Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
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| Relator: | FÁTIMA REIS SILVA | ||
| Descritores: | EFEITO COMINATÓRIO SEMI-PLENO IMPUGNAÇÃO DA LISTA DE CRÉDITOS CONTRATO-PROMESSA NEGÓCIO EM CURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA OPÇÃO PELO NÃO CUMPRIMENTO DIREITO DE RETENÇÃO TRADIÇÃO DA COISA | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/11/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | PROCEDENTE | ||
| Sumário: | Sumário[1] 1 – Não pode ser discutido em sede de recurso da sentença de verificação e graduação de créditos, o montante do crédito que, reclamado, foi reconhecido pela administradora da insolvência na lista do art. 129º do CIRE, sem que o montante em causa tenha sido objeto de qualquer impugnação. 2 - Há duas possibilidades para o beneficiário de contrato promessa quando o promitente vendedor é declarado insolvente sem que o contrato promessa chegue a ser outorgado: ou o contrato foi definitivamente incumprido antes da declaração de insolvência, caso em que as consequências serão as que resultam da lei civil designadamente arts. 442º e 755º nº1, al. f) do Código Civil na versão aplicável, ou o contrato é um negócio em curso e aplicam-se-lhe as regras previstas nos artigos 102º e ss. do CIRE. 3 - O reconhecimento não condicional pelo administrador da insolvência, na relação prevista no art. 129º do CIRE, dos créditos reclamados resultantes do incumprimento de negócio em curso devem ter-se por recusa de cumprimento, nos termos do art. 102º do mesmo diploma. 4 - A tradição da coisa prometida alienar, quando se trate de prédio urbano, pode manifestar-se através de diversificados modos de comportamento que revelem, à luz da sua significação social, segundo as regras da experiência, uma situação resultante de um elemento negativo traduzido no abandono da coisa pelo seu anterior detentor em correspondência com um elemento positivo consistente na apreensão da mesma pelo novo detentor. [1] Da responsabilidade da relatora – art. 663º nº7 do CPC. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordão no Tribunal da Relação de Lisboa 1. Relatório J. M. & L. S. – Construções e Obras Públicas, Lda, foi declarada insolvente por sentença de 26/10/2012, transitada em julgado. Foi reclamada a verificação e graduação de créditos sobre a insolvente, no prazo estabelecido para o efeito. Em 18/12/2012 a administradora da insolvência juntou aos autos a relação de créditos prevista no art. 129º do CIRE, na qual constava um crédito comum reconhecido a P1 no montante de € 124.699,48. P1 impugnou a lista de créditos, pedindo o reconhecimento do crédito por si reclamado como garantido por direito de retenção sobre a fração C do prédio constituído em propriedade horizontal designado por Edifício …, sito na Rua …, no lugar de …, Freguesia da …, Concelho de Torres Vedras, fração essa que possui e lhe foi entregue pela insolvente desde julho de 2010, na qual habita, tendo celebrado contrato promessa de compra e venda e pago integralmente o preço. Banco Espírito Santo, SA respondeu à impugnação alegando que o contrato promessa não menciona qualquer tradição da coisa não tendo exibido título para tanto, no caso uma sentença reconhecendo o incumprimento do promitente vendedor. Impugna todos os factos alegados pela impugnante relativos ao direito de retenção e ao incumprimento. Pede a improcedência da impugnação. A Sra. Administradora da Insolvência respondeu à impugnação deduzida por P1, mantendo o seu entendimento de que o crédito é comum. A administradora da insolvência procedeu à apreensão de bens, conforme autos de apreensão juntos no apenso de apreensão de bens, entre os quais a fração C do prédio sito na Rua …, no lugar de …, Freguesia da …, Concelho de Torres Vedras (verba 24 do auto de apreensão junto em14/02/2013 – refª 1325743). Foi realizada tentativa de conciliação. Foi habilitada Aires Lusitani – STC, SA, como cessionária, no lugar da credora Novo Banco, SA, por sentença de 03/02/2021, proferida nos autos principais. Foi habilitado o herdeiro da credora P1, P2, por sentença de 23/09/2024, proferida nos autos principais. Após diverso processado foi proferida sentença, em 14/02/2025, tendo sido decidido: “V – Decisão Em face do exposto decido: Homologar a lista de credores reconhecidos, com as alterações decorrentes das impugnações acima julgadas procedentes e da referida extinção de crédito; e Graduar os créditos reconhecidos, para pagamento após as dívidas da massa, nos seguintes termos: Pelo produto da venda de imóveis: 1.º - Serão pagos os créditos laborais pelo valor de todos os imóveis integrantes da estrutura produtiva da Insolvente; 2.º- Será pago o crédito com direito de retenção, pelo valor decorrente da liquidação da fração respetiva; 3.º- Serão pagos os créditos garantidos por hipoteca pelo produto da liquidação do respetivo imóvel, atendendo-se à prioridade de registo e máximo da garantia; 4.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos credores comuns, na respetiva proporção; 5.º- Os créditos subordinados. Pelo produto da venda de móveis e outros direitos ou rendimentos: 1.º Serão pagos os créditos laborais com privilégio geral; 2.º Os créditos comuns, rateadamente; 3.º Os créditos subordinados. * Sem tributação autónoma.” Inconformada apelou Aires Lusitani – STC, SA, pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra que julgue improcedente a impugnação deduzida pela credora P1, formulando as seguintes conclusões: “1. Constitui tema nuclear do presente recurso a questão da apreciação da prova e, ainda, saber se à Credora P1 assiste um direito de retenção sobre a fração C do prédio descrito na CRP de Torres Vedras … que lhe permite ser ressarcida com prioridade sobre a aqui Recorrente, enquanto detentora de garantia real – hipoteca. 2. Julgou, a douta sentença de que se recorre, procedente a Impugnação à Lista apresentada pela Credora P1 e, em consequência, reconheceu o crédito por esta reclamado como garantido por direito de retenção, a ser pago com prioridade sobre o crédito com garantia real. 3. A ora Recorrente não se conforma com tal decisão, pelo que vem dela recorrer, considerando haver erro na apreciação da prova e uma violação de lei substantiva por erro de interpretação da lei, face o disposto pelo artigo 755.º, n.º 1 al. f) do Código Civil. 4. Entre outros, mas com especial relevo para o caso que aqui nos ocupa, foi dado como assente pelo Tribunal a quo que “Estamos perante contrato-promessa de compra e venda com consumidor, para habitação, com pagamento da totalidade do preço e traditio.” 5. Dipõe o artigo 755.º, n.º 1 al. f) do Código Civil que apenas goza de direito de retenção “O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º”. 6. A génese do direito de retenção reside na conexão legal que advém da celebração de um contrato-promessa e consequente tradição da coisa prometida. 7. Os pressupostos do direito de retenção são: a “traditio” da coisa ou coisas, objeto mediato do contrato definitivo prometido; o incumprimento definitivo do contrato promessa; e a titularidade pelo credor, por virtude desse incumprimento, de um direito de crédito. 8. Terá assim que ser provado o “animus possidendi” isto é, a intenção de exercer sobre o imóvel o poder de facto em termos de direito real de propriedade ou outro, já que o contrato promessa não é suscetível de, per si, transmitir a posse aos respetivos promitentes-compradores. 9. O ordenamento jurídico português adota a conceção subjetiva da posse, sendo integrada pelo corpus e o animus.. 10. A Credora não fez prova de que tenha tido, em relação ao imóvel, o seu “animus possidendi”, pelo que mal andou o Tribunal a quo ao dar como provada a traditio do bem. 11. Os únicos elementos carreados nos autos como “prova”, são as alegações proferidas pela própria Credora na sua reclamação de créditos e que infra se transcrevem: a) “Habita, de forma própria e permanente, a fracção autónoma designada pela letra "C", que corresponde ao rés-do-chão centro esquerdo, destinado a habitação, composto de cozinha, sala comum, uma instalação sanitária e pátio exterior no Piso Zero, e um quarto e uma instalação sanitária no Piso Um, com um lugar de estacionamento na cave menos um, devidamente identificado na planta pela letra C, com a área bruta de cento e doze vírgula setenta e sete metros quadrados, do prédio constituído em propriedade horizontal designado por "…, sito na rua …, no lugar de …, Freguesia da …, Concelho de Torres Vedras, descrito na conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º … e inscrito na Matriz predial respectiva sob o artigo …. b) Outorgou em nome próprio o contrato de fornecimento de água – desde Agosto de 2010 – o contrato de fornecimento de electricidade, desde 29 -03-2012 c) Adquiriu e mobilou a referida fracção, para que esta lhe servisse para os fins pretendidos: sua habitação própria e permanente; d) Praticou actos, perante terceiros, comportando-se como sua legítima possuidora e proprietária, 5/24 fazendo o imóvel seu, perante vizinhos, terceiros e entidades públicas, que a reconhecem como tal e tudo como sua proprietária, que é e) Efectuou e contratou a realização de actos de conservação e manutenção da fracção autónoma em causa, como proprietária da mesma; condição que se arroga perante terceiros, de forma pública e notória, desde o dia em que adquiriu a posse efectiva do imóvel: Julho de 2010; f) E, praticou todos estes actos de boa fé e sem a oposição de quem quer que seja, na qualidade de legítima proprietária da fracção em causa, e, nessa condição actua junto de entidades públicas e privadas”. 12. Ora, toda esta argumentação é vazia quando desprovida de prova documental e testemunhal que a sustente. 13. E não serão, certamente, comprovativos de celebração de contratos de fornecimento de água e luz que sustentarão uma posse efetiva do bem – tanto mais que não se compreende como poderia a Credora fazer do imóvel a sua habitação própria e permanente desde 2010 quando, apenas em 2012, contratou o fornecimento de eletricidade. 14. Donde se conclui que não foi feita prova cabal da traditio do bem e, consequentemente, não terá aplicabilidade in casu o entendimento perfilhado no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2014, de 19/5. 15. Em defesa desta tese, vide o sumariado pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 28-09-2022 (Relator Henrique Araújo): “I - O regime geral do art. 755.º, n.º 1, al. f), do CC, não faz depender o direito de retenção atribuído ao beneficiário da promessa de venda da sua qualidade de consumidor. II - Se a entrega das chaves dos imóveis prometidos vender não teve qualquer sequência ao nível do controlo material desses imóveis por parte dos promitentes-compradores, não se deve ter por verificada a traditio dos mesmos.” 16. Logo mal andou o Tribunal a quo, ao dar como provada a traditio do bem e, em consequência, considerou ser a Credora P1 detentora de uma garantia por direito de retenção, no valor de €124.699,48, a ser paga com preferência sobre o crédito hipotecário detido pela aqui Recorrente. 17. Sem prescindir, importa ainda ter presente que o Mm. Juiz a quo deu como provado que entre a Insolvente e a Credora P1 foi celebrado, em Maio de 2006, um contrato-promessa de compra e venda de fração para habitação, tendo sido paga a totalidade do preço acordado, de €124.699,48, na data do referido contrato. 18. Contudo, salvo o merecido e devido respeito, mais uma vez se entende que tal facto não assenta em prova documental e testemunhal que sustente essa tese. 19. Da documentação apresentada pela Credora, verifica-se que esta terá, alegadamente, celebrado um contrato-promessa em Maio de 2006 com a empresa insolvente, onde a segunda promete vender, à primeira, fração a edificar no prédio urbano descrito na CRP de Torres Vedras …, pelo preço já pago de €124.699,48 (sublinhado nosso). 20. Contudo, contrariando esta informação, a Credora junta aos autos um cheque por si emitido em Julho de 2016 (ou seja, após a celebração do contrato-promessa), a favor da empresa Insolvente, no valor de €37.409,84 – cheque junto com o doc. 2 da Reclamação de Créditos. 21. Logo, não pode a Recorrente aceitar que, sem qualquer escrutínio ou demais elementos, tenha o Mm. Juiz a quo dado como assente que a Credora P1 liquidou a totalidade do preço acordado, já que o cheque apresentado nos autos demonstra exatamente o oposto. 22. Não será de ignorar que a aqui Recorrente (enquanto credora com garantia real registada), não poderá ter o seu direito de ressarcimento vilipendiado com base em suposições e presunções de pagamentos, cujo valores e datas não se consegue fazer correspondência. 23. Em suma: não andou bem, salvo devido respeito, o Tribunal de 1ª Instância, pois que decidindo como decidiu, interpretou incorretamente os factos e aplicou de forma desadequada o Direito, violando normas jurídicas, designadamente, as invocadas pela ora Recorrente, no que respeita aos fundamentos do presente recurso. O habilitado P2 contra-alegou, pedindo a manutenção da sentença recorrida e formulando as seguintes conclusões: A) A sentença proferida pelo Tribunal “a quo” não merece qualquer censura; B) Desde logo porque o Recorrido/Credor não aceita a análise feita da documentação pela Recorrente/Credora porque a mesma foi incorreta, vejamos, quer em relação ao fornecimento de água e luz, remontam ao ano de 2010, nomeadamente o de fornecimento de água, e não a 2012, conforme documentação junta em 21 de novembro de 2024 pelo que a Recorrente induz esse alto Tribunal em erro ao referir que a Credora apenas em 2012 contratou o fornecimento de electricidade. C) Mais, induz ainda em erro os Venerandos Desembargadores, certamente por lapso, quando se refere ao cheque no montante de € 37.409,84, como sendo um cheque emitido pela Credora a favor da empresa insolvente, quando se trata do inverso, ou seja, o cheque é um título de valor a pagar à credora (porque o cheque foi emitido à ordem da falecida mãe do ora Recorrido). D) E ainda analisado o contrato promessa de compra e venda junto aos autos constata-se que o preço já foi pago e a empresa insolvente deu total quitação, pois tal é o que resulta do contrato promessa de compra e venda celebrado, assinado pelas partes à data e que ninguém impugnou. E) Logo, os documentos juntos pelo Recorrido/Credor tratam-se de documentos autênticos ou autenticados que não foram impugnados. F) Em termos de oportunidade, não podem vir agora ser suscitados ou questionados por qualquer credor. G) Pelo que andou bem o tribunal “a quo” ao interpretar corretamente toda a situação factual face ao imóvel da mãe do ora Recorrido, que lhe foi transmitido e à documentação constante dos autos que não foi impugnada. H) É absolutamente inaceitável a alegação da Recorrente face ao artigo 755.º do Código Civil, pois este prevê expressamente o direito de retenção ao beneficiário da promessa que tenha obtido a tradição do bem, requisito que se verifica no caso concreto. I) A credora, conhecedora de toda esta documentação e situação de que o Recorrido estava a viver no imóvel transacionado e cuja tradição ocorreu, nunca suscitou qualquer incumprimento nem a entrega do apartamento, nem o poderia ter feito. J) Pois a tradição e utilização do apartamento pelo Recorrido é uma utilização particular e posse pública e de boa-fé, há mais de 12 anos e tem sido presenciada e testemunhada por pessoas conhecedoras da relação jurídica existente entre as partes. K) A Recorrente é conhecedora deste estado de coisas que já existiam, quando o presente procedimento judicial foi instaurado, tanto assim que nem o Recorrido e nem a sua falecida mãe foram condenados a deixar e a entregar coercivamente o imóvel onde viveram e agora reside só o Recorrido anos a fio face ao contratualizado, pelo que foi para o “consumidor” com o significado comum do termo, ou seja, como sendo aquele que promete adquirir bens como utilizador final, sendo essa qualidade de consumidor uma condição essencial da atribuição do direito de retenção. L) Não pode a Recorrente Credora por isso, e com esta fundamentação, vir agora impugnar por via de recurso o que não fez anteriormente. M) Assim sendo, a decisão proferida pelo Tribunal a quo com referência ao acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2014, de 19/5, é uma decisão ponderada, legal, válida, eficaz e definitiva, a qual se reitera e deve ser confirmada pelo Alto Tribunal da Relação de Lisboa. Não foram apresentadas outras contra-alegações. O recurso foi admitido por despacho de 07/05/2025 (ref.ª 165022282), no qual foi também retificada a sentença recorrida no tocante a outro crédito, verificado em ação de verificação posterior de créditos. Foram colhidos os vistos. Cumpre apreciar. * 2. Objeto do recurso Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se oficiosamente e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma. Consideradas as conclusões acima transcritas, a única questão a decidir é de se deve ser mantida a sentença que verificou e graduou como garantidos os créditos reclamados por P1. * 3. Fundamentação de facto: O Tribunal a quo não proferiu qualquer decisão expressa de fixação de matéria de facto, provada ou não provada. Da fundamentação jurídica relativa aos créditos reclamados pela credora P1 retira-se que, de forma genérica, a decisão teve por base determinados pressupostos de factos ali enunciados, que a recorrente assume igualmente como factos provados (ver, por exemplo, a conclusão 4). Não tendo sido arguida a nulidade da sentença[1] nem tendo sido deduzida impugnação da matéria de facto[2] pode e deve este Tribunal, nos termos do disposto no art. 662º nº1 do CPC, e uma vez que não há qualquer prova a produzir, dado que pelas partes não foram arroladas testemunhas, respetivamente, na impugnação à lista de créditos apresentada pelo AI e na resposta do credor Novo Banco a essa impugnação, tendo em conta os factos relevantemente alegados que não foram impugnados e os documentos juntos que tenham sido aceites pela parte contrária, proceder à fixação da matéria de facto provada e não provada, o que se passará a fazer. Consideram-se assentes, com base nos elementos dos autos, os seguintes factos com interesse para a decisão do recurso: 1 - J. M. & L. S. – Construções e Obras Públicas, Lda, foi declarada insolvente por sentença de 26/10/2012, transitada em julgado. 2 – A administradora da insolvência procedeu à apreensão de bens, conforme autos de apreensão juntos no apenso de apreensão de bens, entre os quais a fração C do prédio sito na Rua …, no lugar de …, Freguesia da …, Concelho de Torres Vedras (verba 24 do auto de apreensão junto em14/02/2013 – refª 1325743). 3 – A fração autónoma designada pela letra C, do prédio urbano sito na Rua …, no lugar de …, Freguesia da …, Concelho de Torres Vedras, inscrito na matriz sob o art. …, encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o nº …, conforme teor da certidão de registo predial junta aos autos, junta em formato digital em 16/10/2025, cujo teor se dá aqui por reproduzido. 4 – Mostram-se registada sobre a referida fração autónoma as seguintes hipotecas: - Hipoteca a favor de Banco Espírito Santo, SA, registada mediante a Ap. 47 de 2007/12/21, para garantia de empréstimo, juro anual de 9%, elevável em mais 4% em caso de mora, a título de cláusula penal e despesas de € 30.000,00, com o capital de € 750.000,00, e o montante máximo assegurado de € 1.072.500,00; - Hipoteca a favor de Banco Espírito Santo, SA, registada mediante a Ap. 716 de 2009/03/24, para garantia de empréstimo, juro anual de 9%, elevável em mais 4% em caso de mora, a título de cláusula penal e despesas de € 6.000,00, com o capital de € 150.000,00, e o montante máximo assegurado de € 214.500,00, ampliados para o capital de € 250.000,00 e para o montante máximo de € 357.500,00 mediante a Ap. 4933 de 2009/07/08; - Hipoteca a favor de Banco Espírito Santo, SA, registada mediante a Ap. 186 de 2010/07/01, para garantia das obrigações emergentes do contrato de financiamento nº 5596/10, juro anual de 9%, elevável em mais 4% em caso de mora, a título de cláusula penal e despesas de € 3.000,00, com o capital de € 100.000,00, e o montante máximo assegurado de € 143.000,00; - Hipoteca judicial a favor de Areias do Seixo – Empreendimentos Hoteleiros, Lda, para garantia do pagamento de quantia até ao limite de € 619.970,77, acrescida de juro à taxa legal de 8%. 5 - Em 20 de julho de 2006, a insolvente, como primeira contraente, prometeu vender a P1, como segunda contraente, que prometeu comprar, uma fração autónoma do tipo T3 no prédio a construir pela insolvente, pelo preço de € 124.699,48, declarado integralmente pago e do qual a promitente vendedora declarou dar completa quitação, conforme documento junto com a reclamação de créditos da credora P1 e novamente junto aos autos mediante o requerimento refª 15947735 de 21/11/2024, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido[3]. 6 – Nos termos da cláusula 4ª do referido contrato: “1§.º - A escritura de compra e venda será celebrada no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) meses, a contar da outorga do presente contrato. §2.º - Em caso de impossibilidade de cumprimento do estipulado no parágrafo anterior, por facto não imputável a qualquer das partes, o referido prazo será automaticamente prorrogado por mais 6 (seis) meses. §3.º - Caso a escritura não possa ser outorgada nos prazos estipulados nos parágrafos anteriores, considerar-se-á o promitente faltoso em mora, concedendo-se um prazo de mais 30 dias, para a realização da mesma, findo o qual, e sem necessidade de qualquer interpelação, este contrato considerar-se-á definitivamente incumprido.” 7 – Nos termos da cláusula 12ª do referido contrato: “1§.º - Em caso de incumprimento do presente contrato, por motivos imputáveis à Segunda contraente, assistirá à Primeira Contraente a faculdade de fazer sua a quantia que houver recebido. §2.º - Em situação de incumprimento do presente contrato pela Primeira Contraente, assistirá à Segundo a faculdade de exigir àquela a restituição em singelo da quantia paga a título de sinal. §3.º - Em qualquer dos casos previstos nos parágrafos anteriores, o Outorgante não faltoso pode, em alternativa, requerer a execução específica do presente contrato, nos termos do art. 830.º do Código Civil. §4.º - Excluem-se da responsabilidade dos contraentes todos os factos ou fatores de força maior que impeçam o cumprimento dos supra referidos prazos e que fujam ao controle, designadamente doenças temporárias ou definitivamente incapacitantes que atinjam a segunda contraente ou os legas representantes da primeira contraente, desastres físicos, tais como tempestades, inundações, tremores de terra e ainda incêndios, explosões que atinjam as instalações da primeira contraente, bem como estados de emergência e guerra. 8 – Foi emitido pela insolvente, à ordem de P1 com data de 20/07/2006, o cheque nº 00333221, sacado sobre a conta nº 017277900155, do Banco Espírito Santo, SA. 9 – Por escritura pública celebrada em 10/12/2009, o prédio referido em “3” foi constituído em propriedade horizontal. 10 – Com data de 25 de Setembro de 2012, P3 Notária do Cartório Notarial de Torres Vedras, certificou que pela Sra. P1 foi solicitada para o dia 25 de setembro de 2012, pelas 15h e 30 m a marcação de uma escritura de compra e venda, na qual seriam outorgantes a insolvente como vendedora e P1 como compradora, tendo a compra e venda por objeto a fração autónoma designada pela letra C, do prédio urbano sito na Rua …, no lugar de …, Freguesia da …, Concelho de Torres Vedras, inscrito na matriz sob o art. …, descrita na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o nº …, e que a escritura não se realizou por falta de comparência do representante da sociedade vendedora, conforme declaração junta com a reclamação de créditos da credora P1 e novamente junto aos autos mediante o requerimento refª 15947735 de 21/11/2024, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. * Consideram-se não provados os seguintes factos: a) Em Julho de 2010, a ora insolvente entregou a P1 as chaves da fração autónoma referida em “3”; b) A partir de julho de 2010 P1 celebrou, em seu nome, os contratos de fornecimento de água e eletricidade da referida fração, suportando os custos dos consumos, o aluguer dos contadores e todas as taxas associadas; c) Comprou móveis e utensílios para uso diário na referida fração; d) Ali dormia desde julho de 2010; e) Confecionava as suas refeições; f) Recebia os seus familiares e amigos. g) E recebia a sua correspondência; h) A insolvente não invocou qualquer impossibilidade de cumprimento do prazo fixado para outorga de escritura por facto que não lhe fosse imputável; i) Em 2012 P1 veio a saber que a licença de habitação já havia sido emitida pelo que contactou a insolvente para que marcasse a escritura de compra e venda; j) Enviou à insolvente, em 31/08/2012, carta informando ter tomado posse da fração, como era do conhecimento dos gerentes da insolvente e que tinha nela a sua habitação e que a escritura pública se realizaria no dia 25/09/2012, pelas 15h e 30 m no Cartório Notarial da Dra. P3. * Motivação: Os factos dados como provados sob 1 e 2 resultam dos termos dos autos. Os factos apurados sob 3 e 4 resultam das certidões prediais juntas aos autos ali referidas. Os factos nºs 5 a 10 foram dados como provados com base no teor dos documentos ali referidos, juntos aos autos e não impugnados, designadamente aquando da junção em 21/11/2024 (requerimento refª 15947735) e na admissão por acordo que resulta do confronto entre a impugnação da lista e reclamação de créditos que a acompanhou e a resposta à impugnação apresentada pelo Novo Banco, na qual apenas impugnou os factos integradores do direito de retenção e do incumprimento do contrato promessa, assim aceitando a celebração do contrato promessa, o seu teor e a não celebração (factual) do contrato prometido. * A matéria de facto considerada não provada foi impugnada nos termos e para os efeitos previstos no art. 131º nº3 do CIRE[4], tendo sido juntos como meios de prova apenas documentos particulares, abrangidos pela impugnação. Atento o disposto nos arts. 134º nº1 e 25º nº2 do CIRE, quaisquer outros meios de prova teriam que ter sido oferecidos com a impugnação e respetiva resposta, verificando-se, como já se referiu, que nem a impugnante, e ora recorrida, nem a credora que respondeu, posição ora ocupada pela recorrente, arrolaram quaisquer outros meios de prova, motivo pelo qual os factos em causa, integradores do direito reclamado pela recorrida, se terão que ter por não provados. * 4. Fundamentação de direito A credora reclamante P1 reclamou, nos termos dos arts. 128º e ss. do CIRE, no processo em que foi decretada a insolvência de J. M. & L. S. – Construções e Obras Públicas, Lda, um crédito global de € 124.699,48, correspondente ao montante entregue à insolvente a título de preço do bem no âmbito de contrato promessa de compra e venda de imóvel celebrado com a insolvente e não cumprido. Alegou tradição da coisa desde 2010, invocando o direito de retenção sobre a fração C do prédio sito na Rua …, no lugar de …, Freguesia da …, Concelho de Torres Vedras, que veio a ser apreendido para a massa insolvente como verba nº 24. O crédito foi integralmente verificado pela administradora da insolvência, quanto ao montante, mas reconhecido de forma diversa, como crédito comum, na lista do art. 129º, o que veio a ser impugnado pela credora P1. O Banco, cuja posição processual é ora ocupada pela recorrente, respondeu à impugnação, pela forma acima descrita, impugnando os factos integradores do direito de retenção e do incumprimento do contrato promessa, ou seja, pronunciando-se apenas quanto à matéria da impugnação, restrita à qualificação do crédito como comum. A decisão recorrida qualificou o crédito como garantido por direito de retenção e o recurso ora sob apreciação pôs à consideração deste Tribunal os seguintes (e sintéticos) argumentos: - não se mostram provados factos que suportem a tradição da coisa; - não há prova bastante de que tenha sido pago integralmente o preço de € 124.699,48, uma vez que a credora emitiu, um julho de 2006, um cheque a favor da insolvente no montante de € 37.409,84. O habilitado na posição da credora P1 respondeu, também em síntese, que: - os contratos de fornecimento de água e eletricidade juntos são de 2010; - o cheque referido foi emitido pela insolvente a favor da credora e não o contrário, não podendo tal questão ser suscitada apenas na presente sede; - ocorreu tradição do bem, a credora sempre agiu como possuidora, posse mantida pelo seu sucessor, posse pública e de boa-fé; Como resulta da delimitação do objeto do processo já efetuada (ponto 2. deste aresto), não faz parte do mesmo a verificação do crédito reclamado por P1. O montante de € 124.699,48 foi reclamado, foi reconhecido quanto ao montante e, nessa parte não houve impugnação da lista, nomeadamente por parte do Novo Banco, SA. Atento o disposto no art. 130º nº3 do CIRE, a única hipótese de não verificação deste crédito seria se tivesse ocorrido erro manifesto e se tal questão houvesse sido suscitada e conhecida em 1ª instância. Percorrendo a abundante jurisprudência dos tribunais superiores sobre a matéria do erro manifesto podemos desde logo anotar que a tese da interpretação ampla, ou seja, de que o juiz pode ir além da verificação dos erros internos manifestos na lista, podendo pedir ao administrador os elementos em que se baseou para elaborar a lista, devendo a regra ser entendida como uma possibilidade de simplificação processual à disposição do decisor tem sido larga e expressamente acolhida, pese embora alguma da jurisprudência advirta para a demasiada amplitude de algumas das interpretações[5], e mantendo sempre presente a aplicação do princípio do dispositivo e a auto-responsabilidade das partes. É amplamente consensual a exigência de que o erro manifesto ou a dúvida sobre o mesmo emerja da lista[6] ou dos elementos dos autos[7]. Ora o cheque referido pela recorrente estava junto aos autos quando foi proferida a sentença, mas não contraria, seja por que forma for, a declaração de quitação constante do contrato promessa – que, frisa-se, não foi impugnada no momento próprio – por se tratar, como resulta do ponto 8 da matéria de facto, de um cheque emitido pela insolvente à ordem da credora, e não o contrário. Não se trata, assim, de qualquer elemento suscetível de ser valorado como erro manifesto da lista que impeça a respetiva homologação. Por outro lado, e como aflorado pelo recorrido, trata-se de uma questão nova, suscitada pela primeira vez nas alegações de recurso. Os recursos, são, por natureza, meios de impugnação de decisões judiciais, que apenas podem incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo incidir sobre questões novas. Em regra, e exceção feita às questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso fica limitado por “…em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.”[8] Ou, e seguindo o acórdão STJ de 27/05/25 (Teresa Albuquerque – 3914/20), “como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação, podendo ver-se neste sentido os acórdãos do STJ de 24/02/2015, proc. 1866/11.4TTPRT.P1.S1, de 14/05/2015, proc 2428/09.1TTLSB.L1.S1, de 08/10/2020, proc 4261/12.4TBBRG-A.G1.S1.”. No mesmo sentido se escreveu no Ac. TRC de 08/11/2011 (Henrique Antunes – 39/10), que “IV - Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas. V – Face ao modelo do recurso de reponderação que o direito português consagra, o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância.”[9] Por estas razões, não cabe no objeto deste recurso a discussão da verificação do crédito pelo montante de € 124.699,48, que se encontra definitivamente fixado desde que reconhecido pela administradora da insolvência na lista do art. 129º do CIRE, sem que o montante reconhecido tenha sido objeto de qualquer impugnação. A questão resume-se, pois, à qualificação e graduação do crédito, que a sentença qualificou e graduou como garantido por direito de retenção (sobre a fração respetiva) e que a recorrente pretende ver graduado como comum. Há, singelamente, duas possibilidades para o beneficiário de contrato promessa quando o promitente vendedor é declarado insolvente sem que o contrato promessa chegue a ser outorgado: ou o contrato foi definitivamente incumprido antes da declaração de insolvência, caso em que as consequências serão as que resultam da lei civil designadamente arts. 442º e 755º nº1, al. f) do Código Civil, ou o contrato é um negócio em curso e aplicam-se-lhe as regras previstas nos artigos 102º e ss. do CIRE. A jurisprudência é unânime a este respeito, como resulta, por exemplo dos Acs. STJ de 11/09/18 (25261/11), de 09/04/19 (872/10), e de 02/04/2019 (882/14), todos relatados por Graça Amaral, de 10/11/19 (Olindo Geraldes – 503/16), de 27/04/17 (Pinto de Almeida – 44/14) e de 29/07/16 (Júlio Gomes – 6193/13). Logo, a primeira questão a resolver é a do incumprimento definitivo, essencial para determinar o regime aplicável. Neste ponto, de forma muito sintética, o tribunal recorrido considerou a inexistência de incumprimento definitivo anterior à declaração de insolvência, que se tratava de um negócio em curso e que a administradora da insolvência não havia optado pelo cumprimento do contrato. Considerou a existência de traditio e aplicou a jurisprudência do AUJ 4/2014 de 19/05[10]. O incumprimento de um contrato, nos termos gerais, pode assumir as modalidades de não cumprimento definitivo, mora e cumprimento defeituoso – arts. 798º e ss. do Código Civil. O nº2 do art. 442º do Código Civil, onde se prevê o direito do promitente comprador à restituição do sinal que prestou em dobro, ou ainda, quando tenha havido tradição da coisa, do respetivo valor, em caso de não cumprimento do contrato por parte do outro contraente constitui a previsão de reparação do dano, sendo, porém, que a sua aplicação apenas tem lugar em caso de incumprimento definitivo e não no caso de simples mora [11]. Em geral, o incumprimento definitivo do contrato pode resultar[12]: a) da ultrapassagem de prazo fixo, essencial e absoluto; b) da recusa de cumprimento declarada de forma categórica; c) da conversão de mora em incumprimento definitivo por via dos mecanismos previstos no art. 808º do Código Civil, ou seja, ultrapassagem do prazo suplementar razoável fixado na interpelação admonitória feita pelo credor da prestação em falta; ou pela perda objetiva de interesse, por parte deste, na celebração do contrato prometido em consequência da mora do faltoso. No primeiro conjunto de casos, não se trata apenas da ultrapassagem do prazo previsto, que gera simples mora, mas de ultrapassagem de um prazo com estas caraterísticas que dependerão, em geral, da interpretação do clausulado. Dá-se quando as partes fixarem um prazo para o cumprimento de determinada obrigação de modo a que a prestação seja efetuada dentro dele, sob pena de o negócio já não ter interesse para o credor. Compulsado, no caso, o contrato promessa celebrado, referido nos pontos 5 a 7 da matéria de facto provada, em especial a cláusula transcrita em 6, verifica-se que a cláusula relativa ao prazo de celebração do contrato prometido revestia as caraterísticas de um prazo fixo, essencial e absoluto. No entanto, cerca de seis anos depois da celebração do contrato, ou seja, quando há muito haviam decorrido todos os prazos previstos na cláusula 4ª do contrato promessa, a credora marcou escritura de compra e venda, manifestando de forma clara o seu interesse na manutenção do contrato, pelo que a apurada não outorga do contrato prometido constante de 10 da matéria de facto provada apenas se pode ter como mora. Não foi sequer alegada qualquer factualidade suscetível de integrar uma declaração antecipada de não cumprimento, nem uma interpelação admonitória nos termos do art. 808º nº1 da Código Civil e nada que pudesse levar à conclusão pela perda de interesse do credor. Confirma-se, assim, que o contrato estava em curso à data da declaração de insolvência, de acordo comos factos apurados, pelo que a doutrina dos AUJs 4/2014 e 4/2019 lhe é aplicável, como concluiu o tribunal recorrido. Nestes autos foi exercida a opção tácita pelo não cumprimento, com o reconhecimento do crédito nos termos reclamados, em termos quantitativos[13]. Tratando-se de negócios jurídicos em curso para o aludido efeito, há que observar a jurisprudência fixada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º, n.º 1, al. f) do Código Civil.”[14] Assim, o beneficiário da promessa, com tradição da coisa, goza do direito de retenção: - se o administrador tiver recusado o seu cumprimento; - se o promitente comprador tiver atuado no contrato na qualidade de consumidor. E no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2019 de 12 de fevereiro de 2019 veio a ser uniformizado no seguinte sentido: “Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”[15]. Apurada a recusa de cumprimento de contrato em curso e não sendo sequer questionada a qualidade de consumidor da credora, a questão a decidir reside na definição da existência de direito de retenção. O direito de retenção é, simultaneamente, um direito real de garantia, quando recaia sobre coisas imóveis e um “modo de compelir o devedor ao cumprimento.”[16] A lei consagra o direito de retenção, em termos gerais, no art. 754º do CC[17] e enumera, no artigo 755º, um elenco de casos especiais. O direito de retenção tem fonte legal, “dependendo ou da verificação dos requisitos da cláusula geral do art. 754º, ou do enquadramento nos outros casos de direito de retenção previstos na lei, em particular no art. 755º.”[18] Para que se adquira o direito de retenção estão previstos em geral, no art. 754º, três requisitos cumulativos: “a detenção legítima de uma coisa que o devedor deva entregar a outrem, a existência de um crédito a favor do retentor e a necessidade de esse crédito resultar de despesas realizadas por causa da coisa ou de danos por ela causados.”[19] A recorrente põe em causa o primeiro destes requisitos, tendo baseado a sua alegação na inexistência de prova quanto à tradição material do imóvel, que como vimos, efetivamente, inexistiu, determinando o não apuramento dos factos alegados nesse sentido pela recorrida. A traditio significa essencialmente entrega[20], podendo essa entrega corresponder a uma posse precária ou de mera detenção, pois é nesse sentido mais lato que tal expressão aparece no enunciado do artigo 442.º do CC. A tradição da coisa prometida alienar, quando se trate de prédio urbano, pode manifestar-se através de diversificados modos de comportamento que revelem, à luz da sua significação social, segundo as regras da experiência, uma situação resultante de um elemento negativo traduzido no abandono da coisa pelo seu anterior detentor em correspondência com um elemento positivo consistente na apprehensio da mesma pelo novo detentor. Nesse tipo de casos, tem sido considerada como tradição simbólica da coisa, por exemplo, a entrega das chaves de um prédio urbano, o que não significa, no entanto, que deva ainda assim ser entendido todo e qualquer ato de entrega de chaves, importando atentar no respetivo contexto, nomeadamente negocial[21]. Atentando nos factos dados como não provados, não temos qualquer dúvida em concluir, diferentemente do tribunal recorrido, pela inexistência de tradição relevante do imóvel prometido vender, o que implica a inexistência de direito de retenção. O que significa, no caso concreto, que o crédito em causa apenas pode ser reconhecido como crédito comum, não gozando de direito de retenção. A apelação é, nestes termos, integralmente procedente, pelo que a sentença recorrida deve ser revogada na parte em que graduou o crédito em causa como garantido por direito de retenção sobre a fração C do prédio urbano sito na Rua …, no lugar de …, Freguesia da …, Concelho de Torres Vedras, inscrito na matriz sob o art. …, descrita na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o nº …. * O apelado, porque vencido, suportará integralmente as custas do presente recurso, custas que, in casu se traduzem apenas nas custas de parte devidas, porquanto se mostram pagas as taxas de justiça devidas pelo impulso processual do recurso e o recurso não envolveu diligências geradoras de despesas – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil [22]. * 5. Decisão Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação, em, julgando a apelação integralmente procedente: a) Revogar a sentença recorrida na parte em que graduou como garantido por direito de retenção sobre o produto da venda da fração C do prédio urbano sito na Rua …, no lugar de …, Freguesia da …, Concelho de Torres Vedras, inscrito na matriz sob o art. …, descrita na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o nº …, o crédito no valor de € 124.699,48, reclamado por P1; b) Determinar a graduação do crédito no valor de € 124.699,48, reclamado por P1, como crédito comum, nos termos determinados pela sentença recorrida para o pagamento destes créditos. * Custas de parte na presente instância recursiva pelo recorrido. Notifique. * Lisboa, 11 de novembro de 2025 Fátima Reis Silva Manuela Espadaneira Lopes Paula Cardoso _______________________________________________________ [1] As nulidades da sentença previstas no art. 615º do CPC, “não são de conhecimento oficioso, pelo que se não forem arguidas pela parte, sanam-se com o decurso do prazo para a sua arguição, pelo que o tribunal superior não pode conhecer delas” – cf. Rui Pinto em Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC), Julgar Online, maio de 2020, pg. 10. [2] Pese embora a recorrente refira como tema (conclusões 13 e 14) a insusceptibilidade de a prova documental junta aos autos ser apta a provar a tradição da coisa, não declarou expressamente pretender impugnar a matéria de facto e não deu cumprimento ao disposto no art. 640º do CPC. [3] Junção essa notificada à aqui recorrente que não se pronunciou nem impugnou o documento. [4] No sentido de que o efeito cominatório previsto no preceito é um cominatório semipleno, ou seja, que se consideram confessados os factos não impugnados que devam ser verificados para permitir a conclusão pelo efeito jurídico pedido, a verificação e graduação ver, entre muitos outros, os Acs. STJ de 05/04/22 (José Rainho - 2115/19) e de 12/11/2019 (Catarina Serra - 4669/13), TRL de 24/11/2020 (Amélia Sofia Rebelo – 27885/16), TRL de 16/01/2024 (Amélia Sofia Rebelo – 1336/12), TRP de 19/11/24 (Rodrigues Pires – 8777/21) e TRG de 04/04/24 (Alexandra Viana Lopes – 4054/20), todos disponíveis em www.dgsi.pt, como os demais citados sem referência. [5] Ver o Ac. TRG de 17/12/2014 - Eva Almeida – 586/13. [6] Ver Acs. STJ de 18/09/07 (Fonseca Ramos - 07A2235), TRG de 17/12/2014 (Eva Almeida – 586/13), TRG de 01/02/2011 (Isabel Fonseca – 496/09), TRC de 08/11/2016 (António Carvalho Martins – 819/13), TRE de 10/02/2009 (Bernardo Domingos – 3041/08) e TRG de 29/05/24 (Gonçalo Oliveira Magalhães – 1766/20). [7] Ac. STJ de 10/12/2015 (Fonseca Ramos – 836/12), onde o erro resultava do confronto entre as reclamações e a lista, Ac. STJ de 30/09/2014 (Ana Paula Boularot – 3045/12) no qual o erro era patente da lista completada com as reclamações, Ac. STJ de 25/11/08 (Silva Salazar - 08A3102), onde o erro emergia do confronto entre as listas e os bens apreendidos, Ac. TRP de 18/12/2018 (Leonel Serôdio – 152/10) no qual o erro era percetível do confronto entre as reclamações e as listas, Ac. TRP de 05/11/2012 (Manuel Domingos Fernandes – 1724/12) onde o erro se evidenciava entre a lista e as certidões prediais juntas aos autos, Ac. TRP de 03/11/2010 (Maria do Carmo Domingues – 2578/09), no qual se percebia o erro no confronto entre a lista e as notificações do art. 129º e Acs. TRC de 25/02/2014 (Catarina Gonçalves – 902/12), TRE de 08/11/2018 (Maria Domingas Simões – 1545/12) e TRE de 19/05/2016 (Silva Rato – 2560/13). [8] Abrantes Geraldes, em Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 7ª edição atualizada, 2022, pgs. 139 a 142. [9] Entre outros ver os acórdãos STJ de 11/07/2023 (Jorge Leal - 331/21), de 29/09/16 (Ribeiro Cardoso – 291/12), TRL de 13/10/2022 (Nelson Borges Carneiro - 2047/20) e TRC de 28/09/2022 (Henrique Antunes - 2415/18). [10] Nos seguintes termos:” Ainda não houve resolução do contrato-promessa e a Administradora da insolvência não optou pelo cumprimento do contrato. Estamos perante contrato-promessa de compra e venda com consumidor, para habitação, com pagamento da totalidade do preço e traditio. Nos termos do acórdão uniformizador de jurisprudência 4/2014, de 19/5, “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil”. Assim, o habilitado no lugar de P1 detém crédito com direito de retenção.” [11] Neste sentido e entre outros: - Calvão da Silva in Sinal e Contrato Promessa, 119, Galvão Teles in Direito das Obrigações, 7ª ed., 129, Antunes Varela in RLJ 119, 216 e Menezes Leitão in Direito das Obrigações, I, 239; - Acs. STJ de 20/01/05, 17/02/05, 29/11/06, 22/03/07, 05/07/07, 22/01/08, 07/02/08, 15/05708, 16/04/09, 20/05710, 27/01/11 e 28/06/11, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj.nsf/. [12] Seguimos de perto o Ac. STJ de 23/09/10 (Serra Baptista) disponível in www.dgsi.pt/jstj.nsf/. [13] Neste sentido, de que o reconhecimento não condicional pelo administrador da insolvência, na relação prevista no art. 129º, dos créditos reclamados resultantes do incumprimento de negócio em curso se deve ter por recusa de cumprimento ver Catarina Serra, Lições, pg. 227 e nota 328, a mesma autora com Nuno Pinto de Oliveira em Insolvência e contrato-promessa - os efeitos da insolvência sobre o contrato-promessa com eficácia obrigacional, Revista da Ordem dos Advogados, 2010, pp. 399 e seguintes, Gisela César em Os efeitos da Insolvência sobre o Contrato Promessa em Curso, 2ª edição, Almedina, 2017, pg. 96 e, entre outros, os Acs. STJ de 01/10/19 (José Rainho – 1204/14), 29/10/19 e 27/11/19 (Pinto de Almeida – 3975/16 e 41/10) e de 12/11/19 (Catarina Serra – 4669/13). [14] Disponível em https://dre.pt/home/-/dre/25343713/details/maximized [15] Disponível em https://dre.pt/home/-/dre/123473735/details/maximized [16] Miguel Pestana de Vasconcelos em Direito das Garantias, 3ª edição, Almedina, 2019, pgs. 386 e ss. [17] Onde se estabelece: «O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.» [18] Miguel Pestana de Vasconcelos, local citado, pg. 388. [19] Miguel Lucas Pires em “Dos Privilégios Creditórios: Regime Jurídico e sua Influência no Concurso de Credores, Almedina, 2002, pg. 153. [20] Seguindo de perto o Ac. STJ de 28/9/22 (Henrique Araújo – 98/12). [21] O art. 1263º, al, b) do CC faz equivaler a tradição material e a tradição simbólica. [22] Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em https://blogippc.blogspot.com/. |