Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6410/2003-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: DESPEJO
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/13/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- A instauração de despejo visando a declaração de caducidade de arrendamento respeitante a imóvel pertencente a herança indivisa constitui acto de administração da competência do cabeça-de-casal.
II- A acção não pode ser proposta apenas por um dos herdeiros.
III- Podem todos os herdeiros propor acção de despejo visto que a competência do cabeça-de-casal, mesmo considerados os actos para os quais ele dispõe de poderes de administração, não exclui nem sobreleva a competência conjunta de todos os herdeiros
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Tridias-Empresa de Administração e Construções Ldª propôs acção de despejo com processo sumário contra (M) pedindo que se decrete a caducidade do contrato de arrendamento respeitante ao 3º andar do prédio na Rua ..., em Lisboa em razão do decesso no dia 18-8-1999 da usufrutuária da herança que outorgou com a Ré no dia 1-10-1975 o aludido contrato. Pede, em consequência de tal caducidade, a entrega do andar livre e devoluto de pessoas e bens.

Contestou a Ré alegando que a administração do prédio até à liquidação e partilha cabe ao cabeça-de-casal, qualidade que a A. não alega nem demonstra ter, só podendo ser exercidos por todos os herdeiros em conjunto os direitos relativos à herança e, deste modo, carece A. de legitimidade por preterição de litisconsórcio necessário.

Argumenta ainda a Ré que a revogação do nº2 do artigo 1051º do Código Civil pela alínea i) do artigo 3º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro está ferida de inconstitucionalidade orgânica por ter o Governo legislado em matéria de reserva relativa da Assembleia da República não tendo sido preservada no novo texto legal a posição do arrendatário na medida em que o direito à manutenção do contrato de arrendamento ficou reduzido a um mero direito a novo contrato de arrendamento de duração limitada. Assim, face à aludida inconstitucionalidade, dá-se a repristinação do anterior nº2 do artigo 1051º do Código Civil possibilitando à Ré exercer agora o direito a manter a sua posição de locatária; se não proceder o que alegou então a Ré requer que lhe seja reconhecido o direito a novo arrendamento do andar dos autos nos termos do artigo 66º/2 do R.A.U.

Na sequência da contestação veio Empazol-Empreiteiros Associados Ldª requerer na sua qualidade de titular de 32,50% da herança (A A. alegou ser titular de 57,5% da herança do falecido (C) falecido em 9-7-1975 casado que foi com a locadora usufrutuária) a sua intervenção espontânea nos autos aderindo ao articulado do A.; por sua vez a A pediu a intervenção da massa falida da sociedade anónima Transcomércio-Companhia de Comércio Internacional a favor da qual foi apreendida 16,25% do direito à herança do referido (C) (embora a A. considere que a massa falida tem direito apenas a 10%) assim como pediu o chamamento do cabeça-de-casal (P); (S), na qualidade de cabeça-de-casal entretanto indigitado, veio também requerer a sua intervenção espontânea nos autos com ratificação do processado.

O Tribunal indeferiu todos os pedidos de intervenção.

E depois, passando a conhecer da excepção de ilegitimidade invocada pela A., considerou que ela não pode propor acção de despejo pois não tem a qualidade de cabeça- -de-casal da herança aberta por óbito do referido César Pimentel; salientou ainda a decisão recorrida que a regra constante do artigo 2091º/1 (" ...os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros") cede nos casos de petição de herança (artigos 2075º a 2078º/1 do Código Civil) e ainda nos casos dos artigos 2088º (entrega de bens pedida pelo cabeça-de-casal) e 2089º (cobrança de dívidas pelo cabeça-de-casal).

Foi, assim, a Ré absolvida da instância por falta de legitimidade ad causam.

Desta decisão recorre a A. sustentando que o pedido para que seja declarada a caducidade do arrendamento, tal como o pedido de resolução, não constituem actos de mera administração; são actos de defesa do património da A. que competem a todos os interessados na herança e a cada um de per si; invoca o argumento de maioria de razão (se cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum e se cada herdeiro pode pedir a restituição de todos os bens da herança ou de parte deles contra quem os possua então também o herdeiro há-de poder pedir a declaração de caducidade da relação locatícia referente a bem que integre a herança; refere ainda que mal se compreenderia que, face à inércia do cabeça-de-casal, um qualquer outro herdeiro não pudesse defender os interesses da herança).

Remete-se aqui para a decisão de facto (artigo 713º/6 do C.P.C.)

Apreciando:

2. Saliente-se antes do mais que o recurso está delimitado à questão de saber se a A. por si pode propor a presente acção de despejo com fundamento na caducidade do contrato de arrendamento (ver fls 106 e 111 dos autos) pois transitou a decisão recorrida na parte em que indeferiu os pedidos de intervenção espontânea e provocada.

A presente acção não é uma acção de petição de herança prevista nos artigos 2075º a 2078º/1 do C.P.C. mas uma acção de despejo com fundamento na caducidade do contrato de arrendamento em que a A., como herdeira, pretende que lhe seja entregue o local despejando livre e devoluto de pessoas e bens (ver pedido formulado no artigo 12 da petição).

Na acção de petição de herança visa-se a restituição ao património hereditário de todos ou de parte dos bens da herança que se encontram indevidamente em poder de terceiro; na acção de despejo o que está em causa não é a protecção do património hereditário, que pode ver-se afectado ou diminuído pela posse exercida por terceiro susceptível de permitir invocar aquisição dos bens possuídos por usucapião (artigo 2075º/2 do Código Civil), mas sim a cessação ou o reconhecimento da extinção de arrendamento que justificava a detenção com base na relação obrigacional constituída sobre a coisa arrendada. Assim, a devolução e entrega da coisa arrendada é mera consequência da cessação do contrato de arrendamento cujo exercício não conduz à usucapião.

Dizia o artigo 28º § único do CPC: " qualquer sócio, herdeiro ou comparte em cousa comum ou indivisa pode pedir a totalidade dessa cousa em poder de terceiro, sem que este possa opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro"; este preceito transitou para o artigo 27º/3 do CPC/61 com redacção quase idêntica:" qualquer sócio, herdeiro ou comparte em coisa comum ou indivisa tem a faculdade de pedir a totalidade da coisa em poder de terceiro, sem que ao demandado seja lícito opor que ela não lhe pertence por inteiro".

Este preceito, depois da entrada em vigor do Código Civil de 1966, foi suprimido por o tornarem dispensável os artigos 1404º, 1405º,nº2, 1286º,nº1 e 2078º,nº1 do Código Civil (ver anotação ao artigo 27º do Código de Processo Civil Anotado de Eurico Lopes-Cardoso, 4ª edição, 1972, Almedina, pág 16).

O artigo 1405º/2 do CC66 " representa um dos três preceitos da nova lei substantiva em que subsdividiu o § único do artigo 28º do Código de Processo Civil de 1939. Esta disposição do Código de 39 sucedera ao artigo 8º,II, do Código de processo de 1876 (na redacção dada pelo Decreto nº 4618, de 13 de Julho de 1918) o qual tinha, por siua vez, generalizado a doutrina do artigo 2016º do Código Civil de 1867.

O artigo 2016º do antigo Código Civil concedia a qualquer dos co-herdeiros duma herança em poder de terceiro a faculdade de, por si só, exigir deste a totalidade dessa herança. A lei processual estendeu o princípio a outros casos de contitularidade de direitos (qualquer sócio, herdeiro ou comparte em coisa comum ou indivisa)

E é esta solução plenamente adequada à forma como a nova lei civil procura harmonizar os interesses dos vários contitulares do mesmo direito, que aparece repetida nos artigos 1286º (composse), 1405º e 2078º (co-herdeiros) (ver Código Civil Anotado, Antunes Varela, 2ª edição, 1984, pág 355).

Nos trabalhos preparatórios do CPC/39 considerou-se que o referido § único do artigo 28º não se aplicava às acções destinadas a tornar efectivos direitos de crédito, mas, a este propósito, considerando conveniente definir, com exactidão, o que se quis significar com a exclusão das acções pessoais, o Prof. Alberto dos Reis referia: " a acção pessoal pode ter por fim a entrega de coisa certa e determinada. Exemplos: a acção proposta pelo senhorio contra o arrendatário a pedir a entrega do prédio arrendado, a acção proposta pelo comodante contra o comodatário a pedir a entrega da coisa emprestada, a acção proposta pelo depositante contra o depositário a pedir a restituição da coisa depositada.

Suponhamos que o arrendamento, o empréstimo, o depósito são celebrados por vários indivíduos, que se apresentam como donos da coisa; poderá qualquer deles, por si só, pedir a entrega?...vimos também que se aprovou a proposta do ministro em que figuravam as palavras ‘seja qual for o título que invoque, ficando comparte’ e que, ao excluirem-se as acções pessoais, se teve em vista impedir que a disposição se aplicasse às acções de dívida, às acções destinadas a obter o pagamento duma quantia.

Consideradas todas estas circunstâncias e tendo em conta o texto legal, entendemos que o § único do artigo 28º é de aplicar a todas as acções, reais ou pessoais, que se destinem a obter a entrega de coisa certa e determinada ou mesmo a entrega duma universalidade.

Pouco importa, na verdade, que o autor invoque contra o réu um direito real ou um direito de crédito; o que importa é que a acção tenha por objecto a entrega duma cousa e que esta seja comum ou esteja indivisa.

O estado de comunhão ou de indivisão é que justifica a providência contida no parágrafo.

Celebrado, pois, por vários indivíduos, na qualidade de comproprietários, um contrato de arrendamento, de comodato, de depósito, de transporte, etc, a acção destinada a pedir a restituição da coisa arrendada, emprestada, depositada ou transportada pode ser proposta por um dos senhorios, dos comodantes, dos depositantes, dos expedidores-destinatários, sem que o réu possa opor que a coisa não lhe pertence por inteiro" (ver R.L.J.,Ano 77º, 1944, pág 11-12). Casos nítidos e característicos de aplicação do aludido § único, passando-se para o campo dos direitos reais, são, como salienta o mesmo autor, a acção de reivindicação proposta por um sócio ou comproprietário (ver hoje artigo 1405º/2 do CC66) ou a acção de petição de herança proposta por um dos co-herdeiros.

Assim, por exemplo, já se admitiu que um co-herdeiro propusesse por si acção de despejo com fundamento na necessidade de casa para sua habitação por estar a exercer um direito pessoal que não é direito relativo à herança não sendo, portanto, de aplicar a regra do artigo 2091º do Código Civil: ver Ac. da Relação de Lisboa de 20-10-1983 (Amável Moreira Mateus),C.J., 4, pág 138.

Neste como noutros casos (artigos 71º e 73º do Código Civil) parece abrir-se uma legitimidade ad causam que não se insere nos dispositivos dos artigos 2078º, 2079º a 2090º e 2091º do Código Civil e que teria, no passado, cobertura no § único do artigo 28º do CPC e hoje no artigo 1404º do Código Civil no sentido de que " a solução que se adoptou para o comproprietário é aplicável a qualquer outro caso de comunhão pro indiviso. Interessa especialmente a hipótese da herança indivisa" (Código Civil Anotado,Antunes Varela, Vol II, 4ª edição, pág 627).

No entanto, ao passo que no primeiro dos apontados casos o direito invocado, posto que pessoal, vai exercer-se sobre bem da herança visando a sua afectação a um dos herdeiros, com eventual prejuízo do património hereditário e dos demais herdeiros que vêem perdido rendimento que pode ser avultado, no segundo caso a legitimidade tem por base a estrita protecção de direito de personalidade que pode ser protegida pelos interessados a que alude o artigo 71º/2 do Código Civil sem qualquer reflexo no património hereditário.

Afigura-se, porém, que, no tocante ao herdeiro, o artigo 28º § único do CPC/39 não tinha âmbito diferente do artigo 2016º do Código Civil de 1867 o que significa que o herdeiro por si poderia agir pedindo a entrega de coisa certa ou mesmo de uma universalidade nos termos que agora estão identicamente prescritos para a acção de petição de herança. Repare-se que, suscitada a questão da supressão do § único do artigo 28º do CPC/39, o autor do projecto entendia que " no tocante ao herdeiro o parágrafo poderia dispensar-se em vista do que se prescreve no artigo 2016º do Código Civil”(R.L.J., Ano 77º, pág 10).

Parece, portanto, no que respeita ao herdeiro, que a possibilidade de agir sozinho, quando estão em causa direitos relativos à herança, justificar-se-á apenas no caso de petição de herança (artigo 2078º do CC66).

A estrutura da acção de petição de herança envolve a reivindicação, ou seja, constitui acção típica dos direitos reais e não dos direitos pessoais; quanto a estes a legitimidade contém-se no artigo 2091º/1 do Código Civil que impõe o litisconsórcio necessário ainda quando o objectivo pretendido seja a restituição de bens em poder de terceiro.

Por isso em acção que tinha por objecto o pedido de entrega de imóvel para a herança fundado no facto de o mandatário (ora réu), que adquirira determinado imóvel ao abrigo de um mandato sem representação, não o ter transferido para o mandante (entretanto falecido: ver artigo 1181º/1 do Código Civil) não teve dúvidas o Prof. Inocêncio Galvão Telles em afirmar que, nesse caso, a ideia da petição da herança não tem o menor cabimento.

A petição de herança supõe que bens pertencentes a esta estão a ser possuídos por outrem que não o herdeiro. O herdeiro demanda esse outrem, solicitando que seja reconhecida a sua qualidade sucessória e que, consequentemente, seja o réu condenado a abrir mão dos bens em seu poder, fazendo deles entrega...A hereditatis petitio...envolve reivindicação de bens. Sob este aspecto é uma verdadeira acção real tentando fazer valer direitos sobre bens que fazem parte do acervo hereditário mas que se encontram de facto na posse de terceiro...

Só quando alguém intitulando-se herdeiro (venha ou não a ser contestada essa qualidade) reivindique bens que diga serem da herança e estarem nas mãos do réu, é que existe petição da herança...

Então, e só então, poderá um herdeiro, não obstante a existência de outro ou outros, agir isoladamente, para dar efectividade a direitos que fazem parte do património hereditário. Há-de tratar-se de direitos reais, nomeadamente de propriedade. Há-de tratar-se de um pedido reivindicatório.

Essa legitimidade para actuar sozinho, podendo um só herdeiro pedir tudo, dentro de um esquema de solidariedade activa ou análoga ao da solidariedade activa, é uma legitimidade excepcional, específica da petição de herança e, portanto, dos direitos reais, não sendo extensiva aos demais direitos que entram no conteúdo da massa hereditária.

Aquela legitimidade excepcional, inerente à petição de herança e pressupondo que a actuação a título reivindicativo, da ‘iura in re’ está consagrada no artigo 2078º/1. A legitimidade geral, no que toca ao exercício dos direitos integrantes da herança contém-se no artigo 2091º, nº1 e traduz-se na exigência de concurso de todos os herdeiros, envolvendo litisconsórcio necessário (ver "Mandato sem Representação, Parecer, Colectânea de Jurisprudência, 1983, 7/17).

A aplicação das regras da compropriedade a outras formas de comunhão (artigo 1404º do Código Civil) cede, como resulta da parte final do preceito, ao que estiver disposto especialmente para cada um deles. Já vimos, no que à denúncia para habitação própria se refere, que estamos face a um direito pessoal não havendo assim, segundo parece, colisão com a regra geral do artigo 2091º/1 do Código Civil. Daí a possibilidade de interpretação extensiva do artigo 71º/1, alínea a) do R.A.U. que não seria admissível pois o artigo 2091º/1, que encerra em si a regra geral e as disposições que o excepcionam, não contempla o caso do artigo 71º/1 do R.A.U. correspondente ao anterior artigo 1098º/1, alínea a) do Código Civil.

3. Considera o recorrente que o pedido visando obter a declaração de caducidade do contrato de arrendamento, tal como o pedido de resolução do mesmo contrato, não constituem actos de administração.

Não afirma, porém, o recorrente que a pretensão de obter com tal fundamento o despejo de um imóvel que faz parte da massa hereditária se não traduza no exercício de um direito relativo à herança e, por isso, tendo em vista a solução do presente litígio, a qualificação do despejo como acto de administração ou de outra natureza, acaba por perder interesse prático.

É que, afastada a aplicação ao caso do artigo 2078º/1 do Código Civil, a A. carece sempre de legitimidade para agir por si; ao caso ou se aplica o disposto no artigo 2091º/1 do Código Civil ou o disposto nos artigos 2079º, 2088º, 2089º e 2090º do Código Civil.

É certo que, na compropriedade, reconhecendo a lei que todos os compartes têm igual poder para administrar (artigo 985º/1 e 1407º/1 do Código Civil), se aceita que um comproprietário sozinho possa propor uma acção de despejo (ver Código Civil Anotado, Antunes Varela, Vol III, 2ª edição, pág 355); no entanto, tal reconhecimento não advém de um argumento de maioria de razão derivado do facto de o comproprietário poder reivindicar de terceiro a coisa comum sem que a este seja lícito opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro( artigo 1405º/2 do Código Civil).Por isso mesmo, Antunes Varela, salienta que aquele nº 2 se ocupa da legitimidade para as acções de reivindicação. Tratando-se de acções de outra natureza, a legitimidade deverá aferir-se em função dos poderes que a lei atribui aos comproprietários em relação à coisa comum” (loc. cit, pág 355).

No âmbito do direito sucessório os herdeiros não têm por si poder para administrar salvo se a algum deles for deferido o cabeçalato.

É que a administração da herança,até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal (artigo 2079º do Código Civil).

Logo este aspecto evidencia que não se pode deixar de atentar na diferença de regimes que ocorre, no que à administração respeita, quando estamos face ao regime de compropriedade ou ao regime da herança indivisa.

A lei qualifica a locação como acto de administração ordinária, excepto quando for celebrada por prazo superior a 6 anos (artigo 1024º/1 do Código Civil).

Instaurar acção de despejo constitui acto de administração?

Entende o recorrente que não por se tratar de um acto de defesa do património.

No entanto, nos poderes de administração incluem-se aqueles que visam a valorização e protecção do património que são os objectivos principalmente visados com a acção de despejo, meio processual que não se destina à defesa de agressões contra o património.

A lei, aliás, atribui, embora limitadamente, poderes ao cabeça-de-casal que vão para além da mera administração: tais são os poderes de reivindicar os bens que deva administrar ou de exercer as competentes acções possessórias (artigo 2088º do Código Civil), ou o de vender frutos ou outros bens deterioráveis ou mesmo os frutos não deterioráveis para satisfação de encargos da herança ou despesas do funeral e sufrágios (artigo 2090º do Código Civil) ou ainda o de cobrar dívidas (artigo 2089º do Código Civil).

Por isso, a acção de despejo apenas se justifica enquanto acto de administração no âmbito dos poderes gerais conferidos pelo artigo 2079º do Código Civil.

Desde sempre se tem reconhecido ao cabeça-de-casal o poder de propor acções de despejo contra os arrendatários dos bens da herança mesmo quando o contrato de arrendamento foi celebrado pelo inventariado: veja-se Partilhas Judiciais, Lopes Cardoso, Almedina, 1979, Vol I, pág 315 e jurisprudência citada sendo a mais antiga de 1904 e a mais recente de 1950; veja-se ainda: Ac. da Relação de Lisboa de 14-12-1982 (Ribeiro de Oliveira) B.M.J. 328-617, Ac. da Relação do Porto de 7-1-1986 (Mário Ribeiro) C.J., 1, pág 155, Ac. da Relação de Coimbra de 14-10-1986 (Castanheira da Costa) B.M.J. 360-663, Ac. da Relação de Évora de 19-6- -1997 (Gaito das Neves) C.J., 3, pág 276. Já em anotação concordante ao Ac. do S.T.J. de 18-3-1949 (Jaime de Almeida Ribeiro) escrevia o Prof. Alberto dos Reis: “ é evidente qeu o cabeça-de-casal tem poderes para dar de arrendamento os bens que administra; se pode arrendar, pode, logicamente, fazer cessar o arrendamento quando haja fundamento legal para isso e pedir, consequentemente, o despejo do prédio arrendado. Dar de arrendamento e pedir o despejo são manifestamente actos de administração; estão dentro da legítima esfera de acção do cabeça-de-casal” (R.L.J.,82º Ano, pág 332).

Pode suscitar-se a questão de saber se a competência para administrar do cabeça-de-casal é exclusiva ou cumulativa.

Afigura-se-nos, face ao exposto, que os herdeiros por si não têm poderes de administração, pelo que a dúvida não tem, nesta medida, qualquer sentido. Seria intolerável que um herdeiro pudesse interferir com a administração do cabeça-de-casal desvirtuando-se, assim, todo o interesse que existe na atribuição do cabeçalato à herança indivisa.

No entanto, os poderes de administração do cabeça-de-casal são limitados e, em muitos casos, podem levantar-se dúvidas sobre o seu âmbito.

A administração do cabeça-de-casal é muito limitada no tempo, por via de regra, com escassos meios administrativos e quase sempre desempenhada por pessoas a quem, fora das suas ocupações habituais, não sobeja tempo para a exercer com competência e assiduidade.

A lei diz ao cabeça-de-casal que administre, impõe-lhe regras de conduta cuja inobservância é causal de responsabilidade, nenhuma retribuição lhe atribui para o exercício da função e dispensa-se de definir em concreto o que pode fazer, deve fazer e lhe é defeso fazer.

Mais: a lei defere o cabeçalato não em função da competência para o seu exercício mas com respeito por uma ordem que tem ínsito o parentesco, a proximidade de grau com o falecido, critérios de razão afectiva, sentimental, quiça de relativo interesse pessoal, tudo factores sem relevância no tocante à administração que atribui e impõe ao titular assim designado...o cabeça-de-casal deverá praticar os actos que sejam indispensáveis à conservação do património em partilha, exercer aquele conjunto de direitos que a lei lhe outorga especificamente com vista a essa conservação e cumprir as tarefas que diplomas vários lhe impõem em atenção à qualidade em que investido ou a que tem potencial direito (Partilhas Judiciais,loc. cit, pág 305).

Daqui decorre que há actos de administração que não são da competência do cabeça-de-casal e, por conseguinte, terão de ser exercidos por todos os herdeiros conjuntamente.

Em muitos casos podem gerar-se justificadas dúvidas sobre o âmbito de intervenção do cabeça-de-casal.

As competências do cabeça-de-casal existem para assegurar que o património hereditário se não desvalorize até à liquidação e partilha, mas também se destinam a evitar que a gestão desse património hereditário fique sujeita às intervenções constantes dos herdeiros muitas vezes contraditórias e, portanto, susceptíveis de causar prejuízos e conflitos inconvenientes.

No entanto, se os actos de disposição do património hereditário e os actos de administração que já não assumam uma natureza de mera conservação ordinária têm de ser praticados por ou contra todos os herdeiros, não se vê que lhes fique vedado praticar conjuntamente aqueles actos que são da competência do cabeça-de-casal que, a nosso ver, não exclui a que os herdeiros tenham por bem efectivar em conjunto.

Será até em muitos casos a forma de resolver dúvidas que um cabeça-de-casal zeloso possa ter quanto ao âmbito da sua administração.

Por isso, admitindo que o cabeça-de-casal não queira, por si, propor acção de despejo, não se vê que os herdeiros não possam conjuntamente propô-la ainda que tal acto constitua um acto da competência do cabeça-de-casal: ver neste sentido Ac. da Relação do Porto de 20-6-1989 (Vítor Rocha) B.M.J. 388-608.

É certo que por ser na maioria dos casos o cabeça-de-casal também herdeiro o conflito estabelece-se afinal entre ele e os demais herdeiros de sorte que, não havendo unanimidade entre todos, só com a sua remoção poderá ser designado novo cabeça-de-casal dispondo qualquer herdeiro de legitimidade para a requerer (artigo 2086º/2 do Código Civil).

Não sendo o cabeçalato cargo que exista na medida em que existe processo de inventário - as mais das vezes o cabeça-de-casal exerce as suas funções sem que corra processo de inventário - o indicado inconveniente que seria o de, por má gestão do cabeça-de-casal, ficar para sempre impedida a possibilidade de exercício de determinadas acções, a ocorrer, pode sempre ser processualmente resolvido pois não parece que haja impedimento legal à utilização de procedimento cautelar destinado a antecipar os efeitos a obter com a decisão judicial que remova o cabeça-de-casal em exercício.

Não há unanimidade na jurisprudência: aderindo à tese do recorrente veja-se o Ac. da Relação de Coimbra de 7-7-1993, B.M.J. 429-888 e o de 23-2-1994, B.M.J. 434-692; inédito veja-se o Ac. da Relação de Lisboa de 18-10-2001(P. 6993/2001) que subscrevemos como adjunto, orientação que agora não temos por melhor

Veja-se em sentido diverso o Ac.da Relação de Coimbra de 22-6-1999 (Gil Roque) B.M.J.Nº 488-417, o Ac. da Relação de Évora de 12-6-1997 (Rui Pinto Ferreira) B.M.J. 468-493 e também o Ac. da Relação de Lisboa de 23-11-2000 (Salvador da Costa) B.M.J. 501-337 Recurso n.º 9624/2000 — 6.ª Secção (Boletim ainda não editado) com o seguinte sumário:

I - No quadro da herança indivisa, fora das situações de legitimidade ad causam do cabeça-de-casal e de cada um dos herdeiros no que concerne à petição da herança, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros.
II - No caso de pluralidade de herdeiros, o herdeiro, a título singular, não tem legitimidade ad causam para intentar acção tendente à declaração de caducidade do contrato de arrendamento celebrado pelo de cujus e, a título subsidiário, à sua resolução.


Decisão: nega-se provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente

Lisboa, 13/11/03

(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)