Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | VIEIRA E CUNHA | ||
Descritores: | CONVENÇÃO ARBITRAL INDEMNIZAÇÃO CLIENTELA | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 02/16/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | AGRAVO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I – A convenção de arbitragem é nula, por respeitar a direitos indisponíveis, nos termos do artº 1º nº1 L.A.V., quando for cometido ao tribunal arbitral, no texto da própria convenção, resolver uma questão de direito com violação de normas de interesse e ordem pública. II – Tal nulidade afecta a competência dos árbitros para o julgamento da questão. III – As normas relativas à indemnização de clientela, no contrato de agência, são de interesse e ordem pública. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães Os Factos Recurso de agravo interposto na acção com processo comum ordinário nº161/04.0TBBCL, do 4º Juízo Cível de Barcelos. Agravante / Autora – "A". Agravada / Ré – "B". Pedido Que a Ré seja condenada a pagar à Autora a quantia global de € 95.198,09, sendo que € 49 688,69 respeitam à indemnização de clientela e € 45.509,40 são relativos à indemnização devida pelo não cumprimento do prazo de pré-aviso de denúncia do contrato, e ainda nos juros calculados, à taxa legal, desde a data da citação até à data do efectivo pagamento. Tese da Autora No exercício da respectiva actividade comercial, e com início em 1/1/01, a A. passou a distribuir e vender, em regime de exclusividade, com algumas excepções devidamente referidas, os produtos produzidos e comercializados pela Ré. Todavia, por forma unilateral, em 8/1/03, a Ré comunicou à Autora que, a partir de 15/1/03, esta Autora deixaria de ser distribuidora de produtos da Ré, tarefa que a Ré cometia, a partir dessa data, às firmas Casimiro ... (distrito de Braga) e S... (distrito de Viana do Castelo). A referida denúncia do contrato não respeitou o clausulado entre as partes, nem o disposto no D.-L. nº178/86 de 3 de Julho, que disciplinou o contrato de agência. Verificados os requisitos do artº 33º do citado diploma, peticiona da Ré uma indemnização de clientela, bem como o direito a ser indemnizada pela falta de cumprimento dos prazos de pré-aviso. Tese da Ré Excepcionou a preterição de Tribunal Arbitral, conforme cláusula 14ª do contrato invocado pela Autora e artº 494º al.j) C.P.Civ. Despacho Saneador Na decisão proferida, o Mmº Juiz “a quo” considerou procedente a excepção invocada e, em consequência, declarou o tribunal comum relativamente incompetente para o conhecimento do pedido, em consequência absolvendo a Ré da instância. Conclusões do Recurso de Agravo 1º - A indemnização de clientela é um dos pedidos formulados pela Recorrente na sua petição. 2º - A indemnização de clientela é considerada pela jurisprudência como direito indisponível (Acs.R.P. 29/9/97 e 27/11/01, in dgsi.pt). 3º - A cláusula 14ª da minuta do contrato junto aos autos com a P.I., ao estabelecer que os conflitos entre as partes serão dirimidos por recurso à arbitragem é nula, por violar o nº3 da Lei nº31/86 de 29 de Agosto, bem como o disposto no artº 99º C.P.Civ. Em contra-alegações, a Agravada pugna pela manutenção da decisão recorrida. Factos Provados A Autora invoca a inexecução ilícita por parte da Ré, através de denúncia, de um “contrato de distribuição”, em documento escrito, pelo qual a ora Ré confiava à ora Autora a distribuição e venda capilar dos produtos por ela Ré confeccionados industrialmente e comercializados Na cláusula 14ª nº1 do invocado contrato estipula-se que “quaisquer litígios decorrentes da interpretação ou execução do presente contrato serão dirimidos definitivamente perante três árbitros, de harmonia com o Regulamento do Tribunal Arbitral da Câmara de Comércio Internacional de Lisboa”. Nos termos da cláusula 14ª nº3, “os árbitros julgarão segundo a equidade”. Fundamentos Inscreve-se a apreciação do presente agravo no conhecimento da seguinte questão: constituindo a peticionada indemnização de clientela um direito indisponível, conforme doutrina geralmente aceite, não cabe a decisão a uma Arbitragem, sob pena de, decidindo-se em contrário, existir violação do disposto nos artºs 1º nº1 e 3º Lei nº 31/86 de 29 de Agosto (Lei da Arbitragem Voluntária)? Vejamos então. I A título de mero esclarecimento de raciocínio, relembremos o teor dos normativos supra:Artº 1º nº1 – Desde que, por lei especial, não esteja submetido exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária, qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros. Artº 3º - É nula a convenção de arbitragem celebrada com violação do disposto nos artºs 1º nºs 1 e 4 e 2º nºs 1 e 2. A questão a decidir nos presentes autos passará assim, por força, pela exegese do conceito de “direitos indisponíveis”, direitos esses que a lei subtrai à decisão de arbitragem. Em causa encontra-se a interpretação de uma “cláusula compromissória”, na acepção do artº 1º nº2 L.A.V. (convenção que tem por objecto litígios eventuais emergentes de uma determinada relação jurídica contratual ou extracontratual, por contraposição ao “compromisso arbitral”, que tem por objecto um litígio actual). “Indisponível” é o bem ou direito de que o respectivo titular não pode dispor, ou porque a lei determina que esse seja, temporária ou definitivamente, o seu regime, ou porque, por sua natureza, não é alienável – ut Ana Prata, Dicionário Jurídico, pg. 541. “Indisponíveis”, no sentido apontado, são as normas de interesse e ordem pública, posto que reguladoras de interesses gerais e considerados fundamentais da colectividade – são inderrogáveis por convenção das partes. Desde logo, é necessário estabelecer claramente que as normas relativas à indemnização de clientela, no contrato de agência, estabelecidas nos artºs 33º e 34º D.-L. nº178/86 de 3 de Julho, com as alterações trazidas pelo D.-L. nº118/93 de 13 de Abril, são de interesse e ordem pública. A ordem pública acha-se na necessária protecção, mesmo que unilateral, do agente. De resto, a regra acha-se directamente na Directiva do Conselho 86/653/CEE, de 18/12/86, transposta para o ordenamento jurídico português pelo já citado D.-L. nº118/93 de 13 de Abril, que alterou a redacção dos já citados artºs 33º e 34º. Nos termos do artº 19º da Directiva: “As partes não podem, antes da cessação do contrato, derrogar o disposto nos artºs 17º e 18º (que regulam a indemnização de clientela), em prejuízo do agente comercial”. Segundo Pinto Monteiro, Revista Decana, 133º/273, o facto de o D.-L. nº118/93 não conter uma norma de alcance idêntico às normas dos artºs 17º e 18º da Directiva percebe-se na medida em que o legislador entendeu que seria desnecessário consagrar um preceito expresso para uma regra que resultava já de outras normas do ordenamento jurídico – v.g. artº 809º C.Civ. – e que sempre decorreria da natureza de ordem pública do artº 33º, já na respectiva redacção inicial do D.-L. nº178/86. Não pode haver acordo prévio sobre a indemnização de clientela ou contrário ao conteúdo legal da dita indemnização – esta a razão de ser do interesse e ordem pública do instituto. Tal não implica porém que, se é certo que os direitos de indemnização não podem ser antecipadamente renunciados, sobre os mesmos não possa ocorrer uma renúncia posterior ao não cumprimento, mas apenas – veja-se P. de Lima e A. Varela, Código Anotado, II-artº 809º, S.T.J. 26/3/98 Bol.475/664 e Ac.R.P. 8/11/84 Col.V/245. II O que abrangerá então o conceito de “indisponibilidade”, para efeitos da norma da L.A.V.?Consoante Raúl Ventura (Convenção de Arbitragem, in R.O.A., 86-II-320), para atingir resultados semelhantes, as legislações estrangeiras usam diversas técnicas. Num primeiro grupo, legislações como as da França, Itália, Luxemburgo ou México procedem por exclusão de partes, podendo acrescentar (ou não) um critério de ordem geral. Assim, excluem-se em França expressamente “as questões sobre o estado e a capacidade das pessoas, sobre divórcio e separação de pessoas, sobre contestações interessando as colectividades públicas e os estabelecimentos públicos e mais geralmente todas as matérias que interessem à ordem pública”. Na Itália, excluem-se “os litígios individuais de trabalho e de segurança social, estado das pessoas, separação de cônjuges e outros não susceptíveis de transacção”. Um segundo grupo engloba as legislações que utilizam um critério geral de arbitrabilidade, ligado à susceptibilidade de transacção entre as partes sobre o litígio – Alemanha, Argentina, Áustria, Bélgica, Finlândia, Japão, Suécia, Arábia Saudita, entre outras (veja-se Jauernig, Direito Processual Civil, §92-III-2). Finalmente, um terceiro grupo alude simplesmente à disponibilidade do direito – Espanha, Grécia, Portugal, Holanda, Indonésia e Noruega, entre outras. Ora, desde logo, em Portugal, não dispor de um direito é não poder transigir sobre ele – o que explica que o conceito assumido pelas nações do “segundo grupo” assuma redundância em Portugal, e nada explique (R. Ventura, op. cit., pg.321). A pista dada pelo Autor para a solução da questão encontra-se na distinção entre “convenção de arbitragem” e “sentença arbitral” (op. cit., pg. 325) – só quando a questão de ordem pública afectar, através do texto da convenção, o próprio tribunal arbitral é que este tribunal será incompetente; se a questão de ordem pública se vier a colocar na sentença, só esta deverá ser impugnável (se o for) por vício de fundo. Aliás, “se o tribunal não puder pronunciar-se sobre questões que interessam à ordem pública, está em causa a competência e não o mérito da sentença que chegar a ser pronunciada” (op. e loc. cits.). Mutatis mutandis, se um direito não foi validamente constituído, encontrando-se afectado de nulidade que toca o interesse e ordem pública (pense-se na inexistência de forma prevista na lei) e não é disponível, pode todavia ser objecto de convenção de arbitragem (veja-se a disposição expressa do artº 21º nº2 L.A.V.): a disponibilidade apura-se perante a categoria de direitos considerados e não perante cada direito concreto. Outra afirmação não é feita por obras de divulgação da doutrina francesa, como Antonmattei e Raynard, Contrats Spéciaux, Litec, 2002, §566: a convenção de arbitragem só é nula quando a ordem pública já se encontra violada, quando a solução do litígio implicar, por força, a violação da ordem pública. III Encontramo-nos agora em condições, segundo se crê, de nos pronunciarmos sobre a concreta matéria sub judicio.Em primeiro lugar, nada obsta à correcta conclusão da sentença recorrida de que a cláusula compromissória dos autos abrange quaisquer litígios que tenham ligação essencial com a fonte rectius o contrato que ligava Autora e Ré, ou seja, que abrange quaisquer litígios nascidos do acto a que as partes deram vida, ao efeito total, interpretativo, modificativo ou extintivo da concreta relação jurídica (neste sentido, R. Ventura, op. cit., pg. 359 e 360). Verifica-se, todavia, que as partes cometeram à arbitragem a competência de “julgar segundo a equidade” quaisquer litígios que fossem emergentes do contrato em causa. Na ausência de uma definição legal, v.g. no ordenamento civilístico português, a ideia de equidade pode retirar-se da fórmula canonizada por Engisch, cit. in Alejandro Nieto, El Arbitrio Judicial, Barcelona, 2000, pg.233: “O método da equidade consiste em que, seja nas hipóteses normativas, seja nas suas consequências jurídicas, se insiram conceitos e formulações gerais e indeterminadas que ofereçam a quem aplica o direito uma orientação vinculativa para a decisão no caso concreto, a qual, por sua vez, deixe um campo de acção suficientemente amplo para levar em conta as peculiaridades do caso”. Também na doutrina portuguesa se acentua que o julgamento pela equidade “é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas; distingue-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição” (Meneses Cordeiro, O Direito, 122º/272). Sublinha-se, a propósito da equidade, que: a) opera, dentro da aplicação do Direito, como um mecanismo de adaptação da lei geral às circunstâncias do caso concreto; b) só o juiz, e não a lei em abstracto, poderá adaptar a própria lei ao caso concreto; c) a equidade opera não apenas a respeito de normas jurídicas, mas também no momento de apreciar a prova dos factos (Al. Nieto, op. cit., pgs. 234 e 235). Nessa mesma medida, a Autora agente, protegida pela norma imperativa relativa à indemnização de clientela, não pode esperar do tribunal, assim constituído, um julgamento com estrita aplicação das normas legais de interesse e ordem pública relativas à indemnização de clientela. Dir-se-à que o cálculo da “indemnização de clientela” não prescinde, ele também, de critérios de equidade – artº 34º D.-L. nº178/86. Todavia, é a efectiva fixação das indemnizações legais e aquilo que abrangem (a respectiva extensão), objecto do pedido na presente acção – artºs 29º (indemnização por falta de pré-aviso) e 33º (indemnização de clientela), que poderão ser postergadas num julgamento com exclusivos critérios de equidade. A equidade, de acordo com a cláusula compromissória, antecede a própria indemnização e a natureza desta – não se confunde com a equidade que ao julgador é cometida pelos próprios normativos de interesse e ordem pública. Neste sentido, a equidade cometida aos árbitros contende com a ordem pública e afecta a própria “convenção de arbitragem”, que não meramente a “sentença arbitral”. Como assim, ao contrário da sentença recorrida, entendemos que a invocada convenção, na medida em que atinge direitos indisponíveis (na parte em que possa prejudicar a necessária fixação de uma indemnização de clientela), direitos que se encontram na órbita do “interesse e ordem pública”, se encontra afectada do vício da nulidade, por violação do disposto nos artºs 1º nº1 e 3º L.A.V., conduzindo tal nulidade à improcedência da excepção de violação da convenção de arbitragem invocada (artº 494º al.j) C.P.Civ.). Resumindo a fundamentação: I – A convenção de arbitragem é nula, por respeitar a direitos indisponíveis, nos termos do artº 1º nº1 L.A.V., quando for cometido ao tribunal arbitral, no texto da própria convenção, resolver uma questão de direito com violação de normas de interesse e ordem pública. II – Tal nulidade afecta a competência dos árbitros para o julgamento da questão. III – As normas relativas à indemnização de clientela, no contrato de agência, são de interesse e ordem pública. Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República, decide-se neste Tribunal da Relação: Na procedência do agravo, revogar o despacho proferido, e, em consequência, julgar improcedente a invocada excepção de violação da convenção de arbitragem. Custas pela Agravada, em ambas as instâncias. Guimarães, 16/2/05 |