Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
507/05.3GAEPS.G1
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
CRIME EXAURIDO
CRIME DE PERIGO
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
UNIDADE DE ACÇÃO
PLURALIDADE DE ACÇÕES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGAR PARCIALMENTE PROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO JAIME C...; JULGAR IMPROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELA ARGUIDA DOMINGAS S...
Sumário: I) O crime de tráfico de estupefacientes consuma-se logo que o agente detenha a droga, sem necessidade de se apurar o fim visado com tal actividade, pelo que só a demonstração de outro fim permitir excluir que a detenção visasse o tráfico.
II) Este crime tem vindo a ser qualificado como “crime exaurido”, “crime de empreendimento” ou “crime excutido” que se caracteriza como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo.
III) A condenação do agente pela prática do crime de tráfico de estupefacientes durante determinado período de tempo corresponde a uma apreciação global da sua actividade delituosa durante esse período, independentemente da falta de consideração de algum ou alguns factos parcelares praticados nessa época.
IV) O número de armas detidas pelo arguido e que foram apreendidas não pode constituir o critério diferenciador entre a unidade e pluralidade de acções de detenção ilegal de armas, atento o disposto no artigo 30.º, n.º 1 do Código Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I - RELATÓRIO
1. Nestes autos de processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 507/05.3GAEPS, a correr termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Esposende, realizada a audiência de julgamento, foi proferido o acórdão de fls. 500 a 534 de cujo dispositivo consta o seguinte:
«Nos termos que acima se deixam expostos, decide este Tribunal Colectivo:
- relativamente ao arguido JAIME C..., julgando-o autor material de:
- um crime de falsificação de documento - cheque -, p. e p. pelo artº. 256º., nºs. 1, alínea a) e 3, do Cód. Penal;
- um crime de burla qualificada na forma tentada, p. e p. pelos artºs. 217º., nº. 1 e 218º., nº. 1, e ainda 23º., nº. 2 e 73º., todos do Cód. Penal;
- dois crimes de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo artº. 6º., nº. 1 da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, na redacção dada pelo artº. 2º. da Lei nº. 98/2001, de 25 de Agosto;
- um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº. 21º., do Dec.-Lei nº. 15/93, de 22/01/193,
Condená-lo na pena única de 10 (dez) anos de prisão.
- Relativamente à arguida DOMINGAS S..., julgando-a autora material de:
- um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelas disposições legais acima referidas, condená-la na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), ou seja, na multa global de € 500. Nos termos do disposto no nº. 1 do artº. 49°., do C.P.N e 49º., nº. 2, do C.P.V., fixa-se, desde já, a prisão subsidiária em 33 (trinta e três) dias.
- um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº. 21º., do Dec.-Lei nº. 15/93, condená-la na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
Nos termos do disposto nos artºs. 50º.; 53º. e 54º., do C.P.No, suspender a execução desta pena pelo período de quatro anos, acompanhada de regime de prova, que deverá assentar num plano de reinserção social a desenvolver ao longo do período de suspensão, ficando ainda a arguida sujeita aos seguintes deveres:
- dedicar-se ao trabalho numa actividade aceite pela comunidade devendo, sendo caso disso, frequentar um curso deformação profissional;
- não frequentar os locais e ambientes normalmente frequentados por toxicodependentes ou pessoas relacionadas com os estupefacientes e/ou com as armas.
Deve ainda a arguida sujeitar-se e aceitar o apoio e vigilância do I.R.S., respondendo a convocatórias que lhe sejam dirigidas pelo técnico de reinserção social, receber as suas visitas e comunicar-lhe qualquer alteração de residência ou outra situação que possa colidir com o cumprimento do plano de reinserção.»
2. Inconformados com tal decisão, os arguidos dela interpuseram recurso, retirando das respectivas motivações as seguintes conclusões:
2.1. Recurso interposto pelo arguido JAIME C... (transcrição):
«1 - O recorrente foi condenado de:
- Um crime de falsificação de documento - cheque - p. e p. pelo art.º 256º, nºs 1, alínea a) e 3, do Cód. Penal - em 2 anos de prisão;
- Um crime de burla qualificada na forma tentada, p. e p., pelos artºs 217º, nº 1 e 218º, nº 1, e ainda 23º, nº 2 e 73º, todos do Cód. Penal - em 1 ano e 6 meses de prisão;
- Dois crimes de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo artº. 6º, nº 1 da Lei nº 22/97, de 27 de Junho, na redacção dada pelo artº 2º, da lei nº 98/2001, de 25 de Agosto – em 9 meses (arma de marca Browning CZ) e 5 meses de prisão detenção de arma Astra;
- Um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 21º, do Dec. -Lei nº 15/93, de 22/01 - na pena de 8 anos de prisão
- Em cúmulo jurídico na pena única de 10 (dez) anos de prisão
2 - O recurso sustenta-se nos artigos
-406º, nº 1, 399º, 401º, al. b); 407º, nº 1, al. a); 408º, nº 1; 411º, nº 1
-E quanto aos fundamentos do recurso: art.427º; 428º, nº 1; 410º, nº1 e nº 2, al. a) -
Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Al. b) contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão.
Al. c) Erro notório na apreciação da prova.
d) Falta de fundamentação e do exame crítico das provas que serviram para formar a
convicção do Tribunal, violação dos requisitos da sentença - art.374º, nº 2 do CPP.
O julgamento ocorreu na ausência do arguido, (à revelia). Foram documentadas, por meio de gravação, as declarações prestadas pelas testemunhas abrangendo o presente Recurso, a matéria de facto impugnada e de direito
3 - Em circunstâncias de tempo e local que não se apuraram, ainda que só possa ter sido entre os meses de Abril a 2 de junho de 2005, o arguido Jaime ficou de posse do cheque número 7000001989, da conta bancária número 13709900260, do banco Internacional de Crédito, da qual é titular a sociedade comercial “L... - Comércio de materiais, Ld”.
Venerandos Desembargadores, quanto a este facto, nada a dizer, pois, é pura verdade.
Haveria, e lamentamos que o douto Tribunal nada diga, pois, testemunha e pensamos idónea houve -Jacinto T..., advogado, que afirmou que o referido cheque havia sido entregue ao advogado, testemunha já preenchido, para pagar honorários ao referido advogado e testemunha, e mais tarde devolvido para que o arguido pagasse em dinheiro o referido valor constante do cheque, ou seja, os dez mil Euros.
Destarte este facto dado como provado, carece de fundamentação e a douta convicção do Tribunal enferma de livre arbítrio, nada tendo a ver com a lógica nem com a experiência comum, havendo a nosso ver, erro notório na apreciação da prova, não devendo este facto ser dado como provado.
4 - Ora, após termos conhecimento e contactado com o arguido, perguntamo-nos como é que o douto Tribunal à quo, dá como provado que o arguido Jaime preencheu o cheque no que refere à quantia, ao local de emissão, à data e à quantia por extenso.
Ora, Venerandos Desembargadores, o arguido é pessoa, quase analfabeta, mal sabendo ler e além do seu nome, nada ou quase nada. Bastava, um investigador digno do nome, para chegar à conclusão que o montante, local de emissão, data, quantia por extenso é de pessoa letrada, nada tendo a ver com a pessoa do arguido Jaime.
Bastava um simples exame grafológico à letra do arguido Jaime para atirar por terra, o testemunho do dono do Stand José F.... Neste ponto e quanto a este crime, deverá renovar-se a prova na Veneranda Relação, ordenando-se se faça o respetivo exame grafológico, por perito competente, isto, porque estamos a falar de liberdade, valor supremo e constitucionalmente protegido.
E, ora, perguntamo-nos o porquê do Tribunal acreditar na palavra, no depoimento da testemunha José F..., e não no depoimento da testemunha, Dr. Jacinto T..., que afirmou de forma perentória, clara, que esse cheque já havia estado na sua posse e encontrava-se totalmente preenchido.
5 - Venerandos Desembargadores, pela transcrição da prova, salvo o devido respeito, qualquer comum dos mortais, in casu, será de parecer, que estamos perante grave erro de apreciação da prova, por ser mais que notório, é o que requeremos, não existindo, in casu, o crime de falsificação de documento.
6 - Após ter assinado a declaração de consentimento de busca na sua residência, o mesmo arguido JAIME C... ligou, pelo telemóvel, para a arguida DOMINGAS S..., sua mulher, dizendo-lhe: “desaparece com o que está em cima do frigorífico que eu estou na G.N.R.”.
Venerandos desembargadores, quanto a este facto dado como provado, afim de por em crise, a verdade do mesmo e a credibilidade da testemunha, Guarda que terá ouvido?! O telefonema, temos a dizer:
Não deixamos de achar estranho que o arguido tenha dado consentimento de busca na sua residência, se soubesse que na sua residência se encontrava produto estupefaciente que se destinasse à venda (o arguido é consumidor, como se dá provado no douto acórdão) e duas pistolas, pois, o arguido afirma que sabia muito bem que os senhores Guardas para entrar em sua casa, precisavam do competente mandado de busca judicial.
Venerandos Desembargadores, é da experiência, das regras, que quando os Senhores Guardas detêm alguém em flagrante delito, de imediato retiram os telemóveis aos arguidos, não os deixando contactar com alguém.
Neste caso, segundo o arguido Jaime, este não fez nenhuma chamada para o telefone da sua mulher. Nada há nos autos que o confirme. Nenhuma operadora telefónica o disse, como aliás não podia. Há um Guarda que diz ter ouvido e então perante a negação do arguido não houve forma de averiguar tal facto? Bastando requerer à operadora que informasse os autos? Por se considerar o facto muito relevante em nome da verdade material também se requer que a Veneranda Relação, renove a prova, ordenando-se à operadora, informe se naquele dia e hora, houve alguma chamada do telefone do recorrente Jaime para a mulher, Domingas Silva.
7 - Venerandos Desembargadores, a experiência das coisas e a lógica, mandariam o arguido preocupar-se, num eventual telefonema, com o fazer desaparecer a droga, a pistola 7,65mm “Browning CZ”, que foi apreendida e não com a pistola que estava em cima do frigorífico.
Ou seja, o telefonema a que alude o douto acórdão, nunca se verificou, como V. excªs poderão, ainda, em nome da verdade material, mandar averiguar.
8 - Venerandos Desembargadores, a vida tem lógica, a livre apreciação da prova também e é alicerçada na experiência, na sensatez, exigindo sempre uma análise critica. Se o produto estupefaciente, estivesse em casa, não seria lógico que a arguida Domingas se tivesse preocupado em desfazer-se dele antes da G.N.R. chegar, assim como da famigerada pistola que, segundo os senhores Guardas e o inexistente telefonema! se encontrava em cima do frigorífico?
9 - Venerandos Desembargadores, de duas uma, ou as pistolas são propriedade, estão na posse, do arguido Jaime, e nada a esposa Domingas tem a ver com as mesmas, ou as duas pistolas, são propriedade da arguida Domingas e o marido nada tem a ver com as mesmas.
Se estão na posse da mulher, não pode o recorrente Jaime ser condenado pela posse das pistolas e ambos foram condenados pela falta de licença de uso e porte de arma!...
Nestes termos, não deverá ser dado como provado que as pistolas são propriedade, ou estão no domínio ou esfera de uso por parte do recorrente Jaime, devendo ser absolvido do crime de detenção de arma proibida.
10 - Os arguidos vivem em união de facto, tendo dois filhos.
Venerandos Desembargadores, só este facto e a situação de consumidor por parte do arguido Jaime, faz parte da verdade. É inquestionável. O resto fará parte do livre arbítrio, da imaginação, do maravilhoso e da fantasia. Deste facto dado como provado, conclui-se que o arguido se encontra inserido familiarmente.
O arguido JAIME C... acompanhava os familiares nas feiras, quer na zona de Esposende, quer na zona de Gouveia.
11 - Venerandos Desembargadores, o que sabemos é que o produto estupefaciente foi encontrado na varanda da casa vizinha do arguido e segundo o depoimento do senhor guarda, terá sido a arguida Domingas que se tentou desfazer do mesmo.
O que sabemos e consta dos factos dados como provados, embora os arguidos não estivessem presentes, é que o recorrente Jaime é consumidor de produtos estupefacientes, tendo já feito tratamento de desintoxicação, mas que se saiba não deu resultado, como aliás, quase nunca dá!
12 - Como se alegou supra, salvo o devido respeito, e dadas as circunstâncias dos factos, tendo o produto estupefaciente, sido encontrado na posse da arguida Domingas e porque não há ninguém nestes autos ou fora deles! Que diga que comprou nessas datas ou outras qualquer produto estupefaciente ao arguido Jaime, deverá em nome das mais elementares regras jurídicas, o recorrente Jaime ser absolvido do crime de tráfico de droga por que foi condenado.
13 - Aliás, de duas, uma, ou o produto estupefaciente se destinava exclusivamente ao consumo do arguido Jaime, ou a sua mulher detinha o produto estupefaciente, propriedade de algum familiar ou amigo. Dado, não haver nos autos qualquer prova de venda, nem em audiência de julgamento se tenha feito qualquer prova, a não ser que o arguido Jaime é consumidor, aplicando-se o princípio da presunção de inocência traduzido em “in dúbio pro reo”, estaríamos in extremis perante o crime p. e p. pelo art.40º, nº 2 do DL 15/93 de 22/01, não revogado pelas alterações ao DL citado.
14 - Venerandos Desembargadores, sem sermos adivinhos, fácil é de concluir que quem preencheu os restantes elementos do cheque também apôs a assinatura no mesmo. E não foi de certeza o recorrente Jaime, pois este mal sabe ler ou escrever e a letra passe o pleonasmo é de pessoa letrada, devendo assim, não se dar como provado que foi o recorrente Jaime quem preencheu o cheque, nem escreveu a quantia em algarismos, nem a quantia por extenso, nem no local de emissão escreveu “Aveiro”, nem a data “2005-06-12”.
Devendo ainda dar-se como provado que a fotocópia do cheque que foi entregue ao dono do Stand E..., já se encontrava preenchido aquando da entrega, devendo o recorrente Jaime ser absolvido do crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. a) e 3, do C.P.
15 - O douto Tribunal à quo, para fundamentar a decisão de facto, diz ter tentado apoiar-se nas regras da experiência, ora, remetendo-se para o que ficou alegado supra, o douto Tribunal decidiu tudo, salvo o devido respeito, quanto às regras da experiência usando o livre arbítrio desapoiado do sagrado principio da presunção de inocência, e decidiu, na dúvida, ao contrário do principio in dubio pro reo, in dúbio contra reo.
16 - O douto Tribunal não usou das “presunções naturais”, mencionando-as não as trouxe à colação. Sem se saber porquê, dá a um depoimento titubeante da testemunha José F... em detrimento de todo o depoimento de um advogado, Dr. Jacinto T..., no que se refere ao crime de falsificação de documento.
17 - O vício ínsito no artigo 374º, nº 2, acontece por faltar indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal. Há uma deficiente conclusão e condenação da recorrente, assim se declarando nulo o douto Acórdão, mandando substituir por outro, que faça o pertinente exame crítico da prova, em conformidade com o disposto no art.374º, nº 2 do CPP. Ora, fazer o exame crítico da prova, nos termos da lei, não é o acrescentar mais uns adjetivos ou predicados ou advérbios à estrutura frásica. Faz-nos recordar, o que o Senhor ex Procurador-geral adjunto, Dr. Laborinho Lúcio dizia: “O pertinente exame crítico da prova e a exposição, tanto quanto possível completa, que fundamenta a decisão, por vezes, nas Doutas sentenças mais parece aquele verniz que se coloca na moldura infectada com caruncho que dá brilho e não tapa os buracos...”
O exame crítico da prova, não é mais o verter, de forma incompreensível, sem qualquer apoio na prova produzida em julgamento a vontade do julgador.
18 - O Douto Acórdão continua a violar materialmente a rácio do art. 210º, nº 1 da CRP, porque nesse continua a haver uma genérica remissão para os diversos meios de prova, fundamentadores da convicção do Tribunal.
19 - O problema da motivação está intimamente conexionada com a conceção democrática ou antidemocrática que inspira o espírito de um determinado Estado.
É sabido que os motivos de facto, que fundamentam a decisão não são nem os factos provados nem os meios de prova mas os elementos que em razão das regras da experiencia democrática e de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduz a que a convicção do Tribunal se forme em determinado sentido ou valorasse em determinada forma os diversos meios de prova. A fundamentação deve ser tal que permita intraprocessualmente aos sujeitos processuais e ao Tribunal Superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz pela via do recurso conforme impõe o art.410, nº2 da CRP. E extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar pelo conteúdo um respeito efetivo pelo Principio da Legalidade no Acórdão e a própria imparcialidade e independência dos Juízes, in casu, do Tribunal a quo de 1ª Instância, dado que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade. O princípio tal como está inscrito no artigo 127º do C.P.P. significa “liberdade para a objectividade” e não “liberdade para a subjectividade”, como tão bem a professora Teresa Beleza.
20 - Venerandos Desembargadores, sempre se diria que a posse, sem haver quaisquer indícios de venda, acrescendo que, in casu, se tem como assente que o recorrente é consumidor e a recorrente trabalha e exerce a profissão de feirante, a posse levará sempre a uma diminuição considerável da ilicitude, pelo que a conduta do arguido deveria ser sempre, in casu, subsumida à previsibilidade típica do art. 25º (tráfico de menor gravidade).
21 - O uso do documento (cheque), que não é falso, nem foi falsificado ou contra feito pelo arguido - quod probando! Estará sempre subsumido, pelo crime a que o arguido foi condenado que é o de burla na forma tentada. Com um simples exame grafológico, a Veneranda Relação ao ordenar o exame e renovar a prova, chegará à verdade material que é o fim da Justiça.
22 - Quanto ao crime de burla qualificada na forma tentada, que, in casu, absorveria sempre o crime de falsificação de documento, temos a dizer que olhando ao circunstancialismo dos factos, terá o crime acontecido, em nome da honestidade intelectual que prezamos, embora o crime seja punido com pena de multa e o Tribunal, sendo o arguido “primário” neste tipo de crime, tenha aplicado pena de prisão.
E se pena de prisão fosse aplicada no crime cometido sob a forma tentada, não poderíamos deixar de afirmar que a pena, e porque se tratou de uma tentativa, deveria ser sempre suspensa na sua execução, o que se requer à Veneranda Relação.
23 - Quanto ao crime de detenção de arma proibida, não deixamos de achar bizarro – fls 515 do douto acórdão – afirmar-se que o arguido vem ainda acusado de um crime de detenção de arma proibida e concluir a Meritíssima Juiz, que o arguido porque detinha duas armas, cometeu dois crimes, se tivesse trinta, cometeria trinta crime!...Trata-se de crimes exauridos em que a atuação do agente reconduz-se à comissão do mesmo tipo de crime, isto é, corresponde a um só crime.
Venerandos Desembargadores, desde há muito afirma na Lei e toda a Jurisprudência que estamos perante um só crime de detenção ilegal de arma, que ao tempo era punido com a pena abstrata de prisão até dois anos ou multa até 240 dias, nos termos do disposto no artigo 6º, da Lei nº 22/97, na redação que lhe deu o artigo 2º da Lei nº 98/20001, de 25 de Agosto e,
Venerandos Desembargadores, também aqui, salvo o devido respeito, a pena deveria ser de multa e não de prisão, e se fosse em prisão esta não poderia deixar, in casu, de ficar suspensa.
24 - Mas, Venerandos Desembargadores, de duas, uma, ou as pistolas são do arguido, embora não tendo sido encontradas na sua posse, mas sim na posse da mulher Domingas, e esta terá de ser absolvida, ou as pistolas são da mulher do recorrente e encontradas na sua posse, e o arguido deverá ser absolvido do crime de detenção ilegal de arma.
25 - Quanto ao crime de tráfico de estupefacientes em que o arguido foi condenado, temos a dizer, Venerandos Desembargadores, que o referido produto estupefaciente foi, encontrado na varanda da casa da vizinha, e no dizer de um Sr. Guarda, sido arremessado para lá pela mulher do arguido, Domingas. Não havendo ninguém que haja dito, que tivesse comprado qualquer panfleto que fosse ao arguido Jaime, perguntamo-nos, em nome do bom senso, não sendo o arguido detido na posse, nem tendo exercido qualquer ato de tráfico definido no artigo 21º, nº 1, do D.L.15/93, como se poderá condenar o arguido pelo crime de tráfico de estupefacientes em oito anos de cadeia.
26 - Deste modo, salvo o devido respeito, e dadas as circunstâncias dos factos, tendo o produto estupefaciente, sido encontrado na posse da arguida Domingas e porque não há ninguém nestes autos ou fora deles! Que diga que comprou nessas datas ou outras qualquer produto estupefaciente ao arguido Jaime, deverá em nome das mais elementares regras jurídicas, o recorrente Jaime ser absolvido do crime de tráfico de droga por que foi condenado.
27 - Aliás, de duas, uma, ou o produto estupefaciente se destinava exclusivamente ao consumo do arguido Jaime, ou a sua mulher detinha o produto estupefaciente propriedade de algum familiar ou amigo. Dado, não haver nos autos qualquer prova de venda, nem em audiência de julgamento se tenha feito qualquer prova, a não ser que o arguido Jaime é consumidor, aplicando-se o princípio da presunção de inocência traduzido em “in dúbio pro reo” estaríamos in extremis perante o crime p. e p. pelo art.40º nº2 do DL 15 93 de 22/01, não revogado pelas alterações ao DL citado, punido, in casu, pela quantidade em pena de multa.
28 - Quanto à medida da pena, Venerandos Desembargadores, o douto Tribunal à quo, bem pensou, mas mal o fez ao afirmar que: “ ...de acordo com os art.s 71º, nº1 e 40º, ambos do Cód. Pen. A medida da pena é determinada pela culpa do agente, tendo-se em consideração ainda as exigências de prevenção, sendo que a cominação em concreto de uma pena visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, se bem que a medida da pena nunca poderá ultrapassar a medida da culpa, como o impõe o nº 2 do referido art. 40º.
29 - Salvo o devido respeito, no que concerne aos crimes por que o arguido deveria e deverá ser condenado e tão só:
- Crime de burla na forma tentada (quantia inferior a 200 UC, ao tempo 17.800€), punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 200 dias, o arguido deveria ser punido com pena de multa e dada a sua situação económica, pobre e social humilde (trabalha nas feiras - facto dado como provado), esta não deveria exceder o montante de 100 dias à taxa diária de 5€. E se insensatamente o Tribunal decidisse por pena de prisão, esta, in casu, deveria ser suspensa na sua execução;
- Cometeu?! ainda o arguido um crime de detenção ilegal de arma, punido com pena de prisão até dois anos, ou multa até 240 dias, o arguido deveria ser punido com pena de multa e dada a sua situação económica, pobre e social humilde (trabalha nas feiras – facto dado como provado), esta não deveria exceder o montante de 90 dias, à taxa diária de 5€. E se insensatamente, salvo o devido respeito, o Tribunal decidisse por pena de prisão, esta, in casu, deveria ser suspensa na sua execução;
- Do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº 1, aliás das duas, uma, ou o produto estupefaciente se destinava exclusivamente ao consumo do arguido Jaime, ou a sua mulher detinha o produto estupefaciente, propriedade de algum familiar ou amigo. Dado, não haver nos autos qualquer prova de venda, nem em audiência de julgamento se tenha feito qualquer prova, a não ser que o arguido Jaime é consumidor aplicando-se o princípio da presunção de inocência traduzido em “in dúbio pro reo”, estaríamos in extremis perante o crime p. e p. pelo art.40º, nº 2 do DL 15/93 de 22/01, não revogado pelas alterações ao DL citado, punido, in casu, pela quantidade, em pena de multa.
30 - Sem prescindir do alegado na motivação e se o Tribunal optasse, o que não se vislumbra, in casu, por pena de prisão, convolado o crime para a previsão do artigo 25º do D.L. 15/93, dada a simples detenção do produto estupefaciente (que in casu, estava na posse da mulher, era esta a que detinha o domínio do facto), punido com prisão de 1 a 5 anos, nunca o arguido deveria ter sido condenado em pena de prisão superior a dois anos e meio, e dado o princípio da reinserção social e da ressocialização do individuo, ou seja, recuperar para a sociedade o ser humano que nela está, como é o caso, inserido laboral, familiar e socialmente, a pena dever-lhe-ia ser suspensa por igual período de tempo - O que se requer aos Venerandos Desembargadores
Salvo o devido respeito, a pena aplicada ao arguido, quanto a este crime de oito anos de Masmorra, é indubitavelmente exagerada, CASTRADORA, e já agora, Venerandos Desembargadores, olhando a um caso recente, transcrito em revistas cor-de-rosa e televisão, em que tratando-se de um narco – traficante, segundo a televisão, loiro, de olhos azuis, descendente da Nobreza, um Conde para os lados de Lisboa, que traficando uma quantidade de 15 kg de cocaína do Brasil para Lisboa, foi condenado a uma pena de 5 anos de cadeia e talvez, com a ajuda do seu mui ilustre advogado e dos ilustres familiares, venha a sair antes do meio da pena, como já permite a Lei.
O nosso constituinte, Venerandos Desembargadores, não é de sangue azul, não pertence à Nobreza, é de condição económica pobre e social humilde, mas é em nome dele, porque pertence ao povo, que os Tribunais Portugueses devem fazer Justiça.
Nestes termos e nos mais de direito, e porque sendo o
Direito Penal, OFICIOSO, Vªs Exªs Venerandos Desembargadores
colmatando qualquer deficiência no alegado supra FARÃO JUSTIÇA.
Consideram-se violadas as normas legais supra citadas no texto, nomeadamente, o art. 71º, nº 1; 40º, ambos do C.P., 256º nº 3, do C.P.; 218º, nº 1 e 23 do C.P.; 73º do C.P.; artigo 6º da Lei nº 22/97, na redação que lhe deu o art. 2º, da Lei nº 98/2001, 25/08; art. 21º e 25 do DL Nº 15/93; 77º nº 2 do C.P; art. 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa; 410º, nº 2, al. a9 e c) e 127º e 374º, nº 2 do C.P.P.»

2.2. Recurso interposto pela arguida DOMINGAS S... (transcrição):
«1 - A arguida Domingas foi condenada como autora material de: um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo art. 6º, nº 1 da Lei nº 22/97, de 27 de Junho, na redacção dada pelo art. 2º, da Lei nº 98/2001 de 25 de Agosto, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €5 (cinco euros), ou seja, na multa global de €500.
- Um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, do DL nº 15/93, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspenso na sua execução por igual período de tempo.
2 - São fundamentos do recurso: Artigos 406º, nº 1, 399º, 401º, al. b); 407º, nº 1, al. a);
408º, nº 1; 411º, nº 1
E quanto aos fundamentos do recurso: art.427º; 428º, nº 1; 410º, nº 1 e nº 2, al.a) -
Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Al. b) contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão.
Al. c) Erro notório na apreciação da prova.
d) Falta de fundamentação e do exame crítico das provas que serviram para formar a
convicção do Tribunal, violação dos requisitos da sentença - art.374º, nº 2 do CPP.
3 - Em relação à arguida, os factos dados como provados, são insuficientes, para A SUA
CONDENAÇÃO, NOS TERMOS EM QUE FOI CONDENADA.
4 - Venerandos Desembargadores, o Tribunal assumiu como provado: - ponto 12: Após ter assinado a declaração de consentimento de busca na sua residência, o mesmo arguido JAIME C... ligou, pelo telemóvel, para a arguida DOMINGAS S..., sua mulher, dizendo-lhe: “desaparece com o que está em cima do frigorífico que eu estou na G.N.R.”.
5 - Ainda como provado - facto 14:... Ao ver os agentes da G.N.R. a arguida tentou desfazer-se de um saco plástico que trazia consigo no interior do qual transportava, camuflada com fraldas e outras peças de roupa, uma pistola de marca ”Brovvning CZ”, de calibre 7,65mm medindo o cano, aproximadamente, 97mm, de comprimento, de funcionamento semi-automático, a qual se encontrava em boas condições de funcionamento.
6 - Ainda como provado: Facto 19:...Ainda enquanto os agentes da G.N.R. procediam a busca nos vários compartimentos da residência dos arguidos a arguida DOMINGAS S... dirigiu-se ao andar de cima, saiu para a varanda exterior da casa e lançou para a varanda vizinha um saco de plástico que, recuperado, verificou-se conter uma caixa de telemóvel, em cartão, no interior da qual se encontravam seis (6) saquinhos de plástico contendo um pó branco, que estavam ainda camuflados em grãos de arroz.
7 - Venerandos Desembargadores, pela matéria dada como provada e tendo em conta o depoimento das testemunhas, somos levados a concluir que o crime que a arguida Domingas cometeu ao tentar desfazer-se do meio de prova produto estupefaciente, na posse do seu marido, a mando deste, que é consumidor de produto estupefaciente nada tendo a arguida a ver com drogas, pois, não é consumidora, nem traficante, nem a qualquer título estar ligada a produtos estupefacientes, a não ser por estar casada com um consumidor de produto estupefaciente. Esta não pratica o crime por que foi acusada e condenada, mas e tão só o crime p. e p. previsto no art. 367º do C.P. (favorecimento pessoal), punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, mas que no caso da mulher do arguido, Domingas, nos termos do art. 367º nº 5, al. b) não é punível... 1. Quem total ou parcialmente, impedir, frustrar ou iludir atividade probatória...com intenção ou com consciência de evitar que outra pessoa que praticou um crime, seja submetida a pena ou a medida de segurança...
8 - Quanto ao crime de detenção ilegal de arma p. e p. pelo artigo 6º, nº 1 da Lei nº 22/97 de 27 de Junho, na redacção dada pelo art. 2º, da Lei nº 98/2001, de 25 de Agosto, temos a dizer, Venerandos Desembargadores, a arguida de certeza absoluta que nem sequer algum dia deflagrou alguma munição ou foi proprietária ou possuidora de qualquer arma de fogo, ou seja, nunca teve o domínio do facto.
Assim, também quanto a este crime, dizemos que o praticado pela arguida Domingas foi o vertido no artigo 367º do C.P. nos termos do nº 5 al. b) in casu, não é punível.
9 - Falta de fundamentação e do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, violação dos requisitos da sentença – art.374º, nº 2 do CPP.
Salvo o devido respeito, encontramo-nos perante uma deficiente análise crítica da prova, havendo uma má interpretação, indagação e aplicação da lei, relativamente a arguida Domingas.
O vício ínsito no artigo 374º nº 2, acontece por faltar indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal. Há uma deficiente conclusão e condenação da recorrente, assim se declarando nulo o douto Acórdão mandando substituir por outro, que faça o pertinente exame crítico da prova, em conformidade com o disposto no art.374º nº 2 do CPP.
10 - É da doutrina e da jurisprudência, que na passagem de um facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para alem de toda a dúvida razoável de um facto conhecido, ou seja, o princípio tal como está inscrito no artigo 127º do C.P.P. significa “liberdade para a objectividade” e não “liberdade para a subjectividade” como tão bem a professora Teresa Beleza.
11- Sem prescindir, Venerandos Desembargadores, sempre se diria que a posse, sem haver quaisquer indícios de venda, acrescendo que, in casu, se tem como assente que o marido é consumidor e a recorrente trabalha e exerce a profissão de feirante, a posse levará sempre a uma diminuição considerável da ilicitude, pelo que a conduta da arguida deveria ser sempre, in casu, subsumida à previsibilidade típica do art. 25º (tráfico de menor gravidade).

Nestes termos e nos mais de direito, e porque sendo o Direito Penal,
OFICIOSO, Vªs Exªs Venerandos Desembargadores colmatando qualquer deficiência no alegado supra FARÃO JUSTIÇA.
Consideram-se violadas as normas legais supra citadas no texto, nomeadamente, o art.410º, nº 2, al.a) e c) e 127º e 374º, nº 2 do C.P.P., 21º, 25º e do DL 15/93 de 22/01»

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3. O Ministério Público respondeu aos recursos, pugnando pela manutenção do julgado.
4. Nesta instância, o Ministério Público teve vista do processo nos termos do n.º 2 do artigo 416.º do Código de Processo Penal( - Diploma a que se reportam os demais preceitos citados sem menção de origem).
5. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a audiência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
1. O Acórdão recorrido
1.1. No acórdão proferido na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
“Da discussão da causa ficaram provados os seguintes factos:
1.- Em circunstâncias de tempo e local que não se apuraram, ainda que só possa ter sido entre os meses de Abril a 2 de Junho de 2005, o arguido Jaime ficou de posse do cheque número 7000001989, da conta bancária número 13709900260, do Banco Internacional de Crédito, da qual é titular a sociedade comercial “L... - Comércio de materiais, Lda.”.
2.- No dia 2 de Junho de 2005 o arguido Jaime deslocou-se ao “Stand E...”, sito na Zona Industrial do B..., nesta comarca de Esposende e aí entabulou conversações com o gerente daquele estabelecimento – José F... – manifestando interesse em comprar ali um veículo automóvel.
3.- Decorrido algum tempo o arguido informou aquele José F... que queria comprar uma carrinha da marca “Ford”, modelo “Transit”, que aí se encontrava à venda pelo preço de € 10.000 (dez mil euros), que pretendia pagar com um cheque.
4.- Tendo o referido José F... dado o seu assentimento, o arguido, de imediato, pelo menos escreveu, no espaço destinado à quantia em algarismos “10.000,00”; no espaço reservado à quantia por extenso escreveu “DEZ MIL EUROS”; no espaço reservado ao local de emissão escreveu “AVEIRO”; e no espaço reservado à data escreveu “2005-06-12”, tudo fazendo como se fosse o legítimo titular do cheque, o que sabia não corresponder à verdade.
5.- Por precaução, aquele José F... tirou uma cópia do referido cheque e disse ao arguido para voltar ali no dia seguinte para levar o veículo pois precisava desse espaço de tempo para providenciar pela documentação relativa à compra e venda acordada.
6.- Entretanto, conseguiu o mencionado José F... entrar em contacto com um funcionário do Banco Internacional de Crédito que o informou que o mencionado cheque havia sido dado como furtado.
7.- Recebendo esta informação, aquele comunicou-a de imediato à G.N. R. de Esposende.
8.- Como havia ficado combinado, no dia 3 de Junho de 2005, cerca das 9:00 horas da manhã, o arguido apresentou-se no “Stand E...”, a fim de consumar a compra da carrinha. Porém, quando se preparava para entregar o cheque ao José F..., foi confrontado com a presença de elementos da G.N.R. que já ali o aguardavam, aos quais, após intimação, acabou por entregar o supra referido cheque, assim se gorando aqueles seus intentos.
9.- Ao preencher o cheque na forma acima descrita, o arguido JAIME C... bem sabia que ele lhe não pertencia e que, pelo menos, a quantia – em algarismos e por extenso -, a data, e o local de pagamento não tinham sido escritos pelo legítimo titular do cheque.
10.- Agiu o arguido em prejuízo da confiança que as pessoas têm nos cheques como meio de pagamento, sabendo que a sua conduta abalava a boa fé, a confiança, a segurança e a credibilidade públicas que os títulos de crédito devem merecer na sociedade, designadamente no comercio jurídico.
11.- Sabia ainda o arguido que, ao entregar o mencionado cheque ao José F..., convencendo-o de que era válido, podia-lhe causar prejuízo, bem como ao titular da conta bancária sobre que foi emitido o cheque, só não havendo conseguido este resultado por circunstâncias alheias à sua vontade.
12.- Após ter assinado a declaração de consentimento de busca na sua residência, o mesmo arguido JAIME C... ligou, pelo telemóvel, para a arguida DOMINGAS S..., sua mulher, dizendo-lhe: «desaparece com o que está em cima do frigorífico que eu estou na G.N.R.».
13.- De imediato os agentes da G.N.R. dirigiram-se para a residência dos arguidos, em Sosende, Marinhas, desta comarca, e interceptaram a arguida DOMINGAS S..., quando esta abandonava a casa.
14.- Ao ver os agentes da G.N.R. a arguida tentou desfazer-se de um saco plástico que trazia consigo no interior do qual transportava, camuflada com fralda e outras peças de roupa, uma pistola de marca “Browning CZ”, de calibre 7,65mm, medindo o cano, aproximadamente, 97 mm. de comprimento, de funcionamento semi-automático, a qual se encontrava em boas condições de funcionamento.
15.- Na execução da busca à residência dos arguidos os agentes da G.N.R encontraram ainda, em cima do frigorífico, uma outra pistola, de marca “Astra” tendo ainda os dizeres “Unceta Cia-Guernica” de calibre 5,6 mm (22 Long Rifle) medindo o cano, aproximadamente, 59 mm. de comprimento, de funcionamento semi-automático, a qual se encontrava em condições de efectuar deflagrações.
16.- Ambas as referidas armas não se encontravam registadas nem manifestadas e estavam aptas a disparar.
17.- Nem o arguido JAIME C... nem a arguida DOMINGAS S... são titulares de licença de uso e porta de arma, sabendo ambos que, por não possuírem tal licença infringiam a lei, quer ao guardá-las na sua residência quer ao transporta-las, como o fazia a arguida relativamente a uma delas.
18.- Os arguidos tinham perfeito conhecimento da natureza e características de tais armas.
19.- Ainda enquanto os agentes da G.N.R. procediam à busca nos vários compartimentos da residência dos arguidos a arguida DOMINGAS S... dirigiu-se ao andar de cima, saiu para a varanda exterior da casa e lançou para a varanda vizinha um saco de plástico que, recuperado, verificou-se conter uma caixa de telemóvel, em cartão, no interior da qual se encontravam seis (6) saquinhos de plástico contendo um pó branco, que estavam ainda camuflados em grãos de arroz.
20.- Submetido aquele pó branco ao exame toxicológico no Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, revelou tratar-se de “Cocaína”, tendo o peso líquido de 264,342 gramas.
21.- Mais foram detectados resíduos de “Heroína” num moinho de marca “Ufesa”, que se encontrava na casa dos arguidos.
22.- Os arguidos, em conjugação de esforços e de comum acordo, pretendiam vender a substância acima mencionada a terceiros consumidores, com o intuito de obterem para si compensações pecuniárias.
23.- Ambos os arguidos conheciam bem a natureza e características estupefacientes daqueles produtos, que detinham, estando conscientes que a sua aquisição, detenção e venda, sem as necessárias autorizações, são proibidas e punidas por lei.
24.- Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as condutas acima descritas são proibidas e punidas por lei penal.
25.- Os arguidos vivem em união de facto, tendo dois filhos.
26.- O arguido JAIME C... acompanhava os familiares nas feiras, quer na zona de Esposende, quer na zona de Gouveia.
Fez tratamento de desintoxicação de drogas, em Espanha.
Frequentou a escola primária.
Do seu certificado de registo criminal constam duas condenações pela prática do crime de condução sem carta e uma condenação, na pena de 5 anos e 8 meses de prisão, pelo crime de tráfico de estupefacientes.
27.- A arguida DOMINGAS S... desde Maio de 2002 que vive com aquele arguido, acompanhando-o nas suas “deambulações”, pensando-se que esteja, com ele e com os filhos do casal, na zona de Barcelona, em Espanha.
Do seu certificado de registo criminal nada consta.”

1.2. Quanto a factos não provados consta do acórdão recorrido (transcrição):
“III.- FACTOS NÃO PROVADOS
Relativamente à matéria da acusação não se provou que:
A) - Tenha sido o arguido a apor a assinatura (do sacador) que consta do cheque acima referido, em II, nºs. 1 a 4.
B) - A pistola de marca “Browning CZ”, referida em II, nº. 14, tenha sido adquirida pelo arguido JAIME C... a um indivíduo e na feira de Caminha.”

1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
“IV- FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A anterior decisão de facto baseou-se nos documentos juntos aos autos, na apreciação crítica dos depoimentos prestados e no recurso às regras da experiência permitido pelo artº. 127º., do C.P.Penal.
As normas de experiência, diz o Prof. CAVALEIRO DE FERREIRA - Citado por SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES in “Código de Processo Penal Anotado”, vol. I, pág. 683., “são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade”.
O S.T.J., no Ac. de 07/01/2004 - Relatado pelo Exmº. Juiz-Conselheiro Henriques Gaspar, proferido no Procº. 03P32l3, Nº. Convencional JSTJ000, com texto disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
, escreve sobre as “regras de experiência comum” fazendo apelo à definição de presunções que dá o Código Civil - “são ilacções que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido” - cfr. artº. 349º..
E, prossegue, “as presunções naturais são, afinal, o produto das regras da experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto”.
Deste modo, e no que se refere aos factos transcritos em II, sob os nºs. 1 a 11, teve o Tribunal em consideração o teor da informação vinda da titular da conta – “L... - Comércio de materiais, Ldª.” – que dá como “furtado” do seu estabelecimento o cheque ali referido, constante de folhas 4 dos autos.
No que se refere a esta parte, foi determinante o depoimento da testemunha José F..., que se revelou merecedor de credibilidade pela forma desapaixonada como falou, e com um discurso coerente e compatível com a sua razão de ciência.
Assim, contou que o arguido lhe apareceu no seu stand de veículos e suscitou-lhe desconfiança porque «qualquer carro lhe servia». ‹‹Inclinou-se para aquele carro (Ford Transit) e insistia que precisava de levar os documentos ainda naquele dia››. O pagamento seria feito com o cheque acima mencionado, que a testemunha afirmou que «foi preenchido lá« (na sua frente) – preenchimento quanto à quantia, ao local de emissão e à data de emissão, ainda que já não tenha estado tão seguro sobre se a assinatura já estava ou não aposta – e daí que, em obediência ao princípio constitucional de presunção de inocência do arguido, se tenha interpretado a dúvida em seu favor, não se considerando provado que tenha sido o arguido a assinar o mencionado cheque.
Mais referiu aquela testemunha que, verificando que «o cheque era doutro, chamou-lhe à atenção» e o arguido disse «que era sócio» (da sociedade titular da conta).
Devido às desconfianças que se lhe geraram, disse ao arguido que para tratar dos documentos precisava de tempo até ao dia seguinte, e precisava ainda de ficar com fotocópia do cheque. Quando o arguido se foi embora telefonou para um seu conhecido que trabalha no Banco sacado, informando-o este que o mencionado cheque, juntamente com outros, «foram dados como extraviados e tinham desaparecido na sequência de um assalto à empresa».
De posse desta informação denunciou a situação à G.N.R., que mobilizou os meios necessários para surpreender o arguido. Assim, quando pelas 9:00 horas da manhã este compareceu de novo no stand, foi recebido pelos agentes da G.N.R. VICTOR E..., JOSÉ O..., JOSÉ S... e SUSANA M..., acabando o arguido por entregar a esta última o cheque.
Todos sabem o valor que se reconhece ao cheque como meio de pagamento sendo de presumir que o arguido também o conheça porque vive integrado na nossa sociedade e também porque com ele pretendeu pagar o preço de aquisição duma viatura automóvel, sendo ainda de presumir que estivesse ciente que a sua conduta abalava a confiança e a credibilidade inerente àquele documento.
Por outro lado, e como resulta do depoimento da testemunha José F..., o arguido tudo fez para conseguir a viatura automóvel contra a entrega do cheque, apresentando-se como o verdadeiro titular da conta (veja-se a resposta que deu à observação que lhe foi feita quanto ao “dono” do cheque).
Ainda quanto a esta parte foi ouvido Jacinto T..., advogado, que numa primeira fase foi constituído arguido nos autos. Ou devido a esta circunstância ou motivado por outras circunstâncias que este Tribunal Colectivo não conseguiu determinar, o certo é que o seu depoimento se não revelou minimamente credível, nem se lhe atribuiu, sequer, o “mérito” de fazer suscitar a dúvida nas partes em que entra em contradição frontal com o depoimento da testemunha José F..., designadamente quanto ao preenchimento do cheque.
Quanto aos demais factos transcritos em II, referiu a testemunha EDUARDO E..., Cabo da G.N.R., que o arguido, tendo sido transportado para o Posto desta Polícia, na sequência do acima descrito, «assinou a declaração (leia-se “autorização”) da busca›› e «logo a seguir fez um telefonema para a esposa a dizer para desaparecer com o que estava em cima do frigorífico que estava na G.N.R.».
Considerado o que foi, depois, encontrado na casa dos arguidos, entendeu este Tribunal Colectivo que o arguido se referia não só às armas como também ao produto estupefaciente que veio a ser recuperado.
Contou ainda que quando chegavam a casa dos arguidos «a esposa vinha com uma saca que trazia uma pistola dentro››. Este aspecto foi melhor concretizado pelo agente JOSÉ O...que referiu que na altura em que chegavam a casa dos arguidos «na rua vimos uma senhora com uma criança e tentou fugir. Tinha um saco de plástico e dentro uma arma» e pelo agente JOSÉ S..., que referiu que «no caminho eu vi duas senhoras ciganas miúdos. Uma (que identificou como sendo a arguida Domingas) trazia um saco n mão. Escondeu-se e já não trazia os sacos. Fui ao local onde ela se escondeu e vi um saco com uma pistola, fraldas e sapatilhas».
Esclareceu ainda o Cabo EDUARDO E... que «em cima do frigorífico estava uma pistola desmontada»› (a de marca “Astra”) e «numa gaveta da cozinha estava um moinho – identificado no “Auto de Apreensão” de folhas 16 – e vários sacos plásticos».
Esta e aquela arma foram primeiramente objecto do exame de folhas 150 e 151, tendo posteriormente sido examinadas pelo L.P.C. da P.J., cujo relatório consta de folhas 382 a 386, que se dá aqui por reproduzido.
O agente PAULO C... referiu que foi «incumbido de guardar a arguida» e a determinada altura verificou que «ela desapareceu. Fomos atrás dela e eu vi ela a botar um saco para a varanda da casa ao lado», recuperado esse saco, verificou-se que continua «uma caixa de telemóvel, arroz e a droga» - tudo como se descreve no “Auto de Apreensão” de folhas 17 do I volume.
O produto estupefaciente foi submetido a exame laboratorial revelando tratar-se de “cocaína” o que se encontrava na caixa do telemóvel, a qual tinha o peso de 264,342 gramas, e no moinho “Ufesa” havia vestígios de “heroína” como se fez constar do relatório de folhas 224, que ora se dá aqui por reproduzido na íntegra.
Os arguidos conheciam as características deste produto, tanto mais que já tinham tido (pelo menos o arguido Jaime) contacto com as drogas.
O certificado de registo criminal do arguido JAIME consta de folhas 363 a 367, do qual constam três condenações, duas delas em pena de multa, posteriormente convertida em prisão, e a terceira em pena de prisão de 5 anos e 8 meses pelo crime de tráfico de estupefacientes.
Do certificado de registo criminal da arguida DOMINGAS nada consta, como se vê de folhas 217 dos autos.
Sobre as condições sociais e económicas dos arguidos relevaram os relatórios sociais que constituem as folhas 389 a 396, do II volume dos autos, já que os arguidos não compareceram ao julgamento.”
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2. Apreciando
2.1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso( - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso( - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.).
Atenta a conformação das conclusões formuladas( - Diga-se ainda que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar – Germano Marques da Silva, obra citada, pág. 335; Daí que se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões – Simas Santos e Leal Henriques, obra citada, pág. 107, nota 116.), importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:
- nulidade do acórdão por falta de exame crítico da prova;
- insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão;
- erro notório na apreciação da prova;
- impugnação da matéria de facto;
- enquadramento jurídico-penal dos factos;
- escolha e medida das penas aplicadas ao arguido JAIME C....

2.1. Da nulidade do acórdão.
Sustentam os recorrentes que o acórdão recorrido enferma de nulidade por falta de exame crítico da prova nos termos das alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º, com referência ao n.º 2 do artigo 374.º.
A sentença, acto decisório do juiz por excelência, que toma a forma de acórdão quando, como é o caso, for proferido por um tribunal colegial, divide-se em três partes: o relatório, a fundamentação e o dispositivo (artigo 374.º).
A fundamentação é composta pela enumeração dos factos provados e não provados bem como pela exposição completa mas concisa dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374.º, n.º 2).
Os factos provados e não provados que devem constar da fundamentação da sentença são todos os factos constantes da acusação e da contestação, os factos não substanciais que tenham resultado da discussão da causa e os factos substanciais resultantes da discussão da causa e aceites nos termos do artigo 359.º( - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 292.).
A fundamentação da sentença penal decorre da exigência de total transparência da decisão para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a actividade interpretativa da lei e sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da actividade decisória, fiscalização e controlo que se concretizam através do recurso, o que consubstancia, desde a Revisão de 1997, um direito do arguido constitucionalmente consagrado, expressamente incluído nas garantias de defesa - artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República.
E por isso a lei fulmina com nulidade a sentença que não contenha as menções referidas no n.º 2 do artigo 374.º, isto é, no que ora interessa, quando não contenha uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, das razões de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Se é certo que na fundamentação da matéria de facto não há que reproduzir os depoimentos e o conteúdo dos restantes meios probatórios, já que fundamentação não é sinónimo de redução a escrito da prova, também não basta a enumeração dos meios de prova e juízos conclusivos sobre os mesmos, tornando-se necessário explicar, embora de forma concisa, o processo de formação da convicção do julgador.
Através da fundamentação da matéria de facto da sentença há-de ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal.
Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo( - Acórdão do STJ de 12/4/2000, Proc. n.º 141/2000 - 3ª, SASTJ, n.º 37, pág. 83. ).
Portanto esse exame crítico deve indicar no mínimo, e não tem que ser de forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham na perspectiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal.
O que é essencial é que através da leitura da sentença se perceba por que razão o tribunal decidiu num sentido e não noutro, garantindo-se que a decisão sobre a matéria de facto não foi fruto de capricho arbitrário do julgador ou de mero “palpite”.
Assim, sob pena de nulidade, a sentença, para além da indicação dos factos provados e não provados e dos meios de prova, há-de conter também “os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, ao cabo e ao resto, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal colectivo num determinado sentido”( - Acórdão do STJ de 13/2/92, Colectânea de Jurisprudência, Ano XVII, Tomo I, pág. 36; Acórdão do Tribunal Constitucional de 2/12/98, DR, IIª Série, de 5/3/1999.).
Nisto se esgota a questão da nulidade da sentença por falta de exame crítico das provas.
Esta nulidade só ocorre quando não existir o exame crítico das provas e não também quando forem incorrectas ou passíveis de censura as conclusões a que o tribunal a quo chegou.
Percebidas as razões que serviram para a formação da convicção do tribunal podem os sujeitos processuais, com recurso ao registo da prova, argumentar no sentido da alteração da matéria de facto por parte do tribunal de recurso.
Posto isto, dir-se-á que a fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido supra transcrita deixa claramente explicitado o iter da decisão e as razões da valoração efectuada, estruturada nos elementos de prova documental e pessoal que referencia e analisa de forma racional, lógica e crítica, assim como nas regras da experiência que menciona e não são questionadas, indicando de forma clara e minuciosa, a formação da convicção do tribunal colectivo.
Aliás, tanto assim é que os recorrentes não indicam um facto, de entre os provados e os não provados, em relação ao qual não tenham percebido a razão que levou o tribunal recorrido a considerá-lo verificado ou não verificado.
Questão diferente é saber se tais razões devem prevalecer, o que constitui matéria de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, a tratar em sede própria.
Improcede, pois, a invocada nulidade.

2.2. Dos vícios do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
De acordo com o disposto no artigo 410.º, n.º 2, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Em qualquer das referidas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos estranhos àquela para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento( - Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e seguintes.).
Os vícios do artigo 410.º, n.º 2 são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei.
Neste caso, o objecto da apreciação é apenas a peça processual recorrida.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar relativamente a factos relevantes para a decisão da causa, alegados pela acusação ou pela defesa, ou que resultaram da audiência ou nela deviam ter sido apurados por força da referida relevância para a decisão.
Saliente-se que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova.
Também a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto tomada.
Para que exista aquele vício é necessário que a matéria de facto fixada se apresente insuficiente para a decisão proferida por se verificar uma lacuna no apuramento da matéria necessária para uma decisão de direito.
Não ocorre esse vício quando o tribunal investigou tudo o que podia e devia investigar.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Existe tal vício quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal.
No que respeita ao “erro notório na apreciação da prova”, tal vício verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O apontado vício é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e perceptível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do “homem médio”.
O vício existe quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica corrente, do homem médio, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos.
Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
Os vícios do n.º 2 do artigo 410.º não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova, princípio ínsito no citado normativo.
Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
Ora, como resulta quer da motivação, quer das conclusões dos recursos, é manifesto que os recorrentes confundem o âmbito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, com o recurso versando a matéria de facto, isto é, com o chamado erro de julgamento.
Apenas assim se compreende que os recorrentes invoquem os apontados vícios como corolário da sua apreciação da prova produzida, confundindo, pois, vícios da decisão judicial com o erro de julgamento.
Trata-se, na verdade, de opções processuais distintas, reclamando tratamento diferenciado.
A divergência entre o que no acórdão se deu como provado e aquilo que deveria ter sido dado como provado traduz erro de julgamento da matéria de facto, sindicável pelo tribunal superior se tiver havido documentação da prova produzida em audiência e o recorrente interessado na respectiva impugnação observar, em sede de recurso, o que dispõe o artigo 412.º.
A arguição deste vício nos termos legalmente previstos desencadeia a reapreciação da matéria de facto à luz da prova produzida em audiência e pode conduzir à alteração da factualidade provada.
Já a arguição dos vícios previstos no artigo 410.º pressupõe que estes resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, portanto, sem recurso à reapreciação da prova produzida em audiência, não permitindo sindicar a matéria de facto nos termos amplos em que o consente a invocação de erro de julgamento mediante impugnação da matéria de facto provada, e conduzirá, normalmente, ao reenvio do processo para novo julgamento, total ou parcial.
De todo o modo, diga-se que, do texto do acórdão recorrido, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação dos apontados vícios posto que daquele decorre que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou, assim como também não decorre que o tribunal recorrido tenha deixado de apurar ou de se pronunciar relativamente a factos relevantes para a decisão da causa nos termos anteriormente expostos.
De igual modo dele não resulta qualquer incompatibilidade entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão, assim como nele não se detecta qualquer equívoco ostensivo contrário a facto do conhecimento geral ou ofensivo das leis da física, da mecânica, da lógica ou de conhecimentos científicos criminológicos e vitimológicos.
Improcede, pois, a invocação dos referidos vícios.

2.3. Da impugnação da matéria de facto.
Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
Uma vez que no caso em apreço houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º 3 e 431.º, b), ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
Como é sabido a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, nºs 3, 4 e 6.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento( - Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado, 10ª edição, pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, págs. 77 e segs.).
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412.º.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa( - Cfr. Acórdãos do S.T.J. de 14 de Março de 2007, de 23 de Maio de 2007 e de 3 de Julho de 2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.).
Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, o seguinte:
«Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).
Por outro lado, estabelece o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).
Expostas estas breves considerações sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, assim como sobre os ónus impostos aos recorrentes, passemos à análise do caso concreto.
O recorrente JAIME C... sustenta que deve ser considerado como não provado o ponto 4 dos factos provados no que diz respeito ao preenchimento do cheque em relação à quantia, em algarismos e por extenso, ao local e à data da emissão com a consequente absolvição do crime de falsificação de documento.
Para o efeito, alega que é pessoa quase analfabeta, mal sabe ler e escrever, para além do seu nome, acrescentando que o tribunal deu credibilidade ao depoimento prestado pela testemunha José F... mas a testemunha Jacinto T... afirmou, peremptoriamente, que esse cheque já havia estado na sua posse e encontrava-se totalmente preenchido.
Procedeu este Tribunal da Relação à audição dos depoimentos prestados pelas testemunhas José F... e Jacinto T... que conjugou com a prova documental junta aos autos, nomeadamente o cheque constante de fls. 4 e a assinatura do arguido JAIME C... aposta na procuração de fls. 39.
Ouvido o registo da prova verifica-se que a testemunha José F... começou por referir que o cheque foi preenchido e assinado naquela altura, na sua frente, para depois afirmar que não tem a certeza de que o cheque foi preenchido na totalidade na sua frente, acrescentando que tem a ideia de que o cheque estava em branco e que estava a preencher os papéis enquanto o cheque era preenchido.
Acerca da assinatura do cheque a testemunha acabou por admitir que tem dúvidas sobre se a assinatura já estava ou não aposta no cheque.
Este depoimento revela algumas fragilidades e inconsistências posto que a testemunha não soube explicar por que razão o local de emissão do cheque é Aveiro e não Esposende como seria suposto se o cheque tivesse sido preenchido no seu stand, em Esposende, além de que não se descortinam e a testemunha também não adianta quais as razões para ter dúvidas sobre se a assinatura estava ou não aposta no cheque e já estar segura acerca do preenchimento dos restantes elementos constantes do cheque por parte do arguido.
Por outro lado, a testemunha Jacinto T..., após ter visto o cheque constante dos autos, afirmou que este cheque já antes lhe tinha sido entregue pelo arguido para pagamento de honorários e outras despesas, acrescentando que o cheque, quando lhe foi entregue, já se encontrava como está agora, isto, é, completamente preenchido.
Sendo manifesta a contradição entre estes depoimentos acerca do preenchimento do cheque, o tribunal a quo conferiu credibilidade ao depoimento da testemunha José F... por considerar «que se revelou merecedor de credibilidade pela forma desapaixonada como falou e com um discurso coerente e compatível com a sua razão de ciência», em detrimento do depoimento prestado pela testemunha Jacinto T..., advogado, que numa primeira fase foi constituído arguido nos autos.
De acordo com a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto «ou devido a esta circunstância ou motivado por outras circunstâncias que este Tribunal Colectivo não conseguiu determinar, o certo é que o seu depoimento se não revelou minimamente credível, nem se lhe atribuiu, sequer, o “mérito” de fazer suscitar a dúvida nas partes em que entra em contradição frontal com o depoimento da testemunha José F..., designadamente quanto ao preenchimento do cheque».
No entanto, se é certo que o depoimento prestado por esta testemunha se afigura pouco plausível, não menos certo é que efectuada uma simples análise comparativa por contraste entre a assinatura do arguido que consta dos autos e que respeita ao seu modo de escrita espontânea (procuração de fls. 39) e os dizeres que constam do cheque de fls. 4, no sentido de verificar se os hábitos gráficos do arguido estão ou não presentes na escrita impugnada, constata-se que são evidentes as diferenças e inexistentes as semelhanças.
A assinatura do arguido foi realizada de forma irregular, lenta e imprecisa ao passo que os elementos constantes do cheque de fls. 4 se apresentam escritos de modo firme e seguro, além de que existem manifestas diferenças entre a assinatura do arguido e a escrita suspeita do cheque de fls. 4 no que respeita ao traçado, grau e tipo de conexão da letra.
Nestes termos, sendo a prova pessoal divergente, sem que se descortine da respectiva justeza, e evidentes as diferenças entre a assinatura do arguido e a escrita suspeita do cheque de fls. 4, afigura-se-nos adequado concluir que os elementos probatórios indicados na decisão recorrida não justificam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, impondo-se decisão diversa daquela em nome do princípio in dubio pro reo, o qual constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o Tribunal decida pro reo, a favor do arguido, pois.
Não se descortinando com a certeza que a situação exige que o arguido JAIME C... procedeu ao preenchimento do cheque constante dos autos em relação à quantia, ao local e à data da emissão, impõe-se dar como não provada tal factualidade, assim como os pontos 9) e 10) dos factos provados que respeitam aos elementos subjectivos do tipo legal de crime de falsificação de documento.
Consequentemente, o ponto 4) dos factos provados passará a ter a seguinte redacção: «Tendo o referido José F... dado o seu assentimento».
Para os factos não provados transitarão quer o restante segmento do ponto 4) quer os pontos 9) e 10) da factualidade provada.
Assim sendo, conclui-se que os factos provados não integram os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de falsificação de documento por que o arguido vinha acusado pelo que se impõe a sua absolvição.
Quanto aos demais factos impugnados o arguido JAIME C... limita-se a generalidades e a invocar a lógica e as regras da experiência, pretendendo fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal a quo sem demonstrar que as provas indicadas impõem uma outra convicção.
Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no artigo 127.º, ou seja, fora as excepções relativas a prova legal, assenta na livre convicção do julgador e nas regras da experiência, não podendo também esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite.
Como se tem entendido, a reapreciação, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessárias, face aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.
São inúmeros os factores relevantes na apreciação da credibilidade do teor de um depoimento que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto directo com os depoentes na audiência.
Embora a reapreciação da matéria de facto, no que ao Tribunal da Relação se refere, esteja igualmente subordinada ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação (à excepção da prova vinculada) no processo de formação da sua convicção, deverá ela ter em conta que dos referidos princípios decorrem aspectos de relevância indiscutível (reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões) na valoração dos depoimentos pessoais que melhor são perceptíveis pela 1ª instância.
À Relação caberá, sem esquecer tais limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova gravada e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidenciável e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não bastando, para eventual alteração, diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.
Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõe uma outra convicção.
Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.
Tudo isto vem para se dizer que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado( - Cfr. Acórdãos do STJ de 23/4/2009 e de 29/10/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.).
O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão( - Cfr. Acórdãos do STJ de 15/7/2009, de 10/3/2010 e de 25/3/2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.).
Conforme tem sido repetidamente afirmado, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a assegurar a realização de um novo julgamento, de um melhor julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância( - Cfr. Germano Marques da Silva, Código de Processo Penal, vol. II, Lisboa 1999, pág. 65; Cunha Rodrigues, Recursos, in O Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra, 1989, pág. 393; José Manuel Damião da Cunha, A estrutura dos recursos na proposta de Revisão do CPP - Algumas Considerações, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8º, fasc. 2, Abril/Junho 1998, págs. 259-260; Vínicio Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra, 2008, págs. 848-849; na jurisprudência, os Acórdãos do TC n.º 59/2006, 677/99, 322/93, 124/90, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt e, entre outros, os Acórdãos do STJ de 11-11-2004, Proc.º n.º 04P3182, de 17-2-2005, Proc.º n.º 04P4324, de 17-3-2005, Proc.º n.º 05P129, 15/12/2005, Proc. 2951/05, de 23-3-2006, Proc.º n.º 06P547, de 20-7-2006, Proc.º n.º 06P2316, de 10/1/2007, Proc. 06P3518, de 31-5-2007, Proc.º n.º 07P1412, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj e de 18-10-2006, in CJ, ACSTJ, ano XIV, tomo 3, pág. 210.) ( - «(…) O julgamento em 2ª instância não o é da causa, mas sim do recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa, em que estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos da imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da oralidade (através de alegações orais, se não forem pedidas e admitidas alegações escritas)» - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/2006, de 18/01/2006.).
Sendo certo que o tribunal a quo alcançou a sua convicção ponderando de forma conjugada e crítica toda a prova produzida em audiência de julgamento, debalde se encontra no recurso em causa alegação que infirme a formação de tal convicção, sendo que uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova e outra é detectar-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, posto que o recurso da matéria de facto deve incidir sobre provas que imponham decisão diversa e não simplesmente sobre provas que permitam decisão diferente.
Na verdade, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.
Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”( - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24/3/2004, DR, II Série, n.º 129, de 2/6/2004.).
No mesmo sentido se pronuncia a jurisprudência dos tribunais superiores: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”( - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6/3/2002, CJ, Ano XXVII, Tomo II, pág. 44; No mesmo sentido, Acórdãos da Relação do Porto de 19/6/2002, 4/2/2004 e 16/11/2005, in www.dgsi.pt/jtrp. ).
Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.
Na verdade, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”( - Prof. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1º volume, pág. 211.).
Conforme resulta da análise da motivação de facto acima transcrita, o tribunal a quo recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, permitindo aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador.
Através da motivação da decisão da matéria de facto constante do acórdão recorrido fica-se ciente do percurso efectuado pelo tribunal colectivo onde seguramente a racionalidade se impõe mas onde a livre convicção se afirma com apelo ao que a imediação e a oralidade, e só elas, conseguem conceber, espelhando aquela decisão a apreciação crítica da prova produzida, explicitando o resultado dessa apreciação e justificando a convicção formada quanto à matéria em causa de forma lógica e de acordo com as regras da experiência comum.
Por isso, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, nenhuma censura há-de merecer, nesta parte, o juízo valorativo acolhido em 1ª instância.
2.4. Do enquadramento jurídico-penal dos factos.
O arguido JAIME C... sustenta que os factos provados integram, para além de um crime de burla qualificada na forma tentada, a prática de um crime previsto e punido pelo artigo 40.º, n.º 2 do DL n.º 15/93, de 22/1 e de um crime de detenção de ilegal de arma, enquanto a arguida DOMINGAS S... sustenta que não cometeu o crime de tráfico de estupefacientes nem o crime de detenção ilegal de arma mas tão só o crime de favorecimento pessoal previsto e punido pelo artigo 367.º do Código Penal.
O crime de tráfico de estupefacientes é um crime formal de perigo comum cuja consumação se verifica com a aquisição da droga destinada ao trá­fico, por qualquer forma, como uniformemente entende o Supremo Tribunal de Justiça( - Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18/2/1986, 2/4/1986, 2/5/1990 e de 7/3/2001, respectivamente in Boletim do Ministério da Justiça nºs 354, 356 e 397, págs. 331, 122 e 128 e Colectânea de Jurisprudência, ACSTJ, Ano IX, Tomo I, pág. 237.).
Trata-se de um de crime de perigo comum dado que o agente, ao praticar uma das condutas tipificadas, não domina a expansão do perigo criado, havendo o risco de atingir uma multiplicidade de bens jurídicos que vão desde a vida e integridade física à liberdade de determinação e à própria saúde pública em geral.
Sendo possível distinguir diversos bens jurídicos protegidos com a incriminação – a vida, a integridade física, a liberdade de determinação dos consumidores de estupefacientes...etc. – pode precisar-se que o bem jurídico primordialmente protegido pela previsão do tráfico de estupefacientes é a inco­lumidade pública, considerada no particular aspecto concernente à saúde pública, que se deve garantir contra os factos fraudulentos, de perigo comum, interessando tal crime, co­merciar, deter para comércio, ministrar ou facilitar a outros substâncias estupefacientes( - Apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/5/1985, in Boletim do Ministério da Justiça n.º 347, pág. 220; Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 1/3/2001, Colectânea de Jurisprudência, ACSTJ, Ano IX, tomo I, pág. 234.).
Para que se verifique o crime basta a verificação de uma das acções típicas, independentemente da situação concreta ter criado ou não um perigo de violação de determinados bens jurídicos, tendo o legislador antecipado a protecção penal para um momento anterior à verificação do dano( - Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional de 6/11/91, in B.M.J. n.º 411, pág. 56 e de 7/6/94, in D. R., II Série, de 27/10/94.).
Acresce que não é elemento típico da descrição legal do crime de tráfico de droga a intenção lucrativa, isto é, a lei não exige sequer que chegue a haver transacção com fins lucrativos, bastando a mera detenção desde que não fique provado que se destina a consumo próprio( - Ver João Luís de Moraes Rocha, Droga – Regime Jurídico, pág. 61; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14/5/97, 29/1/98 e 15/10/98, disponíveis em www.dgsi.pt.).
Aliás, na sequência de que se trata de um crime de perigo comum e abstracto e não de um crime de perigo concreto, consumando-se logo que o agente detenha a droga, sem necessidade de se apurar o fim visado com tal actividade, pelo que só a demonstração de outro fim permitir excluir que a detenção visasse o tráfico.
Por outro lado, este crime tem vindo a ser qualificado como “crime exaurido”, “crime de empreendimento” ou “crime excutido” que se caracteriza como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo.
O crime exaurido é “uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa”, ou seja, “aquele em que o resultado típico se obtém logo pela realização inicial da conduta do agente”( - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/4/1996, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ACSTJ, Ano IV, tomo II, pág. 170; cf. ainda os Acórdãos do mesmo Tribunal de 18/6/98 e de 7/3/2001, obra citada, Anos VI, tomo III, pág. 169 e IX, tomo I, pág. 237.).
Isto quer dizer que o “primeiro passo” dado pelo agente na senda do “iter criminis” já constitui o preenchimento do tipo, valendo os passos seguintes apenas para efeitos de determinação da medida concreta da pena a aplicar pela prática do crime.
Deste modo, a condenação do agente pela prática do crime de estupefacientes durante determinado período de tempo corresponde a uma apreciação global da sua actividade delituosa durante esse período, independentemente da falta de consideração de algum ou alguns factos parcelares praticados nessa época.
O crime há-de, assim, considerar-se exaurido, esgotado, apenas quanto aos factos ocorridos dentro do período de tempo a que se reporta a condenação.
O tráfico de estupefacientes encontra-se previsto nos artigos 21.º – tráfico e outras actividades ilícitas –, 25.º – tráfico de menor gravidade – e 26.º – tráfico com a finalidade exclusiva de conseguir produtos para uso pessoal – do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, sendo os dois últimos crimes privilegiados relativamente ao do artigo 21.º a partir da consideração do grau de ilicitude.
No artigo 21.º, n.º 1 descreve-se a matriz ou o padrão do crime de tráfico, enumerando-se os actos que, na prevenção legal, são potenciadores de perigo para a saúde pública.
Correspondem esses actos a passos direccionados, naturalmente, para a colocação da droga no mercado do consumo.
A prática de um só, daqueles actos, é suficiente para a consumação do crime, sendo, por isso, o tráfico considerado como um “crime exaurido” no sentido de que a prática de um só acto é gerador do resultado típico.
Sendo certo que na previsão daquele normativo caberão as mais diversas condutas, umas mais graves do que outras, não menos certo é que, ao nível da sanção a aplicar, só poderão individualizar-se mediante a apreciação das circunstâncias concretas da acção.
De todo o modo, sempre a pena concreta haverá de se situar entre o mínimo de 4 anos e o máximo de 12 anos de prisão.
Todavia, as subtilezas da vida real apresentam por vezes situações de tal modo específicas que não se compaginam com penalidade tão severa mesmo que situada no limite mínimo.
Serão estas situações que, duma forma ou doutra e consoante as circunstâncias, poderão ser abrangidas pelos normativos dos artigos 25.º ou 26.º do citado Dec-Lei n.º 15/93.
Sendo o tráfico um crime de perigo comum e abstracto facilmente se intui que esse perigo será tanto maior ou menor quanto maior ou menor for a quantidade de droga lançada no mercado.
Por outro lado, parece claro também que o grau da ilicitude há-de variar na mesma proporção em que varia aquele perigo criado pela conduta do agente.
Dentro deste enquadramento se hão-de compreender as distinções e punições feitas pelo legislador que vão desde o “traficante-consumidor” (artigo 26.º), passando “tráfico de menor gravidade” (artigo 25.º) e acabando no “grande tráfico” (artigos 21.º, 22.º e 24.º).
Os arguidos vinham acusados pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido nos termos do artigo 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22/1.
Estabelece o artigo 21.º, n.º 1 do citado diploma que “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.
Por seu turno, o artigo 25.º do citado diploma preceitua que “se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade( - “Os meios utilizados reportar-se-ão à organização e à logística de que o arguido se socorre, na modalidade ou circunstância da acção relevará particularmente a perigosidade em termos de difusão das substâncias, tendo a qualidade da droga a ver com a sua periculosidade - de algum modo observada no ordenamento das tabelas anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93 -, sendo o elemento quantidade o mais difícil de avaliar, posto que o n.º 3 do artigo 26.º, e de algum modo o n.º 2 do artigo 40.º, possam ser tomados como índices para alguma comparação” - cfr. Acórdão do STJ de 20/3/2002, in CJ, ACSTJ, Ano X, tomo I, pág. 243.) das plantas, substâncias, ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;
b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV”.
A norma do artigo 25.º, como tem sido entendido pela jurisprudência, não comporta de modo algum um tipo fechado, o que decorre, desde logo, da utilização pelo legislador do advérbio “nomeadamente”, a permitir, assim, a concorrência de factores estranhos à enumeração legal, assumindo-se, pois, com grande elasticidade.
O que será sempre fundamental é que, qualquer que seja o factor de ponderação, o mesmo reflicta uma menor ilicitude da conduta, esta sim, o denominador comum que nunca deve faltar.
Do mesmo modo, tem vindo a ser facilmente aceite que os factores de aferimento não revestem todos a mesma importância, relevando-se como de qualificado valor a forma de cometimento do crime (meios utilizados, modalidade e circunstâncias da acção e período de actividade) e qualidade e quantidade dos produtos envolvidos.
Da matéria de facto provada resulta que, nas descritas circunstâncias de tempo, modo e lugar, os arguidos detinham no interior de uma caixa de telemóvel, em cartão, seis (6) saquinhos de plástico contendo um pó branco, o qual submetido a exame pericial revelou tratar-se de cocaína, com o peso líquido de 264,342 gramas, tendo ainda sido detectados resíduos de heroína num moinho de marca “Ufesa” que se encontrava na casa dos arguidos.
Os arguidos, em conjugação de esforços e de comum acordo, pretendiam vender a substância acima mencionada a terceiros consumidores, com o intuito de obterem para si compensações pecuniárias.
Ambos os arguidos conheciam bem a natureza e características estupefacientes daqueles produtos, que detinham, estando conscientes que a sua aquisição, detenção e venda, sem as necessárias autorizações, são proibidas e punidas por lei.
Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal.
Assim, em face da matéria de facto provada, afastada está a subsunção dos factos ao tipo legal de crime previsto no artigo 25.º posto que a factualidade apurada, nomeadamente a quantidade, natureza e características da substância apreendida, a forma como a mesma se encontrava dissimulada no interior de uma caixa de telemóvel e a circunstância de se destinar à venda a terceiros consumidores com o intuito de os arguidos obterem para si compensações pecuniárias, considerada na sua complexidade global e à luz da realidade social e da política criminal subjacente às opções legais, não aponta para uma actuação de tráfico que se apresenta com um grau de ilicitude acentuadamente diminuído face ao pressuposto pela incriminação do artigo 21.º, n.º 1, susceptível, portanto, de determinar a sua inclusão no tipo do artigo 25.º citado, ou seja, no tráfico de menor gravidade.
Aqui importa salientar que em lado algum se prova que a cocaína apreendida se destinava ao consumo do arguido JAIME C..., ao invés ficou provado que os arguidos, em conjugação de esforços e de comum acordo, pretendiam vender a referida substância a terceiros consumidores com o intuito de obterem para si compensações pecuniárias – ponto 22) dos factos provados.
Destarte, ao contrário do que pretende o recorrente JAIME C..., torna-se impossível subsumir a factualidade dada como assente quer ao regime previsto na Lei n.º 30/2000, de 29/11, quer ao tipo legal de crime previsto no artigo 26.º do DL n.º 15/93, de 22/1, uma vez que não ficou provado que o arguido destinasse a substância estupefaciente apreendida ao seu consumo.
Não estando provado que o estupefaciente se destinasse ao consumo do recorrente, cai por terra a sua pretensão de ver subsumida a conduta provada ao regime previsto na Lei n.º 30/2000, de 29/1, (consumo de estupefacientes), bem assim o enquadramento no artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/1, porquanto não se provou que o arguido tivesse por finalidade exclusiva conseguir meios para adquirir droga para uso pessoal.
Quanto à arguida DOMINGAS S..., como já ficou dito, não é elemento típico do crime de tráfico de estupefacientes a intenção lucrativa, isto é, a lei não exige sequer que chegue a haver transacção com fins lucrativos, bastando a mera detenção desde que não fique provado que se destina a consumo próprio( - O preenchimento do elemento objectivo não exige que a droga se destine à venda. Basta que o estupefaciente se não destine na sua totalidade ao consumo do próprio agente para que o crime fique perfectibilizado. Provando-se o mero acto de detenção da droga mas não se provando o propósito do consumo na sua totalidade pelo detentor, aquele preenche o referido tipo legal de crime – neste sentido, entre outros, os elucidativos Acórdãos do STJ de 24/11/99 e da Relação de Lisboa de 13/4/2000, o primeiro proferido no Proc.º 937/99/3ª Secção e o segundo publicado na CJ, Ano XXV, tomo II, pág. 157. ).
Assim, tendo presentes os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime previsto no artigo 21.º, n.º 1, sendo certo que a cocaína é uma substância que se encontra incluída na tabela I-B, anexa ao DL n.º 15/93, de 22/1, não merece qualquer censura a condenação dos arguidos pela prática do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido no citado preceito com pena de prisão de 4 a 12 anos.
Por outro lado, atento o disposto no artigo 30.º, n.º 1 do Código Penal, o número de armas detidas pelo arguido e que foram apreendidas não pode constituir o critério diferenciador entre a unidade e pluralidade de acções de detenção ilegal de armas.
Com efeito, na distinção entre unidade e pluralidade de infracções o legislador português (artigo 30.º, n.º 1 do Código Penal) perfilhou claramente o chamado critério teleológico, atendendo ao número de tipos legais de crimes efectivamente preenchidos pela conduta do agente ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime.
Pode, assim, dizer-se que há tantas infracções, na realização do mesmo tipo legal, quantas vezes a conduta se tornar reprovável.
A pluralidade de infracções resulta, pois, para o mesmo tipo legal, da pluralidade de juízos de censura ou reprovação.
Ora, desconhecendo-se, além do mais, se as pistolas apreendidas chegaram às mãos do arguido JAIME C... em ocasiões distintas, dir-se-á que estamos perante um caso de detenção simultânea de duas armas por parte do arguido, a qual integra apenas um único crime de detenção ilegal de arma por tal conduta apenas ser susceptível de um único juízo de censura( - Cfr., neste sentido, Carvalho Martins, Criminogénese Criminodinâmica dos Delitos com Arma de Fogo, Coimbra, 1988, pág. 51; vide ainda o Acórdão do STJ de 16/6/2008, in www.dgsi.pt/jstj. ).
No que respeita à arguida DOMINGAS S... dir-se-á que a circunstância de a mesma nunca ter deflagrado alguma munição ou não ter sido proprietária de qualquer arma de fogo é irrelevante posto que está em causa a detenção da pistola de marca “Browning CZ”, de calibre 7,65mm, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referenciadas nos pontos 14), 16), 17) e 18) dos factos provados.
Destarte, cada um dos arguidos constituiu-se autor de um crime de detenção ilegal de arma previsto e punido pelo artigo 6.º, n.º 1 da Lei n.º 22/97, de 27/6, na redacção dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 98/2001, de 25/8, por este ser o regime que, objectivamente e a todas as luzes, se mostra mais favorável para os arguidos – artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal.
Por conseguinte, os factos considerados como provados relativamente à arguida DOMINGAS S... integram quer o crime de tráfico de estupefacientes, quer o crime de detenção ilegal de arma, estando, como tal, afastada a comissão do crime de favorecimento pessoal previsto no artigo 367.º do Código Penal invocado pela recorrente.

2.5. Da escolha e medida das penas aplicadas ao arguido JAIME C....
Sabido que o arguido JAIME C... se constituiu autor, em concurso real, de um crime de burla qualificada na forma tentada, de um crime de detenção ilegal de arma e de um crime de tráfico de estupefacientes, o que decorre do factualismo apurado em julgamento, importa apreciar se as penas que lhe foram concretamente aplicadas se mostram, ou não, ajustadas quanto à sua natureza e medida.
A escolha e determinação da medida da pena envolvem diversos tipos de operações.
Na parte que agora importa, o julgador, perante um tipo legal que admite, em alternativa, a aplicação das penas principais de prisão ou de multa, deve ter em conta o disposto no artigo 70.º do Código Penal que consagra o princípio da preferência pela pena não privativa de liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficientes as finalidades da punição.
Tais finalidades, nos termos do artigo 40.º do mesmo diploma, reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina, em seguida, a medida concreta da pena que vai aplicar, para depois escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida.
Assim, perante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa, o tribunal deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a a favor da prisão na hipótese inversa.
Neste momento do procedimento de determinação da pena, o único critério a atender é o da prevenção( - Como refere Figueiredo Dias «são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação.» - Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 497, pág. 331.) ( - A escolha entre a pena de prisão e a alternativa ou de substituição depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial – Maia Gonçalves, em anotação ao artigo 70.º do Código Penal.) ( - A escolha das penas é determinada apenas por considerações de natureza preventiva, uma vez que as “finalidades da punição” são exclusivamente preventivas – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, 2ª edição actualizada, pág. 266.).
O artigo 70.º do Código Penal opera, precisamente, como regra de escolha da pena principal nos casos em que se prevê pena de prisão ou multa.
No caso em apreço, a moldura abstracta da pena do crime de burla qualificada na forma tentada é a de prisão de um mês a três anos e quatro meses ou a de multa de 10 a 400 dias, a do crime de detenção ilegal de arma é a de prisão de um mês a dois anos ou a de multa de 10 a 240 dias e a do crime de tráfico de estupefacientes é a de prisão de quatro a doze, tendo o tribunal colectivo optado pela aplicação de pena privativa de liberdade relativamente aos crimes de burla qualificada na forma tentada e detenção ilegal de arma contra o que se insurge o recorrente.
Consabido que a aplicação da disciplina legal contida no citado artigo 70.º depende exclusivamente das finalidades da punição pelo que o julgador só deve optar pela cominação de pena não privativa da liberdade quando a mesma se mostre consentânea com os princípios de prevenção geral e especial, certo é que, no caso em apreço, atentas as acentuadas necessidades de prevenção geral actualmente ligadas aos tipos de crime em causa e as necessidades de prevenção especial que o presente caso encerra já que o arguido possui antecedentes criminais ter-se-á de afastar a preferência normativa, optando-se pela pena de prisão, pelo que nada há a censurar, neste particular, à decisão impugnada.
Aliás, conforme defende uma corrente jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça, quando numa pena de concurso entra uma pena de prisão e uma de multa em alternativa, como é o caso, pois o criem de tráfico de estupefacientes cometido pelo arguido é punido com pena de prisão, importa optar, na medida do possível, por uma pena homogénea de prisão de forma a evitar os inconvenientes das «penas mistas» que o legislador pretendeu afastar na revisão do Código Penal operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março( - Neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2004, Processo n.º 2947/04 - 5.ª, de 27.4.2006, Processo n.º 4402/05 - 5.ª, de 29.3.2007, Processo n.º 515/07 - 5ª, de 20.2.2008, Processo n.º 4553/07 - 3.ª, de 12.2.2009, Processo n.º 110/09 - 5.ª Secção e de 8.10.2009, Processo n.º 228/08.5JAFAR.S1 - 5.ª.).
A determinação da medida concreta da pena, dentro das referidas molduras penais abstractas, faz-se com recurso ao critério geral estabelecido no artigo 71.º do Código Penal, tendo em vista as finalidades das respostas punitivas em sede de Direito Criminal, quais sejam, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal – sem esquecer que a culpa constitui um limite inultrapassável da medida da pena – n.º 2 deste artigo.
A partir da revisão operada em 1995 ao Código Penal, a pena passou a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena no sentido de que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo que dentro desse limite máximo a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
É este o critério da lei fundamental – artigo 18.º, n.º 2 – e foi assumido pelo legislador penal de 1995( - Cfr. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento, Sentido e Finalidade da Pena Criminal, 2001, págs. 104 a 111.).
No mesmo sentido se orienta o Supremo Tribunal de Justiça ao referir que «se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura legal –, a moldura da pena aplicável ao caso concreto (“moldura de prevenção”) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente: entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social»( - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/1/2000, Processo n.º 1193/99.).
Dito de outro modo, face ao disposto nos artigos 71.º, n.º 1 e 40.º, nºs 1 e 2 do Código Penal, «logo se vê que o modelo de determinação da medida a pena é aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente.
Por conseguinte, constituem a culpa e a prevenção os dois termos do binómio com que importa contar para delineamento da medida da pena»( - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/3/2001, CJ, ACSTJ, Ano IX, Tomo I, pág. 245.).
Daqui decorre que o juiz pode impor qualquer pena que se situe dentro do limite máximo da culpa, isto é, que não ultrapasse a medida da culpa( - O mínimo da pena, como já ficou dito, é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, ou seja, nunca pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados.), elegendo em cada caso aquela pena que se lhe afigure mais conveniente, tendo em vista os fins das penas com apelo primordial à tutela necessária dos bens jurídico-penais do caso concreto, tutela dos bens jurídicos não, obviamente, num sentido retrospectivo, face a um facto já verificado, mas com significado prospectivo, correctamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; neste sentido sendo uma razoável forma de expressão afirmar-se como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, finalidade que, deste modo, por inteiro se cobre com a ideia de prevenção geral positiva ou de prevenção geral de integração, dando-se assim conteúdo ao exacto princípio da necessidade da pena que o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República consagra( - Cfr. Figueiredo Dias, ibidem, págs. 105 a 106.).
Revertendo ao caso dos autos, diga-se que não merece reservas a elencagem de factores de medida da pena a que procedeu a decisão recorrida relativamente a cada um dos crimes cometidos pelo arguido JAIME C....
O tribunal recorrido teve em atenção todos os elementos disponíveis no processo que interessavam em sede de graduação da pena, sendo avaliada a conduta do arguido em função dos parâmetros legais, que foram respeitados, nada havendo a acrescentar relativamente aos argumentos já aduzidos na fundamentação utilizada para a determinação da medida da pena em relação ao crime de burla qualificada na forma tentada e ao crime de detenção ilegal de arma que justifique a respectiva alteração, pois que as mesmas se mostram criteriosas, adequadas e proporcionais, sendo ajustada ao crime de detenção ilegal de arma a pena de nove meses de prisão posto estarmos perante uma situação de detenção simultânea de duas armas por parte do arguido.
No que diz respeito ao crime de tráfico de estupefacientes, considerando todos os factores de medida da pena constantes da decisão recorrida mas tendo ainda em conta outros casos paralelos, entende-se ser de reduzir a pena aplicada ao arguido para seis anos de prisão.
A pena única do cúmulo, também chamada pena conjunta, de acordo com o artigo 77.º, n.º 2 do Código Penal, tem a sua moldura abstracta definida entre a pena mais elevada das penas parcelares e a soma de todas as penas em concurso, não podendo ultrapassar 25 anos, o que equivale por dizer que, no caso vertente, a respectiva moldura varia entre o mínimo de 6 anos de prisão e o máximo de 8 anos e 3 meses de prisão.
Por outro lado, segundo preceitua o n.º 1 do referido artigo, na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que significa que o cúmulo jurídico de penas não é uma operação aritmética de adição, nem se destina, tão-só, a quantificar a pena única a partir das penas parcelares cominadas.
A primeira observação a fazer face ao regime legal da punição do concurso de crimes é a de que o nosso legislador penal não adoptou o sistema de acumulação material (soma das penas com mera limitação do limite máximo), nem o sistema da exasperação ou agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e os singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), tendo mantido todas as opções possíveis em aberto, desde a absorção – aplicação da pena mais grave – ao cúmulo material, passando pela exasperação.
A segunda observação a fazer é a de que a lei elegeu como elementos determinadores da pena conjunta os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto.
Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente.
Como refere Figueiredo Dias, tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique( - Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 421, pág. 291.).
Assim, importante na determinação concreta da pena conjunta será a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso( - Cfr. Acórdão do STJ de 14/02/2007, Proc.º n.º 4100/2006, que aqui acompanhamos de perto.).
Quanto à personalidade do arguido, tendo em atenção os factos perpetrados e o respectivo contexto, poder-se-á concluir que a prática dos factos não resultou de uma actuação ocasional mas da repetida opção por uma forma de vida contrária à lei, conjugada com a sua indiferença perante condenações anteriores, revelando uma personalidade propensa ao crime.
Por outro lado, não resultando provada qualquer relação entre os crimes de tráfico de estupefacientes, detenção ilegal de arma e burla qualificada, na forma tentada, dever-se-á concluir que inexiste qualquer conexão entre os factos em concurso.
Tudo ponderado, tendo presente o tipo e número de crimes perpetrados, bem como as penas parcelares aplicadas, entende-se ser de reduzir a pena única aplicada ao arguido JAIME C... para seis (6) anos e nove (9) meses de prisão.
Em face da pena considerada adequada, como pena única, não é equacionável, sequer em abstracto, no regime vigente, a suspensão da respectiva execução.
Procede, portanto, nesta parte, o recurso interposto pelo arguido JAIME C....
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III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação nos seguintes termos:
1) Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido JAIME C... e em consequência:
a) alterar o julgamento da matéria de facto nos termos seguintes:
- o ponto 4) dos factos provados passará a ter a seguinte redacção: «Tendo o referido José F... dado o seu assentimento»;
- para os factos não provados transitarão quer o restante segmento do ponto 4) quer os pontos 9) e 10) da factualidade provada;
b) absolver o arguido do crime de falsificação de documento que lhe vinha imputado na acusação pública;
c) manter a condenação do arguido pela prática de um crime de burla qualificada na forma tentada previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 23.º, n.º 2, 73.º, 202.º, a), 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, todos do Código Penal, na pena de 1 (ano) e 6 (seis) meses de prisão;
d) condenar o arguido pela prática de um crime de detenção ilegal de arma previsto e punido pelo artigo 6.º, n.º 1 da Lei n.º 22/97, de 27/6, na redacção dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 98/2001, de 25/8, na pena de 9 (nove) meses de prisão;
e) condenar o arguido pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 15/93, de 22/1, na pena de 6 (seis) anos de prisão;
f) em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de prisão.
2) Julgar improcedente o recurso interposto pela arguida DOMINGAS S... e, em consequência, nesta parte, confirmar o acórdão recorrido.
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Custas pela recorrente DOMINGAS S..., fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)
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Guimarães, 18 de Junho