Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
246/07.0GAAMR.G1
Relator: ESTELITA DE MENDONÇA
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DE SENTENÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/08/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADA A SENTENÇA RECOPRRIDA
Sumário: I) A queixa apresentada nos autos refere que os factos ocorreram às 11h30 do dia 18/07/2007, sendo que na acusação particular a assistente situa os factos “cerca das 11h30”. Requerida a instrução veio a arguida negar a prática dos factos sustentando que à hora referida estava a trabalhar, juntando prova documental e testemunhal. Aberta a instrução, foi produzida prova e, a final, veio a ser proferido despacho de pronúncia da arguida, no qual se aflorou a questão da hora. Efectuado o julgamento veio a ser proferida sentença que deu como provado, para além do mais, que os factos ocorreram “No dia 18 de Julho de 2007, entre as 12h30m e as 13h30m”.
II) Ora, se a defesa da arguida foi toda estruturada por forma a demonstrar que às 11,30 horas não estava no local em questão, mas sim a trabalhar, pelo que não podia ter praticado esses factos, essa alteração efectuada da hora a que os factos ocorreram, situando-os à hora do almoço, hora a que a arguida já não estaria a trabalhar, é de superior importância para a defesa da arguida.
III) Ou seja, embora o crime seja o mesmo, e o objecto do processo continue a ser o mesmo, certo é que essa alteração da hora tem relevância para a defesa, pelo que devia ter sido comunicada à arguida nos termos do art. 358 n.º 1 do C.P. Penal, sendo-lhe concedido prazo para a defesa se o desejasse.
Essa omissão determina, a nulidade da sentença (“É nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação (...) fora dos casos e das condições previstos nos arts. 358 e 359” – art. 379 nº 1 al. b) do CPP”.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da Relação de Guimarães:

TRIBUNAL RECORRIDO :
Tribunal Judicial de Amares – secção única (comum singular n.º 246/07.0GAAMR).

RECORRENTE :
Maria C... (arguida)

RECORRIDO :
Ministério Público

OBJECTO DO RECURSO:
Por sentença proferida em 20/07/2009 (fls. 242 a 250) foi decidido julgar a acusação procedente, por provada, e, em consequência:
a) condenar a arguida Maria C..., pela prática, em autoria material e sob a forma consumada de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 183.°, n.º I do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de 4,00 € (quatro euros), o que perfaz um total de € 360.00 (trezentos e sessenta euros):
b) Julgar parcialmente procedente o pedido cível e, em consequência, condenar a arguida/demandada a pagar à demandante a quantia de 700,00 € (setecentos euros), acrescidos de juros de mora a taxa legal a contar da notificação para deduzir o respectivo pedido cível até efectivo e integral pagamento.
Inconformada com o assim decidido, veio a arguida interpor o presente recurso apresentando as seguintes CONCLUSOES:
A arguida e aqui Recorrente estava pronunciada por “No dia 18 de Julho de 2007, cerca das 11,30 horas (...) ter praticado os restantes factos constantes da pronúncia, sendo que o Tribunal a quo deu como provado, além do mais, que “No dia 18 de Julho de 2007, entre as 12h30m e as 13h30m” a arguida praticou os restantes factos constantes da pronúncia;
Ora, ao proceder à alteração da hora da prática do crime, o Mm.° Juiz a quo procedeu a uma alteração não substancial dos factos constantes da pronúncia, sendo certo que esta alteração é de superior importância e teve influência na defesa da arguida, uma vez que esta estruturou a sua defesa por forma a demonstrar que às 11,30 horas (hora constante da pronúncia) não estava no local em questão, mas sim a trabalhar;
Conforme se constata pelas actas da audiência de discussão e julgamento, bem como pela audição da prova produzida em julgamento e devidamente documentada, o Tribunal a quo não comunicou à arguida a alteração efectuada, nem tão-pouco lhe concedeu o tempo necessário para que esta preparasse a sua defesa;
Consequentemente, ao alterar os factos da pronúncia sem respeitar o disposto no art. 358.° do C P Penal, a douta sentença recorrida enferma da nulidade, que pode e deve ser conhecida pelo Venerando Tribunal ad quem, com todas as legais consequências;
Independentemente disso e sem prescindir, tem a arguida e ora recorrente como certo que, mesmo assim, não deixa de haver erro na apreciação da prova produzida em audiência, pois nunca poderiam ter-se dado como assentes os factos que se fizeram constar dos n.°s 1., 2., 3., 6. e 7. dos Factos Provados;
0 Tribunal a quo viu-se confrontado com duas versões distintas dos factos, por um lado a arguida nega veementemente a autoria dos factos, sendo que o Tribunal não põe em causa a credibilidade deste depoimento, e, por outro lado, a assistente e as filhas ANA C... e RAQUEL S... reafirmam o teor da queixa apresentada e das declarações já prestadas, no sentido de que foi a arguida a autora da prática dos factos, fazendo apenas uma alteração: a hora em que os factos terão ocorrido;
Com efeito, no dia 18 de Julho de 2007 — note-se que foi no próprio dia em que os factos terão ocorrido — a aqui assistente apresentou queixa-crime contra a ofendida onde referiu que os factos ocorreram às 11,30 horas desse mesmo dia 18 de Julho (cfr. queixa-crime de fls. 4 dos autos), o que foi confirmado pelas declarações da assistente de fls. 34, bem como pelas declarações das testemunhas ANA C... e RAQUEL S..., de fls. 36 e 37 dos autos, respectivamente;
Sendo que nas declarações que prestou na audiência de discussão e julgamento — que teve lugar cerca de dois anos depois da ocorrência dos factos — a assistente LAURA disse que os factos terão ocorrido muito perto da hora do almoço e seguramente depois das 12,30 horas, a testemunha ANA C... (depoimento prestado na sessão de julgamento de 17 de Junho de 2009 e gravado no respectivo CD áudio), referiu quo os factos terão ocorrido perto da hora do almoço, e a testemunha RAQUEL S... (depoimento prestado na sessão de julgamento de 17 de Junho de 2009 e gravado no respectivo CD áudio), referiu no seu depoimento quo os factos terão ocorrido por volta das 12,00 horas;
Esta alteração da hora em que os factos terão ocorrido tem uma razão de ser, é que aquando da instrução a assistente fez prova peremptória que às 11,30 horas do dia em causa estava a trabalhar (cfr. documentos juntos a fls. 45, 69, 127 e 128 dos autos);
Sendo certo que apenas chegava a casa da hora do almoço por volta das 12,30 horas (cfr. depoimento da arguida e das testemunhas ROSA M..., MARIA V... e ANDRADINA A..., sendo o primeiro prestado na sessão de julgamento do dia 17-06-2009 e os restantes na sessão do dia 02-07-2009, todos gravados no respectivo CD audio);
Assim, resulta evidente o motivo pelo qual a assistente alterou a hora que havia indicado como tendo sido a da ocorrência dos factos, é que a hora indicada na queixa-crime, que, insiste-se, foi apresentada no próprio dia em quo os factos terão ocorrido, a arguida não podia estar no local onde alegadamente os factos ocorreram;
Ora, como é bom de ver e resulta das regras da experiência comum, a memória das pessoas é mais fiável quão mais perto está da data de ocorrência dos factos, tornando-se mais falível à medida que o tempo vai passando, designadamente com o esquecimento de inúmeros pormenores;
Por outro lado, resultam dos depoimentos da assistente LAURA e das filhas ANA C... e RAQUEL S... algumas incongruências, designadamente o facto de a assistente LAURA e a filha RAQUEL referiram nos referidos depoimentos que não viram mais ninguém no local além da arguida, quando a filha ANA C... referiu que viu no local perto da arguida a testemunha ROSA ;
Ora, tendo as três testemunhas o mesmo ângulo de visão, parece evidente que a presença de uma outra pessoa no local não poderia passar despercebida a nenhuma delas;
E a verdade é que, confrontada com os acontecimentos daquele dia 18 de Julho, a testemunha ROSA dá uma versão totalmente distinta dos factos, referindo que de facto viu a assistente e as filhas passarem no local, o que sucedeu por volta das 11,30 horas, sendo certo que nesse momento a arguida não estava presente;
Ao contrário do que refere o Mm.° Juiz a quo, que considera que 0 depoimento da testemunha ROSA versa sobre um “não acontecimento” há várias razões para que aquela testemunha só lembre daqueles factos: [1] desde logo porque na altura da ocorrência dos factos aquela testemunha estava a viver um especifico episódio da sua vida, que apenas durou cerca de duas semanas — pois estava a cuidar do marido e filho da arguida que haviam sido agredidos dias antes pelo marido da assistente —, com uma profunda alteração das suas rotinas, o que permite fixar pormenores que no dia a dia passariam despercebidos; [2] por outro lado, a passagem naquele local (porta da casa da arguida), na altura em quo os factos ocorreram (dias depois das agressões sofridas pelos marido e filho da arguida), das mulher e filhas daquele que foi o agressor das pessoas de quem a testemunha estava a cuidar, não é um facto tão irrelevante que não possa ficar na memória de uma pessoa; [3] depois, o facto de a arguida se lembrar que era uma quarta-feira, dia de feira semanal na vila de Amares, é facilmente compreensível com o facto de a assistente e as filhas trazerem consigo as compras semanais (as mesmas confirmam que tinham ido à feira fazer compras); [4] por fim, é mais do que natural que quando a arguida contou à testemunha MARIA R... da existência o teor da queixa contra aquela apresentada — o que ocorreu logo na ocasião e não na altura do julgamento — esta se tenha lembrado da passagem da assistente e das filhas que havia presenciado;
Por fim, refira-se que o raciocínio utilizado pelo Mm.° Juiz a quo para desvalorizar o depoimento da testemunha MARIA R..., bem como o das testemunhas MARIA V... o ANDRADINA (todos prestados na audiência de julgamento que teve lugar no dia 02-07-2009 e gravados no respectivo CD audio), - o facto de serem amigas da arguida -, se aplica na perfeição às testemunhas ANA C... e RAQUEL S..., pois, como é sabido, são filhas da assistente;
Do exposto resulta que, do conjunto da prova produzida e tendo em atenção as regras da experiência comum, jamais se poderá afirmar, com o grau de certeza necessário, que a arguida e ora recorrente poderá ter praticado o crime de que vem pronunciada, sendo que a dúvida daí resultante teria sempre e necessariamente de aproveitar à arguida, por aplicação do princípio in dubio pro reo, o que impõe respectiva absolvição, com todas as legais consequências, designadamente quanto à pena aplicada à arguida, quanto ao pedido cível deduzido pela assistente e quanto à responsabilidade por custas, quer relativas à parte criminal, quer relativas à parte cível;
Tendo o Tribunal a quo decidido de forma diversa, condenando a arguida e ora Recorrente na prática do crime de injúria, foram violados, entre outros, o art. 32.°, n.° 2 da CRP, os arts. 181.°, n.° I do CPen..
SEM PRESCINDIR:
Sempre sem prejuízo de tudo quanto para cima se referiu e para a hipótese — que não se concede e apenas refere por cautela de patrocínio — de não se absolver a arguida da prática do crime de quo foi pronunciada e condenada em 1.ª instância, então sempre pecaria por excessiva e desproporcionada a pena aplicada a arguida;
Tendo em atenção que a arguida não tem quaisquer antecedentes criminais (ponto 8. dos Factos Provados), que está bem integrada profissional e pessoalmente (cfr. fls. 248 da sentença recorrida) e que é pessoa trabalhadora (ponto 11. dos Factos Provados), urge concluir que é excessiva a aplicação de 90 dias de multa, tendo em conta que o mínimo são 10 dias e o máximo 120 dias;
Antes cumpre eficazmente as finalidades de prevenção geral (na medida em que é capaz de neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o sentido de justiça e de confiança nas normas violadas) e de prevenção especial, a aplicação à arguida de uma pena de multa que se situe perto do limite mínimo legalmente previsto;
Assim, salvaguardando sempre o respeito devido, mal andou o Mm°. Juiz a quo ao aplicar à arguida a pena de 920 dias de multa, violando, entro outros, o normativo constante dos arts. 70.° e ss. do Código Penal;
Também sem prejuízo de tudo quanto se deixou dito supra, e para a hipótese — que não se concede e apenas refere por cautela de patrocínio — de não se absolver a arguida da prática do crime de que foi pronunciada e condenada em 1.ª instância, não pode a arguida deixar de se insurgir com o montante indemnizatório atribuído à demandante pelo Tribunal recorrido;
Com efeito, atentas as circunstâncias do caso em apreço deve julgar-se manifestamente excessivo o montante do € 700,00 atribuído a título de dano não patrimonial, porque desproporcional e desadequado para os danos sofridos pela demandante, devendo o mesmo ser reduzido e fixado equitativamente por este venerando Tribunal
Tendo o Tribunal a quo decidido de forma diversa, atribuindo ao demandante indemnização pelos danos não patrimoniais no montante de € 700,00, violou, entre outros, o art. 496 e 494, ambos do CCiv..
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas suprirão, deve dar-se provimento ao presente recurso, de harmonia com as conclusões acabadas de alinhar, assim se fazendo JUSTIÇA!
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O Magistrado do M.º P.º na 1.ª instância respondeu ao recurso nos termos de fls. 164 e seguintes pugnando pela procedência do recurso na parte em que sustenta a nulidade da sentença por não ter sido cumprido o art. 358 n.º 1 do C. P. penal, e, no mais a sua improcedência.
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Admitido o recurso e remetido a este tribunal, no seu parecer o Ex.mo Procurador Adjunto sustenta que o recurso deverá ser considerado improcedente, por não ocorrer qualquer nulidade da sentença.
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Cumprido o disposto no art. 417 n.º 2 do C. P. penal não foi apresentada resposta.
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Efectuado exame preliminar e não havendo questões a decidir, colhidos os vistos, prosseguiram os autos para conferência.
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Tendo em atenção que são as conclusões do recurso que definem o seu objecto, nos termos do disposto no art. 412 n.1 do Código de Processo Penal, as questões colocadas no requerimento de interposição do recurso são:
- Nulidade da sentença por não ter sido cumprido o disposto no art. 358 n.º 1 do C. P. penal dada a alteração da hora em que os factos ocorreram
- Erro notório na apreciação da prova
- Violação do princípio in dubio pro reo
- Medida da pena.

Cumpre agora decidir.

Foram os seguintes os factos dados como provados e não provados e respectiva fundamentação:
A) Factos provados:
1. No dia 18 de Julho de 2007, entre as 12h30m e as 13h30m, na Rua do Rio, freguesia de F..., concelho de Amares, quando a assistente Laura da Silva Martins se dirigia para a sua residência (então sita na Praceta da B..., n.° 12, em F..., Amares) acompanhada por duas filhas, ambas menores, a arguida, que se encontrava no logradouro da sua casa de habitação, dirigiu-se-lhe de viva voz e disse-lhe a seguinte expressão: “Suas putas, ides pagá-las bem caro”.
2. Tais expressões foram proferidas com a intenção concretizada de ofender, como ofenderam, a honra, consideração e bom-nome da assistente.
3. Agiu a arguida livre deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
4. A assistente é pessoa séria, honrada, educada e respeitada no meio em que vive.
5. A data dos factos a assistente residia próximo daquele local.
6. As expressões referidas causaram na assistente desgosto, mal-estar e constrangimento, tendo-se sentido envergonhada, triste e incomodada.
7. A assistente nada disse a arguida e continuou o seu trajecto em direcção a casa onde, transtornada como o sucedido, veio a desmaiar, tendo sido conduzida pelos Bombeiros Voluntários de Amares ao Centro de Saúde onde recebeu cuidados médicos
8. A arguida não tem averbadas condenações no seu registo criminal.
9. Trabalha numa empresa avícola auferindo a remuneração mensal de 450,00 €.
10. Vive em casa própria e tem um filho de 16 anos que frequenta a escola pública.
11. E pessoa trabalhadora.
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B) Factos não provados.
Com relevância para a boa decisão da causa não se provaram os seguintes factos:
- que durante diversos dias, com a vergonha, a assistente se fechou em casa de modo a não encontrar os vizinhos ou conhecidos que eventualmente a questionassem sobre 0 sucedido;
- que as sensações de tristeza e incómodo nunca mais deixaram a assistente, pelo que optou por mudar de casa e de freguesia para assim estar afastada da arguida e do local onde foi maltratado
C) Motivação de tacto.
O Tribunal escorou a sua convicção quanto aos factos dados como provados na conjugação das declarações da assistente Laura da Silva e das testemunhas ANA C... Soares e Raquel Soares.
Com efeito, a arguida negou a prática dos factos em questão pelo que o Tribunal se viu confrontado, como é natural, com duas versões distintas dos acontecimentos. Apesar de desde logo as declarações da assistente se terem afigurado merecedoras de credibilidade face ao modo escorreito e coerente como foram prestadas, tal convicção viu-se ulteriormente reforçada por via dos depoimentos aludidos pois as testemunhas em causa, apesar de serem filhas daquela, depuseram de forma claramente imparcial e séria, tendo sido perceptível que se limitaram apenas a relatar o que presenciaram sem demonstrarem qualquer preocupação em corroborarem a todo o transe a versão antes apresentada pela progenitora, como sucede em muitos casos, o que lhes conferiu credibilidade acrescida, sendo certo ainda que as versões em causa se mostraram coincidentes entre si.
Relativamente ao momento preciso em que os factos ocorreram, tornou-se evidente que os mesmos não sucederam na hora relatada na acusação particular. Por um lado, da prova produzida ficou bem patente que a arguida trabalha e normalmente só chega a casa por volta das 12h30m, retornando ao seu local de trabalho pelas 13h30m, tendo em conta o seu horário laboral (cfr. declaração da respectiva entidade patronal a fls. 127). Por outro, quer a assistente quer as testemunhas supra identificadas foram claras ao referirem que os factos ocorreram pela hora do almoço, após o meio-dia. Por esta razão se afigurou que o evento ocorreu necessariamente dentro do lapso temporal referido nos factos dados como provados.
No restante, não se estranhou que as filhas da assistente a acompanhassem na altura em que os factos ocorreram pois já se encontravam em gozo de férias escolares.
O Tribunal valorou ainda o depoimento da testemunha Maria S..., vizinha da assistente, que apesar de ter referido não ter assistido aos factos em questão explicou recordar-se que as filhas daquela última a foram chamar num certo dia de Julho, pela hora do almoço, e que se deparou com a assistente muito nervosa ao mesmo tempo que lhe contava o sucedido. Esta testemunha relatou ainda que a assistente foi transportada de ambulância para o centro de Saúde e asseverou que nos dias seguintes aos factos aquela andava triste e transtornada com o sucedido.
Os depoimentos das testemunhas arroladas pela arguida revelaram-se claramente parciais, ao que não foi alheio o facto de serem todas elas amigas da mesma.
Assim, a testemunha ROSA M... explicou que tudo se passou numa quarta-feira às 11h3Om e que se encontrava em casa da arguida porque estava a tratar do marido desta que alegadamente, dias antes, havia sido agredido pelo marido da assistente. Ora, o que se estranhou por demais neste depoimento foi o facto de a testemunha se recordar, passe a expressão, de um “não acontecimento”. Com efeito, a testemunha declarou recordar-se de no dia em causa ter visto a assistente a passar na rua acompanhada das suas duas filhas. É razão para perguntar: o que é que tem de relevante o facto de três pessoas passarem na rua para que tal imagem tenha ficado tão marcada na memória da testemunha? A resposta talvez se possa ir buscar a outro quadrante. É que a testemunha ANA C... Soares afirmou ter visto no quintal da casa da arguida a dita ROSA , o que justificará a aludida memória dos factos em causa que, todavia, não terão tido os contornos que esta última relatou, alias de forma, diga-se, muito atabalhoada.
Também o depoimento da testemunha MARIA V... não mereceu qualquer credibilidade ao Tribunal, isto não tanto pelo que declarou ter assistido — que foi nada —, mas pelo facto de ter demonstrado grande animosidade para com a assistente, de quem já foi colega de trabalho.
Por fim, o depoimento da testemunha Andralina Almeida, amiga e colega de trabalho da arguida, pouco ou nada esclareceu a propósito dos factos em análise.
No restante o Tribunal valorou a informação dos serviços de registo criminal de fls. 178 e, no que tange com as condições pessoais e socioeconómicas da arguida, tiveram-se em conta as declarações da própria, sendo certo que da prova produzida e apesar do que ficou dito, não resultaram quaisquer dúvidas de que a arguida é urna pessoa trabalhadora.
Quanto à factualidade dada como não provada, verificou-se, no essencial, que apesar de a assistente se ter mudado com a sua família para uma outra habitação algum tempo após a ocorrência dos factos não se fez prova de que tal tenha sido consequência do comportamento da arguida.


1. Nulidade da sentença por não ter sido cumprido o disposto no art. 358 n.º 1 do C. P. Penal
Sustenta a recorrente que a sentença recorrida enferma da nulidade, que pode e deve ser conhecida pelo Venerando Tribunal ad quem, com todas as legais consequências, por ter alterado os factos da pronúncia sem respeitar o disposto no art. 358.° do C P Penal
Sustenta para tal que “A arguida e aqui Recorrente estava pronunciada por “No dia 18 de Julho de 2007, cerca das 11,30 horas (...) ter praticado os restantes factos constantes da pronúncia, sendo que o Tribunal a quo deu como provado, além do mais, que “No dia 18 de Julho de 2007, entre as 12h30m e as 13h30m” a arguida praticou os restantes factos constantes da pronúncia, e que, ao proceder à alteração da hora da prática do crime, o Mm.° Juiz a quo procedeu a uma alteração não substancial dos factos constantes da pronúncia, sendo certo que esta alteração é de superior importância e teve influência na defesa da arguida, uma vez que esta estruturou a sua defesa por forma a demonstrar que às 11,30 horas (hora constante da pronúncia) não estava no local em questão, mas sim a trabalhar;
Alega ainda que “Conforme se constata pelas actas da audiência de discussão e julgamento, bem como pela audição da prova produzida em julgamento e devidamente documentada, o Tribunal a quo não comunicou à arguida a alteração efectuada, nem tão-pouco lhe concedeu o tempo necessário para que esta preparasse a sua defesa”.
Como já acima vimos, o Magistrado do M.º P.º na 1.ª instância concorda com a recorrente, pugnando pela procedência do recurso na parte em que sustenta a nulidade da sentença por não ter sido cumprido o art. 358 n.º 1 do C. P. Penal, enquanto que neste tribunal, no seu parecer o Ex.mo Procurador Adjunto sustenta que o recurso deverá ser considerado improcedente, por não ocorrer qualquer nulidade da sentença.
Vejamos.
Antes de prosseguir, teremos de deixar aqui nota de que o signatário relator deste acórdão tem entendido que, na maioria dos casos, a alteração da hora dos factos não constitui alteração não substancial dos factos nos termos e para os efeitos do art. 358 n.º 1 do C. P. penal (Cfr. Ac. de 1 de Março de 2010, Proc. n.º 22/08.3TACBC.G1, Ac. de 8/05/2006 Proc. N.º 81/06 – 1.ª secção, entre outros de que fui relator ou adjunto).
Na verdade, temos entendido que o que está em causa é a situação ocorrida, ou seja o pedaço individualizado da vida ocorrido nessa altura.
Porém, os mecanismos previstos nos arts. 358 e 359 do CPP têm a ver com a identidade do processo penal fixada na acusação, visando que ninguém seja condenado por factos ou incriminações com que não podia razoavelmente contar.
Como se diz no Ac desta Relação de 6/10/2008, proferido no Proc. n.º 1741/08-1, relator F. Monterroso, “Ao lado dos factos que importam uma alteração «substancial» ou «não substancial» há aqueles em que o juiz apenas pormenoriza ou concretiza os factos que já constam da acusação.
Exemplificando: se o arguido vier acusado de ter dado murros no queixoso, nenhuma alteração de factos haverá (substancial ou não) se for provado que foram dois e não três os murros desferidos. Nesse caso, o juiz limitou-se a concretizar ou esclarecer um facto que já constava da acusação. Porém, já estaremos perante uma alteração «não substancial» se o tribunal der como provado que, em consequência dos murros, o ofendido ficou com a cana do nariz partida, teve de ser operado e esteve internado durante alguns dias. Estes factos novos não importam uma alteração substancial, porque não mexem com a identidade do objecto do processo, uma vez que fazem parte do mesmo “pedaço de vida” dos factos da acusação, formando com eles um conjunto em conexão natural. Mas têm um evidente relevo para a aferição da responsabilidade do agente do crime (cfr., nomeadamente, art. 71 nº 2 al. a) do Cod. Penal), pelo que cabem na previsão do art. 358 nº 1 do CPP, que expressamente refere os factos novos «com relevo para a decisão da causa». É este um dos requisitos para que se possa falar em «alteração não substancial»: que os novos factos tenham relevo para a decisão”.
“O critério a seguir para se apurar se houve ou não alteração substancial dos factos" é a necessidade de, em cada caso, garantir e salvaguardar a hipótese de o arguido ser surpreendido por um imprevisto desenlace punitivo mais grave do que contava, sem ter tido, visível e inequivocamente, possibilidade de preparar ou adequar a sua defesa em ordem a prevenir ou evitar esse desenlace" (Ac. Rel. Porto de 07-02-2001, proferido no Proc. 0011271).
Entende-se que “A alteração da data, diversa da que constava da acusação, não tendo por efeito a imputação de crime diverso nem agravação dos limites máximos da sanção aplicável, não constitui alteração substancial ou não substancial dos factos” (Ac. Rel. Porto de 6/07/2000, proferido no proc. 0040415), ou que “A simples alteração da data da ocorrência dos factos, não constitui para o arguido o surgimento de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos aplicáveis da pena, tratando-se apenas de uma alteração meramente circunstancial do objecto do processo. Aliás, tendo o arguido negado a prática dos factos, como consta, in casu, da contestação, mantendo tal posição no julgamento, a constatação de que os mesmos ocorreram numa data, que não a constante da acusação, em nada afecta a estratégia da sua defesa. Em consequência, no caso em apreço, está-se perante uma alteração não substancial dos factos e não de uma alteração substancial” (Ac. rel. Porto de 20-02-2002 proferido no proc. 0140785).
Sintomático é ainda o Ac. Rel. Porto de 05-11-97, proferido no proc. 9740843, no qual se diz “ I - Constando da acusação que os factos imputados ao arguido ocorreram em determinada data, na ocasião em que o assistente procedeu à instalação de diversas mobílias na residência daquele, altura em que o apelidou de vigarista, a diferente referência feita na sentença à data em que os factos ocorreram (na acusação indicava-se o dia 16 de Julho - sábado - de 1994 e a sentença deu como provado que ocorreram num domingo de fins de Julho do mesmo ano, por ocasião da instalação daquele mobiliário) não constitui alteração substancial dos factos, uma vez que se reportam ao mesmo crime ( a imputação de " vigarista" na ocasião da colocação dos móveis ) e não implica qualquer agravação das sanções aplicáveis. II - A haver alteração não substancial esta não tem qualquer relevo para a decisão da causa, pelo que não haveria que ter em conta o disposto no n.1 do artigo 358 do Código de Processo Penal, pois o dia exacto em que os factos ocorreram não tem especial relevo, o que releva é que os factos ocorreram no dia da colocação dos móveis”.
No entanto, tudo quanto fica dito não constitui apenas chavões ou frases feitas, sendo certo que a análise tem de ser feita caso a caso.
Ora, no caso concreto que estamos a analisar, afigura-se-nos que a hora dos factos é relevante.
Na verdade, a queixa refere que os factos ocorreram às 11h30 do dia 18/07/2007 (fls. 4).
Na acusação particular (fls. 47) a assistente refere “cerca das 11h30”.
Notificada da acusação, a arguida veio requerer a abertura da instrução (fls. 67) negando a prática dos factos e sustentando que à hora referida estava a trabalhar, juntando prova documental e testemunhal.
Aberta a instrução, foi produzida prova e, a final, veio a ser proferido despacho de pronúncia da arguida, no qual se aflorou a questão da hora a que os factos ocorreram, nos seguintes termos (transcrição em itálico de nossa autoria):
“…, Constata-se, assim, que a versão da ofendida é totalmente sustentada pelo depoimento das suas duas filhas que alegadamente se encontravam presentes no momento da ocorrência dos factos. Por seu turno, a versão da arguida tem o apoio dos depoimentos das testemunhas e da declaração da sua entidade patronal que atesta que no dia em apreço a arguida trabalhou das 08h00 as 12h00 e as 14h00 as 17h30.
É de salientar, no entanto, que os depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de instrução apresentaram-se algo incongruentes e contraditórios. Com efeito, veja-se que a testemunha ROSA M... atestou que se dirigiu a casa da arguida para vigiar o estado de saúde do marido daquela uma vez da parte da manhã e duas ou três vezes da parte da tarde, o que fez sempre acompanhada da testemunha Fátima Lobo. No entanto, e divergindo desta versão, a testemunha Fátima Lobo afirmou peremptoriamente que se deslocou a casa da arguida acompanhada da testemunha ROSA duas vezes, as quais ocorreram durante a tarde e já depois da arguida se ter ausentado para o trabalho depois do almoço. Constatamos, ainda, incongruências entre os depoimentos prestados pelas testemunhas Maria de Fátima Veloso e ANDRADINA A..., referindo a primeira que deu boleia à testemunha Andradina e a arguida para casa e depois para o local de trabalho, enquanto a segunda testemunha referiu que o percurso de e para as respectivas residências foi feito a pé.
Face às divergências e incongruências assinaladas entendo que os depoimentos prestados não possuem credibilidade e mesmo que lhes fosse atribuída relevância probatória o certo é que as versões das testemunhas não afastam a possibilidade de terem ocorrido os factos descritos na acusação particular. Com efeito, poderiam aqueles factos não terem ocorrido à hora mencionada, mas após o regresso da arguida à sua residência para almoço e que terá ocorrido após as 12h00 e até cerca das 14h00, a fazer fé na declaração junta aos autos pela entidade patronal.
Não compete nesta fase processual efectuar o apuramento cabal dos factos, mas sim apurar apenas a existência de indícios suficientes dos mesmos terem ocorrido, e isso afigura-se-nos que se mostra sufragado nos autos. Caso se venha a confirmar em sede de audiência de julgamento a sua verificação e a apurar-se que tiveram lugar em circunstâncias de tempo diferentes daquelas que vêm relatadas na acusação, tal não impede a prolação de uma decisão de condenação, pois a alteração das circunstâncias de tempo da ocorrência dos factos apenas se traduz numa alteração não substancial dos factos a que o tribunal pode proceder livremente, desde que conceda ao arguido a faculdade prevista no art. 358 n.º 1 do CPP.
Acresce que a circunstância das testemunhas serem menores e filhas da ofendida, não afasta só por si a sua credibilidade. Na verdade, qualquer pessoa que não se encontre interdita de anomalia psíquica tem capacidade para ser testemunha (art. 131°, n° 1 do CPP), sendo a sua credibilidade aferida pela autoridade judiciária perante a qual é prestado o depoimento. Dada a ausência nesta fase processual do princípio da imediação e do princípio da não repetição das diligencias realizadas em sede de inquérito, não é possível aferir da credibilidade das referidas testemunhas, pese embora, que sempre se dirá que ambas foram peremptórias a corroborar a versão da ofendida e da queixa apresentada.
Assim, entendemos que estão reunidos nos autos indícios suficientes da prática dos factos imputados, realçando-se que deriva dos depoimentos prestados que os ânimos entre arguida e ofendida estavam exaltados em virtude da contenda física que opôs os respectivos maridos dois dias antes, existindo, deste modo, um móbil para o crime. Face aos indícios recolhidos antevemos com grande probabilidade a condenação da arguida se sujeita julgamento.
Nestes termos, impõe-se a pronúncia da arguida.
DECISAO
Pelo exposto, decide-se:
Pronunciar, para julgamento em processo comum perante Tribunal Singular a arguida Maria C..., melhor identificada nos autos, Pelos factos e qualificação jurídico-legal constantes da acusação particular de fis. 47 e ss., que aqui se dão por integralmente reproduzidos, de harmonia com o disposto no art. 307° n.º1 do Cod. de Proc. Penal”.
Ora, o Tribunal a quo deu como provado, além do mais, que os factos ocorreram “No dia 18 de Julho de 2007, entre as 12h30m e as 13h30m”.
Para fundamentar essa decisão, disse-se na fundamentação, como vimos, que “Relativamente ao momento preciso em que os factos ocorreram, tornou-se evidente que os mesmos não sucederam na hora relatada na acusação particular. Por um lado, da prova produzida ficou bem patente que a arguida trabalha e normalmente só chega a casa por volta das 12h30m, retornando ao seu local de trabalho pelas 13h30m, tendo em conta o seu horário laboral (cfr. declaração da respectiva entidade patronal a fls. 127). Por outro, quer a assistente quer as testemunhas supra identificadas foram claras ao referirem que os factos ocorreram pela hora do almoço, após o meio-dia. Por esta razão se afigurou que o evento ocorreu necessariamente dentro do lapso temporal referido nos factos dados como provados” (Transcrição em itálico de nossa autoria).
Ora, se a defesa da arguida foi toda estruturada por forma a demonstrar que às 11,30 horas (hora constante da queixa, da acusação particular e da pronúncia) não estava no local em questão, mas sim a trabalhar, pelo que não podia ter praticado esses factos, essa alteração efectuada da hora a que os factos ocorreram, situando-os à hora do almoço, hora a que a arguida já não estaria a trabalhar, é de superior importância para a defesa da arguida.
Ou seja, embora o crime seja o mesmo, e o objecto do processo continue a ser o mesmo, certo é que essa alteração da hora tem relevância para a defesa, pelo que devia ter sido comunicada á arguida nos termos do art. 358 n.º 1 do C.P. Penal, sendo-lhe concedido prazo para a defesa se o desejasse.
Como ensina Figueiredo Dias Direito Processual Penal – Coimbra Editora, 1974, pág. 145., "objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (…) e a extensão do caso julgado (…). E a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal (…).
Os valores e interesses subjacentes a esta vinculação temática do tribunal, implicada no princípio da acusação, facilmente se aprendem quando se pense que ela constitui a pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido (…) que assim se vê protegido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória do tribunal e assegura os seus direitos de contraditoriedade e audiência; e quando se pense também que só assim o Estado pode ter a esperança de realizar os seus interesses de punir só os verdadeiros culpados".
Assim, o conhecimento do juiz fica limitado pelo objecto da acusação e o arguido sabe que é destes factos e apenas deles que se tem que defender.
Daqui resulta que ao deduzir acusação se está a delimitar e definir o âmbito de conhecimento do juiz e a dar a conhecer ao arguido os factos que lhe são imputados e dos quais tem que se defender. É nesta fase que bem se evidencia o denominado efeito da vinculação temática que integra os princípios da identidade (segundo o qual o objecto do processo se deve manter o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade (segundo o qual o processo deve ser conhecido e julgado na sua totalidade) e da consunção (segundo o qual o processo se considera irrepetivelmente decidido) Cfr. Figueiredo Dias, obra citada.
Ora, no caso, e como já acima dissemos, é manifesto que houve alteração dos factos pois, comparadas a acusação, a pronúncia e a sentença, constata-se, para além do mais, que a hora em que uma e outra indicada como tendo ocorrido os factos é diferente.
No caso em apreço, como já acima vimos, a alteração da hora põe em causa a defesa.
A arguida tem que defender-se dos factos que lhe são imputados, não podendo ser surpreendida com factos novos, diferentes daqueles que lhe foram imputados na acusação.
Ora, ocorrendo essa alteração não substancial, como, a nosso ver, ocorreu no caso concreto aqui em análise, em caso de alteração não substancial, o tribunal comunica-a ao arguido e concede-lhe, a requerimento, prazo para a preparação da defesa (artigo 358º, n.ºs 1 e 3, do CPP).
Obviamente tal comunicação tem de ser anterior à leitura da sentença, pois que terá que ser prévia á condenação.
No entanto, esta formalidade (essencial) não foi cumprida, pois se o tivesse sido teria que constar da acta (artigos 99º, nº 3, alíneas c) e d), e 362º, nº 1, alínea f), do CPP) e de tal ocorrência não fazem os autos qualquer menção.
Na verdade, conforme se constata pelas actas da audiência de discussão e julgamento (fls. 236 a 238 e fls. 239 a 241), o Tribunal a quo não comunicou à arguida a alteração efectuada, nem tão-pouco lhe concedeu o tempo necessário para que esta preparasse a sua defesa.
Ora, é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358º e 359º.
É a consequência que se retira da norma do artigo 379º, nº 1, alínea b), do CPP.
Como se diz no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 4/11/2002, proc. N.º 575/02 – 1.ª secção (Crónica da Relação de Guimarães – revista Scientia Ivridica – separata – Janeiro- Abril de 2003, pág. 198) :
I – Através do Assento n.º 2/93 de 27/01/93 uniformizou-se a jurisprudência no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.
II - 0 Tribunal Constitucional, na sequência de acórdão de 31 de Maio de 1995 (DR II, de 28.7.95), acabou por julgar, pelo seu acórdão 445/97, de 25.06.97, com forca obrigatória geral a norma do artigo 1.º f) do CPP, quando interpretada nos termos do Assento 2/93, mas tão só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurIdico-penal dos factos a condenação do arguido em pena mais grave, não se previsse que o arguido fosse prevenido da nova qualificação e se lhe desse, quanto a ela, oportunidade de defesa.
III - Na sequência, o Assento 3/200, de 15 de Dezembro de 1995 DR I Série de 11.02.2000, veio esclarecer que <para as duas posições doutrinárias (a do Assento do STJ 2/93 e a do Ac. TC 445/97), existe um importante aspecto comum, que é o de em ambas se considerar como possível, legal e constitucionalmente, a convolação para crime mais grave, e que a diferença fundamental reside na circunstância de, para o acórdão reformulando, se ter entendido que tal alteração podia ser feita sem necessidade de permitir que o arguido dele fosse informado previamente, para organizar a sua defesa, ao passo que, para a doutrina fixada pelo Tribunal Constitucional, a efectivação da convolação, quer para crime grave, quer para crime menos grave, exige que ao arguido disso seja dado conhecimento antes da decisão, para que ele possa organizar a defesa>>.
IV - Antes de o Assento do STJ 2/93 ser reformulado com a aplicação da doutrina do Ac. do Tribunal Constitucional n.° 454/97, surge a alteração legislativa introduzida pela Lei 59/98, de 25.8, que introduziu o n.° 3 ao artigo 358. °, do CPP, com a seguinte redacção: <O disposto no n. ° 1, é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia>, ficando assim clarificada, com esta alteração jurídica a questão controvertida, e o referido Assento n° 3/2000, com a doutrina a qual só tem especial relevo para os casos julgados antes desta mencionada alteração legislativa.
V - Concluindo: o tribunal pode livremente alterar a qualificação jurídica dos factos da acusação ou da pronúncia, fazendo a convolação para um crime mais grave ou para um crime menos grave, desde que previamente comunique ao arguido essa alteração e lhe conceda o tempo estritamente necessário para o exercício da sua defesa, conforme o disposto no n.º 3 do artigo 358 do Código de Processo Penal.
VI - Essa liberdade já o tribunal não dispõe relativamente aos factos que constituem o objecto do processo. Se em julgamento se apurarem novos factos que, de per si ou na relação com os demais constantes da acusação ou da pronúncia, tiverem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (cfr. artigo 1. °, al. f), do C. P. Penal — alteração substancial dos factos), o tribunal não pode tomá-los em consideração para o efeito de condenação do arguido, excepto se o arguido, o assistente estiverem de acordo na continuação do julgamento pelos novos factos.
VII – A decisão condenatória que não cumpra o disposto no art. 358 (1.ª situação) ou o disposto no art. 359 (2.ª situação) é ferida de nulidade, nos termos do art. 379 n.º 1 al. b) e 410 n.º 3 todos do Código de Processo Penal.”
A razão de ser de tal exigência é a de possibilitar ao arguido o exercício do contraditório, pois que o tribunal não pode substituir-se ao arguido na avaliação da necessidade ou interesse da sua defesa, face a tal alteração.
Também no Acórdão de 14 de Março de 2005 deste Tribunal da Relação proferido no Proc. 93/05 – 1.ª secção e disponível na Internet no site www.itij.pt, se diz:
“I - O juiz do julgamento só pode ocupar-se daquele acontecimento histórico que resulta da acusação; qualquer alteração é comandada por especiais cautelas e só é admitida em termos excepcionais, tratando-se, assim, de proteger o arguido contra modificações arbitrárias decorrentes da investigação judicial e contra a renovação da responsabilidade penal e o prolongamento dos processos, como frequentemente acontecia em tempos de sistema inquisitório.
II – Podemos pois concluir que o cumprimento do artigo 358°, nº 3, é acto que interessa à defesa, de acordo com as exigências do processo justo e equitativo — e é imperativo do principio do contraditório, com assento constitucional no nº 5 do artigo 32° da CRP.
III – Para o Tribunal Constitucional o sentido essencial do principio do contraditório está em que “nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo só interlocutória) deve aí ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dado ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra a qual é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a valorar (acórdão do TC nº 171/92 BMJ 427, p. 57; e Parecer nº 18/81 da Comissão Constitucional, em Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 16°, p. 147).
IV – O direito ao contraditório traduz-se na estruturação da audiência e dos outros actos instrutórios que a lei determina como uma discussão entre a acusação e a defesa, “em que se procura também realizar a igualdade de armas entre os sujeitos do processo, cada apresentando os seus argumentos e as suas provas, submetendo uns e outros ao controlo das razões e das provas apresentadas pelos outros sujeitos, assim participando activamente na formação da decisão que vier a ser tomada pelo juiz” (acórdão do TC de 4 de Novembro de 1987, BMJ 371 p. 160. e o indicado parecer nº 18/81 da Comissão Constitucional).
V – Ora, omitindo-se o mecanismo do artigo 358°, nº 3, omitiu-se do mesmo passo - e definitivamente, já que a lei não determina a reabertura da audiência, e a estrutura do processo, de raiz basicamente acusatória, não o consente - a efectiva possibilidade de o arguido, que em dado momento se viu comprometido com os novos factos, os discutir, contestar e valorar adequadamente.
VI – Esta omissão, determina, por um lado, a nulidade da sentença, por condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358° e 359°, como se retira da norma do artigo 379°. nº 1 alínea b), do CPP, a qual, no entanto, não arrasta consigo a nulidade do julgamento, enquanto fase de produção - em regime de contraditoriedade - de todos os meios de prova cujo conhecimento se mostre necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
VII – Por outro lado, determina também a proibição de valorar as provas subtraídas ao contraditório, pois, com efeito, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, sendo que os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao contraditório, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal (artigos 355°, nº 1, e 327°, nº 2, do CPP).
VIII – Ao tribunal a quo restará, nesta perspectiva, seleccionar os factos que não estejam implicados nas formalidades cuja omissão determina a nulidade da sentença, e apreciá-los, avaliando a sua pertinência à existência ou não existência de um crime e à punibilidade ou não punibilidade do arguido, bem como os que sejam relevantes para a determinação da responsabilidade civil”.
Efectivamente, as circunstâncias condicionadoras da nulidade da sentença não arrastam consigo a nulidade do julgamento, enquanto fase de produção — em regime de contraditoriedade — de todos os meios de prova cujo conhecimento se mostre necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
Nos termos do artigo 372º, nº 1, do CPP, à deliberação e à votação segue-se a elaboração da sentença. É só a este momento processual cujos requisitos a lei descreve no artigo 374º, que a nulidade decretada no artigo 379º, nº 1, se refere.
São os artigos 339º, nº 4, 358º, 359º e 1º, nº 1, alínea f), do CPP, a estabelecer limites à investigação judicial e à própria decisão: o juiz do julgamento só pode ocupar-se daquele acontecimento histórico que resulta da acusação; qualquer alteração é comandada por especiais cautelas e só é admitida em termos excepcionais. Trata-se de proteger o arguido contra modificações arbitrárias decorrentes da investigação judicial.
Deste modo, omitindo-se o mecanismo do artigo 358º, n.º 1, omitiu-se do mesmo passo a efectiva possibilidade de o arguido, que em dado momento se viu comprometido com os novos factos, os discutir, contestar e valorar adequadamente.
Essa omissão determina, por um lado, a nulidade da sentença.
Na verdade, prosseguindo os autos para sentença sem que se tenha cumprido o disposto no art. 358 ou 359 do C. P. Penal, ocorre a nulidade da sentença como vimos, pois “É nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação (...) fora dos casos e das condições previstos nos arts. 358 e 359” – art. 379 nº 1 al. b) do CPP”.
***

Decisão:
Termos em que, de harmonia com o exposto, acordam, em audiência, os juízes desta Relação em anular a sentença recorrida, ordenando a reabertura da audiência pelo mesmo senhor juiz que a realizou, a fim de que seja dado cumprimento ao disposto no art. 358 n.º 1 do C. P. Penal.
Sem tributação.
Notifique.
(Processado em computador e revisto pelo primeiro signatário)
Guimarães, 8 de Março de 2010.