Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | OLINDO GERALDES | ||
Descritores: | TÍTULO EXECUTIVO EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/08/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
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Sumário: | I. O documento particular que, nos termos do art. 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil/1961, constituía título executivo, deixou de ter tal natureza, no âmbito do disposto no art. 703.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho. II. Perante a declaração reiterada de inconstitucionalidade do disposto no art. 703.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, conjugado com o art. 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, nomeadamente pelo Tribunal Constitucional, e o disposto ainda no art. 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil/1961, o documento particular, assinado pelo devedor, em 26 de outubro de 2010, com a declaração de dever ao credor certa quantia pecuniária, constitui título executivo, na ação executiva instaurada em 9 de junho de 2014. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:I – RELATÓRIO A instaurou, em 9 de junho de 2014, no então 1.º Juízo Cível da Comarca do Funchal (Instância Central do Funchal, Secção de Execução, Comarca da Madeira), contra M, execução comum, sob a forma de processo ordinário, para pagamento de quantia certa, no valor de € 16 346,30, apresentando, como título executivo, o documento particular de fls. 12, assinado pela Executada, em 26 de outubro de 2010, com reconhecimento notarial, e no qual se declarou dever à Exequente a quantia de € 12 000,00, a ser paga com juros de 10 % ao ano. Por despacho de 3 de dezembro de 2014, o requerimento executivo foi liminarmente indeferido, com fundamento na falta de título executivo, nos termos do art. 703.º, n.º 1, do CPC. Inconformada com essa decisão, recorreu a Exequente e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões: a) O art. 703.º do NCPC não tem aplicação retroativa, tendo o documento particular força executiva. b) A aplicação do art. 703.º do CPC, ao caso, é uma arbitrariedade, viola o princípio da segurança e da confiança jurídica, bem como a expetativa legítima e fundada das partes, dado que o documento foi validamente constituído à luz da lei antiga. c) A aplicação do NCPC viola o art. 12.º do CC, que consagra a irretroatividade da lei, não havendo interesse comum que careça de proteção. d) A aplicação retroativa viola o princípio da proporcionalidade consagrado no n.º 2 do art. 18.º da CRP, sendo o sacrifício demasiado oneroso com a retirada das garantias consagradas pela lei antiga. e) A aplicação retroativa do NCPC representa denegação de justiça, por obrigar a recorrer aos processos de injunção ou declarativo e, só depois, a intentar a ação executiva, tornando a justiça mais cara e mais lenta. f) A aplicação do NCPC ao caso sub judice é manifestamente inconstitucional, por violação do princípio da segurança e proteção da confiança do Estado de Direito Democrático, consagrado no art. 2.º da CRP. Pretende a Apelante, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida e o prosseguimento da execução. Embora citada pessoalmente, a Executada não chegou a apresentar as contra-alegações. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. Neste recurso, está apenas em discussão a natureza de título executivo de documento particular, assinado pelo devedor, reconhecendo uma obrigação pecuniária, em montante determinável, emitido em 26 de outubro de 2010 e apresentado na ação de execução instaurada depois em 9 de junho de 2014. II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. Descrita a dinâmica processual, importa conhecer, então, do objeto do recurso, delimitado pelas suas conclusões, e cuja questão jurídica emergente se acaba de enunciar. A questão tem suscitado controvérsia tanto na jurisprudência como na doutrina, tendo-se formado essencialmente duas correntes. Uma, para a qual o documento particular, com as características das referidas nos autos, não constitui título executivo, por estar excluído da enumeração fixada no n.º 1 do art. 703.º do Código de Processo Civil (CPC) (acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de setembro de 2014 (processo n.º 3275/14.4YYLSB.L1-2) e 19 de junho de 2015 (processo n.º 138/14.7TCFUN.L1-6), acessíveis em www.dgsi.pt). Outra corrente, conferindo natureza de título executivo, por aplicação ainda do art. 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC/1961, em resultado da inconstitucionalidade da norma resultante dos arts. 703.º, n.º 1, do CPC, e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na interpretação de que o art. 703.º, n.º 1, do CPC, se aplica aos documentos particulares, emitidos antes de 1 de setembro de 2013, e então exequíveis por força do art. 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC/1961 (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de dezembro de 2014 (processo n.º 23/14.2TTVFX.L1-4), também acessível em www.dgsi.pt). O problema surgiu porque o documento particular que, nos termos do art. 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC/1961, constituía título executivo, deixou de ter tal natureza, no âmbito do disposto no art. 703.º, n.º 1, do CPC, sendo certo ainda que tal norma passou a ser aplicável às execuções iniciadas após a entrada em vigor do CPC, nomeadamente, a partir de 1 de setembro de 2013 (art. 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013). A opção legislativa, conscientemente tomada, baseou-se no entendimento adquirido de que os documentos particulares abrangidos no âmbito do art. 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC/1961, ofereciam um diminuto grau de segurança, estando mais sujeitos à dedução de oposição à execução, sob os mais variados fundamentos, desde a impugnação da letra e assinatura à interpretação das declarações (ABÍLIO NETO, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2.ª edição, 2014, pág. 856). Na verdade, depois do alargamento substancial dos títulos executivos, operado a partir de 1 de janeiro de 1997, com a entrada em vigor do DL n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, e do DL n.º 180/96, de 25 de setembro, com o objetivo declarado de evitar as ações declarativas tendentes a reconhecer o direito do credor sobre o qual não recaía verdadeira controvérsia, com vista à obtenção do indispensável título executivo judicial, passou-se, de igual modo, com o atual Código de Processo Civil, para a redução dos títulos executivos, obrigando à prévia proposição de procedimento de injunção ou ação declarativa, para se obter o título executivo, que permite ao credor instaurar a execução, para o cumprimento coercivo da obrigação. O legislador terá ponderado, ao proceder à redução dos títulos executivos, que iria provocar um aumento da procura dos procedimentos declarativos, mas que, simultaneamente, evitaria um grande número de execuções injustas, muitas delas agravadas ainda com a afetação patrimonial dos executados. A oposição à aplicação das referidas normas, quanto aos títulos executivos, tem colhido o apoio unânime e reiterado do Tribunal Constitucional, nomeadamente nos acórdãos de 3 de dezembro de 2014 (acórdão n.º 847/2014), 4 de março de 2015 (acórdão n.º 161/2015) e 23 de junho de 2015 (acórdão n.º 333/2015), todos acessíveis em www.dgsi.pt. Para tanto, o Tribunal Constitucional baseou-se que “a aplicação imediata e automática da solução legal ínsita na conjugação dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, de que decorre a perda de valor de título executivo dos documentos particulares que o possuíam à luz do CPC revogado, sem uma disposição transitória que gradue temporalmente essa aplicação, é uma medida desproporcional, que afeta o princípio constitucional da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, plasmado no art. 2.º da Constituição.” O direito processual civil é um ramo de direito instrumental ou adjetivo que faculta, em abstrato, os meios para fazer valer um direito substantivo, em caso de conflito entre duas ou mais pessoas. Por outro lado, é também um ramo de direito público, que tem em vista a obtenção de uma justa composição dos interesses privados em conflito, de forma a garantir a ordem e a paz social (ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, págs. 7 a 10). Devido à natureza instrumental das normas de direito processual civil, que por isso não afeta a natureza substantiva do conflito, tais normas, por regra, são de aplicação imediata, designadamente aos atos processuais das ações pendentes. Todavia, porque muitas vezes é necessário acautelar certas expetativas jurídicas criadas, é usual fixar-se um regime transitório, um conjunto mais ou menos extenso de normas transitórias, conforme a amplitude das inovações normativas. Foi, nesse âmbito, que, no art. 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, que aprovou o Código de Processo Civil, se previu que o aqui disposto, designadamente, em relação aos títulos executivos “só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor”. Assim, ficou claro que o novo CPC, nomeadamente quanto aos títulos executivos, não era aplicável aos processos de execução pendentes em 1 de setembro de 2013, data da entrada em vigor daquele CPC, de modo que os documentos particulares abrangidos pela alínea c) do n.º 1 do art. 46.º do CPC/1961, nesses processos, continuavam a manter a natureza de título executivo. Já em relação aos processos de execução instaurados a partir de 1 de setembro de 2013, tais documentos particulares, emitidos antes dessa data, deixavam de poder constituir títulos executivos, dada a sua exclusão da tipificação prevista no art. 703.º, n.º 1, do CPC, por efeito da aplicação imediata da lei processual. Desta circunstância, porém, não decorre a aplicação retroativa da lei, entendida no seu sentido estrito, pois a nova lei apenas se aplica para o futuro, com o pressuposto, quanto ao título executivo, a ser verificado no momento da proposição da ação de exeução. Por outro lado, a lei processual, que restringiu os títulos executivos, apenas tem efeitos processuais, não modificando o direito substantivo, designadamente a presunção estabelecida no art. 458.º, n.º 1, do Código Civil (CC), a qual tinha reflexo na interpretação do disposto na alínea c) do n.º 1 do art. 46.º do CPC/1961 (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume I, 1979, 385). Naturalmente, as expetativas jurídicas dos detentores de documentos particulares emitidos antes de 1 de setembro de 2013, com a natureza de títulos executivos, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 46.º do CPC71961, foram atingidas, pela necessidade, depois daquela data, de obter título executivo, quer através de procedimento de injunção, quer de ação declarativa, com a inerente dilação temporal e oneração de maiores custos, embora estando sempre garantida a tutela jurisdicional efetiva. Todavia, relativamente aos documentos particulares emitidos depois de 26 de junho de 2013, data da publicação do novo Código de Processo Civil, tais expetativas jurídicas nem sequer podem considerar-se frustradas, na medida em que, estando a lei já publicada, podia ser conhecida dos interessados, sendo certo que a ignorância da lei (nova) não aproveita a ninguém, nos termos do art. 6.º do CC (observe-se que, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 161/2015, o documento particular foi emitido em 30 de junho de 2013 e execução instaurada em 25 de junho de 2014). Acresce, no sentido da atenuação dos efeitos da frustração das expetativas jurídicas, que o novo Código de Processo Civil teve uma certa vacatio legis que, sendo superior a dois meses, permitia aos interessados instaurar o processo de execução, com base em título executivo constituído ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do art. 46.º do CPC/1961, antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil. Em face do contexto descrito, embora sem inteira certeza quanto à frustração das legítimas expetativas jurídicas dos credores, por ofensa do princípio da segurança jurídica e do princípio da segurança, assegurados pelo princípio do Estado de Direito democrático consagrado no art. 2.º da Constituição da República Portuguesa, quanto aos documentos particulares emitidos antes de 1 de setembro de 2013, mas levando em consideração o sentido uniforme e reiterado da jurisprudência do Tribunal Constitucional, cuja obrigatoriedade, por efeito da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, se pode perspetivar a curto prazo, entende-se dever seguir, no caso vertente, a jurisprudência constitucional (art. 8.º, n.º s 2 e 3, do CC). Na verdade, serve de base ao processo de execução instaurado em 9 de junho de 2014, o documento particular de fls. 12, assinado pela Apelada, em 26 de outubro de 2010, no qual declarou dever à ora Apelante a quantia de € 12 000,00, acrescida de juros. Nos termos da norma do art. 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC/1961, tal documento particular tem natureza de título executivo. Assim, perante a mencionada declaração de inconstitucionalidade do disposto no art. 703.º, n.º 1, do CPC, conjugado com o art. 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e o disposto no art. 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC/1961, conclui-se que a Apelante dispõe de título executivo. Assim sendo, não se justifica o indeferimento liminar do requerimento executivo, pelo motivo especificado no despacho recorrido, pelo que, na procedência da apelação, deve ser revogada a decisão impugnada. 2.2. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante: I. O documento particular que, nos termos do art. 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil/1961, constituía título executivo, deixou de ter tal natureza, no âmbito do disposto no art. 703.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho. II. Perante a declaração reiterada de inconstitucionalidade do disposto no art. 703.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, conjugado com o art. 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, nomeadamente pelo Tribunal Constitucional, e o disposto ainda no art. 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil/1961, o documento particular, assinado pelo devedor, em 26 de outubro de 2010, com a declaração de dever ao credor certa quantia pecuniária, constitui título executivo, na ação executiva instaurada em 9 de junho de 2014. 2.3. Tendo a Apelante obtido vencimento e não tendo a Apelada dado causa ao recurso, não há responsabilidade pelo pagamento das custas (art. 527.º, n.º 1, do CPC). III – DECISÃO Pelo exposto, decide-se: Conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida. Lisboa, 8 de outubro de 2015 (Olindo dos Santos Geraldes) (Lúcia Sousa) (Magda Geraldes) |