Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
718/04-2
Relator: HEITOR GONÇALVES
Descritores: CARTA MISSIVA
MEIOS DE PROVA
VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/28/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - O texto do artigo 194º do Código Penal resulta da revisão operada pelo Decreto Lei 48/95, de 15 de Março, e uma das novidades foi, precisamente, o de autonomizar como ilícito crime o que anteriormente constituía apenas uma agravação da pena prevista para o crime de violação de correspondência, pela abertura de encomenda, carta ou outro escrito fechado, sem consentimento (cfr. artigo 182º, do Código Penal aprovado pelo DL 400/82, de 23.09).
II - Ou seja, a partir dessa revisão, o desvalor da acção traduzido na divulgação do conteúdo de uma carta ou qualquer outro escrito, sem consentimento, passou a merecer uma incriminação directa e autónoma, sendo indiferente saber se foi ilícito o processo da sua obtenção, o que, no dizer de Manuel da Costa Andrade (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Vol. I, pag. 763), está “em consonância com a estrutura normal dos crimes de devassa que, em princípio, tanto compreendem a intromissão indevida na área de reserva como o alargamento indevido no universo de pessoas a tomar conhecimento”.
III - Aliás, como também resulta do preâmbulo do DL 48/95, de 15.03, o legislador, para protecção dos últimos redutos da privacidade a que todos têm, e na sequência da norma de conteúdo programático do então nº2, do artigo 33º, da Constituição da República Portuguesa, quis claramente definir outros específicos tipos legais de crime, como foi o caso do tipo legal do nº3, do artigo 194º, do CP, o qual passou a concorrer com o previsto no nº1, do mesmo preceito legal, embora ambos se reconduzam, ao fim e ao cabo, à protecção de um mesmo bem jurídico.
IV - Assim, os elementos gramatical, sistemático, histórico e teleológico não autorizam nem legitimam a interpretação que o recorrente faz do preceito, ou seja de um estado de necessidade probatório, antes reclamam e impõem a interpretação dada pelo Ministério Público, na 1ª e 2ª instâncias, que vai de encontro ao enquadramento jurídico dado aos factos pelo tribunal recorrido.
V - Inequivocamente, o arguido, ao juntar ao processo de divórcio, sem consentimento da ofendida, uma carta que a esta tinha sido dirigida para a sua morada, divulgou ilicitamente o seu conteúdo, ainda que num universo restrito de pessoas, pelo que esse seu comportamento integra o tipo legal de crime previsto no nº3, do artigo 194º, mesmo não se tendo provado ter sido ele autor da violação dessa correspondência.
VI - A circunstância de a carta ter sido recebida na casa de morada de família que a destinatária anteriormente tinha abandonado, não obsta a que se considere que a missiva tenha entrado na esfera de disponibilidade fáctica da ofendida, nem legitima o arguido a considerá-la como sua.
VII - É que os interesses particulares do arguido em provar, com a carta, factos alegados na acção de divórcio contra ele instaurada pela ofendida, não se podem sobrepor nem justificam o sacrifício dos direitos de personalidade desta, tanto mais que o arguido não demonstrou a impossibilidade de substituir esse meio de prova, designadamente a convocação como testemunha do autor da missiva.
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência no Tribunal da Relação de Guimarães

A- Por sentença de 21.11.03, proferida nos autos de processo comum singular nº.11.237/02, do 1º Juízo Criminal de Braga, o arguido "A" foi absolvido do crime de violação de correspondência, p. e p. pelo artigo 194º, nº1, do Código Penal, e condenado pelo crime de violação de correspondência, previsto e punido pelo nº3, daquele preceito legal. Na procedência parcial do pedido civil, o demandado (o arguido) foi condenado a pagar à demandante O a quantia de €750,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da decisão até integral pagamento.
B- Não se conformando com essa sentença, o arguido interpôs este recurso, pretendendo obter uma sentença totalmente absolutória. No essencial e em síntese, formulou as seguintes conclusões: 1. o artigo 194º, nº3, do Código Penal, foi incorrectamente interpretado, já que para o preenchimento desse tipo legal de crime não se basta com a mera divulgação da missiva; 2. mesmo que assim se não entenda, restaria a exclusão da ilicitude do recorrente, porque exerceu plenamente o seu direito de defesa ou actuou sem dolo aquando da junção da carta aos autos de divórcio para prova dos factos alegados na contestação; 3. houve incorrecta interpretação do artigo 168º, do CPC, uma vez que a missiva circulou num círculo restrito de indivíduos, não consubstanciando qualquer conceito de “terceiros”.
C- Na resposta às motivações de recurso, o Ministério Público pugna pela manutenção do julgado. Em síntese, conclui: o artigo 194º, do CP, estabelece várias modalidades de condutas típicas, e aquela pela qual o arguido foi condenado basta-se com a divulgação do escrito, independentemente do juízo de censura a fazer a quem, antes da divulgação, se intrometa na reserva privada de outrem; consistindo a atribuída ao recorrente; o direito a divulgar uma carta num processo judicial só poderia ser admitido se o recorrente quisesse defender um interesse sensivelmente superior àquele que pretende sacrificar com tal conduta; o referido tipo legal fica preenchido com o dolo eventual.
D- Nesta relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. Na sua opinião, no nº1, do artigo 194º, do Código Penal, pune-se a abertura da missiva, no nº3, do mesmo preceito, pune-se a divulgação.
E- Factos que o tribunal recorrido julgou como provados:

- No âmbito da acção de divórcio litigioso com o n.º 250/2001 a correr termos no Tribunal de Família e Menores de Braga, na qual figura como Autora O e Réu o arguido, este juntou com a contestação e como doc. n.º 3 a carta cuja cópia consta de fls. 12 dos autos.

- Tal carta foi indicada como meio de prova do facto alegado no artigo 15º da daquela peça processual, onde o Réu alega “querer (a autora) ir viver com outro homem, (...) abandonar o lar conjugal, abandonando, assim, o Réu e a criança”, conforme consta da cópia de fls. 8-11destes autos, cujo teor se dá por reproduzido.

- A missiva tinha como destinatária O e por remetente uma irmã desta, J, residente em Lisboa.

- Na mesma missiva J criticava severamente a conduta de O, designadamente no que concerne a um eventual abandono do menor filho de J, que aquela O criara e tinha ao seu cuidado, conforme cópia de fls. 12 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

- A referida carta datada de 25 de Maio de 2000 fora enviada pelo correio para a residência do casal, sita no Bairro X, bloco 2, Porto.
O havia abandonado a residência conjugal em data anterior ao envio da referida carta, não tendo recebido a mesma missiva.
- Ao juntar a referida carta na acção de divórcio, após ter conhecimento do seu conteúdo, o arguido quis utilizá-la em proveito próprio, divulgando-o o conteúdo de tal missiva sem autorização e contra a vontade da pessoa a quem se destinava, pretendendo assim que terceiros tivessem acesso ao conteúdo da referida missiva, lesando a intimidade e privacidade da Autora naquela acção.

- Agiu livre, deliberada e conscientemente, com perfeito conhecimento de que ao actuar da forma descrita afectava a confiança da comunidade no sigilo da correspondência, bem sabendo que a sua conduta era proibida.

- O padece de doença do foro oncológico. Em consequência da actuação do arguido, sofreu abalo psicológico, sentiu-se nervosa e arreliada.

- O arguido não tem antecedentes criminais.

F- Colhidos os vistos, cumpre decidir.
O recorrente começa por manifestar a sua discordância quanto ao enquadramento jurídico dos factos provados na previsão do nº3, do artigo 194º, do Código Penal. Na sua perspectiva, o preenchimento desse tipo legal de crime exige que o agente tenha aberto a missiva sem consentimento do destinatário, não se bastando, como incorrectamente entendeu do tribunal recorrido, com a sua mera divulgação.
Vejamos o que estabelece o preceito legal:
Artigo 194º
(violação de correspondência ou de telecomunicações)
1. Quem, sem consentimento, abrir encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se encontre fechado e lhe não seja dirigido, ou tomar conhecimento, por processos técnicos, do seu conteúdo, ou impedir, por qualquer modo, que seja recebido pelo destinatário, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.
2. …….
3. Quem, sem consentimento, divulgar o conteúdo de cartas, encomendas, escritos fechados, ou telecomunicações a que se referem os números anteriores, é punido com a pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.

O texto deste artigo resulta da revisão operada pelo Decreto Lei 48/95, de 15 de Março, e uma das novidades foi, precisamente, o de autonomizar como ilícito crime o que anteriormente constituía apenas uma agravação da pena prevista para o crime de violação de correspondência, pela abertura de encomenda, carta ou outro escrito fechado, sem consentimento (cfr. artigo 182º, do Código Penal aprovado pelo DL 400/82, de 23.09).
Ou seja, a partir dessa revisão, o desvalor da acção traduzido na divulgação do conteúdo de uma carta ou qualquer outro escrito, sem consentimento, passou a merecer uma incriminação directa e autónoma, sendo indiferente saber se foi ilícito o processo da sua obtenção, o que, no dizer de Manuel da Costa Andrade (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Vol. I, pag. 763), está “em consonância com a estrutura normal dos crimes de devassa que, em princípio, tanto compreendem a intromissão indevida na área de reserva como o alargamento indevido no universo de pessoas a tomar conhecimento”.
Aliás, como também resulta do preâmbulo do DL 48/95, de 15.03, o legislador, para protecção dos últimos redutos da privacidade a que todos têm, e na sequência da norma de conteúdo programático do então nº2, do artigo 33º, da Constituição da República Portuguesa, quis claramente definir outros específicos tipos legais de crime, como foi o caso do tipo legal do nº3, do artigo 194º, do CP, o qual passou a concorrer com o previsto no nº1, do mesmo preceito legal, embora ambos se reconduzam, ao fim e ao cabo, à protecção de um mesmo bem jurídico.
Assim, os elementos gramatical, sistemático, histórico e teleológico não autorizam nem legitimam a interpretação que o recorrente faz do preceito, antes reclamam e impõem a interpretação dada pelo Ministério Público, na 1ª e 2ª instâncias, que vai de encontro ao enquadramento jurídico dado aos factos pelo tribunal recorrido. Inequivocamente, o arguido, ao juntar ao processo de divórcio, sem consentimento da ofendida, uma carta que a esta tinha sido dirigida para a sua morada, divulgou ilicitamente o seu conteúdo, ainda que num universo restrito de pessoas, pelo que esse seu comportamento integra o tipo legal de crime previsto no nº3, do artigo 194º, mesmo não se tendo provado ter sido ele autor da violação dessa correspondência. A circunstância de a carta ter sido recebida na casa de morada de família que a destinatária anteriormente tinha abandonado, não obsta a que se considere que a missiva tenha entrado na esfera de disponibilidade fáctica da ofendida, nem legitima o arguido a considerá-la como sua.
O recorrente pretende, em vão, justificar o seu comportamento com o chamado “estado de necessidade probatório”. É que os interesses particulares do arguido em provar, com a carta, factos alegados na acção de divórcio contra ele instaurada pela ofendida, não se podem sobrepor nem justificam o sacrifício dos direitos de personalidade desta, tanto mais que o arguido não demonstrou a impossibilidade de substituir esse meio de prova, designadamente a convocação como testemunha do autor da missiva. Ou seja, como refere o Ministério Público na resposta às motivações de recurso, no caso não existiu uma sensível superioridade do interesse a salvaguardar pelo arguido relativamente ao interesse sacrificado da ofendida, o que desde logo afasta a verificação de um direito de necessidade, como causa de exclusão da ilicitude (cfr. artigo 34º, al. b), do Código Penal).
Pelo exposto, improcedem todas as conclusões de recurso.
Decisão:
Acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso do arguido e, consequentemente, mantêm integralmente a douta decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.