Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
518/22.4T8LSB.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: JUSTO IMPEDIMENTO
ADVOGADO
DEVER DE DILIGÊNCIA
CITIUS
COMPROVATIVO DE ENTREGA DE PEÇA PROCESSUAL
RÉPLICA
DESENTRANHAMENTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
TRANSMISSÃO
PRIVAÇÃO DE USO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE O RECURSO DO A./PROCEDENTE O RECURSO DAS RR.
Sumário: Sumário[1] (elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil[2]):
1. O justo impedimento engloba as situações em que a omissão ou o retardamento da parte ocorre devido a motivos justificados ou desculpáveis que não envolvam culpa ou negligência séria;
2. (...) sendo a culpa apreciada nos termos do disposto no art. 487.º, n.º -, do CC, preceito segundo o qual a culpa é o não cumprimento de um dever jurídico: o dever de diligência, de conteúdo indeterminado, mas determinável em cada situação concreta, sendo a diligência juridicamente devida a que teria um bom pai de família colocado nas circunstâncias concretas em que se encontrava o agente.
3. Não configura uma situação de justo impedimento a simples e vaga alegação de que um articulado do autor não foi enviado dentro do prazo perentório legalmente estipulado para o efeito, devido a uma intervenção no sistema informático do escritório do seu advogado, na sequência da qual foram verificadas diversas anomalias técnicas.
4. O art. 57.º do NRAU não consagra norma equivalente à do artigo 85.º, n.º 1, al. f) do RAU (aditado pela lei 6/2001 de 11 de Maio) ou do artigo 1106.º, n.º 1, al. b), do Código Civil, não havendo lugar à transmissão do arrendamento a filho que não estando nas condições das alíneas d) e e) do artigo 57.º viva em situação de economia comum com o arrendatário há um ou mais anos.
5. Estando o autor, na réplica, sujeito ao ónus de impugnação quanto aos factos alegados pelo réu em sede de reconvenção, julgado extemporâneo e mandado desentranhar aquele articulado, é como se o mesmo nunca tivesse sido apresentado, o que provoca, em regra, o mesmo efeito de admissão que a não impugnação em contestação apresentada, com as mesmas exceções que para esta vigoram;
6. (...) ou seja, devem os novos factos alegados pelo réu na reconvenção ter-se como admitidos por acordo, a não ser que:
- estejam em oposição com o conjunto dos factos alegados pelo autor na petição inicial;
- não seja admissível confissão sobre eles;
- ou seja exigido documento escrito para prova do mesmos.
7. Invocando a ré, na reconvenção, a caducidade do contrato de arrendamento que, na qualidade de senhoria, a ligava ao autor, na qualidade de inquilino, não sendo este, portanto, demandado em sede reconvencional, como arrendatário, nem como tal devendo ser considerado, a obrigação que sobre si impende, de entrega da coisa locada, não emerge propriamente do contrato de arrendamento, mas sim de uma situação de detenção ilícita da coisa;
8. (...) respondendo, por conseguinte, perante a ré, pelos prejuízos a esta causados em virtude dessa detenção sem título, em sede do regime geral da responsabilidade civil extracontratual, nos termos dos arts. 483.º e segs. do CC.
9. A não entrega atempada da coisa arrendada uma vez caducado o contrato de arrendamento, configura um comportamento que, à luz das regras da experiência comum, não pode deixar de ser imputável ao agente a título de culpa.
10. A privação do uso de uma coisa, inibindo, no caso, a usufrutuária, de exercer sobre ela os inerentes poderes, constitui uma perda patrimonial que deve ser considerada, tudo se resumindo à deteção do método mais adequado para a quantificação da indemnização compensatória.
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[1] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2] Diploma a que pertencem todos os preceitos legais citados sem indicação da respetiva fonte.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO:
A intentou ação declarativa contra B, N e M, alegando, em síntese, que as rés são donas do prédio sito na Rua ___, 4.º direito, em Lisboa.
O autor é arrendatário do 4.º direito, pelo qual paga a renda a mensal de € 200,21.
Sucede que as rés, sem qualquer motivo para o efeito e sem o conhecimento do autor, cortaram o fornecimento de água ao 4.º direito, o que o impede de fruir normal e plenamente o locado, situação que lhe causa danos de natureza não patrimonial, pelos quais pretende ser ressarcido.
Conclui assim:
«Nestes termos e nos melhores de direito deverá a presente ação ser julgada procedente por provada e, em consequência, serem as ora RR condenadas:
a) a tomar todas as medidas necessárias para a imediata reposição do fornecimento e água no locado;
b) a pagar ao ora A. o montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais»[3].
*
A 1.ª e a 2.ª rés contestaram, alegando, também em síntese, que são, respetivamente, a proprietária e a usufrutuária do 4.º direito.
O autor não é arrendatário do 4.º direito, o qual, por contrato celebrado no dia 11 de março de 1971, foi dado de arrendamento ao seu pai, AM, falecido no dia 29 de julho de 2019, facto que o autor apenas comunicou à 1.ª ré no dia 24 de novembro de 2019.
O arrendamento caducou por morte do primitivo arrendatário, não assistindo ao autor o direito à transmissão da posição daquele, tanto mais que nem sequer residia no 4.º direito, onde apenas esporadicamente se deslocava.
O autor recusa-se a entregar o 4.º direito às rés contestantes, que lhes vem causando prejuízo, pois estão privadas de o arrendar a terceiros, o que fariam mediante o pagamento de uma renda nunca inferior a € 700,00 mensais, prejuízo esse pelo qual pretendem ser ressarcidas.
As rés contestantes concluem pugnando para que a ação seja julgada improcedente, por não provada, com a sua consequente absolvição dos pedidos.
Além disso, deduzem reconvenção contra o autor, concluindo assim:
«Pelo exposto:
1) Deve a ação ser julgada totalmente improcedente, absolvendo-se as Rés dos pedidos formulados pelo Autor;
2) E, julgando-se a reconvenção provada e procedente, deve o Autor/Reconvindo ser condenado:
a) A reconhecer que a Ré N é proprietária e a Ré B usufrutuária, do 4.º andar direito do prédio identificado no artigo 1.º da presente contestação/reconvenção;
b) A reconhecer que não tem qualquer título que justifique ou legitime a ocupação e a não entrega do referido andar;
c) A restituir de imediato o identificado 4.º andar direito às Rés, livre de pessoas e bens;
d) A pagar à Ré B, usufrutuária do referido imóvel, uma indemnização mensal nunca inferior a € 700.00, desde a verificada caducidade do arrendamento, por morte do falecido arrendatário, seu pai, até efetiva entrega, que até ao presente, ascende ao montante de 23.100,00 €».
*
O autor foi notificado da contestação na pessoa do seu ilustre mandatário, através de transmissão eletrónica de dados, no dia 22 de junho de 2022, tendo apresentado articulado de réplica no dia 19 de setembro de 2022, concluindo assim:
«Nestes termos e nos melhores de direito, deverão os pedidos reconvencionais constantes das alíneas b), c) e d) serem julgados improcedentes por não provados e, consequentemente, ser o A. absolvido dos mesmos».
*
No mesmo dia, invocando o disposto no art. 140.º, o ilustre mandatário do autor apresentou um requerimento (Ref.ª 43302729) com o seguinte teor:
«Tendo o mandatário do ora A. hoje acedido ao sistema Signius verificou que a Réplica que deverá ter sido por si enviada no pretérito dia 5 de Setembro ainda patenteava a informação de que o seu envio estava pendente.
Ora o signatário, foi absolutamente surpreendido com tal situação, porquanto estava seguro de que a peça processual tinha sido, efetivamente, enviada na data supra indicada.
Efetivamente,
Admite o signatário que o facto da Réplica em causa não ter, eventualmente, seguido no dia 5 de Setembro, poderá ter ficado a dever-se a intervenção no sistema informático do escritório, que ocorreu no início do ano judicial, tendo sido verificadas diversas anomalias técnicas.
Assim,
Receando que a Réplica em apreço não tenha, efetivamente, chegado ao Tribunal no dia 5 de Setembro data, do que ainda não está seguro, enviou, à cautela, nesta data, 2.ª via da referida peça processual;
Vem por isso e por cautela requerer a V. Exa se e digne admitir a invocação de justo impedimento que aqui formula».
Indicou prova testemunhal do alegado nesse requerimento: «BT - advogado com escritório ____».
*
As 1.ª e 2.ª rés responderam a esse requerimento, concluindo assim: «Pelo exposto, entendem as rés que deverá ser indeferido o deduzido incidente de Justo impedimento».
*
Os autos prosseguiram termos, tendo sido proferido o despacho datado de 25 de novembro de 2022 (Ref.ª 420955921), que:
- admitiu o pedido reconvencional;
- no somatório do valor da ação (€ 5.000,01[4]) e do valor da reconvenção (€ 108 623,90), fixou à causa o valor de € 113 623,91;
- julgou verificada a incompetência relativa do Juízo Local Cível de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para a preparação e julgamento da ação, pelo que determinou a remessa do processo para o Juízo Central Cível do mesmo Tribunal, os considerados competentes para o efeito.
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Na subsequente tramitação dos autos no Juízo Central Cível de Lisboa, foi proferida a sentença datada de 22 de fevereiro de 2024 (Ref.ª 432872569), onde foi decidido o incidente do justo impedimento acima referido, nos seguintes termos:
«Pelo exposto, julga-se procedente o incidente de justo impedimento invocado e, em consequência, admite-se a Réplica apresentada pelo A.».
Quanto ao mérito da ação e da reconvenção, aquela sentença contém o seguinte dispositivo:
«Pelos fundamentos expostos:
- Julgo a acção improcedente e, em consequência, absolvo as RR. dos pedidos deduzidos pelo A.;
- Julgo parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência, condeno o A.:
a) A reconhecer que a R. N é proprietária e a R. B usufrutuária, do 4.º andar direito do prédio identificado no artigo 1.º da contestação/reconvenção;
b) A restituir de imediato o identificado 4.º andar direito às RR., livre de pessoas e bens.
- Julgo improcedente o demais peticionado na reconvenção, absolvendo o A.»
*
O autor apelou dessa sentença, concluindo assim as respetivas alegações:
«a) As comunicações referidas na sentença ora recorrida não são datadas de 11 e 12 de Julho de 2021, mas sim de 11 de Junho e 12 de Julho, ambas de 2021.
b) O ora recorrente comunicou o falecimento do seu pai através de carta enviada à R. B, datada de 24 de Novembro de 2019.
c) O recorrente viveu ininterruptamente no imóvel em causa nos autos desde março de 1971
d) À data do envio das referidas cartas as recorridas não podiam ignorar que estas se dirigiam ao ora recorrente, na qualidade de arrendatário.
e) As comunicações dirigidas pelas recorridas ao recorrente, juntas aos autos, datam de 2 de janeiro e 31 de Março de 2020, por um lado e de 11 de Junho e 12 de Julho de 2021 por outro.
f) O teor das comunicações datadas de 2 de janeiro e 31 de Março de 2020 é totalmente contraditório ao das comunicações datadas ade 11 de Junho e 12 de Julho de 2021.
g) As duas primeiras vão no sentido de se oporem ao reconhecimento da transmissibilidade do arrendamento e as segundas enquadradas no âmbito de uma relação senhorio arrendatário - solicitando o acesso ao imóvel ao recorrente para uma inspeção de gás e um levantamento fotográfico;
h) Apenas se poderia aceitar, conforme expressa a sentença recorrida, que as duas últimas comunicações em apreço, tivessem de ser lidas “na sequência das demais cartas remetidas pelas RR. e onde estas solicitam a entrega do imóvel”, caso as recorridas desconhecessem, à data do seu envio, que o anterior arrendatário tinha falecido – o qua não aconteceu.
i) Toda a restante factualidade provada nos presentes autos sustenta que as recorridas passaram, efetivamente, a reconhecer o recorrente como inquilino;
j) Desde logo, o recorrente ao permanecer no imóvel mais de dois anos após a oposição inicial à transmissibilidade do arrendamento sem qualquer posterior oposição das recorridas;
k) As recorridas só invocaram a falta de título que legitimasse a permanência do recorrente como arrendatário, no âmbito dos presentes autos, em sede de reconvenção.
l) As recorridas sempre aceitaram os pagamentos efetuados pelo recorrente a título de renda, primeiramente, por depósitos bancários na conta bancária da R. B e, desde Agosto de 2023 até á presente data por depósitos liberatórios junto da Caixa Geral de Depósitos;
m) Das declarações da recorrida N resulta que esta sempre reconheceu o recorrente, após a morte do seu pai, como arrendatário do imóvel em causa.
n) Foi com essa convicção que as recorridas remeteram as comunicações de Junho e Julho de 2021 ao recorrente, solicitando o acesso ao imóvel para as intervenções ali referidas e não exigindo a sua saída.
o) Contrariamente ao disposto na sentença ora recorrida, as comunicações de Junho e Julho de 2021 não terão de ser lidas em sequência das anteriormente enviadas pelas recorridas mas sim, necessariamente, enquadradas pelos factos suprarreferidos, os quais resultam da prova produzida nos presentes autos.
p) Conclui-se, assim, ter ocorrido erro de julgamento, porquanto a sentença recorrida ignora a prova efetivamente produzida nos autos, nomeadamente documental e em sede de declarações de parte.
q) Face à prova efetivamente produzida, não poderá deixar de se considerar como provado que as RR. reconheceram o recorrente como arrendatário do imóvel em causa nos presentes autos.
r) Devendo ser julgado parcialmente improcedente o pedido reconvencional, no que concerne à restituição do imóvel em apreço nos presentes autos pelo recorrente».
Conforme refere Rui Pinto, «depois de formular conclusões, o recorrente termina deduzindo um pedido de revogação, total ou parcial, de uma decisão judicial»[5].
No presente recurso, após a formulação das conclusões, as apelantes deduzem o seguinte pedido revogatório:
«Nestes termos e nos demais de direito deverão V. Exas. julgar procedente o presente recurso e, em consequência, revogar parcialmente a douta sentença do Tribunal a quo, substituindo-a por outra que:
a) Dê como provado que as RR reconheceram o A. como arrendatário do imóvel em apreço nos autos, nomeadamente, por via das comunicações que lhe dirigiram em 11 de Junho e 12 de Julho de 2021;
E, em consequência:
b) Julgue parcialmente improcedente o pedido reconvencional, absolvendo o recorrente do mesmo quanto à restituição do 4.º andar direito às RR.»
As 1.ª e 2.ª rés contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo autor e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida quanto ao mérito da ação.
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As 1.ª e 2.ª rés também recorreram:
a) do segmento decisório contido na sentença que julgou procedente o incidente de justo impedimento e, em consequência, admitiu a réplica apresentada pelo autor;
b) da parte da sentença que julgou parcialmente improcedente a reconvenção, absolvendo o autor do pedido reconvencional formulado em d) da parte dispositiva da contestação/reconvenção.
Concluem assim as respetivas alegações:
A) Quanto ao justo impedimento:
«2) Não se verificam os requisitos legais para a procedência do justo impedimento;
8) [A conduta do ilustre mandatário do autor/reconvindo] é claramente negligente e imprudente, o que de forma inequívoca o afasta das condições da norma - art.º 140º/1 do CPC -, pois que se tivesse sido minimamente diligente obviamente teria constatado que a réplica não tinha sido submetida e recebida com sucesso».
B) Quanto ao mérito da reconvenção:
«31) [o ponto vii dos factos não provados deve ser julgado provado] deverá ter-se como admitido por acordo por falta de impugnação do alegado na contestação/reconvenção»;
36 [Caso assim se não entenda] deve julgar-se provado que “As RR. têm uma perda de rendimento correspondente ao valor da renda, nunca inferior a € 700, pelo qual seria possível arrendar o andar.”;
37) A douta sentença recorrida concluiu, e bem, pela inexistência de título por parte do A. para ocupar o andar das Rés/Reconvintes, condenando o A/reconvindo a “A restituir de imediato o identificado 4.º andar direito às RR., livre de pessoas e bens.”
38) Mas contraditoriamente e, nessa parte, de forma incorreta, concluiu pela absolvição do A/Reconvindo do pedido de indemnização. Decisão que não pode deixar de ser revogada.
39) Desde logo, não resulta demonstrado, através da necessária prova documental, que o Autor/Reconvindo desde a morte do arrendatário, seu pai, até ao presente tenha pago à Ré usufrutuária a renda mensal de 200,21 €.
42) Mas ainda que se não tivesse apurado o valor locativo e, a consequente perda de rendimentos, daí não resultaria a improcedência do pedido de indemnização pela privação do uso, do referido imóvel.
43) Não existe qualquer dúvida, que pelo menos desse a morte do seu pai o Autor/Reconvindo não permite o acesso das Rés/Reconvintes ao andar em causa, do qual possuiu as respetivas chaves, impedindo estas de realizar as obras de que o mesmo necessita, de o usar e/ou de o arrendar.
44) Tal privação de uso, não poderia deixar de ser indemnizada, mesmo que não resultasse expressamente assente que a autora poderia ter arrendado o imóvel a outras pessoas interessadas e qual o montante das rendas que as mesmas estariam dispostas a pagar.
45) Mas no presente caso resulta assente, que o andar, não fosse a ilícita ocupação por parte do Autor/Reconvindo, poderia ter sido arrendado a outras pessoas interessadas por uma renda mensal não inferior a € 700,00 mensais.
46) Resulta provado um valor locativo superior, mas caso assim não se entenda, o que se admite, sem prescindir, por mera cautela de patrocínio, sempre seria de atender na fixação da indemnização ao valor que o Autor/Reconvindo alega estar a depositar, devido não a título de rendas, mas que as Rés deverão ser autorizadas a levar por conta do valor a fixar a título de indemnização.
47) Mesmo uma situação de ausência de prova quanto ao valor locativo, situação que não se verifica no presente caso, não afastaria o direito à compensação pelo dano, devendo, como vem defendendo a jurisprudência, em tais casos, o tribunal recorrer às regras da equidade.
48) Impõe-se, pois, a revogação da douta sentença recorrida na parte em que não atendeu ao ressarcimento indemnizatório peticionado pelas Rés/Reconvintes e absolveu o Autor/Reconvindo da pedida indemnização».
Rematam assim:
«Termos em que, julgando-se procedente o presente recurso, deverá»:
i) quanto ao incidente de justo impedimento:
«a) Ser revogada a douta decisão recorrida na parte em que julgou procedente o invocado justo impedimento, julgando-se o mesmo improcedente e ordenando-se, consequentemente, o desentranhamento da Réplica, por ter sido apresentada fora de prazo»;
ii) quanto ao mérito da reconvenção:
«b) Ser parcialmente revogada a decisão sobre a matéria de facto quanto ao ponto vii) dos factos considerados não provados, a substituir por outra que julgue provado que “As RR. têm uma perda de rendimento correspondente ao valor da renda, nunca inferior a € 700, pelo qual seria possível arrendar o andar;
c) Revogar-se a sentença recorrida na parte em que absolveu o Autor/Reconvindo do pedido de indemnização, a substituir por outra que julgue também nessa parte a Reconvenção procedente, condenando-se o Autor/Reconvindo a pagar à Ré B, usufrutuária do referido imóvel, uma indemnização mensal nunca inferior a € 700.00, desde a verificada caducidade do arrendamento, por morte do falecido arrendatário, seu pai, até efetiva desocupação e entrega do andar, livre de pessoas e bens. Autorizando-se o levantamento dos depósitos efetuados pelo Autor/Reconvinte, a abater e por conta da referida indemnização».
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II – ÂMBITO DOS RECURSOS:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º -, ex vi do art. 663.º, n.º -).
À luz destes considerandos, e por uma ordem sequencial lógica, neste recurso importa decidir:
I) Quanto ao incidente de justo impedimento:
Se a apresentação da réplica deve ser considerada extemporânea, devendo, por isso, ser mandada desentranhar, por não se verificar a situação de justo impedimento invocada pelo autor.
II) Quanto ao recurso interposto pelo autor:
i) se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto;
b) se há lugar à revogação da sentença recorrida na parte em que condenou o autor a restituir o 4.º direito às rés, livre e devoluto de pessoas e bens, e, consequentemente, à sua substituição por outra que considere ter-se-lhe transmitido o direito ao arrendamento sobre o imóvel.
III) Quanto ao recurso interposto pelas 1.ª e 2.ª rés:
a) se há lugar à revogação da sentença recorrida na parte em que absolveu o autor do pedido indemnizatório e, consequentemente, à sua substituição por outra a condená-lo a pagar às rés uma indemnização por privação do uso do 4.º direito.
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Quanto ao incidente do justo impedimento:
3.1.1 - Fundamentação de facto:
3.1.1.1 - A 1.ª instância considerou provado que:
«1) No dia 19.09.2022, o Il. Mandatário do A. acedeu ao sistema Signius tendo verificado que a Réplica que deveria ter sido por si enviada no dia 05.09.2022 ainda patenteava a informação de que o seu envio estava pendente.
2) O Il. Mandatário do A. foi surpreendido com o descrito em 1), porquanto estava seguro de que a peça processual tinha sido, efetivamente, enviada no dia 05.09.2022.
3) A Réplica não foi enviada no dia 05.09.2022, devido a intervenção no sistema informático do escritório, que ocorreu no início do ano judicial, tendo sido verificadas diversas anomalias técnicas.
4) O Il. Mandatário do A. receando que a Réplica não tenha chegado ao Tribunal no dia 05.09.2022, enviou a mesma no dia 19.09.2022».
3.1.1.2 – Motivação da decisão de facto:
O tribunal a quo motivou assim a decisão da matéria de facto quanto ao incidente de justo impedimento:
«O Tribunal considerou provados os factos acima expostos com base no depoimento de BT, advogado com escritório no mesmo domicílio do Il. Mandatário do A. e reproduziu as conversas que tiveram sobre a questão do envio da Réplica.
Segundo a testemunha, o colega e Mandatário do ora A. detectou que o envio da Réplica não tinha sido concretizada em 05.09 em data posterior.
Por ser colega do escritório, teve conhecimento da intervenção no sistema informático do escritório e de alguns problemas que surgiram após a mesma ter ocorrido.
Cremos que a testemunha depôs de forma isenta, pelo que mereceu credibilidade, permitindo ao Tribunal concluir com a segurança necessária que os factos aconteceram na forma relatada».
3.1.1.3 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Consideram as rés que «pela forma vaga e falta de conhecimento quanto aos concretos “problemas no sistema informático do escritório”, no qual não trabalhava habitualmente, pois como referiu no seu depoimento, “normalmente está no escritório do Porto”, o depoimento da testemunha BT (ouvido na sessão da audiência de julgamento de 23/11/2023, minutos 9,53 a 10,14), não permite dar como assentes os factos considerados provados, nomeadamente o dado como provado sob o ponto 3)».
E acrescentam:
«Mas ainda que assim não se entenda, com o devido respeito, não se verificam os requisitos legais para a procedência do invocado justo impedimento».
3.1.1.4 – Decisão sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Assiste razão às recorrentes!
Na verdade, o depoimento da testemunha BT não permite, considerar provado o enunciado descrito em 3) supra.
Resultou do seu depoimento que: é advogado, integrando a mesma sociedade de advogados do ilustre mandatário do autor, apresentante da réplica, há cerca de 3 anos; exerce as suas funções, em regra, no escritório da sociedade sito no Porto.
Afirmou que na altura «também foi afetado pela situação», referindo que o «doutor falou-me dessa situação».
No verão de 2022 ocorreu uma «alteração ao nível do sistema de gestão do escritório», o que implicou «alteração ao nível do servidor, de redes, questões que a mim já me ultrapassam um pouco».
Na mesma altura ocorreram também «algumas alterações por causa do processo de certificação de qualidade» da sociedade, que então se encontravam em curso.
Deslocou-se do Porto ao Tribunal do Montijo no dia 19 de setembro de 2022, onde interveio num processo que tinha por objeto um contrato de arrendamento, após o que se dirigiu ao escritório de Lisboa, onde chegou na parte da tarde, a fim de dar entrada de uma transação no âmbito de um processo executivo em que era mandatário de uma das partes.
No processo submissão do documento contendo a transação constatou que o mesmo era rececionado pela plataforma Citius, mas a seguir não era rececionada na plataforma Signius.
Só depois, ao consultar a plataforma Signius, é que a testemunha verificou que ali se encontravam pendentes diversas peças processuais.
Foi nessa ocasião que o ilustre mandatário do autor constatou que a peça processual contendo o articulado de réplica, eventualmente submetida a 5 de setembro ainda se encontrava pendente na plataforma Signius.
Desconhece, no entanto, se a mesma situação ocorreu relativamente a outras peças processuais.
Ora, isto não permite concluir que «a Réplica não foi enviada no dia 05.09.2022, devido a intervenção no sistema informático do escritório, que ocorreu no início do ano judicial, tendo sido verificadas diversas anomalias técnicas».
Nem o podia permitir, pois, no sobredito requerimento não é alegado um único facto concreto suscetível de, uma vez demonstrado, permitir concluir pela existência de um qualquer nexo causal entre a intervenção no sistema informático do escritório do ilustre mandatário do autor, que ocorreu no início do ano judicial, quer-se dizer, no início de setembro de 2022, e a intempestiva apresentação do articulado de réplica.
Note-se que nem sequer foi apresentada qualquer declaração ou requerida a inquirição de um técnico de informática que esclarecesse em que é que consistiu a intervenção no sistema informático do escritório e qual, ou quais, as anomalias técnicas ocorridas na sequência dessa intervenção e, em concreto, qual a anomalia técnica que impediu a apresentação tempestiva da réplica.
Assim, relativamente ao incidente do justo impedimento considera-se não provado o descrito enunciado.
3.1.1.5 – Enquadramento jurídico:
Dispõe o art. 140.º, n.º 1, que «considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do ato».
Segundo Lebre de Freitas/ Isabel Alexandre, «(...) basta, para que estejamos perante o justo impedimento, que o facto obstaculizador da prática do ato não seja imputável à parte ou ao mandatário, por ter tido culpa na sua produção.
(...)
Passa assim o núcleo do conceito de justo impedimento de normal imprevisibilidade do acontecimento para a sua não imputabilidade à parte ou ao seu mandatário (...). Um evento previsível pode agora excluir a imputabilidade do atraso ou da omissão. Mas, tal como na responsabilidade civil contratual, a culpa não tem que ser provada, cabendo à parte que não praticou o ato alegar e provar a sua falta de culpa, isto é, a ocorrência de caso fortuito ou de força maior impeditivo (art. 799-1 CC): embora não esteja em causa o cumprimento de deveres, mas a observância de ónus processuais, a distribuição do ónus da prova põe-se nos mesmos termos»[6].
Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Sousa referem que «a figura do justo impedimento, que legitima a prática do ato depois de decorrido o respetivo prazo (...), encontra-se regulada e tem sido interpretada pelos tribunais de modo muito cauteloso, a fim de contrariar o seu uso abusivo que se revelaria prejudicial aos interesses da segurança e da celeridade. Com efeito, a experiência aconselha que tal mecanismo seja reservado para situações que verdadeiramente o justifiquem, desconsiderando, para além dos argumentos artificiosos, eventos imputáveis à própria parte ou aos seus representantes e que sejam reveladores de negligência ou de falta de diligência devida.
Com tal regime pretendeu-se evitar que a pretexto de qualquer evento pudesse ser perturbada a marcha processual ou, mais do que isso, pudessem ser afetados atos já praticados, tanto mais que sempre restaria uma larga margem de incerteza quanto à verificação dos factos e apreciação da sua imputabilidade, na medida em que se trata de eventos que ocorrem na esfera do sujeito envolvido, tornando difícil o seu escrutínio (cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anot, vol. I, 4.ª ed., pp. 297-232).
 Em lugar de assentar na imprevisibilidade e na impossibilidade de prática do ato, como já esteve previsto, o instituto está agora centrado na ideia de culpabilidade das partes, dos seus representantes ou mandatários, aqui se incluindo também as pessoas que desempenham funções acessórias (...)»[7].
Segundo Lopes do Rego «o que deverá relevar decisivamente para a verificação do “justo impedimento” – mais do que a cabal demonstração da ocorrência de um evento totalmente imprevisível e absolutamente impeditivo da prática atempada do acto – é a inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário no excedimento ou ultrapassagem do prazo peremptório, a qual deverá naturalmente ser valorada em consonância com o critério geral estabelecido no n.º - do art.º 487.º do C. Civil, e sem prejuízo do especial dever de diligência e organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das causas»[8].
Por sua vez, Miguel Teixeira de Sousa salienta que «o justo impedimento pode ter reconhecimento mesmo quando não tenha ocorrido nenhum facto imprevisível. Basta, neste caso, que a omissão do acto resulte de um erro desculpável da parte, para que se deva considerar relevante o referido justo impedimento e para que a parte seja admitida a praticá-lo fora do respectivo prazo»[9].
Vem sendo entendimento jurisprudencial que apenas o evento que impeça em absoluto a prática atempada do ato pode ser considerado justo impedimento, excluindo-se a simples dificuldade da realização daquele.
O que releva decisivamente para a verificação do justo impedimento é a inexistência de culpa, negligência ou imprevidência da parte, seu representante ou mandatário, na ultrapassagem do prazo perentório.
Assim, pois, o justo impedimento engloba as situações em que a omissão ou o retardamento da parte ocorra devido a motivos justificados ou desculpáveis que não envolvam culpa ou negligência séria, sendo a culpa apreciada nos termos do disposto no art. 487.º, n.º -, do CC, preceito segundo o qual a culpa é o não cumprimento de um dever jurídico: o dever de diligência, de conteúdo indeterminado, mas determinável em cada situação concreta, sendo a diligência juridicamente devida a que teria um bom pai de família colocado nas circunstâncias concretas em que se encontrava o agente[10].
No Ac. da R.C. de 30.06.2015, Proc. n.º 39/14.9T8LMG-A.C1 (Henrique Antunes), in www.dgsi.pt, afirma-se que «o conceito de justo impedimento desdobra-se, actualmente, em dois requisitos: que o evento não seja imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários; que determine a impossibilidade de praticar em tempo o acto (artº 140 nº 1 do nCPC).
Verifica-se um tal impedimento quando a pessoa que devia praticar o acto foi colocada na impossibilidade de o fazer, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto que lhe não é imputável.
Se o evento é imputável a culpa, imprevidência ou negligência da parte ou do mandatário, se a parte ou o mandatário contribuiu, por qualquer modo para que aquele se produzisse, aquele evento é-lhe imputável e, por isso, está-lhe vedado o recurso ao justo impedimento. Se, não obstante o facto, a parte e o seu representante ou mandatário, poderiam, dentro do prazo legal, ter praticado o acto, incorreram em negligência e não podem, por isso, invocar o justo impedimento.
Cabe à parte que não praticou o acto em tempo alegar e provar a sua falta de culpa, i.e., a ocorrência de caso fortuito ou de força maior impeditivo (artº 799 nº 1 do Código Civil). Embora não esteja em causa o cumprimento de deveres mas a observância de ónus processuais, a que a lei associa efeitos preclusivos, a distribuição do encargo da prova coloca-se nos mesmos termos.
(...)
O preenchimento do conceito de justo impedimento demanda tacto e circunspecção. Há que manter o justo equilíbrio entre duas tendências opostas: abrir-se o caminho a todas as incúrias e imprevidências; fechar-se a porta a todos ou a quase todos os obstáculos e impedimentos. Todas as contas feitas, o que deve exigir-se às partes e seus mandatários é que procedam com a diligência normal; não é razoável exigir-se às partes ou aos seus mandatários que entrem em linha de conta com factos e circunstâncias excepcionais.
Todavia, com excepção do impedimento que resulte de facto notório, que é de conhecimento oficioso, o justo impedimento deve ser alegado – e provado - pela parte a quem aproveita (artºs 140 nºs 1 e 3 do nCPC e 342 nº 1 do Código Civil).
Retornemos ao caso concreto!
Se bem se reparar, no requerimento apresentado no dia 19 de setembro de 2022 (Ref.ª 43302729), o ilustre mandatário do autor nem sequer revela certeza:
- acerca da data em que submeteu o articulado de réplica: - «(...) deverá ter sido por si enviada no pretérito dia 5 de Setembro
- do motivo pelo qual o articulado de réplica não foi tempestivamente apresentado: «Admite o signatário que o facto da Réplica em causa não ter, eventualmente, seguido no dia 5 de Setembro, poderá ter ficado a dever-se a intervenção no sistema informático do escritório, que ocorreu no início do ano judicial, tendo sido verificadas diversas anomalias técnicas».
A matéria de facto provada, depois de desconsiderado o enunciado descrito em 3), não permite concluir pela existência de qualquer situação de justo impedimento.
No entanto, ainda que a matéria de facto tivesse permanecido inalterada, mesmo assim teríamos de concluir pela inexistência da invocada situação de justo impedimento por via da qual se tenta agora justificar a extemporaneidade da apresentação da.
É que uma (eventual) anomalia (que, em concreto, se desconhece, de todo, em que é que poderá ter consistido) decorrente de uma intervenção no sistema informático do escritório do ilustre mandatário do autor, intervenção esta ocorrida no início de setembro de 2022, não configura, à luz dos considerandos anteriormente tecidos, uma situação de justo impedimento.
Ocorrida a intervenção no sistema informático do escritório do ilustre advogado mandatário do autor, impunha-se-lhe, previdente, cautelar e prudentemente, pelo menos nos primeiros tempos, aferir da sua funcionalidade, assegurando-se que as peças processuais submetidas davam, efetivamente, entrada nos processos a que se destinavam por via eletrónica.
Ora, não é isso que resulta, desde logo, do teor do requerimento apresentado no dia 19 de setembro de 2022, onde é invocada a situação de justo impedimento, ali se fazendo referência à verificação de «diversas anomalias técnicas», o que não pode deixar de vincar a necessidade de o ilustre advogado mandatário do autor se assegurar da receção nos processos, a que se destinavam, das peças processuais enviadas a juízo; no caso concreto, do atempado envio e receção nestes autos, do articulado de réplica.
Até porque, como se sabe, o sistema Citius emite um "comprovativo de entrega de peça processual".
Finalmente, tivesse o ilustre advogado mandatário do autor agido com a previdência, diligência, prudência, cautela que, então, se lhe impunham (reitera-se: face às  alegadas diversas anomalias técnicas detetadas no sistema informático do seu escritório, após a intervenção nele ocorrida no início de setembro de 2022), e verificada que fosse uma situação de justo impedimento do envio, por via eletrónica, do articulado de réplica, sempre lhe seria lícito socorrer-se do disposto no art. 144.º, n.º 8.
Na sequência do excurso que antecede, há que:
- revogar o segmento decisório da sentença recorrida que julgou «procedente o incidente de justo impedimento invocado e, em consequência», admitiu a réplica apresentada pelo autor, e substituí-lo por outra decisão a jugar improcedente, por não provado, tal incidente;
- determinar o desentranhamento dos autos, da réplica apresentada pelo autor no dia 19 de setembro de 2022, e a sua restituição ao seu ilustre apresentante.
E quanto aos documentos juntos pelo autor com a réplica cujo desentranhamento acaba de ser ordenado?
Quanto a esses documentos vale o disposto no art. 423.º, n.º -, do qual resulta que se não forem juntos com o articulado respetivo, «os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado».
Assim, da decisão de desentranhamento da réplica há que excluir os documentos com ela apresentados, admitindo-se, nos termos do citado preceito, a sua junção aos autos, com sujeição, no entanto, à multa nele referida.
Por conseguinte, nos termos do art. 423.º, n.º -, admite-se a junção aos autos dos documentos apresentados pelo autor com o articulado de réplica, ora mandado desentranhar, condenando-o, pela sua apresentação tardia, no pagamento de multa cujo quantitativo se fixa em 0,5 UCs - art. 27.º, n.ºs 1 e 4, do RCP.
3.1.1.6 – Decisão sobre o incidente de justo impedimento:
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
a) em julgar improcedente, por não provado, o incidente de justo impedimento suscitado pelo autor através do requerimento apresentado no dia 19 de setembro de 2022 (Ref.ª 43302729);
b) em determinar o desentranhamento dos autos do articulado de réplica apresentado pelo autor no dia 19 de setembro de 2022 (Ref.ª 43168562), restituindo-se o mesmo ao seu ilustre apresentante;
c) em admitir os documentos apresentados pelo autor com o articulado de réplica ora mandado desentranhar;
d) em condenar o autor, pela apresentação tardia de tais documentos, em multa, cujo quantitativo se fixa em 0,5 UC.
Custas do incidente do incidente do justo impedimento são a cargo do autor, aqui apelante, fixando-se o respetivo quantitativo em 2 UCs – art. 7.º, n.º 4 e do RCP e tabela II anexa.
*
3.2 – Quanto ao mérito da causa:
3.2.1 - Fundamentação de facto:
3.2.1.1 - A sentença recorrida considerou provado que:
«1. Encontra-se inscrita a aquisição da nua propriedade a favor das RR. M e N, e do usufruto a favor da R. B do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º ____, da freguesia do Beato, inscrito na matriz sob o artigo ____, sito na Rua ____ n.ºs ____ e Travessa ____ n.º -, em Lisboa.
2. O 4.º andar direito do prédio referido em 1) foi dado de arrendamento, por contrato celebrado em 11 de março de 1971, ao pai do A., AM.
3. AM faleceu em 29 julho de 2019.
4. O A., AM, comunicou o falecimento do pai através de carta enviada à R. B, datada de 24 de novembro de 2019.
5. O A. paga mensalmente a quantia de € 200,21, mediante depósitos bancários para conta titulada pela R. B, no banco S.
6. No dia 18.08.2021, o A. acordou com a EPAL o abastecimento de água ao 4.º andar direito do prédio referido em 1).
7. No dia 27.08.2021, surgiu água nas partes comuns do prédio referido em 1), nomeadamente, junto à caixa do elevador, colocando em risco os utilizadores do mesmo, o que levou a que as RR. a contatarem a arquiteta responsável pela manutenção do prédio para verificar a proveniência da água.
8. A arquiteta responsável pela manutenção do prédio, ALC, dirigiu-se ao local e verificou que tinha ocorrido uma rutura no cano que conduz a água, antes do contador do referido 4.º andar direito.
9. No local foi colocado um papel com a indicação de “em reparação”.
10. Os Bombeiro dos Regimento de Sapadores de Lisboa foram chamados ao prédio id. em 1), tendo verificado uma “rutura no tubo que faz a ligação entre a TD e o contador”, fizeram o “fecho das águas na TD”.
11. Foi solicitado ao A. a entrada no andar para verificação da ocorrência de outras infiltrações, tendo o A. recusado a entrada no mesmo.
12. Após a intervenção da PSP, chamada pela R. N, foi permitida a entrada, e apenas à referida arquiteta, no andar, continuando o A. a não permitir a entrada da R.
13. Verificou a referida arquiteta que havia também infiltrações nos tetos e paredes, e fissuras nas paredes, suscetíveis de provocar curto circuitos, devido a infiltrações na instalação elétrica, que colocavam, e colocam em risco todos os moradores do prédio.
14. Apesar de várias vezes instado, o A. tem-se recusado a permitir a entrada no mesmo para as necessárias reparações.
15. O A. interpelou as RR., por carta datada de 08.09.2021, para procederem à reposição do fornecimento e água.
16. O corte no fornecimento de água causa transtorno ao A. que está impedido de tomar banho e de cozinhar.
17. O A. desloca-se diariamente a casa das suas tias, sita em Alvalade, a fim de ali poder fazer a sua higiene, refeições e lavagem de roupa.
18. O A. desloca-se, pelo menos três vezes por semana a uma associação recreativa perto de sua casa, onde lhe permitem encher alguns garrafões de água necessários para poder beber e utilizar na casa de banho.
19. A reparação do cano e o fornecimento de água ocorreram após o acordo alcançado no procedimento cautelar apenso.
20. Com data de 02.01.2020, 31.03.2020 e 04.08.2021, as RR. remeteram ao A. cartas comunicando-lhe a caducidade do arrendamento e solicitando a entrega do andar.
21. O A. viveu ininterruptamente no 4.º andar direito com o seu pai desde março de 1971».
3.2.1.2 – (...) e não provado que:
i) (...) no dia 18 de agosto de 2021, sem que houvesse qualquer motivo aparente para o fazerem e sem que tivesse sido dado qualquer conhecimento prévio ao ora A., foi encerrado o fornecimento de água para 4.º direito do prédio id. em 1), na sequência de comunicação das RR. à EPAL.
ii) (...) não tendo logrado obter junto das RR. a reposição do fornecimento de água nem qualquer explicação para o sucedido, o ora A. celebrou o contrato de abastecimento referido em 6).
iii) (...) a EPAL foi chamada, tendo-se deslocado ao prédio referido em 1) um técnico que verificou a ocorrência da rutura do referido cano, referindo que se tratava de problema que não cabia à referida entidade resolver.
iv) (...) as RR. reconheceram o A. como arrendatário, nomeadamente, por via das comunicações que lhe dirigiram em 11 e 12 de julho de 2021.
v) (...) o A. tem 67 anos de idade e uma saúde debilitada, sofrendo de problemas de circulação sanguínea.
vi) (...) o A. não residia com o pai no local arrendado por este, onde se deslocava esporadicamente.
vii) (...) as RR. têm uma perda de rendimento correspondente ao valor da renda, nunca inferior a € 700, pelo qual seria possível arrendar o andar».
3.2.2 – Fundamentação de direito:
3.2.2.1 – Duas notas laterais:
3.2.2.1.1 – Uma, a propósito do primeiro pedido formulado pelo autor:
O autor pede, em primeiro lugar, que as rés sejam condenadas «a tomar todas as medidas necessárias para a imediata reposição do fornecimento e água no locado».
Nos termos do art. 186.º, n.º 2, al. a), o pedido formulado na petição inicial dever ser, além de existente, inteligível.
Aquele primeiro pedido formulado pelo autor não pode deixar de ser considerado ininteligível.
Como refere Abrantes Geraldes[11], não basta concluir pela necessidade de formulação de um pedido, impondo a lei processual também que o pedido seja formulado de modo claro e inteligível e que seja preciso e determinado.
Compreende-se perfeitamente esta exigência legal, na medida em que se torna indispensável para assegurar à contraparte o exercício do direito de defesa e colocar o autor a coberto de decisões judiciais que, porventura, tenham um alcance ou sentido diferentes dos pretendidos.
Sendo um elemento fundamental para definir o objeto do processo, deve apresentar características que o tornem inteligível, idóneo e determinado.
A precisão e a determinabilidade devem ser características de qualquer pedido formulado numa ação.
A indeterminabilidade ou a ambiguidade do objeto do processo constituem uma falha grave (equivalente à falta ou ininteligibilidade do pedido) pois o autor devem expressar a sua vontade de forma que possa ser facilmente apreendida por terceiros e de modo a permitir a definição dos contornos do direito no caso concreto quando tiver de ser proferida a sentença.
Além disso, se o pedido constitui um elemento objetivo da instância com repercussão interna (v. g. como elemento integrador da instância e com reflexos a nível da decisão final) e com eficácia externa (relacionada com o caso julgado), não podem subsistir dúvidas ou incertezas quanto àquilo que é pretendido pelo autor e quanto ao objeto da atividade jurisdicional.
Segundo o mesmo Autor[12], «será inepta uma petição que contenha um pedido vago e abstrato».
Faça-se o seguinte exercício: suponha-se, por absurdo, que o tribunal julgava procedente este pedido do autor e condenava a as rés «a tomar todas as medidas necessárias para a imediata reposição do fornecimento de água no locado».
Qual seria o alcance do caso julgado de uma decisão deste tipo? Não se sabe.
Qual seria a exequibilidade dessa decisão? Nenhuma.
É inepta uma petição inicial que contenha um pedido como aquele a que nos reportamos, vago e abstrato, logo, ininteligível.
Não respeita as regras da precisão e da determinação, antes se afigurando vago e ambíguo, se se quiser até, genérico fora dos casos previstos no art. 556.º, o pedido formulado pelos autores sob a al. a) da parte conclusiva da petição inicial, o que deveria ter acarretado a declaração de ineptidão, nesta parte, da petição inicial, com a consequente absolvição das rés da instância quanto a esse concreto pedido.
A este propósito vejam-se:
- Ac. da R.C. de 30.01.2001, Proc. nº 2183/00, in www.dgsi.pt: se o autor formula pedido genérico fora dos casos previstos no art. 471º[13] ou se, a coberto da invocação da natureza genérica do pedido, não cumpre a exigida factualização dele, a consequência é a absolvição do réu da instância quanto a esse concreto pedido;
- Ac. da R.E. de 13.12.1984, C.J., 1994, Tomo V, pág. 314: A formulação do pedido, exigida pela al. d) do nº 1 do artigo 467,º do CPC[14] exige que ele seja dotado de exequibilidade prática, da possibilidade de vir a ser executado – «manu militari» -, se necessário – com um mínimo de certeza.
Por conseguinte, impunha-se, no momento processual próprio, a absolvição das rés da instância quanto a tal pedido, por ineptidão parcial da petição inicial com fundamento na ininteligibilidade do mesmo, em vez de se permitir a sua chegada à fase da sentença para apreciação do respetivo mérito.
3.2.2.1.2 – Outra, a propósito da “condenação” do autor «a reconhecer que a R. N é proprietária e a R. B usufrutuária, do 4.º andar direito do prédio identificado no artigo 1.º da contestação/reconvenção». 
Na reconvenção que apresentaram, as 1.ª e 2.ª rés pedem, além do mais, que o autor/reconvindo seja condenado «a reconhecer que a Ré N é proprietária e a Ré B usufrutuária, do 4.º andar direito do prédio identificado no artigo 1.º da presente contestação/reconvenção».
A sentença recorrida, na procedência parcial da reconvenção, condenou o autor «a reconhecer que a R. N é proprietária e a R. B usufrutuária, do 4.º andar direito do prédio identificado no artigo 1.º da contestação/reconvenção».
Acontece que não é possível pedir, nem obter, a condenação de outrem a reconhecer a sua propriedade ou a sua qualidade de usufrutuário.
No Ac. do S.T.J. de 25/03/2009, C.J., XVII, 1.º, 2009, 159, afirma-se que normalmente pede-se, de forma esdrúxula a condenação do réu a reconhecer o direito de propriedade do autor, como se fosse possível pedir a condenação de alguém a reconhecer a sua propriedade.
Conforme certeiramente refere Oliveira Ascensão, «há que afastar uma ambiguidade que se oculta em certas referências ao pretenso pedido de reconhecimento da propriedade. Diz-se que o reivindicante pode exigir do réu o reconheci­mento. Observemos desde já que isto não tem em Direito nenhum sentido. O réu não é condenado a reconhecer, não tem de prestar facto ou declaração com este conteúdo. A única declaração que pode estar em causa é a do próprio tribunal»[15].
 Assim, pois, o tribunal não deve condenar alguém a reconhecer o direito de propriedade ou de usufruto de outrem sobre uma coisa, mas, antes, apreciar e declarar (se disso for o caso) a existência desses direito na esfera jurídica do autor (no caso, das reconvintes); ou seja, deve o tribunal “limitar-se” a reconhecer (ou não) a existência do direito.
3.2.2.2 – O recurso interposto pelo autor:
3.2.2.2.1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
O autor considera que o tribunal a quo errou ao julgar não provado o enunciado descrito em 3.2.1.2.iv): «(...) as RR. reconheceram o A. como arrendatário, nomeadamente, por via das comunicações que lhe dirigiram em 11 e 12 de julho de 2021».
A sentença recorrida motivou assim a decisão sobre tal enunciado: «O constante de iv), ou seja, o alegado reconhecimento do A. como arrendatário pelas RR., não foi demonstrado nos autos.
Por um lado, o histórico de comunicação trocadas entre as partes permite concluir que desde cedo as RR. invocaram a caducidade do arrendamento.
A presente acção é intentada pelo A. com a alegação de que as RR. o impedem de usufruir da habitação, por terem cortado o fornecimento de água.
As comunicações de 11 e 12 de julho de 2021, juntas a fls. 51 e 52, têm de ser lidas na sequência das demais cartas remetidas pelas RR. e onde estas solicitam e entrega do andar arrendado ao pai do A., de forma clara e inequívoca».
O apelante entende que o transcrito enunciado dever ser considerado provado à luz das declarações de parte prestadas pela 1.ª ré na audiência final e face ao teor dos documentos juntos com o articulado de réplica sob os n.ºs 8 e 9.
A fonte desse enunciado é o art. 12.º do articulado de réplica:
«As próprias 1.ª e 2.ª RR. reconheceram a legitimidade do A. na ocupação do imóvel na qualidade de arrendatário do mesmo, o que resulta inequivocamente das comunicações que lhe dirigiram em 11 e 12 de Julho de 2021, (Doc. 8 e 9)».
O articulado de réplica foi, conforme acima ficou decidido no âmbito do incidente de justo impedimento, considerado extemporâneo e, consequentemente, ordenado o seu desentranhamento dos autos e a sua restituição ao seu ilustre apresentante.
Por conseguinte, para todos os efeitos, é como se tal articulado nunca tivesse sido apresentado, como se nunca tivesse existido, pelo que, nada do que nele foi alegado pelo autor pode, obvia e logicamente, ser aproveitado ou considerado.
Pelo exposto, considera-se não escrito o enunciado vertido em iv) do elenco dos factos considerados não provados, o qual, diga-se, ainda que assim não fosse, não poderia deixar ser considerado como configurando um juízo de cariz conclusivo, insuscetível de integrara a fundamentação de facto da sentença, quer elenco dos factos provados, quer no elenco dos não provados.
3.2.2.2.2 – Enquadramento jurídico:
O recurso interposto pelo autor tem por objeto apenas e só a parte da sentença que, no julgamento parcial da reconvenção, o condenou «a restituir de imediato o identificado 4.º andar direito às RR., livre de pessoas e bens», com o seguinte fundamento: por morte do primitivo arrendatário, o seu pai, AM, transmitiu-se para si o direito ao arrendamento do referido 4.º direito.
O 4.º direito foi dado de arrendamento ao pai do autor, AM, mediante contrato celebrado no dia 11 de março de 1971.
O referido primitivo arrendatário faleceu no dia 29 de julho de 2019.
O autor enviou à 1.ª ré a seguinte missiva:

Com data de 2 de janeiro de 2020, a 1.ª ré enviou ao autor a seguinte missiva:



Com data de 31 de março de 2020, a 1.ª ré, através do seu ilustre advogado, enviou ao autor a seguinte missiva:


Com data de 11 de junho de 2021, a 1.ª ré enviou ao autor a seguinte missiva:


Com data de 12 de julho de 2021, a 1.ª ré enviou ao autor a seguinte missiva:

Afirma-se na sentença recorrida:
«O A. invoca que, nos termos da al. b), do artigo 1031.º do Código Civil, é obrigação do senhorio assegurar ao inquilino o gozo do locado para os fins a que se destina.
Resultando de acordo com o n.º 1, do artigo 1074.º do mesmo diploma legal que “Cabe ao senhorio executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário.”.
Considerando a defesa apresentada pelas RR., urge apurar se o A. tem título para ocupar a fracção em causa nos autos. Em posições antagónicas, o A. defende que o arrendamento se transmitiu por morte do primitivo arrendatário, seu pai, e as RR. defendem que o arrendamento cessou.
Dispõe o artigo 1079.º, do Código Civil, que “O arrendamento urbano cessa por acordo das partes, resolução, caducidade, denúncia ou outras causas previstas na lei.”.
Por sua vez, reza o artigo 1051.º, alínea d), do Código Civil, que o contrato de locação caduca “Por morte do locatário ou, tratando-se de pessoa colectiva, pela extinção desta, salvo convenção escrita em contrário”.
Antes de avançar, importa aferir qual a Lei aplicável ao caso dos autos, uma vez que o contrato de arrendamento celebrado com o pai do A. data de 1971.
Atenta a data da celebração, temos presente um contrato de arrendamento anterior ao Regime de Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, regime que entrou em vigor em 15 de Novembro de 1990.
O RAU veio dispor no respectivo artigo 85.º, n.ºs 1, alínea b) e 3, do respectivo anexo, que “1 -O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver (...) descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano”, e que “A transmissão a favor dos parentes ou afins também se verifica por morte do cônjuge sobrevivo quando, nos termos deste artigo, lhe tenha sido transmitido o direito ao arrendamento “.
Posteriormente, foi aprovado o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, diploma que revogou o RAU (pelo respectivo artigo 60.º, n.ºs 1 e 2) e que, no seu artigo 57.º (sob a epígrafe de “transmissão por morte”), veio regular a Transmissão do arrendamento para habitação e por morte do primitivo arrendatário, afastando a sua caducidade no caso de sobrevivência de determinados sujeitos.
Tendo o NRAU, no seu artigo 59.º (sob a epígrafe de “aplicação no tempo“), estabelecido que o mesmo “aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias“, recorda-se que no âmbito destas últimas e tendo por objecto os Contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU (como é o caso do contrato dos autos) consta do NRAU o seguinte:
Artigo 27.º
“As normas do presente capítulo aplicam-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, bem como aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º -57/95, de 30 de setembro”.
Artigo 28.º
“1- Aos contratos a que se refere o artigo anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 26.º, com as especificidades constantes dos números seguintes e dos artigos 30.º a 37.º e 50.º a 54.º”.
(…).
Por último, reza o artigo 26.º, do NRAU, nos respectivos n.ºs 1 e 2, que:
“1- Os contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, bem como os contratos para fins não habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei n.º -57/95, de 30 de setembro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes.
2- À transmissão por morte aplica-se o disposto nos artigos 57.º e 58.º.”.
Da conjugação, em suma, das disposições transitórias dos artigos 26.º, 27.º e 28.º, do NRAU, forçoso é assim concluir que a viabilidade de o contrato de arrendamento dos autos e para a habitação, se ter transmitido ao A. em face da morte de seu pai, deve ser aferida à luz do disposto no artigo 57.º, do NRAU, com a redacção da Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro, vigente à data da morte do primitivo arrendatário (julho de 2019).
O citado artigo 57.º, na redação indicada, dizia que:
Transmissão por morte no arrendamento para habitação
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct..
2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respetivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho.
3 - O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País.
4 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles.
5 - Quando a posição do arrendatário se transmita para ascendente com idade inferior a 65 anos à data da morte do arrendatário, o contrato fica submetido ao NRAU, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.
6 - Salvo no caso previsto na alínea e) do n.º 1, quando a posição do arrendatário se transmita para filho ou enteado nos termos da alínea d) do mesmo número, o contrato fica submetido ao NRAU na data em que aquele adquirir a maioridade ou, caso frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou cursos de ensino pós-secundário não superior ou de ensino superior, na data em que perfizer 26 anos, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.“.
É que, não se olvidando que a Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, no respectivo artigo 3.º, vem aditar ao Código Civil os seus artigos 1064.º a 1113.º, incluindo as correspondentes secções e subsecções, repondo-os (republicando em ANEXO o capítulo IV do título II do livro II do Código Civil), designadamente repondo o artigo 1106.º, com a epígrafe de “Transmissão por morte“.
Acontece que o referido artigo 1106.º, do Código Civil, não tem aplicação ao caso dos autos, porque, como vimos já, é o artigo 27.º do NRAU claro em dispor que relativamente aos contratos para fins habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do RAU se aplicam as disposições constantes do Capítulo II do NRAU, nele se incluindo o citado artigo 57.º e que tem por epígrafe “transmissão por morte”.
Aqui chegados, e tendo presente o disposto no supra transcrito artigo 57.º, do NRAU, pacífico nos parece que em situação alguma ocorreu a transmissão do arrendamento para o A., em virtude do falecimento do seu pai.
Cremos que é claro que o artigo 57.º do NRAU não consagra norma equivalente à do artigo 85.º, n.º 1, al. f) do RAU (aditado pela lei 6/2001 de 11 de Maio) ou do artigo 1106.º, n.º 1, al. b), do Código Civil, não havendo lugar à transmissão do arrendamento a filho que não estando nas condições das alíneas d) e e) do artigo 57.º viva em situação de economia comum com o arrendatário há um ou mais anos.
Assim e porque a caducidade consubstancia como vimos causa legal de extinção imediata do contrato de arrendamento e operar ipso jure ou ope legis, e, por conseguinte, extinguir o contrato de arrendamento sem necessidade de qualquer declaração das partes ou do tribunal nesse sentido, e sem necessidade de mais considerações, resta concluir pela inexistência de título por parte do A. para ocupar a fracção das RR.
O A. defendeu que as RR. o reconheceram como arrendatário e que só invocaram a extinção do arrendamento em reacção à instauração da presente acção.
Em relação ao primeiro argumento e como já acima foi dito, o alegado reconhecimento do A. como arrendatário pelas RR., não foi demonstrado nos autos.
Por um lado, o histórico de comunicação trocadas entre as partes permite concluir que desde cedo as RR. invocaram a caducidade do arrendamento.
As comunicações de 11 e 12 de julho de 2021, juntas a fls. 51 e 52, têm de ser lidas na sequência das demais cartas remetidas pelas RR. e onde estas solicitam e entrega do andar arrendado ao pai do A., de forma clara e inequívoca.
Relativamente ao segundo argumento, o A. invoca o abuso de direito por parte das RR.
Ora, segundo o artigo 334.º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
No direito anterior ao actual Código Civil a figura já era conhecida e admitida, apesar de se não achar expressamente prevista.
A concepção adoptada de abuso do direito é a objectiva. Não é necessária a consciência de se atingir, com o seu exercício, a boa-fé, os bons costumes ou o fim social ou económico do direito conferido; basta que os atinja. Exige-se, no entanto, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou na sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso (Professores Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 334.º do seu Código Civil Anotado).
A mesma é a posição dos Professores Manuel de Andrade e Vaz Serra, quando falam em direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça” e em “clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante” (Teoria Geral das Obrigações, página 63, e BMJ 85, página 253, respectivamente).
Segundo, ainda, o Prof. Antunes Varela, para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito. Com a fórmula do manifesto excesso dos limites impostos pelo fim económico ou social do direito tem o artigo 334.º especialmente em vista os casos de exercício reprovável daqueles direitos que são muito marcados pela sua função social. A fórmula do manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé abrange, por seu turno, de modo especial, os casos que a doutrina e a jurisprudência condenam sob a rubrica do venire contra factum proprium. São os casos em que a pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando uma determinada causa de nulidade, anulação, resolução ou denúncia, depois de fazer crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação ou do contrato (Das Obrigações em Geral, volume I, 7.ª edição, páginas 537/538).
O Prof. Menezes Cordeiro, por sua vez, considera existir venire contra factum proprium numa de duas situações: quando uma pessoa, em termos que, especificadamente, não a vinculem, manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e, depois, o pratique e quando uma pessoa, de modo, também, a não ficar especificadamente adstrita, declare pretender avançar com certa actuação e, depois, se negue (Da Boa Fé no Direito Civil, volume II, página 747).
Na jurisprudência, que é abundantíssima, podem ver-se, em coincidência de opiniões, e como exemplos mais recentes, os acórdãos do STJ de 04.04.2006, 24.01.2008, 07.02.2008 e 28.02.2008 (CJ do Supremo, Ano XIV, Tomo II, página 33, e Ano XVI, Tomo I, páginas 62, 77 e 122, respectivamente).
A lei não enuncia as consequências do abuso do direito, tendo vindo a entender-se que a sanção varia consoante os casos, podendo compreender a indemnização, a nulidade do negócio, a validade do acto nulo ou a ineficácia da conduta; os efeitos, diz o Prof. Antunes Varela, serão os correspondentes à forma de actuação do titular (local citado).
Com base nele, o lesado pode requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico, racional do direito (Pires de Lima e Antunes Varela, obra e local citados).
Mais uma vez, não resulta dos autos qualquer comportamento que revele abuso de direito por parte das RR.: a sua posição foi sempre de oposição à ideia da transmissão do arredamento. Nada revela contradição na actuação das RR.
Assim, resta concluir que não existe o invocado abuso de direito.
***
Ora, de todos o enquadramento jurídico acima explanado já concluímos que o A. não pode invocar as normas legais transcritas e que no fundo fundamentam a alegada responsabilidade contratual das RR., uma vez que o arrendamento não lhe foi transmitido por morte do seu pai. A não transmissão do arrendamento afasta a aplicação no caso em apreço das normas disciplinadoras do tipo contratual em causa.
Desta forma, o primeiro pedido do A. será julgado improcedente».
Não merece reparo o transcrito trecho da sentença recorrida, com o qual concordamos na íntegra, pois faz um correto enquadramento jurídico da situação sub judice.
Acrescentar, nesta parte, fosse o que fosse à sentença recorrida, mais não seria do que dizer a mesma coisa por outras palavras.
Não merece, pois, nesta parte, censura a decisão recorrida.
Em conclusão: improcede o recurso interposto pelo autor.
3.2.2.3 – O recurso interposto pelas 1.ª e 2.ª rés:
3.2.2.3.1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
As 1.ª e 2.ª rés consideram que o tribunal a quo errou ao julgar não provado o enunciado descrito em 3.2.1.2.vii): «(...) as RR. têm uma perda de rendimento correspondente ao valor da renda, nunca inferior a € 700, pelo qual seria possível arrendar o andar».
O descrito enunciado tem a sua fonte nos seguintes artigos da contestação:
- art. 58.º: «Não fora a ilícita recusa do Autor/Reconvindo, o referido 4.º andar direito, seria facilmente arrendado por valor não inferior a 700,00 € mensais, valor que as Rés deixaram, e continuarão a deixar de auferir, enquanto o andar não lhes for entregue, devido à ilegítima ocupação e recusa de entrega por parte do Autor/Reconvindo»; e,
- art. 61.º: «Conduta que causa às Rés a perda de rendimento correspondente ao valor da renda, nunca inferior a 700€, valor mínimo pelo qual seria possível arrendá-lo de novo, não fosse a ocupação ilícita do Autor/Reconvindo, e a recusa do mesmo em entregá-lo às Rés/Reconvintes».
Julgada extemporânea e mandada desentranhar a réplica apresentada pelo autor, é como se a mesma nunca tivesse sido apresentada, caso em que funciona o disposto no art. 587.º, n.º 1: «A falta de apresentação da réplica ou a falta de impugnação dos novos factos alegados pelo réu tem o efeito previsto no artigo 574.º».
Conforme referem Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, «o autor está, na réplica, sujeito ao ónus de impugnação, quanto aos factos alegados na contestação, em sede de reconvenção (...). Por isso, a não apresentação do articulado, quando este é admissível (...) tem em regra, o mesmo efeito de admissão que a não impugnação em contestação apresentada, com as mesmas exceções que para esta vigoram (...)»[16].
Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Sousa escrevem que «considerando a função da réplica (defesa perante a reconvenção …), a falta da sua apresentação ou a falta de impugnação dos factos novos alegados pelo réu gera o efeito do art. 574.º, isto é, tais factos consideram-se admitidos por acordo, a não ser que estejam em oposição com o conjunto das alegações feitas pelo autor (na própria réplica ou até na petição inicial), não seja admissível confissão sobre eles ou seja exigido documento escrito para prova do mesmos»[17].
Assim, no caso concreto, tudo funcionando como se a réplica não tivesse sido apresentada, tem de considerar-se admitido por acordo o alegado pelas 1.ª e 2.ª rés nos arts. 58.º e 61.º da contestação.
Consequentemente, em vez de não provado, deve considerar-se provado, por acordo, o enunciado descrito em 3.2.1.2.vii): «(...) as RR. têm uma perda de rendimento correspondente ao valor da renda, nunca inferior a € 700, pelo qual seria possível arrendar o andar».
Termos em que se julga procedente a impugnação feita pelas 1.ª e 2.ª rés à decisão sobre a matéria de facto, considerando-se agora provado o enunciado descrito em 3.2.1.2.vii).
3.2.2.3.2 – Enquadramento jurídico:
Pelas razões acima expostas, o contrato de arrendamento em causa nestes autos caducou no dia 29 de julho de 2019, data da morte do respetivo arrendatário, o falecido pai do autor, AM (art. 1051.º, al. d), 1.ª partem do CC)
Sucede que o autor, que viveu ininterruptamente com o pai no 4.º direito desde março de 1971, continuou a ocupá-lo após a morte do progenitor, o que vem fazendo até ao momento, apesar de não dispor de título válido para o efeito.
Nos termos do art. 1038.º, al. i), do CC, é obrigação do locatário restituir a coisa locada findo o contrato.
Estabelece, por sua vez o art. 1045.º do mesmo diploma:
«1 - Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, exceto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.
2 - Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro».
Resulta dos mencionados normativos que uma vez findo o contrato, o senhorio tem logo direito a exigir do arrendatário uma indemnização pecuniária equivalente à renda estipulada, desde a data da cessação daquele até à restituição efetiva do locado.
Contudo, se o arrendatário entrar em mora quanto à obrigação de restituir o arrendado, essa indemnização é elevada para o dobro, o que constitui um desvio ao regime geral da indemnização moratória das obrigações pecuniárias prevista no art.º 806.º, n.º 1 e 2, do CC.
Num e noutro caso, trata-se de uma indemnização a forfait para compensar o credor dos prejuízos causados pelo atraso na realização da prestação devida.
Acontece que, no caso concreto, está demonstrada a caducidade do contrato de arrendamento por morte do arrendatário, no dia 29 de julho de 2019, não tendo ocorrido a transmissão do arrendamento para o seu filho aqui autor.
Dispõe o art. 1053.º do CC que «em qualquer dos casos de caducidade previstos nas alíneas b) e seguintes do artigo 1051.º, a restituição do prédio, tratando-se de arrendamento, só pode ser exigida passados seis meses sobre a verificação do facto que determina a caducidade ou, sendo o arrendamento rural, no fim do ano agrícola em curso no termo do referido prazo».
Sucede que, na situação sub judice, o autor não foi demandado em sede reconvencional como arrendatário, nem, em função do acima exposto, como tal deve ser considerado.
Por conseguinte, obrigação de entregar a coisa, por parte do autor, não emerge propriamente do contrato de arrendamento (no qual o seu pai assumiu a qualidade de arrendatário), mas sim da situação de detenção ilícita em que se encontra perante a usufrutuária do 4.º direito, a aqui 1.ª ré.
Nessa medida, o autor responde pelos prejuízos causados à 1.ª ré em virtude dessa detenção sem título, em sede do regime geral da responsabilidade civil extracontratual, nos termos dos arts. 483.º e segs. do CC.
Está provado que:
- com data de 2 de janeiro de 2020, a 1.ª ré enviou ao autor a carta que acima se deixou transcrita, interpelando-o para, no prazo de 30 dias, proceder à entrega do 4.º direito, livre e devoluto de pessoas e bens;
- posteriormente, com data de 31 de março de 2020, a 1.ª ré enviou ao autor uma outra carta, interpelando-o para, no renovado prazo de 30 dias, proceder à entrega do 4.º direito, livre e devoluto de pessoas e bens,
daqui decorrendo que o autor entrou em mora quanto à obrigação de entregar o 4.º direito à 1.ª ré, livre e devoluto de pessoas e bens, pelo menos a partir do dia 30 de abril de 2020.
Até ao momento o autor não entregou o 4.º direito à 1.ª ré, comportamento que, à luz das regras da experiência comum, não pode deixar de lhe ser imputável a título de culpa.
A ocupação pelo autor, sem título, do 4.º direito, é fundamento para a sua condenação no pagamento de uma quantia, a título de privação do uso, no caso pela 1.ª ré, na qualidade de usufrutuária; na verdade, a privação do uso de um bem decorrente de ocupação ilícita importa, em regra, na existência de um dano pelo qual o lesado deve ser compensado.
Por outras palavras, a privação do uso de uma coisa, inibindo, no caso, a usufrutuária, de exercer sobre ela os inerentes poderes, constitui uma perda patrimonial que deve ser considerada, tudo se resumindo à deteção do método mais adequado para a quantificação da indemnização compensatória.
No tocante ao prejuízo a considerar para efeitos de indemnização à 1.ª ré, importa considerar:
- o art. 562.º do CC: «Quem estiver obrigado a reparar o dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação»;
- o art. 563.º do CC, preceito ao qual subjaz a teoria da causalidade adequada: «A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão»;
- o art. 564.º, n.º 1 do CC: «O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão»;
Está provado que «as RR. têm uma perda de rendimento correspondente ao valor da renda, nunca inferior a € 700, pelo qual seria possível arrendar o andar».
Seria este, portanto, o prejuízo sofrido pela 1.ª ré por se encontrar privada do uso do 4.º direito, em consequência da ocupação que o autor dele vem fazendo sem título válido para o efeito.
Consequentemente, deve o autor ser condenado a pagar à 1.ª ré, a título de indemnização pela ocupação ilícita que vem fazendo do 4.º direito, a quantia mensal de € 700,00, a partir do dia 30 de abril de 2020 e até à data da efetiva entrega do imóvel, livre e desocupado de pessoas e bens, sendo que, ao montante global indemnizatório então apurado, haverá a descontar a totalidade dos depósitos mensais efetuados e que vierem a ser efetuados pelo autor em conta bancária titulada pela 1.ª ré, nos termos descritos em 5. dos factos provados.
***
IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do tribunal, além do decidido supra quanto ao incidente de justo impedimento:
4.1 – Em julgar improcedente o recurso interposto pelo autor, em consequência do que mantêm a sentença recorrida no segmento que o condenou a restituir de imediato às rés, livre de pessoas e bens, o 4.º direito do «prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º ____, da freguesia do Beato, inscrito na matriz sob o artigo ____, sito na Rua ____ n.ºs ____ e Travessa ____ n.º -, em Lisboa»;
4.2 – Em julgar procedente o recurso interposto pelas rés, em consequência do que revogam a sentença recorrida no segmento que absolveu o autor do pedido indemnizatório formulado pela 1.ª ré, que substituem por outro nos seguintes termos:
4.2.1 – Condenam o autor a pagar à 1.ª ré, a título de indemnização pela ocupação ilícita que vem fazendo do 4.º direito, a quantia mensal de € 700,00 (setecentos euros), desde o dia 30 de abril de 2020 até à sua efetiva entrega livre de pessoas e bens:
4.2.2 Ao montante global indemnizatório a pagar pelo autor à 1.ª ré e que vier a ser apurado à data da efetiva entrega do 4.º direito, livre de pessoas e bens, será abatida, a quantia total correspondente aos depósitos mensais efetuados e que vierem a ser efetuados pelo autor em conta bancária titulada pela 1.ª ré, nos termos descritos em 5. dos factos provados.
4.3 – Em manter, no mais, a sentença recorrida.
As custas, na vertente de custas de parte, serão suportadas pelo autor, tanto no que respeita ao recurso por si interposto, como no que respeita ao recurso interposto pelas rés (arts. 527.º, n.ºs 1 e 3, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º -).

Lisboa, 18 de novembro de 2025
José Capacete
Alexandra de Castro Rocha
Paulo Ramos de Faria
_______________________________________________________
[3] Sem que se perceba ao abrigo de que critério, o autor atribui à ação o valor de € 5.000,01.
[4] Reiterando-se que não se percebe ao abrigo de que critério, o autor atribui à ação o valor de € 5.000,01, o certo é que ele não foi questionado pelo tribunal a quo.
[5] Manual do Recurso Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 293.
[6]  Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 3.ª Edição, 2014, pp. 274-275.
[7] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, Almedina, 2025, p. 202.
[8] Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª Edição, Almedina, p. 146.
[9] Apreciação de alguns aspectos da “revisão do processo civil – projecto, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 55º, Vol. II, p. 387.
[10] Cfr. Ac. da R.C. de 20.042018, Proc. n.º 3188/17.8T8LRA-A.C1 (Felizardo Paiva), in www.dgsi.pt.
[11] Temas da Reforma do Processo Civil, 2ª Ed., p. 121.
[12] Temas cit., p. 128, com referência, na nota 173, a Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, p. 363, nota 1.
[13] Correspondente ao art. 556.º do CPC/13.
[14] Correspondente à al. d) do n.º 1 do art. 552.º do CPC/13.
[15] Estudos em Homenagem ao Professor Doutor João de Castro Mendes, Lex, 1995, pp. 21-22.
[16] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª Edição, Almedina, 2017. p. 610.
[17] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, Almedina, 2025, p. 814.