Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2054/08.2TJLSB.L1-7
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
VÍCIOS DA COISA
GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO
CADUCIDADE
SOCIEDADE COMERCIAL
CONSUMIDOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Tendo a acção pela qual se pretende responsabilizar a Ré, entidade importadora de veículos marca M, por vício de origem da viatura automóvel, dado entrada em juízo sete anos após a data em que findou a garantia de bom funcionamento que fora concedida e dois anos e onze meses após a alegada verificação do vício, caducou o direito que a A., por essa via, pretendia exercer, relativamente aos custos com a respectiva reparação, aluguer de viatura de substituição e tempo gasto com funcionários seus para tratar do assunto ( artº 921º, nº 3 e 4, do Código Civil ).
II - Sendo a A. uma sociedade comercial, e atendendo ao princípio da especialidade do escopo para a prossecução dos seus fins, actividades ou objecto profissionais ( artº 160º, do Código Civil e artº 6º, do Código das Sociedades Comerciais ), não pode considerar-se que a viatura em causa tenha sido adquirida para uso não profissional, o que lhe retira a qualidade de consumidora, nos termos e para os efeitos do artº 2º, nº 1, da Lei nº 24/96, de 31 de Julho.
III - Não tendo a ora A. adquirido o veículo, nem à Ré nem à interveniente, não faz sentido a invocação do incumprimento defeituoso da prestação por parte de qualquer delas, com vista ao alargamento do prazo prescricional, invocando a aplicação da regra geral constante do artº 309º, do Código Civil ( vinte anos ).
(sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa
( 7ª Secção ).

I – RELATÓRIO.         
Intentou A Lda., acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra M, S.A..
Essencialmente alegou que :
Quando, no dia 15 de Agosto de 2005, circulava na Auto-estrada, com o veículo M, matrícula, sem qualquer razão ou justificação, assistiu o respectivo condutor ao disparo dos air-bag´s frontal e lateral direito, o que o obrigou a ocupar as duas faixas de rodagem no sentido de, para assim, conseguir estabilizar e posteriormente imobilizar o veículo.
Nada, a não ser um vício de origem, justificou tal disparo.
A C. S.A., agente da Ré, para onde o veículo foi transportado no dia 22 de Agosto de 2005, informou a A. de que iria desmontar todos os air-bag´s do veículo e enviá-los para a Ré para que esta os analisasse a fim de apurar a causa dos disparos.
 O que a Ré não fez, não enviando informação à Companhia de Seguros dos dias necessários para averiguar tal avaria, impedindo, dessa forma, a A. de beneficiar de veículo de substituição.
Em 29 de Dezembro de 2005, a Ré informou a A., através da sua mandatária, que o disparo dos air-bag´s teve como causa uma colisão, criando uma falácia para remeter responsabilidades para a A., ao invés de assumir as suas.
O disparo dos air-bag´s frontal e lateral direito tiveram causa, origem, num problema técnico, vício do qual a A. é totalmente alheia, sendo ao invés a Ré totalmente responsável.
A Ré quando coloca no mercado para venda veículos M, fá-lo assegurando as suas qualidades técnicas, mecânicas e de segurança, entre outras, que, no caso, não cumpriu, ao fornecer um veículo com problemas técnicos geradores de insegurança.
As peças padeciam de vícios técnicos de origem, tendo a Ré recusado, não só os vícios, como repará-los.
A prestação estava impregnada ab initio de um vício que só posteriormente se revelou, mas que impediu a concretização do objectivo do contrato - aquisição de uma viatura segura e de qualidade mecânica.
A sua reparação não só não foi acautelada pela Ré como não mais confere garantias de segurança e qualidades que a A. esperava deste veículo.
Só a qualidade normal do produto assegura a finalidade do contrato, daí que a culpa do incumprimento do contrato seja imputada à Ré.
A A. tem direito de ser indemnizada pelos danos emergentes já que estes integram o interesse contratual positivo.
Face aos diplomas que transpuseram as directivas comunitárias, ou seja, o Decreto-lei nº 67/03, de 8 de Abril e à Lei de Defesa do Consumidor, emerge a possibilidade de o credor optar pela via judicial que mais lhe convém.
   A acção de indemnização por cumprimento defeituoso, que se torna em incumprimento definitivo, não está sujeita ao prazo de caducidade.
Por causa do problema técnico de que enfermava o M e consequente disparo dos air-bag´s, a viatura esteve imobilizada até 6 de Janeiro de 2006 ( seis meses ), obrigando o A. a alugar um veículo para substituir o imobilizado.
A recusa da Ré em reparar o vício ou cumprir o contrato obrigou o A. a solicitar serviços de peritagem de terceiros e a despender tempo de trabalho dos seus funcionários a solucionar o diferendo em causa.
O referido aluguer de veículos custou à A. € 9.971,42.
O serviço de peritagem ascendeu a € 302,50.
Os custos de reparação orçaram em € 3.805,45.
Conclui pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a importância total de € 13.879,37, acrescido dos correspondentes juros de mora.
Citada, veio a Ré apresentar contestação, na qual excepcionou a caducidade do direito que a A. pretende fazer valer em juízo e impugnou a factualidade alegada por esta, concluindo pela sua absolvição do pedido.
Apresentou a A. resposta à contestação, na qual pugnou pela improcedência da excepção de caducidade suscitada.
Deduzido incidente de intervenção principal provocada de C., S. A., veio o mesmo a ser deferido, por despacho de fls. 138 a 149, tendo esta sido citada para os autos “ a fim de integrar o lado passivo da instância, como associada da Ré “.              
Foi proferido saneador-sentença que julgou procedente a excepção de caducidade deduzida pela Ré, absolvendo-a - e à interveniente principal - do pedido ( cfr. fls. 144 a 148 ).
Apresentou a A. recurso desta decisão, o qual foi admitido como de apelação ( cfr. fls 166 ).
Juntas as competentes alegações, a fls. 157 a 163, formulou a A. as seguintes conclusões :
1ª - Foi pedido, na acção supra citada, que a Ré fosse condenada a pagar à recorrente a quantia de € 13.879,37 ( treze mil oitocentos e setenta e nove euros e trinta e sete cêntimos ), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento, pelo prejuízo sofrido pela recorrente em consequência do incumprimento definitivo da Ré.
2ª - A Ré deduziu contestação, alegando a caducidade do direito de interpor a presente acção, visto o prazo de garantia já ter expirado há muito, com base no regime jurídico aplicável à venda de coisa defeituosa, artº 921º, do Código Civil.
3ª - O tribunal a quo entendeu, nos termos do artº 787º, nº 1, primeira parte, dispensar a audiência preliminar, bem como, o princípio do contraditório, proferindo sentença que dá por provada a excepção peremptória de caducidade do direito a instaurar a acção e, em consequência, a absolvição do pedido da Ré, nos termos do regime aplicável à venda de coisa defeituosa - artº 913º e segs, nomeadamente o artº 921º, todos do Cod. Civil.
4ª - Inconformada com a presente sentença, a recorrente interpõe o presente recurso, alegando que o regime aplicável é o do cumprimento defeituoso ( artº 798º e segs., do Código Civil ), bem como os art. 562º e segs, do Código Civil e por consequência o prazo geral do artº 309º, do Código Civil e não o regime que lhe foi aplicado, ou seja, o da venda de coisa defeituosa.
5ª - A recorrente configurou a sua réplica, situando-se no âmbito da responsabilidade civil contratual.
6ª - Assim, para que recaia sobre o devedor, in casu, sobre a Ré, obrigação de indemnizar o prejuízo causado à recorrente, é necessário que o não cumprimento lhe seja imputável.
7ª - Resulta do disposto pelo artº 798º, que vários pressupostos se devem reunir para o efeito, tais como, o facto objectivo do não cumprimento, que tanto pode ser uma omissão, como uma acção.
8ª - Neste caso, não houve cumprimento através de uma omissão, uma vez que, quando a viatura fez as revisões os air bag´s nunca foram verificados, caso contrário nunca tinha sucedido o presente litígio, a ilicitude que, no âmbito da responsabilidade contratual, resulta da desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado.
9ª - Por sua vez, a culpa, na responsabilidade contratual, é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil ( artº 799º, nº 2 ), quer isto dizer que tal apreciação é feita em abstracto, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso ( artº 487º, nº 2 ), o prejuízo sofrido e o nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo.
10ª - Foram, pois, violados os preceitos legais constantes dos artsº 798º e segs, e 562º e segs e 309º, todos do Código Civil.
Apresentou a apelada contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
  
                 II - FACTOS PROVADOS.
Foi dado como assente que :
A A. foi dona e legítima proprietária do veículo automóvel marca M, modelo, com a matrícula, de 20 de Julho de 2000, de finais de 2003 até 2006.
A A. instaurou a presente acção no dia 24 de Julho de 2008.
A A. fundou a sua pretensão indemnizatória em alegado “ vício de origem “ do identificado veículo, que teria levado ao disparo dos air-bag´s frontal e lateral direito quando circulava na auto-estrada no sentido…, no dia 15 de Agosto de 2005.
A Ré é uma sociedade comercial anónima que tem por objecto :
a) A importação e/ou comercialização de veículos automóveis, respectivos motores, peças, acessórios e produtos com os mesmos relacionados.
b) A indústria e reparação de veículos automóveis e serviços conexos e a comercialização de produtos relacionados com essa indústria e serviços.
c) Qualquer actividade relacionada com ou de apoio ao comércio de veículos automóveis.
No exercício da sua actividade comercial, a Ré importa para Portugal produtos da marca M-, nomeadamente veículos automóveis novos.
Posteriormente, os veículos automóveis dessa marca, que a Ré adquire ao fabricante ( a sociedade alemã D), são distribuídos em Portugal através da sua Rede de Concessionários e Oficinas Autorizadas M- que, por sua vez, os revendem aos clientes finais.
O veículo acima identificado foi importado para Portugal pela Ré e distribuído pela Interveniente Principal C., S.A., que integra a Rede de Concessionários e Oficinas Autorizadas M, sociedade que o terá revendido à firma L, Lda..
Os veículos distribuídos nos termos já descritos beneficiam de uma garantia voluntária de bom funcionamento, concedida de forma unilateral pela Ré, nos termos constantes das “ Condições Gerais de Garantia M “ que, à data da venda do veículo dos autos, tinha a duração de 12 meses a contar da respectiva entrega.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
A questão jurídica que importa dilucidar é a seguinte :
Extinção, por caducidade, do direito que a A. pretende fazer valer em juízo.
Passemos à sua análise :
A A. A Lda., demanda a Ré M , S.A., com base no vício mecânico e técnico, que qualifica como “ de origem “, de que, segundo a sua versão, enfermava a viatura marca M, com a matrícula - que a A. declara[1] proprietária desde 20 de Julho de 2000[2] -, e cuja garantia de funcionamento caducou em 20 de Julho de 2001.
Tal vício traduziu-se no disparo injustificado dos air bag´s frontal e lateral direito que, no dia 15 de Agosto de 2005, esteve na origem do despiste do veículo.
A presente acção deu entrada em juízo em 24 de Julho de 2008.
Apreciando :
Afigura-se-nos evidente que se encontra caduco o direito que a A. pretende fazer valer em juízo.
A Ré M -, S.A. foi a importadora do veículo automóvel em referência.
A viatura foi adquirida por uma concessionária autorizada, in casu, a C., S.A., que o veio a transmitir, através de contrato de compra e venda, à L, Lda..
Posteriormente, durante o ano de 2003, foi novamente transmitida pela L, Lda. à ora A. Lda., que a adquiriu por contrato de compra e venda.
Acontece que
O defeito em apreço ter-se-á manifestado fora do prazo de garantia de bom funcionamento estabelecido e convencionalmente aceite, que era de um ano após a respectiva entrega e que findou em 20 de Julho de 2001.
Através da garantia de bom funcionamento é assegurado um determinado resultado - o bom funcionamento da coisa durante o período temporal estabelecido - assumindo a entidade que a concede a obrigação de reparação de qualquer avaria que surja ou, se necessário, a substituição do objecto alienado, mesmo que não haja culpa da sua parte, só podendo desobrigar-se provando que a anomalia, a avaria ou a causa do mau funcionamento, é posterior à data da entrega do bem e foi provocada por conduta culposa do comprador[3].
Surgindo a avaria durante o período de garantia, o comprador tem direito à reparação ou substituição da coisa, a que acrescem os direitos previstos nos artsº 913º, e segs., do Código Civil.
Ora,
Tendo a presente acção dado entrada em juízo sete anos após o termo dessa mesma garantia e dois anos e onze meses após o conhecimento do alegado vício, é absolutamente óbvia a caducidade do direito de que a A. se arroga, nos termos do artº 921º, nº 3 e 4, do Código Civil[4].
Note-se que,
através da presente acção,
a A. não pede a resolução ou a anulação do contrato de compra e venda da viatura alegadamente defeituosa.
Diferentemente,
Apenas pretende ser indemnizada com os gastos que despendeu com o aluguer duma viatura em substituição daquela ; com serviços de peritagem e com o tempo gasto por funcionários seus a tratar de assuntos relacionados com o apreço ; com os custos de reparação[5].
Segundo o que consta nos autos, a ora A. não adquiriu nem à Ré, nem à interveniente C. , S.A., o veículo em apreço.
Logo, não tem cabimento a invocação do incumprimento defeituoso da prestação por parte de qualquer delas, com vista ao alargamento do prazo prescricional, invocando a regra geral do artº 309º, do Código Civil ( vinte anos )[6].
Outrossim não demonstrou a A., sequer, que as normas específicas, relativas à protecção do consumidor, lhe fossem aplicáveis.
Com efeito,
Sendo a A. uma sociedade comercial, tal aquisição teria que haver sido realizada no âmbito da sua actividade, segundo o princípio da especialidade do escopo para a prossecução dos seus fins, actividades ou objecto profissionais ( artº 160º, do Código Civil e artº 6º, do Código das Sociedades Comerciais )[7], não sendo, por conseguinte, a viatura adquirida para uso não profissional, como exige o artº 2º, nº 1, da Lei nº 24/96, de 31 de Julho, para efeitos de aplicação do regime jurídico consignado nesse diploma.
A apelação improcede, necessariamente.

IV - DECISÃO :
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
 
Lisboa, 15 de Dezembro de 2009.      

Luís Espírito Santo                                               
Pires Robalo              
Cristina Coelho                                      
----------------------------------------------------------------------------------------
[1] Certamente por lapso, face ao teor do documento autêntico junto a fls. 92 ( certidão da Conservatória do Registo Automóvel ).
[2] Cfr. artº 1º, da petição inicial.
[3] Vide acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de Julho de 2009 ( relator José Ferraz   ), publicitado in www.jusnet.pt.
[4] Onde se prevê que : “ O defeito de funcionamento deve ser denunciado ao vendedor dentro do prazo de garantia e, salvo estipulação em contrário, até trinta dias depois de conhecido. “ ( nº 3 ) ; “ A acção caduca logo que finde o tempo para a denúncia sem o comprador a ter feito, ou passados seis meses sobre a data em que a denúncia foi efectuada. “.
[5]Vide artsº 88º a 92º, da petição inicial.
[6] Período temporal ( vinte anos ) manifestamente exagerado para a vinculação duma importadora relativamente aos pretensos defeitos de origem dum veículo automóvel destinado a circular na estrada, em permanente e inevitável desgaste e em exclusivo proveito do respectivo utilizador.
[7] Vide João Calvão da Silva in “ Venda de Bens de Consumo “, pag. 44.