentido de marcha do veículo do recorrente como "(. . .) não disse que era presumi que fosse (. .. )"
13. Pelo que o tribunal não poderia dar como provada tal factualidade.
14. Assim, o tribunal recorrido ao julgar a presente ação procedente violou as disposições dos artigos 483.º e 487.º, do CC.
Termos em que deve ser julgado procedente o recurso, e, em consequência, o recorrente ser absolvido do pedido, fazendo-se deste modo, a habitual JUSTiÇA.
o patrono nomeado,
São as seguintes as conclusões das contra alegações de recurso da Apelada:
A) O acidente deu-se no interior da faixa de rodagem do veículo …, conduzida pelo Sr. JR, quando o veículo …, conduzido pelo Apelante, invadiu aquela e colidiu, de raspão, no lado esquerdo da viatura daquele;
B) O Apelante violou o disposto no art." 13 n." 1 do C.E. ao circular fora da sua faixa de rodagem;
C) O Apelante conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 1,66 g/l;
D) O Apelante nem se apercebeu da presença do veículo … na VIa, colidindo com este e seguindo até se imobilizar num terreno mais acima do local do embate do seu lado esquerdo da via;
E) O Apelante só saiu desse terreno cerca de meia hora depois do acidente perguntando, num discurso arrastado, pela viatura que lhe teria batido por trás levando-o a sair fora da estrada, quando nenhuma viatura fez semelhante coisa, adormecendo pouco depois ao sentar-se num muro;
F) O Apelante não se apercebeu da outra viatura, conduzida pelo Sr. JR, mesmo à sua frente e com os faróis acesos, colidindo com ela e depois persistindo, no seu discurso, por não se dar conta dela, antes pensando, ainda, que lhe haviam batido por trás quando foi ele quem colidiu com aquele pela frente e, pouco depois, novamente com a frente, no muro do terreno que invadiu;
G) Fácil é, pois, concluir que a taxa de álcool que trazia no sangue influenciou de forma determinante a condução do Apelante e levou-o a produzir o acidente por que foi o único culpado;
H) Andou, por conseguinte, bem o Meritíssimo Juiz a quo na douta sentença condenatória proferida, estribando-a corretamente nos depoimentos das testemunhas ouvidas cujo depoimento, uma vez contrastado com a inspeção feita ao local, demonstrou-se fiável e seguro.
Termos em que, por não provado, deve o presente recurso ser julgado improcedente mantendo-se a douta sentença recorrida e assim se fazendo Justiça!
OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso baliza-se pelas conclusões do Apelante sem prejuízo do conhecimento de outras questões de que cumpra oficiosamente apreciar.
Os factos dados como provados pelo tribunal recorrido são os seguintes:
A) No dia 21 de Março de 2009, pelas 03hOOm, na estrada da …, freguesia de …, concelho de H…, ocorreu um embate entre o veículo da marca "KIA", modelo "Sportage", com matrícula …, do qual é dono o Réu e conduzido por este, e o veículo da marca "Mercedes", modelo "…", com a matrícula …, do qual é dono JO e conduzido por este.
B) O veículo com matrícula … circulava no sentido ascendente quando, ao descrever uma curva para a direita, em frente ao nº 66, invadiu a hemi-faixa de rodagem da sua esquerda, atingindo com a sua parte dianteira esquerda o veículo com matrícula …, na parte frontal esquerda, perdendo o controlo e saindo da estrada.
C) O veículo com matrícula … circulava no sentido descendente, dentro da hemi-faixa de rodagem do lado direito, a uma velocidade não concretamente apurada, mas inferior a 50 km/hora, e com os médios acessos.
D) No local do embate a estrada tem uma largura de 6,30 m, sendo a largura de cada uma das hemi-faixas é de 3,15 m.
E) O Réu conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 1,66 g/1.
F) No âmbito da sua actividade de seguradora, à data referida em A), a responsabilidade civil pela circulação do veículo com matrícula …, encontrava-se transferida para a Autora, mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº ….
G) Em consequência do embate, o veículo com matrícula … teve de substituir o guarda-lama frontal esquerdo, o pisca-pisca frontal esquerdo, o farol dianteiro esquerdo, o pára-choques frontal, o capot e os materiais de pintura, num total de 6.370,49 C.
H) Mais foi o veículo sujeito a trabalhos de desempanagem do painel dianteiro e da jante direita do pneu da frente, o que importou no valor de 1.943,24 C.
I) O pagamento dos valores em causa foi gerido ao abrigo da Convenção "Indemnização Directa ao Lesado", cabendo à Autora, enquanto devedora, a respectiva compensação, à Companhia de Seguros F, enquanto credora.
Apreciando o recurso:
O apelante nas suas conclusões de recurso impugna matéria de facto que o tribunal deu como assente, concretamente que tenha invadido a faixa de rodagem contrário ao seu sentido de marcha.
Mas sem razão.
Na verdade reapreciando o depoimento da testemunha JO, resulta que o embate se deu na hemifaixa contrária àquela em que seguia o Apelante sendo certo que como bem refere o tribunal recorrido em sede de fundamentação da decisão de facto esta testemunha “ relatou de forma clara e circunstanciada o sentido em que seguia, descendente, em local próximo da sua residência (cerca de 50 metros), à hora em que o fazia, com os médios ligados, em momento em que se aproximava de uma curva à sua esquerda, quando o veículo conduzido pelo Réu, que acabava de desfazer essa curva, seguindo no sentido ascendente, veio a direito, invadiu a sua hemi-faixa de rodagem e embateu-lhe na parte dianteira esquerda, despistando-se e saindo da estrada, entrando por um muro dentro e ficando dentro de um terreno.
Referiu ainda a testemunha como fundamentadamente o tribunal fez consignar no despacho em que respondeu à matéria de facto que “ só conseguiu sair do seu veículo, que ficou parado poucos metros à frente, encostado à parede, alguns minutos depois do embate, tendo chegado à fala com o próprio Réu, que logo lhe pareceu alcoolizado e que dizia que "alguém lhe tinha batido por trás", o que não achou plausível, pois não tinha visto qualquer outro veículo. “
Também a testemunha JN, agente da P.S.P. que elaborou o croqui do acidente referiu que pelos vestígios no local o embate ter-se-à dado na hemi-faixa de rodagem descendente, ainda que próximo do eixo da via, a cerca de um metro, sendo que esse embate terá sido de raspão, com o que o veículo com matrícula … terá perdido o controlo e saído da estrada.
Também o tribunal recorrido no despacho em que respondeu à matéria de facto consignou ter o agente da PSP referido que :
“(…)Quanto ao local do embate, pelos vestígios que referiu encontrar no local, respeitantes a plásticos, vidros do espelho e pelos tais "arrastamentos", segundo aduziu, só pode ter ocorrido na hemi-faixa de rodagem descendente, ainda que próximo do eixo da via, a cerca de um metro(…)”
Por outro lado resulta provado que “ O Réu conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 1,66 g/1.” Prova essa decorrente do exame que lhe foi feito após o acidente, sendo consequentemente um facto indesmentível.
Ora, atenta a prova supra referida que foi bem avaliada pelo tribunal recorrido não podem colher as conclusões de recurso quando pretende ver alterada a factualidade provada, concretamente o facto C ) dado como provado-“ O veículo com matrícula … circulava no sentido ascendente quando, ao descrever uma curva para a direita, em frente ao nº …, invadiu a hemi-faixa de rodagem da sua esquerda, atingindo com a sua parte dianteira esquerda o veículo com matrícula …, na parte frontal esquerda, perdendo o controlo e saindo da estrada. Mantendo-se inalterada a matéria de facto vejamos se o enquadramento jurídico feito pelo tribunal recorrido se deve manter.
Estando assente que o acidente ficou a dever-se a culpa do apelante ao ter invadido a hemi-faixa contrária àquela em que circulava embatendo no outro veículo
Vejamos agora se a Seguradora Apelada tem direito de regresso contra o Apelante pelo facto de o mesmo conduzir sob o efeito do álcool.
A jurisprudência dividiu-se quanto à melhor interpretação da alínea c) do art. 19º do DL. nº 522/85, no que concerne à necessidade ou não de existir nexo de causalidade entre o álcool e o acidente causado pelo condutor, bem como à respectiva repartição do ónus da prova, tendo surgido, nos tribunais superiores, três correntes jurisprudenciais distintas.
A primeira era no sentido de que a seguradora só tinha direito de regresso se provasse que o sinistro foi causado pela taxa de alcoolemia de que o condutor era portador.
A segunda era, por seu turno, no sentido de que o reembolso à seguradora era automático, por representar o desvalor da acção, e o risco contratualmente assumido não se compadecer com condutores que agem sob o efeito do álcool.
A terceira, intermédia, era no sentido de que o direito de regresso da seguradora só existia se a situação de alcoolemia fosse causal do acidente, mas que o nexo causal era de presumir nos termos do art. 1º, nº 2, da Lei nº 3/82, do art. 350º do Código Civil e do art. 81º do Código da Estrada.
Todavia, o Supremo Tribunal de Justiça, em plenário das secções cíveis, uniformizou a jurisprudência no sentido de que “a alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob a influência do álcool a prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente” (Acórdão n.º 6/2002, de 28 de Maio de 2002, publicado in Diário da República, I Série A, de 18 de Julho de 2002, págs. 5395 a 5402).
De todo o modo, a implementação prática da orientação jurisprudencial adoptada neste Acórdão de uniformização de jurisprudência nunca se revelou fácil, pois - como foi reconhecido por JM - «é extremamente difícil a prova directa da verificação de um nexo causal (ou da “relevância”) entre o excesso de álcool e o facto (acção ou omissão) que, directamente, desencadeou o sinistro» .
Daí que a nova Lei do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que, em 2007, veio substituir o cit. DL. nº 522/85, de 31-XII – o Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto -, tenha deixado de exigir, como elemento constitutivo do direito de regresso conferido às empresas seguradoras, a prova de que o condutor agiu sob a influência do álcool, contentando-se em exigir doravante a prova de duas circunstâncias cumulativas: a) que o acidente tenha sido causado pelo condutor; b) que o condutor conduzisse, no momento do acidente, com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.
A mera contraposição do texto da nova al. c) do nº 1 do Art. 27º do cit. Dl. nº 291/2007 com a letra da anterior al. c) do Art. 19º do referido DL. nº 522/85 logo aponta no sentido do abandono, pela nova lei, do requisito da prova, a cargo da seguradora, da existência dum nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente, substituído por dois requisitos de ordem puramente objectiva: 1) ter o acidente sido provocado pela conduta negligente do condutor; 2) ser o condutor portador, na ocasião do acidente, duma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.
Como bem se observou no Acórdão da Relação de Coimbra de 8/5/2012 (Proc. nº 665/10.5TBVNO.C1; relator – ARTUR DIAS), cujo texto integral está acessível on-line in: www.dgsi.pt -, “das diferentes redacções da al. c) do artº 19º do Decreto-Lei nº 522/85 e da al. c) do nº 1 do artº 27º do Decreto-Lei nº 291/2007 afigura-se-nos que o legislador não pretendeu dizer o mesmo por diferentes palavras”.
“Sabedor da controvérsia jurisprudencial passada e da prolação do Ac. Unif. Jur. do STJ nº 6/2002, se fosse vontade do legislador manter a situação existente teria deixado inalterada a expressão “tiver agido sob influência do álcool” (ibidem).
“O abandono da expressão “tiver agido sob a influência do álcool” contida no anterior diploma, com a inerente carga subjectiva que lhe está subjacente, e a sua substituição, no novo diploma, pela expressão “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”, de cariz claramente objectivo e passível de concreta objectivação, só poderá ser entendida no sentido da actual inexigibilidade do nexo de causalidade adequada entre o estado de alcoolemia e a produção do acidente. Ou seja: contrariamente ao que se verificava no anterior diploma, em que o estado etílico tinha de se reflectir no comportamento do condutor e ser causal do acidente, no novo diploma não se exige essa relação de causa/efeito, bastando a constatação, material, objectiva, de que o condutor, no momento do acidente, era portador de uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida” – Acórdão da Rel. de Coimbra de 29/5/2012 (Proc. nº 273/10.0T2AVR.C1; relatora – JUDITE PIRES), cujo texto integral está acessível on-line in: www.dgsi.pt.
Por isso, deve entender-se que “a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 291/2007, nomeadamente da al. c) do nº 1 do artº 27º, postergou a orientação que, na vigência da al. c) do artº 19º do Decreto-Lei nº 522/85, decorria do AUJ do STJ nº 6/2002 e, portanto, que nos acidentes a que seja já aplicável o regime do Decreto-Lei nº 291/2007, para ser reconhecido direito de regresso à seguradora que satisfez a indemnização basta ter sido alegado e provado que o condutor/segurado deu causa ao acidente e conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, dispensando-se a alegação e prova de nexo de causalidade adequada entre a etilização e o acidente” - cit. Acórdão da Relação de Coimbra de 8/5/2012.
Como bem sintetizou o Acórdão do S.T.J. de 8/10/2009 (Proc. nº 525/04.9TBSTR.S1; relator PIRES DA ROSA [acessível on-line in: www.dgsi.pt]), “Antes (…), as coisas eram o que eram e o direito de regresso da seguradora (interpretado o art.19º, al. c ) do Dec.lei nº522/85 pelo acórdão AUJ nº 6/2002 ) exigia por parte desta a prova de um duplo nexo de causalidade – a prova da causa do acidente em si mesma, a prova de que o álcool tinha sido a causa dessa mesma causa. Só assim podia ficar provado o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”.
“Agora, as coisas são claras – o condutor dá causa ao acidente (qualquer que seja a causa) e, se conduzia com uma taxa de alcoolémia superior à permitida por lei, a seguradora tem direito de regresso contra ele” - ibidem.
A esta luz, como o acidente dos autos teve lugar em plena vigência do cit. Art. 27º, nº 1, al. c), do DL. nº 291/2007 (o qual entrou em vigor a 20/10/2007: cfr. o seu Art. 95º), estando demonstrado que o acidente se deveu a culpa do Apelante e conduzindo este no momento do acidente com uma taxa de alcoolemia de 1,66gr/litro ( superior à legal ) não restam dúvidas de que a Seguradora tem direito de regresso contra ele.
Assim sendo sempre a acção teria de ser julgada procedente.
Improcedem as conclusões de recurso.
DECISÃO
Destarte, com a fundamentação exposta julgam improcedente a apelação.
Custas pelo Apelante.