Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1032/08.6TBMTA.L1-1
Relator: JOÃO RAMOS DE SOUSA
Descritores: DIREITO ESTRANGEIRO
INDEMNIZAÇÃO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/07/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA
Sumário: 1. Deve ser julgado segundo o direito espanhol, recebido pelo direito português, o direito à indemnização por um acidente de viação ocorrido em Espanha, com vítimas de nacionalidade portuguesa que se encontravam em trânsito para o Reino Unido num automóvel de matrícula britânica.
2. Não tendo o condutor do automóvel causador do acidente, também de nacionalidade portuguesa, seguro de responsabilidade civil (obrigatório), incumbe ao F.G. indemnizar as vítimas.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
Relatório
O 1º Juízo do Tribunal Judicial da M... condenou o F.G. (réu, recorrente) a pagar: (1) a G.M. (autora, recorrida) a quantia de € 775.118,54 e as quantias que vierem a apurar-se em incidente de liquidação, correspondentes às despesas futuras que vier a fazer para colmatar as áreas do seu corpo por epitelizar, por causa do acidente de viação abaixo indicado; (2) a R.J. (autor, recorrido) a quantia de € 70.000,00, acrescida de juros de mora legais, desde a data da sentença e até integral pagamento; (3) e ao I.S., a quantia de € 4.098,08, acrescida de juros de mora legais, desde a citação e até integral pagamento.
O autor R.J. apelou da sentença, pedindo que lhe sejam atribuídos € 133.333,33 com juros legais desde a notificação do pedido de indemnização ao réu, e até integral pagamento.
A autora G.M. também apelou, pedindo € 1.000.000,00 de indemnização por danos patrimoniais e € 400.000,00 por danos não patrimoniais.
O réu F.G. também apelou pedindo que se anule a sentença aplicando ao caso o direito espanhol, se reduzam a € 638,88 os montantes salariais mensais da autora, e sejam as indemnizações fixadas com as tabelas do direito espanhol que indica, fixando-se as custas na proporção do efetivo decaimento.
Corridos os vistos, houve mudança de relator, nos termos do art. 713.3:CPC.
Cumpre decidir.
Fundamentos
Factos
Provaram-se os seguintes factos, apurados pelo Tribunal a quo:
(...)
Não há motivos para alterar a matéria de facto
(...)
Análise jurídica
Considerações do Tribunal recorrido
O Tribunal a quo fundamentou-se nomeadamente nas seguintes considerações:
(...)
Alegações do recorrente R.J.
O autor R.J. apresentou conclusões de recurso, que no essencial são as seguintes:
...
Alegações da recorrente G.M.
A autora G.M.
Contra-alegações da autora G. M.
Às conclusões do FGA, respondeu a autora G.M.:
(...)
Contra-alegações do autor R.J.
O autor R.J. respondeu o seguinte, em conclusão:
(...)
É aqui aplicável o direito espanhol, recebido pelo direito português
Efetivamente, na data do acidente, estava em vigor em Portugal o DL 522/85, de 31 de dezembro.
Não tendo o causador do acidente contrato de seguro, incumbe ao F.G. satisfazer as indemnizações respetivas, nos termos do art. 21.1 e 23.2 :DL 522/85.
Não é aplicável a legislação do Reino Unido em matéria de indemnizações (Road Traffic Act 1988), embora o automóvel causador do acidente tivesse matrícula britânica, porque não temos aqui a situação prevista no art. 5º :DL 522/85 (pois esta norma refere-se aos casos em que há seguro de responsabilidade civil – e precisamente aqui não havia seguro de responsabilidade civil).
Como resulta do art. 45 :CC, a responsabilidade extracontratual é aqui regulada pela lei do Estado onde ocorreu a principal atividade causadora do prejuízo (o sinistro); e, tendo essa atividade ocorrido em Espanha, é aqui aplicável a lei do país vizinho.
O art. 45.3 :CC distingue a circunstância de o agente e o lesado terem a mesma nacionalidade, ou na falta dela a mesma residência habitual, ou de se encontrarem ocasionalmente no estrangeiro: nesse caso, a lei aplicável será a da nacionalidade ou a da residência comum.
A este propósito, o réu objeta que não ficou demonstrado que o condutor do veículo tinha nacionalidade portuguesa (conclusão 9ª das alegações de recurso). No entanto, o falecido condutor do veículo tem averbada na sua certidão de nascimento a nacionalidade portuguesa. Improcede assim esta objeção: é aplicável o direito espanhol.
Tendo o sinistro ocorrido em Espanha, o Fundo satisfaz a indemnização conforme estabelecido no art. 53.3 :DL 522/85 nos termos e nos limites em que tenha ocorrido a transposição da Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983 (ou da Directiva mais recente que a tiver atualizado: assim deve entender-se aquela remissão legal).
A Espanha transpôs a Diretiva 84/5/CEE do Conselho mediante o Real Decreto 7/2001, de 12 de Janeiro (BOE, que pode consultar-se através do Google, como os demais diplomas legais do país vizinho, a seguir referidos).
O art. 12 desse Real Decreto estabelecia de seguro obrigatório de responsabilidade civil (1) um limite máximo € 350.000,00 por danos corporais, por vítima (2) um limite máximo de € 100.000,00 por danos materiais, por sinistro, seja qual for o número de veículos ou bens afetados, (3) sem limite, por gastos de assistência médica, farmacêutica ou hospitalar (en la cuantia necesaria hasta la sanación o consolidacion de secuelas, siempre que el gasto esté debidamente justificado atendiendo a la naturaleza de la asistencia prestada), e (4) também sem limite por gastos de funeral em caso de morte.
Todavia, este Real Decreto foi implicitamente revogado pelo Real Decreto Legislativo 8/2004, que entrou em vigor em 2004.11.06, derrogando as disposições contrárias ao regime de responsabilidade civil e seguro automóvel (obrigatório) que refundiu -- adaptando ao direito espanhol as Diretivas europeias 2000/26/CE e 88/357/CEE (4ª Diretiva sobre o seguro de automóveis), como se diz no respetivo relatório preambular.
A revogação foi só implícita: “Quedan derogadas cuantas disposiciones de igual o inferior rango se opongan a lo estabelecido en el texto refundido de la Ley sobre responsabilidad civil y seguro en la circulación de vehículos a motor (...)” (Disposición derogatoria unica).
É certo que este RD 7/2001 foi depois expressamente revogado (derogado) pelo Real Decreto 1507/2008, de 12 de setembro. Mas isso não significa que todas as normas do RD 7/2001 se mantivessem em vigor até 2008: esta revogação expressa deve entender-se somente em relação às normas que não haviam sido implicitamente derogadas pelo RDL 8/2004; e justamente, o art. 12 do RD 7/2001 (limite máximo da indemnização) estava implicitamente derogado. – Na verdade, em 2007 a Ley 21/2007 de 11 de julho fixou novos limites à coberturas do seguro obrigatório previstas no RDL 8/2004 (art. primero, cuatro, da Ley 21/2007, modificando o art. 4.2 do RDL 8/2004) e nem por isso mencionou o art. 12 do RD 7/2001: não as mencionou porque na sistemática legislativa espanhola essas normas já tinham sido derogadas pelo RDL 8/2004.
Os limites indemnizatórios na data do acidente eram, assim, os das tabelas anexas àquele Real Decreto Legislativo 8/2004 (art. 4.2), que são muito superiores aos do Real Decreto 7/2001.
Este art. 4.2 previa que se regulamentasse depois esses limites máximos. A indemnização por danos às pessoas seria fixada com base no disposto no art. 1.2 daquele RDL: e este art. 1.2 remetia para os critérios e limites indemnizatórios fixados nos anexos do mesmo RDL.
Interessam aqui as tabelas III para lesões permanentes e IV que determina a pontuação prevista na tabela III. A Tabela V fixa os montantes máximos das indemnizações por tratamento hospitalar.
(Por ter entendido que esses limites máximos eram exagerados, o legislador espanhol veio reduzi- -los na já referida Ley 21/2007, nos seguintes termos: (a) nos danos às pessoas, 70 milhões de euros, qualquer que seja o número de vítimas; (b) nos danos nos bens, 15 milhões de euros por sinistro. Reduziu-os, mas mesmo assim fixou-os em montante muito superior aos do RD 7/2001. De qualquer forma, os que estavam em vigor à data do sinistro eram os da redação inicial do RDL 8/2004).
Indemnização da autora G.M.
Em resultado do acidente, a autora G.M. ficou com uma IPG total de 78 pontos, com quantum doloris de 7/7, dano estético de 6/7, prejuízo de afirmação pessoal de 3/5 (facto 31). Nasceu em 1984.10.29, pelo que tinha 21 anos à data do acidente (factos 1 e 2). Cabe-lhe, assim, a indemnização de 2.132,77 × 78 = € 166.356,00 (tabela III do RDL 8/2004).
Há correção a fazer segundo a tabela IV: € 75.231,70.
Total de danos pessoais, segundo a lei espanhola: € 241.587,70
No que se refere a danos patrimoniais, há que ter em conta que a autora ganhava € 340,00 na M… (facto 14), mas estava em vias de concluir um curso de estética e tinha e expetativa de passar a auferir € 800,00 mensais (facto 17). Consideramos uma vida profissional de 50 anos. Não se vê como provável que pudesse acumular essa importância com o total que podia fazer em casa antes de terminar esse curso (facto 32); mas aceitemos mais 100 euros mensais. Isso permite calcular um capital futuro de 900 × 14 × 50 = € 630.000,00.
Desconte-se ¼, correspondente ao facto de esse capital lhe ser imediatamente disponibilizado: obtemos € 472.500,00 de danos patrimoniais.
Resulta daí uma indemnização de 241.587,70 + 472.500,00 = € 714.087,7.
A esta indemnização há a descontar as quantias que já lhe foram pagas pelo F.G. (33.021,46: factos 20 e 21) e as que vão ser pagas no âmbito da providência cautelar apensa; e acrescem as despesas de tratamento futuras das sequelas do acidente (facto 26: a apurar em liquidação de sentença).
Indemnização do autor R.J.
Em resultado do acidente, o autor R.J. ficou com uma IPG total de 18 pontos (facto 70). Tinha 23 anos de idade à data do acidente (facto 23). Cabe-lhe, assim, a indemnização de 867,22 × 18 = € 15.609,96 (tabela III do RDL 8/2004).
Há correção a fazer segundo a tabela IV: € 15.046,33.
Total de danos pessoais, segundo a lei espanhola: € 30.656,30.
No que se refere a danos patrimoniais, o autor recebia mensalmente 547,00 + 53,80 = € 600,80 (facto 73). Com o acidente, ficou de baixa clínica, mas as sequelas deste são compatíveis com a atividade profissional do autor, apenas lhe exigindo um esforço suplementar (facto 75).
Esse esforço suplementar não é um dano patrimonial, mas sim um dano pessoal, segundo a lei espanhola, incluído na tabela III referida: indemnizaciones básicas por lesiones permanentes (incluídos daños morales)
Foi ressarcido pela segurança social e pela ré dos vencimentos que deixou de auferir em resultado do acidente (facto 22), mas não das parcelas relativas ao abono para falhas, subsídio de turno, gratificações eventuais e subsídio de alimentação (factos 74 e 76), que poderia ter auferido desde 2008.07.17, pois implicavam um serviço efectivo que não teve (24,24 + 86,39 + 100 + 106,28 = € 316,91).
Simplesmente, conforme a 1ª instância observou, o autor esteve sem trabalhar desde 2008.07.7, por ter ficado de baixa clínica decorrente da patologia psiquiátrica que passou a afetá-lo, mas isso deve-se apenas à vontade do autor, já que efetivamente podia trabalhar, embora com um “esforço suplementar” (facto 75). Ora, este “esforço suplementar” é, repete-se, não um dano patrimonial, mas sim um dano pessoal segundo a lei espanhola, considerado na indemnização segundo as tabelas III e IV já referidas.
Não se apuraram outros danos a indemnizar.
Total: 15.609,96 + 15.046,33 = € 30.656,30
Indemnização do I.S.
O I.S. Centro Distrital de S… , pagou € 4.098,08 de subsídio de doença ao autor, em resultado do acidente (factos 80 e 81). De que terá de ser indemnizado. Nesta parte, confirmamos a sentença recorrida.
Decisão
Assim, e pelo exposto, alteramos a decisão constante da sentença recorrida, que no mais confirmamos, condenando o Réu F.G. nos seguintes termos:
1. A pagar à autora G.C. a indemnização de € 714.087,70; a que devem ser descontadas as quantias de € 33.021,46 e do montante que vier a ser liquidado, correspondente às quantias pagas pelo réu à autora , a título de reparação provisória do dano no procedimento cautelar já referido; e a que acrescem as despesas de tratamento futuras das sequelas do acidente (a apurar em liquidação de sentença); tudo com juros de mora legais desde a citação e até integral pagamento.
2. A pagar ao autor R.J. a indemnização de € 30.656,30, com juros de mora legais, desde a citação e até integral pagamento.
3. A pagar ao I.S. , a quantia de € 4.098,08, com juros de mora legais, desde a citação e até integral pagamento.
Ficam nos autos os documentos apresentados com as alegações e contra-alegações.
Custas em ambas as instâncias, pelo réu e autores, proporcionais aos respetivos decaimentos.
Processado e revisto.
Lisboa, 2013.05.07
João Ramos de Sousa
Manuel Ribeiro Marques
José Augusto Ramos (vencido, com decl. voto)
Decisão Texto Integral: