Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19633/24.3T8LSB-C.L1-1
Relator: RENATA LINHARES DE CASTRO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DESPACHO LIMINAR
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
CRITÉRIOS
AGREGADO FAMILIAR
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
PRINCÍPIO DA AUTO-RESPONSABILIDADE DAS PARTES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Sumário (da relatora) – artigo 663.º, n.º 7, do CPC[1]
I. Tendo sido alegado pela devedora que tem duas filhas consigo residentes mas não tendo juntado os respectivos assentos de nascimento das mesmas, incumbia ao tribunal ordenar oficiosamente a junção de tais assentos (ao abrigo do princípio do inquisitório previsto no artigo 411.º do CPC) ou, pelo menos, convidar aquela para que os juntasse (ao abrigo do princípio da cooperação previsto nos artigos 7.º e 590.º, n.º 4, ambos do CPC).
II. Impende sobre o exonerando o ónus de alegação e prova dos factos que integram a causa de pedir, não podendo esta ser ampliada pelo tribunal, o qual não poderá substituir-se àquele quanto a tal alegação factual, por força do princípio do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes (artigo 5.º, n.º 1, do CPC). 
III. Em sede de incidente de exoneração do passivo restante, e para vigorar durante o período da cessão, é fixado ao devedor um rendimento (rendimento indisponível) que ficará excluído dos montantes a ceder à fidúcia (rendimento disponível) e que deverá salvaguardar o necessário ao sustento minimamente digno daquele e do respectivo agregado familiar - artigo 239.º, n.º 3, al. b)-i), do CIRE.
IV.  Para tanto, ter-se-á como valor de referência a RMMG, sem prejuízo de se atender igualmente às circunstâncias que, no caso, se verificam (rendimentos existentes e despesas que terão necessariamente de continuar a ser suportadas para satisfação das necessidades básicas do agregado familiar).
V. Residindo a devedora com duas filhas e auferindo a mesma um rendimento mensal certo, o apuramento das quantias a ceder e a própria cessão deverão ser efectuados mensalmente, afigurando-se ajustado à subsistência condigna de tal agregado o correspondente a uma RMMG e meia, devendo esta última ser contabilizada com recurso à fórmula: RMMGx14:12.

[1] Por opção da relatora, o presente acórdão não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.

I - RELATÓRIO
VV apresentou-se à insolvência, tendo simultaneamente requerido a exoneração do passivo restante.
Para tanto invocou: ser divorciada e ter duas filhas a seu cargo, uma das quais doente crónica (ambas recebendo alimentos); viverem as três em casa da mãe da devedora; trabalhar como assistente de consultório médico, onde aufere 1.141,90€ líquidos mensais; suportar despesas de cerca de 1000€ (com alimentação, renda, consumos domésticos, combustível, saúde, educação, vestuário e calçado, seguro, passe e ginásio).
Por sentença proferida em 04/09/2024, já transitada em julgado, foi a insolvência declarada.
A prolação da sentença foi precedida de despacho através do qual foi ordenada a junção aos autos de certidão de assento de nascimento da devedora e do respectivo certificado de registo criminal (Ref.ª/Citius 437874608).

Em 30/10/2024, pelo Administrador da Insolvência (AI) foi junto relatório, nos termos previstos pelo artigo 155.º do CIRE[1], no qual declarou nada ter a opor ao pedido de exoneração do passivo restante.
Nenhum credor deduziu oposição ao pedido de exoneração do passivo restante.

Em 12/05/2025 foi proferido despacho inicial referente ao incidente de exoneração do passivo restante, o qual foi liminarmente admitido, no mesmo se tendo consignado:
“(…) Na situação em apreço temos de ter em conta que a Requerente é divorciada, que reside com a sua mãe e as suas duas filhas a residir, auferindo um salário mensal de € 820,00, a que acresce subsídio de refeição no valor diário de € 9,60, subsídio mensal de € 105,00 e isenção de horário de trabalho no valor de € 205,00, no montante total mensal de cerca de € 1.341,20.
Importa aqui mencionar que, pese embora a Requerente tenha vindo invocar que tem duas filhas, não explicou, nem tão pouco juntou aos autos os assentos de nascimento das mesmas, por forma ao Tribunal aferir da sua idade, e, bem assim, da necessidade de dependência económica por parte dos seus progenitores.
Também não juntou a Insolvente aos autos quaisquer documentos clínicos comprovativos da condição clínica de que a sua filha mais nova padece, nem mesmo qualquer documento que atestasse que LP frequenta aulas de ginástica com um valor mensal de cerca de € 100,00, ou consultas de psicologia.
Ademais, não reportou e comprovou a Insolvente nos autos se recebe ou não algum tipo de pensão de alimentos por parte do progenitor das filhas, ou em que medida este a auxilia em termos monetários.
Por fim, não foi possível ao Tribunal entender se a Insolvente reside em casa própria ou arrendada, e, nesta última situação qual o valor mensal da renda.
Isto dito, atendendo aos factos dados como provados e não provados, importa fazer uma ponderação, sopesando, por um lado a concordância prática entre o direito da Insolvente a um sustento minimamente digno, e, por outro lado, o direito dos credores a verem satisfeitos os seus créditos, ainda que parcialmente, pelos rendimentos cedidos.
Desta feita, considerando por um lado a situação económico-social da Requerente, e, por outro lado, os encargos que se reputam como normais e adequados em face do seu quotidiano – mormente o pagamento de alimentação, despesas com água, luz, gás, serviços de telecomunicações, vestuário, calçado e despesas médicas ou medicamentosas esporádicas – determino que a mesma deverá ceder a favor da massa insolvente o rendimento que exceda o valor equivalente a uma remuneração mínima mensal garantida, sucessivamente aplicável nos três anos de duração do período de cessão.”
Decidindo-se depois:
“(…) − Determino que, durante o período de cessão, de três anos, contados desde o encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que a Insolvente mensalmente venha a auferir, correspondente a tudo o que exceder o valor equivalente a uma remuneração mínima garantida sucessivamente aplicável, se considere cedido ao fiduciário ora nomeado (…);
− Consigna-se que integram o rendimento disponível da Insolvente todos os rendimentos que lhe advenham a qualquer título, com exceção dos enumerados nas alíneas a) e b), do n.º 3, do artigo 239.º, (…);
− Durante o período da cessão, e sob pena de não lhe ser concedida, a final, a exoneração do passivo restante, a Insolvente fica obrigada, nos termos do artigo 239.º, n.º 4 (…), a: // a) não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, devendo informar este Tribunal e o fiduciário, ora nomeado, sobre os seus rendimentos e património na forma e prazo que tais informações lhe sejam requisitadas; // b) exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, ou a procurar diligentemente por profissão quando desempregada, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apta; // c) entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão; // d) informar este Tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado, sobre as diligências com vista à obtenção de emprego; // e) não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar especial vantagem para algum deles.
Adverte-se a Insolvente de que poderá ocorrer cessação antecipada do procedimento de exoneração se ocorrer algumas das circunstâncias previstas no artigo 243.º (…)”.

Simultaneamente, foram os autos encerrados ao abrigo do disposto na al. e) do n.º 1 do artigo 230.º e declarado o carácter fortuito da insolvência.

Inconformada com tal decisão, dela interpôs RECURSO a devedora, formulando as seguintes conclusões:
“I – Vem o presente recurso interposto do Despacho no qual no âmbito de decisão liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pela devedora, aqui apelante, foi fixado a título de rendimento disponível a quantia que aquela venha auferir, mensalmente, em tudo o que excede 1 RMMG.
II – Tal valor justificou o Tribunal por não ter a insolvente provado a dependência económica das suas filhas.
III – Perante o articulado na petição inicial, as declarações de IRS, as suas declarações, o relatório do Administrador de Insolvência, e a factualidade provada e não provada (que tem duas filhas que vivem consigo e a dependência económica, respectivamente), deveria o Tribunal ter procedido à notificação para que esta pudesse acrescentar a demonstração da filiação/dependência de forma mais rigorosa, juntando os assentos de nascimento de ambas (certidões de nascimento).
IV – Não tendo sido dada essa possibilidade, desconhecendo a insolvente que não iria o Tribunal considerar provada tal factualidade, caberá ao Tribunal da Relação de Lisboa revogar a douta decisão de admissão liminar de exoneração do passivo restante, alterando-a por outra que dê como facto provado existirem duas filhas dependentes da insolvente.
V – Em face dessa revogação e da prova produzida, caberá ao Tribunal alterar a decisão fixando como rendimento disponível todo o valor auferido mensalmente pela insolvente superior a 1+0,5+05RMMG o que perfaz 2 ordenados mínimos nacionais.
VI – Para além do valor, caberá ao Tribunal da Relação de Lisboa determinar, em face do entendimento da jurisprudência portuguesa recente, se fixe a fórmula que engloba anualmente os subsídios de férias e de Natal considerando como base de cálculo de cada mês um duodécimo de 14 meses de SMN agora denominado RMMG (RMMGx14:12), ao invés dos 12 meses fixados na decisão recorrida, requerendo-se nesta parte igualmente a sua revogação e substituição por decisão que considere aquela.
Nestes termos e nos mais de Direito deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra no que ao valor de cessão diz respeito, alterando-o para tudo o que exceda 2 rendimentos mínimos nacionais e que fixe a fórmula que engloba anualmente os subsídios de férias e de Natal, considerando como base de cálculo de cada mês um duodécimo de 14 meses de SMN agora denominado RMMG (RMMGx14:12), assim se fazendo a costumada Justiça.”
Juntou dois documentos (assentos de nascimento das duas filhas).

Não consta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido por despacho proferido em 08/09/2025. 

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II – DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, ressalvadas as questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, sem prejuízo de o tribunal ad quem não estar limitado pela iniciativa das partes - artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC. Contudo, não está este tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, desde que prejudicados pela solução dada ao litígio.
Assim, as questões a decidir são:
- Questão prévia: da admissibilidade de junção de documentos com as alegações de recurso;
- Do montante a excluir do rendimento disponível, por ser necessário ao sustento minimamente digno da recorrente;
- Do critério a fixar para o cômputo do valor em causa.

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III – FUNDAMENTAÇÃO

Questão prévia - Da junção de documentos em sede de recurso
Não dispondo o CIRE de qualquer norma atinente à junção de documentos, por força do estatuído no seu artigo 17.º, n.º 1, haverá que recorrer ao que, nessa matéria, prevê o CPC.
Estatui o artigo 651.º, n.º 1 do CPC que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.
Como decorre expressamente deste n.º 1, a possibilidade de junção de documentos às alegações reveste carácter excepcional. Para além da situação em que tal junção se mostra necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância (decisões surpresa), o que aqui não releva, uma vez encerrada a discussão, e sendo interposto recurso, apenas serão admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
Nesta segunda hipótese incluem-se os casos de superveniência objectiva (como sucede quando, por exemplo, o documento se encontra em poder de terceiro, o qual só posteriormente o disponibiliza) e de superveniência subjectiva (situações nas quais, pese embora a parte tenha actuado de forma diligente, só posteriormente teve conhecimento da existência do documento).[2]
Assim, e como tem vindo a ser decidido uniformemente pela nossa jurisprudência, será de recusar a junção de um documento que, pese embora potencialmente útil à causa, esteja relacionado com factos que, já antes da decisão, a parte sabia estarem sujeitos a prova (e, como tal, que já deveriam ter sido juntos).[3]
No presente caso, pela apelante foram juntos os assentos de nascimento de ambas as filhas, sendo que tais documentos não se enquadram na previsão do artigo 651.º, n.º 1 do CPC (porquanto se encontravam em condições de terem sido juntos ao processo em momento anterior ao da prolação da decisão recorrida).
Sucede que, para apreciação do presente recurso, os assentos de nascimento em causa afiguram-se imprescindíveis, pelo que sempre esta instância teria que ordenar a sua junção, em cumprimento do previsto pelo artigo 411.º do CPC ex vi artigo 17.º do CIRE, dispondo o primeiro destes artigos incumbir ao juiz “realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
Nessa medida, manter-se-ão os mesmos nos autos.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. A Requerente é divorciada, residindo com as suas duas filhas e com a sua mãe.
2. A Requerente é trabalhadora sociedade FRR – Serviços Médicos e Equipamentos, Lda., na categoria de assistente de consultório, auferindo o vencimento base de € 820,00 a que acresce subsídio de refeição no valor diário de € 9,60, subsídio mensal de € 105,00 e isenção de horário de trabalho no valor de € 205,00.
3. A Requerente não possui quaisquer bens imóveis ou móveis sujeitos a registo.
4. A Requerente assume obrigações vencidas e não pagas no valor de € 25.923,35.
5. A Requerente apresentou-se à insolvência em 21/08/2024.
6. Nada constava no registo criminal da Requerente em 21/04/2025.
E considerou-se não provado:
A. A filha mais nova da Requerente, LP, padece de uma doença crónica, necessitando de acompanhamento médico.
B. A filha da Requerente, LP, encontra-se a frequentar aulas de ginástica, pelas quais a Requerente paga cerca de € 100,00 mensais.
C. Encontra-se ainda a ser acompanhada em consultas de psicologia, cujo custo é suportado pela Requerente.

Ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1 do CPC (cfr., ainda, artigos 663.º, n.º 2 e 607.º, n.º 4 do mesmo código), aditam-se os seguintes factos:
7. LP nasceu em 24/08/2015 e encontra-se registada como sendo filha da recorrente e de BP;
8. GM nasceu em 23/11/2006 e encontra-se registada como sendo filha da recorrente e de RM.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Do montante a excluir do rendimento disponível, por ser necessário ao sustento minimamente digno da devedora
Como refere Catarina Serra[4], o instituto da exoneração do passivo restante consiste “na afectação, durante certo período após a conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção daqueles que não tenha sido possível cumprir, por essa via, durante esse período.”
E, continua, “podem identificar-se hoje dois modelos para o tratamento da insolvência da pessoa singular: o modelo a que se pode chamar-se modelo (puro) de fresh start e o modelo (derivado) do earned start ou da reabilitação. O primeiro baseia-se na ideia de que a liquidação patrimonial e o pagamento das dívidas deve ter lugar no curso do processo de insolvência, sendo que, uma vez concluído este, restem ou não dívidas por pagar, o devedor deverá ser libertado de forma a poder retomar, com tranquilidade, a sua vida. O modelo da reabilitação assenta ainda no fresh start mas desenvolve um raciocínio diferente: o raciocínio de que o devedor não deve ser exonerado em quaisquer circunstâncias pois, em princípio, os contratos são para cumprir (pacta sunt servanda). Em conformidade com isto, o devedor deve passar por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afectado ao pagamento das dívidas remanescentes. Só findo este período, e tendo ficado demonstrado que o devedor merece (earns) a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício. Este é, indiscutivelmente, o modelo de que mais se aproxima da lei portuguesa.”
Durante tal período fica o devedor obrigado a cumprir com as obrigações que lhe forem impostas, sob pena de, não o fazendo, poder ter lugar a cessação antecipada ou recusa da exoneração ou, ainda, a sua revogação – artigos 243.º a 246.º.
Caso cumpra com o estipulado, não sendo a sua conduta passível de censura ao longo de todo esse período, fica, então, liberto do remanescente do seu passivo, sem excepção dos créditos que não tenham sido reclamados e verificados (passivo que não tenha sido liquidado no âmbito do processo insolvencial, nem durante o período de cessão subsequente – artigo 235.º -, ressalvadas as situações a que alude o artigo 245.º). Se, pelo contrário, a exoneração for recusada, manter-se-ão na esfera jurídica do devedor e a seu cargo os créditos não satisfeitos pelas forças da massa insolvente.[5]
Entre as obrigações que o devedor terá de cumprir encontra-se a de informar sobre os rendimentos auferidos (na forma e no prazo em isso que lhe seja solicitado) e a de ceder os rendimentos disponíveis, os quais serão afectados aos fins previstos no artigo 241.º e determinados por contraposição com os rendimentos necessários a uma subsistência humana e socialmente condigna e que cabe ao juiz quantificar e fixar (o chamado rendimento indisponível). 
Com efeito, prescreve o artigo 239º: “1 – Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes a esta ou ao decurso dos prazos previstos no n.º 4 do artigo 236.º. 2 - O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte. 3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) dos créditos a que se refere o art. 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) do que seja razoavelmente necessário para: (i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; (ii) o exercício pelo devedor da sua actividade profissional; (iii) outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor. 4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores. (…)”.
Resulta deste preceito, designadamente da sub-alínea b)-i) do seu n.º 3, que o legislador fixou, como regra, um limite máximo correspondente a três salários mínimos (só excepcionalmente podendo tal limite ser excedido e apenas mediante decisão do juiz devidamente fundamentada) como sendo o necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. [6]
Apesar de não ter sido estipulado qualquer montante mínimo para esse efeito, como tem vindo a ser pacificamente defendido, não deverá o mesmo ser inferior à retribuição mínima mensal garantida  (que, em 2024 ascendeu a 820€ e, no corrente ano de 2025, ascende a 870€[7]), uma vez que esta, como defendido pelo Tribunal Constitucional, corresponderá ao “estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador”.[8]
Porém, não concretizando o preceito o que se deve entender por “sustento minimamente digno“, tendo o legislador optado por um conceito aberto e indeterminado, terá o mesmo que ser preenchido pelo julgador, perante as concretas circunstâncias do caso (terá tal conceito de ser objectivado face à singularidade que reveste a situação concreta do devedor). Será, pois, o juiz quem terá de aferir e definir o que deverá ser entendido por esse mínimo (fazendo uma apreciação e ponderação casuística da situação e só depois formulando o competente juízo quanto à fixação do quantitativo excluído da cessão dos rendimentos), sendo que, para o efeito, não poderá deixar de ter em conta que se trata de uma situação transitória, que não visa, sem mais, desresponsabilizar o devedor (o que configuraria um perdão generalizado das dívidas, resultado que o legislador não quis prever).[9]
Nessa medida, sempre o devedor deverá ter cautela e contenção nas despesas que venha a assumir. Mais concretamente, terá o devedor que estar consciente da impossibilidade de manutenção do nível de vida que até então desfrutava, reduzindo as suas despesas ao estritamente necessário, tanto mais que não são apenas os seus interesses que estão em causa, mas igualmente os dos seus credores, a quem é imposto um sacrifício na satisfação dos respectivos créditos. Visa-se, pois, um equilíbrio entre estes dois interesses contrapostos (o sacrifício financeiro dos credores justifica proporcional sacrifício do insolvente, apenas se impondo como limite o seu sustento minimamente condigno).
Aliás, a quantia a reservar para o sustento do devedor (e que assim ficará excluída do rendimento disponível), terá que ser apurada, não em função das concretas despesas suportadas – sob pena de o limite máximo previsto no artigo 239.º, n.º 3, al. b) – i) configurar letra-morta -, mas antes com base no que é razoável despender, com um mínimo de dignidade para esse mesmo sustento[10] - “o critério da dignidade da pessoa humana encontra-se associado à dimensão dos gastos necessários à subsistência e custeio de necessidades primárias do devedor e seu agregado”.[11] [12]
Para aferição do rendimento indisponível (necessário ao invocado sustento minimamente digno) haverá, pois, que valorar as condições pessoais e a vida do insolvente e respectivo agregado familiar.
Nas palavras de Ana Filipa Conceição, “englobam as quantias destinadas ao sustento digno do devedor, em geral, as relacionadas com alimentação, vestuário, habitação, despesas de saúde, despesas de educação dos filhos menores e transportes dos membros do agregado familiar, tanto para a escola, como para o local de trabalho”.[13] [14]
O que exceder o montante assim determinado terá que ser entregue ao fiduciário e destinado aos credores.

Reportando ao caso, constata-se que a decisão recorrida fixou o rendimento indisponível no correspondente a uma RMMG, devendo ser cedido à fidúcia tudo o que exceda esta última.
A apelante questiona o montante fixado a título rendimento indisponível (correspondente a uma RMMG), defendendo não ser o mesmo o necessário à subsistência condigna do seu agregado familiar, desde logo por ter a seu cargo duas filhas, uma das quais doente crónica e com despesas de saúde acrescidas.
Defende que lhe deveria ter sido fixado o montante correspondente a duas RMMG (uma para a devedora e metade para cada uma das filhas).
Na decisão recorrida, não obstante se ter dado por provado que a devedora tinha duas filhas, consigo residentes, consignou-se que a mesma “não explicou, nem tão pouco juntou aos autos os assentos de nascimento das mesmas, por forma ao Tribunal aferir da sua idade, e, bem assim, da necessidade de dependência económica por parte dos seus progenitores. (…) Ademais, não reportou e comprovou a Insolvente nos autos se recebe ou não algum tipo de pensão de alimentos por parte do progenitor das filhas, ou em que medida este a auxilia em termos monetários.
Efectivamente não foram juntos os assentos de nascimento, mas a verdade é que tal omissão não impediu o tribunal de considerar que a devedora tinha duas filhas (facto para o qual seria pressuposto que tais assentos tivessem sido juntos). Ou seja, na óptica da 1.ª instância, a questão prende-se apenas com as datas de nascimento/idade das filhas da recorrente.
Julgamos que tal juízo não se afigura sustentável, revelando inclusive alguma incoerência.
Tendo o tribunal a quo aceitado, sem mais, a existência de duas filhas, isto é, aludindo, inclusive, ao género das mesmas (fazendo, ainda, constar da factualidade não provada o nome de uma delas – LP -, bem como que esta será a “filha mais nova”), sempre lhe incumbiria, ao abrigo do já mencionado princípio do inquisitório (artigo 411.º do CPC), ordenar oficiosamente a junção dos assentos de nascimento ou, pelo menos, em respeito pelo princípio da cooperação (artigos 7.º e 590.º, n.º 4, ambos do CPC ex vi artigo 17.º do CIRE), convidar a devedora para que juntasse aos autos tais assentos (tanto mais que estava em causa matéria alegada na p.i. e que veio a ser considerada na decisão recorrida).
Como defendem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[15], “A cooperação é uma responsabilidade conjunta de todos os intervenientes processuais, com destaque para o juiz e para os mandatários das partes, surgindo a sua necessidade essencialmente na fase posterior aos articulados. Então cumpre ao juiz proceder à análise detalhada das falhas supríveis, da quais possam resultar prejuízos para as partes, e apreciar as diversas soluções plausíveis da questão de direito”. Estes autores acrescentam ainda que, entre outros casos, o dever de colaboração se manifesta “no dever de o juiz proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento fáctico dos articulados”.
Sobre o julgador incumbe um poder-dever que se traduz no convite tendente ao aperfeiçoamento da p.i. e à instrução com a necessária prova documental, mais a mais quando, para fixação do montante necessário a um sustento minimamente digno, o legislador manda atender à composição do agregado familiar do devedor (pelo que importará indagar do número de elementos que integram tal agregado, assim como a quem o devedor deve alimentos ou assistência, ou seja, efectuar uma análise casuística)[16].
Já com relação aos problemas de saúde de que a filha LP alegadamente sofrerá, bem como a eventuais despesas de saúde, ter-se-á de subscrever a posição da 1.ª instância, já que nada de concreto foi alegado (nomeadamente qual a patologia em causa), assim como nada foi junto que demonstrasse tal alegação (declaração médica, prescrições, recibos de consultas, etc).
Sendo ao exonerando que incumbe o ónus de alegação e prova dos factos que integram a causa de pedir, esta última não poderá ser ampliada pelo tribunal, o qual não poderá substituir-se àquele quanto a tal alegação factual, por força do princípio do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes – artigo 5.º, n.º 1 do CPC[17]. 
Acresce que nem sequer fazendo apelo ao poder-dever do inquisitório previsto no artigo 11.º do CIRE (aqui aplicável em face de se tratar de incidente processado no processo principal de insolvência), a conclusão poderá ser outra.
É que tal poder-dever não visa colmatar o ónus de alegação e prova, mas tão somente permitir que o tribunal pondere outros factos (não alegados) que do processo resultem.
Não é essa a presente situação, porquanto a recorrente invocou problemas de saúde da filha, mas fê-lo em termos genéricos (“doente crónica”), e sem qualquer suporte probatório, nada resultando do processo que assim o demonstre (ao contrário do que sucede com o facto de efectivamente ter a devedora duas filhas consigo residentes).   
Acresce que, através do presente recurso, não se impugnou a factualidade (provada e não provada) que foi fixada pela 1.ª instância.
E, a demonstrar-se ocorrer alteração das actuais circunstâncias ou a comprovar-se a existência de qualquer despesa extraordinária, sempre a recorrente poderá vir ao processo solicitar que seja o montante fixado a título de rendimento indisponível revisto/alterado ou que a eventual verba correspondente a tal despesa seja excluída do rendimento disponível, como decorre do artigo 239.º, n.º 3, al. b) - iii), do CIRE[18].
Como sumariado no acórdão desta Secção de 04/06/2024[19], “A decisão de exoneração do passivo restante (em que se determina o montante a excluir do rendimento disponível) à semelhança das decisões proferidas na jurisdição graciosa, goza de uma imutabilidade “diminuída”, podendo ser alterada, se circunstâncias supervenientes o impuserem, isto é, se se alterar a situação que ela visa regular.” 
Já no citado acórdão da Relação de Coimbra de 04/02/2020, “Quanto a eventuais despesas extraordinárias deverão ser atendidas pelo tribunal, já não no âmbito do ponto i), mas com recurso ao disposto na al. ii) que determina a exclusão de «outras despesas ressalvadas pelo juiz, a requerimento do devedor»[20].
Isto posto, e tendo presente, não só o acabado de defender, mas também os factos que, oficiosamente, por esta Relação foram aditados, desde já se adianta ser nosso entendimento que a fixação do rendimento indisponível como correspondendo a uma RMMG não se afigura adequada à concreta situação da insolvente.
Temos por assente que o agregado familiar da devedora é constituído pela própria, por duas filhas – uma de 10 anos e outra de 19 anos – e pela mãe.
Desconhecem-se quais as concretas despesas suportadas com tal agregado, bem como em que medida a mãe da devedora para as mesmas contribui.
Sendo inquestionável que incumbe à devedora o ónus de alegação e prova dos gastos atinentes ao seu sustento (e do respectivo agregado familiar), é igualmente indiscutível que sempre existirão despesas inevitáveis, por corresponderem a necessidades básicas de qualquer pessoa (como as referentes a água, luz, gás, alimentação, vestuário, higiene pessoal ou despesas ocasionalmente suportadas com saúde).
A devedora aufere um vencimento base correspondente à RMMG, acrescida de subsídio de alimentação (9,60€/dia), de subsídio mensal (105€) e de compensação por isenção de horário de trabalho (205€).
Apesar de nada constar quanto a concretos montantes pagos a título de alimentos devidos às filhas da devedora, refere-se no artigo 2.º da p.i. que ambas recebem alimentos.
Com relação à filha maior de idade, nada resulta do processo que permita concluir estar a mesma ainda a estudar ou estar já integrada no mercado de trabalho.
Porém, não se poderá esquecer que é dever dos pais prestar auxílio e assistência aos filhos, sustentando-os e assumindo, entre outras, as despesas relativas à sua saúde e educação, até que os mesmos atinjam a maioridade ou até aos 25 anos se estiverem em processo de “educação ou formação profissional” – artigos 1874.º, n.º 1, 1877.º, 1878.º, n.º 1, 1880.º e 1905.º, n.º 2, todos do CC[21].
Pese embora não tenha sido alegado que a filha maior ainda estude (sendo que também nada indicia que assim não suceda, assim como também inexistem indícios de que já aufira rendimentos), o certo é que a devedora tem ambas as filhas a residir consigo, em economia comum, e o legislador manda atender às necessidades do agregado familiar (e não do devedor e filhos menores).
Pelo que, não obstante se ter como valor de referência a RMMG, há que atender igualmente às circunstâncias que, no caso, se verificam (rendimentos existentes e despesas que terão necessariamente de continuar a ser suportadas para satisfação das necessidades básicas do agregado familiar).
Como se escreveu no acórdão da Relação de Coimbra de 04/02/2020[22], “Um olhar pela jurisprudência permite-nos ainda assentar nas seguintes ideias que constituirão um denominador comum na definição do concreto montante a excluir do rendimento disponível a ceder pelo insolvente: 1. Na fixação do rendimento disponível, deve ter-se em consideração as condições pessoais do devedor e do seu agregado familiar (idade, estado de saúde, situação profissional, rendimentos), pelo que o valor a excluir não poderá deixar de ter em consideração o número de membros do agregado familiar e respetivos rendimentos, auferidos independentemente da sua natureza. (…) 2. A fixação de um rendimento indisponível não visa assegurar a manutenção do padrão de vida anterior à declaração de insolvência, mas apenas uma vivência minimamente condigna, cabendo ao visado adequar-se à especial condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível de vida, em general e na medida do possível, à realidade em que se encontra. Sendo o critério a usar pelo julgador o da dignidade da pessoa humana, este encontra-se associado à dimensão dos gastos necessários à subsistência e custeio das necessidades primárias e não assente em referências grupais ou padrões de consumo próprios da classe social antes integrada, nível de vida correspondente ou a uma específica formação profissional ou atividade ou hábitos de vida pretéritos. 3. Não haverá que atender às concretas despesas comprovadas ou meramente alegadas pelo insolvente, procurando-se antes a determinação do que é razoável gastar para prover ao seu sustento e do seu agregado familiar que, eventualmente, tenha a seu cargo.” (sublinhado nosso).
Nessa medida, o montante correspondente a uma RMMG não se afigura suficiente para acautelar, com um mínimo de dignidade, a necessidades inerentes à subsistência dos três elementos (não se contabilizando o quarto elemento do agregado familiar, uma vez que não foi alegado que a mãe da devedora esteja a seu cargo).
Porém, não se poderá descuidar que os respectivos pais das filhas da devedora também têm que contribuir para o sustento das mesmas (sendo que é a própria recorrente quem afirma que assim sucede, não obstante não ter mencionado quais os montantes entregues a título de alimentos).
Em face do acabado de expor, e tendo em conta o que consta dos autos e é alegado e peticionado pela recorrente (que, parcialmente, não deixa de ter subjacente a denominada escala de Oxford[23]), julgamos ser de fixar o montante a excluir dos rendimentos a ceder no correspondente a uma RMMG e meia (porquanto, para além da devedora, também os pais das suas filhas não poderão ser isentos de responsabilidade pelos encargos às mesmas inerentes).

Do critério a fixar para o cômputo do valor em causa.
Peticiona ainda a recorrente que seja aplicada a fórmula que engloba anualmente os subsídios de férias e de Natal considerando como base de cálculo de cada mês um duodécimo de 14 meses de SMN agora denominado RMMG (RMMGx14:12), ao invés dos 12 meses fixados na decisão recorrida.
Como decorre do despacho liminar pelo qual foi admitido o incidente e fixado qual o rendimento indisponível, não foi esse o critério adoptado pela Mma. Juíza a quo, a qual decidiu: “o rendimento disponível que a Insolvente mensalmente venha a auferir, correspondente a tudo o que exceder o valor equivalente a uma remuneração mínima garantida sucessivamente aplicável, se considere cedido ao fiduciário ora nomeado”.
Porém, a pretensão da recorrente vem ao encontro do que já temos vindo a defender em anteriores acórdãos – acórdãos proferidos em 05/03/2024 (Proc. n.º 386/23.9T8VPV-C.L1), em 23/04/2024 (Proc. n.º 11641/23.8T8LSB-D.L1) e em 25/06/2024 (Proc. n.º 12296/23.5T8SNT-F.L1), todos da mesma relatora, pese embora apenas o primeiro se encontre publicado.
Tendo por certo que, no caso, se deverá efectuar mês a mês o apuramento dos rendimentos e a respectiva cessão (uma vez que a insolvente aufere sempre os mesmos rendimentos), e apesar de não existir unanimidade ao nível da jurisprudência[24], é nosso entendimento que se deverá recorrer à fórmula que engloba anualmente os subsídios de férias e de Natal, considerando como base de cálculo de cada mês um duodécimo de 14 meses de SMN, agora denominada RMMG (RMMGx14:12).
Julgamos ser esta a posição que se mostra mais equilibrada e consentânea com os princípios subjacentes ao da fixação dos rendimentos a excluir da cessão (com vista à salvaguarda de um sustento minimamente condigno do devedor), nada resultando da situação em análise que nos leve a adoptar diferente entendimento.
Em síntese: o rendimento indisponível deverá corresponder, pelo menos, à RMMG multiplicada por catorze (porquanto tal remuneração é recebida 14 vezes no ano), sendo depois o resultado obtido dividido por doze.
Sendo certo que, em face da expressão constante do corpo do n.º 3 do artigo 239.º – “rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor” – sempre os montantes pagos por conta dos subsídios de férias e de Natal, ou quaisquer outros que venham ser a recebidos pelo devedor, integrarão o conceito de rendimentos para os efeitos previstos, há também que referir que, quando este preceito alude na sua al. b)-i) a salário mínimo nacional (RMMG) fá-lo enquanto valor de referência de um mínimo de subsistência condigna, em respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana (cfr. artigo 1.º da CRP).
E certamente que o legislador, quando assim estipulou, não ignorava que o mesmo era pago 14 vezes ao ano.
Acresce que o próprio montante fixado para efeitos de RMMG (o qual é alvo de actualização anual) tem necessariamente subjacente a circunstância de ser essa a frequência do seu pagamento (pelo que, por regra, cada um desses catorze pagamentos se assumirá como estritamente necessária ao mínimo de subsistência condigna).
Por assim ser, entendemos que os montantes recebidos a título de subsídios de férias e de Natal deverão ser contabilizados para aferir do valor fixado como sendo o necessário para o sustento minimamente digno da recorrente, nessa medida se apurando os valores que deverão ser cedidos.
Isto posto,
Residindo a devedora com duas filhas e auferindo a mesma um rendimento mensal certo, o apuramento das quantias a ceder e a própria cessão deverão ser efectuados mensalmente, afigurando-se ajustado à subsistência condigna de tal agregado o correspondente a uma RMMG e meia, devendo esta última ser contabilizada com recurso à fórmula: RMMGx14:12.
Procede, pois, parcialmente, o presente recurso.

Quanto à responsabilidade pelas custas:
Nos termos do artigo 527.º, nºs 1 e 2 do CPC, tendo a recorrente ficado parcialmente vencida na apelação deverá a mesma suportar as custas por referência ao respetivo decaimento – que, nos termos do artigo 300.º, n.º 2 do CPC, corresponde à diferença entre o valor mensal que requereu – duas vezes o valor da RMMG (calculada segundo a fórmula supra indicada) - e o valor mensal por este acórdão fixado - 1,5 o valor da RMMG (calculado segundo a mesma fórmula) -, vezes doze meses do ano e, o produto assim obtido, vezes três (correspondente ao número de anos de duração do período de cessão).

***
IV - DECISÃO
Perante o exposto, acordam as Juízas desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revogar a decisão recorrida a qual se substitui por outra que fixa o rendimento a excluir dos montantes a ceder no correspondente a uma RMMG e meia, o que deverá ser calculado com recurso à fórmula: RMMGx14:12.
Custas pela apelante, proporcionais ao seu decaimento (nos moldes supra referidos).

Lisboa, 11 de Novembro de 2025
Renata Linhares de Castro
Paula Cardoso
Susana Santos Silva
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[1] Diploma ao qual nos estaremos a referir sempre que se invocar algum artigo sem menção à respectiva origem.
[2] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A acção declarativa comum, Almedina, 4ª edição, pág. 291.
[3]  ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Vol I, Almedina, 2.ª edição, reimpressão, 2020, pág. 813.
[4] In Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 3.ª edição, 2025, pág. 772.
[5] O instituto em apreço surge justificado no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE como uma conjugação inovadora do “princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”, acrescentando-se que “a efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência) que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.”
[6] A razão de ser da exclusão de certos rendimentos - como sucede na sub-alínea i) - assenta na designada função interna do património (base ou suporte de vida do seu titular) e na sua prevalência sobre a função externa (garantia geral dos credores).
[7] Cfr. Decretos-Lei n.º 107/2023, de 17/11, e n.º 112/2024, de 19/12.
[8] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/2002, de 02/07/2002 (Proc. n.º 546/01, relatora Maria dos Prazeres Beleza), publicado no DR, n.º 150/2002, Série I-A, de 02/07/2002, págs. 5158-5163.
[9] Como escreveu LETÍCIA MARQUES COSTA, A Insolvência de Pessoas Singulares, 2021, Almedina, pág. 209, “a exoneração do passivo restante é uma espécie de prémio conferido ao insolvente, caso ele cumpra uma série de obrigações durante aquele período de cinco anos – agora de três anos -, mas não poderá ser um puro perdão de dívidas. Assim, uma das obrigações passa por esta entrega de parte do seu rendimento para pagamento aos credores.” (texto escrito em momento anterior ao da publicação da Lei n.º 9/2022, de 11/01).
[10] Não poderá o julgador ficar subjugado a qualquer critério assente numa mera soma contabilística das despesas invocadas (mesmo que as mesmas estejam plenamente demonstradas), sob pena de se poder estar a pactuar com o assumir de despesas superiores ao próprio rendimento auferido pelo devedor.
[11] LETÍCIA MARQUES COSTA, obra citada, pág. 213.
[12] O princípio da dignidade da pessoa humana mostra-se contido nos artigos 1.º, 13.º, 59.º, n.º 1 e 67.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, e decorre igualmente do artigo 25.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (“a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários.”).
[13] Breves notas sobre a admissão da exoneração e a cessão de rendimentos em particular, in www.julgar.pt., pág. 14.
[14] Por se revelar pertinente e esclarecedor quanto a esta matéria, veja-se o decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no acórdão de 04/02/2020 (Proc. n.º 1350/19.8T8LRA-D.C1, relatado por Maria João Areias), disponível in www.dgsi.pt, onde poderão ser consultados todos os demais que vierem a ser citados, sem menção à respectiva fonte.
[15] Obra citada, págs. 36-37.
Os mesmos autores, a fls. 704, defendem ainda: “O convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é perceptível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir uma quadro fáctico já traçado nos autos. Coisa diversa, e afastada do âmbito do art. 590º, nº 4, seria permitir à parte, na sequência desse despacho, apresentar, ex novo, um quadro fáctico até então inexistente ou de todo imperceptível (…).”
[16] Cfr. acórdão da Relação do Porto de 15/09/2011 (Proc. n.º 692/11.5TBVCD-C.P1, relator Leonel Serôdio), em cujo sumário se pode ler: “Na fixação do valor necessário ao sustento mínimo, excluído da cessão de rendimentos, nos termos do art.º 239.º, n.º 3, b), i) do CIRE, tem de atender-se ao número de membros do agregado familiar dependentes do rendimento do insolvente (…)”.
[17] Como escrevem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, obra citada, pág. 503, “o princípio do inquisitório (…) coexiste com os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, de modo que não poderá ser invocado para, de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova (cf. RC 12-3-19, 141/16). // O princípio do dispositivo funciona de um modo geral no que concerne à alegação dos factos, mas concede-se ao juiz a faculdade e, simultaneamente, o dever de, tanto quanto possível, aferir a veracidade desses factos. Continua a impender sobre as partes o ónus de indicação dos meios de prova, a observar, em regra, nos articulados (…)”.
[18] Como tem sido entendimento jurisprudencial, é sempre admissível a ulterior alteração do circunstancialismo que esteve na origem da fixação do montante necessário para o sustento minimamente digno, a requerimento fundamentado do devedor, ponderado que seja o agravamento das despesas relevantes e atendíveis que devam ser excluídas da cessão, nos termos e para os efeitos do artigo 239º, n.º 3, alínea b) - iii) do CIRE.
[19] Proc. 25578/23.7T8LSB-C.L1, relator Manuel Ribeiro Marques, cujo sumário está disponível na página oficial desta Relação de Lisboa.
[20] A remessa para a sub-alínea ii) terá sido, certamente, um lapso de escrita, já que a sub-alínea a atender será a iii).
[21] Artigo 1880.º do CC: Se, no momento em que atingir a maioridade, o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.”
Artigo 1905.º, n.º 2, do CC: “Para efeitos do disposto no artigo 1880.º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.”
[22] Já citado na nota de rodapé n.º 15.
[23] Escala da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (O.C.D.E.), criada em 1982 para determinação da capitação dos rendimentos de um agregado familiar (o índice 1 é atribuído ao primeiro adulto do agregado familiar, sendo o índice 0,7 aos restantes adultos e o índice 0,5 às crianças). No caso, a recorrente invocou o índice 0,5 para cada uma das filhas.
[24] Veja-se o já citado acórdão da aqui relatora, proferido em 05/03/2024, no qual se trata de forma mais detalhada as diferentes posições jurisprudenciais quanto a esta matéria.