Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9013/2007-1
Relator: JOÃO AVEIRO PEREIRA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
APREENSÃO DE VEÍCULO
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
PACTO ATRIBUTIVO DE COMPETÊNCIA
LEI ESPECIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/04/2007
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Sumário: I – Após a entrada em vigor da nova redacção dos artigos 74.º, n.º 1, e 110.º, n.º 1, al. a) do código de processo civil, introduzida pela lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, qualquer pacto de aforamento é irrelevante, mesmo nas acções novas relativas a contratos celebrados na vigência da lei anterior com estipulação de foro convencional.
II – O artigo 21.º do decreto-lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, constitui um ius singulare não incompatível com a regra de competência territorial estabelecida no art.º 74.º, em matéria de apreensão de veículo automóvel, que a lei nova não revogou nem expressa nem tacitamente.
III – Aquele artigo 21.º nunca foi alterado por se ter revelado sempre actual e adequado às exigências de celeridade, eficácia e justiça que subjazem à especificidade da providência cautelar em causa.
JAP
Decisão Texto Integral: I – Relatório
S, CRÉDITO, S.A., com sede na Rua General Firmino Miguel, n.º 5, 14.º piso, 1600-100 Lisboa, intentou a presente providência cautelar de apreensão para apreensão da viatura automóvel da marca Opel, modelo Corsa, com a matrícula 10-64-XN, e respectivos documentos, ao abrigo do art.º 15.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, contra A, residente na Urbanização Vale Cavalos, lote 9, 1,º dto., 25243 Ota.
Pretende a Requerente que a providência seja decretada sem audição do Requerido e que seja ordenada a entrega imediata da identificada viatura e respectivos documentos.
Todavia, foi proferida decisão liminar a declarar a incompetência territorial do Tribunal e a ordenar a remessa dos autos, após trânsito, ao Tribunal Cível da Comarca de Alenquer, por ser o competente, com fundamento nos art.ºs 21.º e 22.º da Lei n.º 3/99, de 13-01, 74.º, n.º 1, 83.º a 111.º, 493, 494.º, al. a), e 495 do CPC, na redacção posterior à Lei n.º 14/2006, de 26/04.
Não se conformando com este desfecho, a Requerente agravou para este Tribunal, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
a) O presente recurso vem interposto de decisão que considerou o Tribunal da Comarca de Lisboa territorialmente incompetente e ordenou a remessa dos autos de procedimento cautelar para apreensão de veículo, requerido nos temos do artigo 15ª do Decreto-Lei 54/75 de 12 de Fevereiro para o Tribunal Judicial da Comarca de Alenquer;
b) A Requerente alegou sucintamente os seguintes factos:
- No dia 16/03/2006 celebrou com o Requerido o contrato de financiamento para aquisição de uma viatura de marca OPEL, modelo CORSA
- Como garantia do referido contrato foi acordada e inscrita a favor do mutuante reserva de propriedade sobre a mencionada viatura;
- O Requerido não cumpriu as obrigações que assumiu em virtude do referido contrato, nomeadamente não pagou as prestações convencionadas;
c) Entendeu a Meritíssima Juiz a quo que o Tribunal da Comarca de Lisboa não seria o tribunal territorialmente competente, sendo esse o Tribunal Judicial da Comarca de Alenquer, tribunal do domicílio do Requerido, aplicando para o efeito o art.º 74º do CPC, na redacção dada pela Lei nº 14/2006, de 26/04;
d) Ora, salvo o devido respeito, discordamos deste entendimento que, em nossa opinião, não faz a correcta interpretação da Lei, não se aplicando tal regra geral de competência aos presentes autos; Na verdade,
e) O presente procedimento cautelar foi instaurado ao abrigo DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, por se encontrar registada na Conservatória de Registo Automóvel a favor da Recorrente a reserva de propriedade sobre a viatura financiada;
f) Assim, o dispositivo legal a aplicar ao caso sub iudice para aferição da competência judicial será o DL 74/75 de 12 de Fevereiro, nomeadamente o seu art.º 21º;
g) A regra de competência plasmada o art.º 21.º do referido diploma é especial face à regra geral de competência do art.º 74.º do CPC e, como tal, prevalece sobre esta;
h) Deste modo, o art.º 21.º do DL 74/75 de 12 de Fevereiro não foi revogado pela Lei n.º 14/2006 de 26 de Abril, permanecendo em vigor;
i) Como tal, o tribunal territorialmente competente para apreciar o caso sub judice é o da sede da proprietária, isto é, da Agravante enquanto proprietária reservatária;
j) O contrato não foi cumprido, pelo que a propriedade sobre a viatura não se transmitiu para os Requeridos adquirentes;
k) Acresce ainda que, na data da celebração do contrato de crédito foi constituído um pacto de aforamento constante da 15ª cláusula das condições gerais do contrato, o qual estabelece como foro competente a comarca de Lisboa para resolução de todos os litígios emergentes do contrato celebrado;
l) E atendendo ao disposto no artigo 100.º do Código de Processo Civil (redacção do art. 110.º anterior à entrada em vigor da Lei 14/2006, de 26/04) às partes “...é permitido afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência em razão do território...”
m) Assim, considera a Recorrente que o referido pacto de aforamento contido na Cláusula 15º das condições gerais do contrato, junto aos autos, é perfeitamente válido e eficaz, porquanto foi celebrado em momento anterior à entrada em vigor da Lei n.º 14/2006.
n) Mais, no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da irretroactividade da lei, logo, a nova Lei 14/2006, de 26/04 apenas retirou aos sujeitos jurídicos a possibilidade de celebrarem pactos de aforamento, e não que os pactos anteriormente celebrados deixariam de ser válidos, pois que isso atentaria claramente contra a segurança jurídica que subjaz ao referido princípio da irretroactividade da lei, e consubstanciaria que estaríamos perante, não uma aplicação imediata da lei, mas uma aplicação retroactiva da mesma, o que não se aceita nem concebe.
o) Pelo que, a procedência do presente recurso é manifesta.
***
Colhidos os vistos, cumpre decidir as questões que emergem das conclusões das alegações da Requerente: 1) o alcance da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril; 2) se o art.º 21.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, foi revogado tacitamente por esta Lei.

II – Fundamentação
A – Os factos
Com interesse para a decisão, resulta dos autos o seguinte:
1. A requerente instaurou esta providência cautelar, em 29-08-2007, nas varas cíveis de Lisboa, tendo a mesma sido distribuída à 12.ª
2. A pretensão funda-se num contrato de crédito n.º 562745 que a Requerente celebrou com o Requerido, tendo por objecto o financiamento de € 15.063,68 destinado à aquisição por parte deste do referido veículo.
3. Cumprindo a condição do contrato, foi constituída reserva de propriedade a favor da requerente.
4. O veículo foi vendido com este encargo, que se encontra registado na Conservatória do Registo de Automóveis.
5. O Requerido não efectuou o pagamento de várias prestações a que estava obrigado por força do contrato.
6. A Requerente enviou ao Requerido uma carta registada com aviso de recepção concedendo-lhe um prazo de oito dias úteis para pagamento da dívida, findo o qual a mora se convertia em incumprimento definitivo.
7. Até à presente data o Requerido não pagou nem procedeu à entrega da mencionada viatura.
8. O M.mo Juiz a quo declarou-se incompetente em razão do território e ordenou a remessa dos autos ao Tribunal que entendeu ser o competente.

B – Apreciação jurídica
1) O alcance da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril;
Antes de mais importa considerar que, nos termos do art.º 83.º, n.º 1, al. c), do CPC, para conhecer e decidir a providência cautelar é competente o tribunal em que deva ser intentada a acção de que aquela depende. Por outro lado, no caso em apreço, a excepção de incompetência territorial é de conhecimento oficioso (art.º 110.º, n.ºs 1 e 3, do CPC).
De acordo com a redacção dada pela referida Lei processual ao art.º 74.º, n.º 1, CPC, a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu.
Esta é a regra geral, que admite, naturalmente, algumas excepções. Desde logo, a hipótese de as partes, por expressa convenção entre elas, afastarem a aplicação das regras de competência em razão do território (art.º 100.º, n.º 1, do CPC). Todavia, esta prerrogativa não é admissível nas situações a que se refere o art.º 110.º do CPC, nomeadamente quando se trata, como neste caso, de acções de resolução por incumprimento [(al. a)].
Além disso, a redacção introduzida pela dita Lei n.º 14/2006 nos citados art.ºs 74.º, n.º 1, e 110.º, n.º 1, al. a), aplica-se às acções instauradas após a sua entrada em vigor, ainda que reportadas a litígios derivados de contratos celebrados antes desse início de vigência com cláusula de convenção de foro de sentido diverso. É esta a mais recente jurisprudência uniformizadora do Supremo Tribunal de Justiça (ac. de 18-10-2007, proc.º 2775/07, www.dgsi.pt/jstj). Significa isto que, tendo a providência cautelar sido instaurada em Agosto do corrente ano, é irrelevante qualquer pacto de aforamento que as partes hajam estipulado nesta matéria.
Neste aspecto, a decisão recorrida não merece censura, pois o M.mo Juiz a quo referiu, e bem, que está vedado ao autor a possibilidade de se socorrer de qualquer competência convencional.
Já quanto ao disposto no art.º 21.º do mencionado Decreto-Lei n.º 54/75, o M.mo Juiz não teve dúvidas em preteri-lo para aplicar o regime regra do domicílio do réu, sem se deter no que diversamente preceitua tal artigo, ou seja, que «o processo de apreensão e as acções relativas aos veículos apreendidos são da competência do tribunal da comarca em cuja área se situa a residência habitual ou a sede do proprietário».
Não pode portanto ignorar-se esta disposição legal e muito menos a questão de saber se ela se encontra em vigor ou se foi revogada pela Lei n.º 14/2006.
2) Se o art.º 21.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, foi revogado tacitamente.
À falta de revogação expressa, há quem defenda que o legislador quis revogar tacitamente o mencionado art.º 21.º pela sobredita Lei n.º 14/2006. Esta corrente jurisprudencial, privilegiando largamente a interpretação subjectivista, faz apelo a princípios e finalidades que teriam animado o legislador no sentido de tal revogação. A vontade histórica dos autores da lei apresentar-se-ia assim como decisiva, alegadamente por razões de política judiciária de ataque à concentração processual nas grandes urbes, além de razões sócio-económicas conjunturais, algo difusas, de protecção do consumidor. No entanto, todos estes motivos, preexistentes e contemporâneos da feitura da referida lei, não terão sido suficientemente fortes para inocularem no legislador a necessária energia revogatória que o impelisse a declarar de modo expresso essa sua alegada intenção.
Em abstracto, a revogação tácita de uma norma especial por outra geral é admissível, desde que essa seja a vontade inequívoca do legislador (art.º 7.º, n.º 3, do C. Civ.). Porém, o adjectivo «inequívoca» impõe ao intérprete, e por maioria de razão ao aplicador, especiais cuidados e rigor na avaliação dos indícios que poderão traduzir uma vontade firme e inabalável do legislador, no sentido da revogação de determinada norma. Não bastam, para este efeito, meras razões conjunturais ou hipotéticas, ainda que judiciosas; tem de haver na lei nova referências expressas e claras que denunciem esse desiderato.
Pode mesmo afirmar-se que quando pela interpretação não se puder concluir com segurança e sem dúvidas no sentido da revogação da lei especial pela lei geral, vale a presunção de subsistência da lei especial, nos termos do n.º 3 do art.º 7.º do C. Civ. (cf. Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral, Gulbenkian, Lisboa, 1978, p. 259). Além disso, «quando se pretenda, através de uma lei geral, revogar leis especiais, designadamente quando se vise firmar um regime genérico e homogéneo, há que dizê-lo, recorrendo à revogação expressa ou, no mínimo, a uma menção revogatória clara, do género, “são revogadas todas as leis em contrário, mesmo as especiais”» - Menezes Cordeiro, Da Aplicação das leis no Tempo e das Disposições transitórias», Cadernos de Ciência da legislação, INA, n.º 7, 1993, pp. 17 e ss., citado em Abílio Neto, Código Civil Anotado, 15.ª ed., Ediforum, Lisboa, 2006, anot. n.º 13 ao art.º 7.º, p. 18.
Ora, no caso em apreço, apesar de, com a Lei n.º 14/2006, as pessoas que a fizeram tenham querido reduzir a afluência de processos nos tribunais de Lisboa e Porto e facilitar a vida aos clientes singulares de grandes empresas que litigam em massa, importa não esquecer nunca que a mens legislatoris só por si não tem força normativa. Só a lei como vontade jurídica objectivada (mens legis) é que tem tal poder.
Por outro lado, a moderna função criadora de direito que recai sobre o juiz não deve confundir-se com a função legiferante, própria do poder legislativo e materializada através do instrumento jurídico-político que é a lei em sentido lato. A criação de direito pelo juiz só é permitida nos interstícios do direito objectivo, quando o legislador não conseguiu regular, por impossibilidade de previsão, ou, de forma deliberada e claramente manifestada, quis que fosse o aplicador a definir ou a concretizar certos conceitos normativos vagos ou indeterminados.
Mas, como é evidente, a situação dos autos não se insere em nenhuma destas hipóteses. O que existe é um jus singulare, não incompatível com a regra do art.º 74.º do CPC, em matéria de apreensão de veículo automóvel, que a lei geral nova não ab-rogou nem derrogou expressamente. Além de que a mesma Lei não contém qualquer referência expressa ou implícita que inequivocamente autorize o julgador a desprezar o princípio de que lei geral não revoga lei especial para considerar o Decreto-Lei n.º 54/75 tacitamente revogado, no todo ou em parte.
Outra razão convocada à pressa em defesa da revogação é a pretensa desactualização da ratio legis do art.º 21.º em causa. Este artigo está inserido num diploma legal sobre registo da propriedade automóvel com mais de 20 anos, é certo, mas ao longo deste período tem sido regularmente modificado em função das transformações da realidade sócio-económica, datando a sua última actualização de 23 de Maio de 2006, já depois da publicação da Lei 14/2006. E se a redacção do art.º 21.º nunca foi alterada é porque ela se tem revelado sempre actual e adequada às exigências de celeridade, eficácia e justiça que subjazem à especificidade da providência cautelar em causa. Portanto, é perfeitamente irrelevante o argumento da desactualização.
Também a dissociação de foro entre a providência cautelar e a acção principal, que já tem sido brandida em defesa da tese da revogação tácita do referido art.º 21.º, não resiste sequer à literalidade deste artigo, segundo a qual «o processo de apreensão e as acções relativas aos veículos apreendidos» devem ser instaurados no tribunal da comarca da residência habitual ou da sede do proprietário, incluindo-se neste último conceito também o reservatário da propriedade.
Em conclusão, nos termos da norma especial do art.º 21.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, o Tribunal recorrido é o competente para conhecer do presente procedimento cautelar visando a apreensão do automóvel Opel Corsa, com a matrícula n.º 10-64-XN.

III – Decisão
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao agravo e, por conseguinte:
a) revogar a decisão recorrida.
b) ordenar o prosseguimento dos autos no tribunal recorrido, por ser esse o competente.
Sem custas.
Notifique
***
Lisboa, 4 de Dezembro de 2007
João Aveiro Pereira
Rui Moura
Folque de Magalhães (vencido por considerar que a expressão "proprietário" empregue no art. 21º do DL 54/75 de 12-2-, refere-se ao adquirente do veículo sob reserva de propriedade e não ao reservador do direito de propriedade, porque a lei quando se quer referir ao reservador fala em "titular do registo de reserva de propriedade (ver art. 18º do mesmo diploma).