Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I – Relatório;
Apelante: Freguesia de S… (requerente);
Apelado: Centro Social… (requerido);
Comarca de Guimarães
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A apelante intentou o presente procedimento cautelar, na modalidade de restituição provisória de posse, contra o apelado, pedindo a restituição do prédio de que é proprietário ao exacto estado em que se encontrava quando nele iniciou obras.
Para tanto, alegou, em súmula, que o requerido procedeu à realização de obras em prédio que identifica e pertencente ao requerente, arrancando portas interiores dos balneários, desmontando o cilindro eléctrico de aquecimento de água e retirando fechaduras.
Perante a oposição do Presidente da Junta de Freguesia da requerente, o qual pretendeu identificar os executantes dessas obras, estes recusaram-se, sendo chamada a autoridade policial.
Nessa ocasião, o Presidente da Direcção do requerido, afirmou então, em tom categórico e hostil, que fora ele quem dera a ordem para tais obras, que não aceitava ordens de ninguém, que tais obras iriam continuar, como continuaram, com o desmantelamento de portas interiores, contra a referida vontade da requerente.
O requerimento inicial foi liminarmente indeferido com o fundamento de que não foram alegados factos que consubstanciassem a violência do esbulho ou que, ainda assim, pudessem ser subsumíveis nos pressupostos do procedimento cautelar comum.
Inconformado com essa decisão, dela interpôs recurso a requerente, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:
A - Está alegado no requerimento inicial do presente procedimento cautelar que a Recorrente é proprietária do prédio referido e identificado no artigo 3° do dito requerimento, que o Recorrido nunca nele procedeu a quaisquer obras e que a Recorrente pode utilizar todas as instalações que do mesmo carecer,
B - Bem como que, no dia 25 de Julho último, recebeu do Recorrido, uma carta registada com aviso de recepção, comunicando-lhe que ia proceder à total requalificação do ringue bem como do espaço envolvente, nomeadamente ao nível de balneários, piso e da vedação.
C — Carta essa que, nomeadamente pelas suas considerações, constitui uma verdadeira e manifesta provocação à Recorrente, tendo-se em conta o pedido na acção principal, sendo, por isso mesmo, uma ameaça ao direito daquela usar e fruir tal prédio de modo pleno e exclusivo - arts. 1305°, 1276° e 1277° do CC.
D - Ora, tendo em conta que a doutrina e a jurisprudência vêm sustentando que a violência tanto pode se exercida sobre as pessoas como sobre as coisas, sendo, quanto a estas, é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador - cfr. Prof. Lebre de Freitas, Acs, Trib. Rel. Guimarães de 03.09.2003 e de 02.11.2006, citados no texto.
E - Perante o factualismo alegado nos artigos 6° a 9°, 110 a 15° e 16° do requerimento inicial, que aqui se dá por reproduzido, e considerando que o entendimento sufragado na decisão ora recorrida está muito longe de ser o único sobre a questão do esbulho e da violência, nunca poderia indeferir-se liminarmente o dito requerimento - Cfr. Ac. Trib. Rei. Guimarães de 02.11.2006 e Ac. Trib. Rei. Coimbra de 03.03.2009, citados no texto.
F - A decisão ora recorrida fez uma errada e incorrecta interpretação e aplicação do art. 234°-A n° 1 do CPC, pelo que deve ser revogada e substituída por douto acórdão que ordene o prosseguimento normal dos autos.
Pede a revogação da decisão recorrida.
II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, ex vi do artigo 749º, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC).
A questão essencial a apreciar é a da existência ou não de violência no esbulho.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
III – Fundamentos;
a) Os factos a atender com interesse à decisão do presente recurso são os relativos ao relatório supra, complementados com a realidade fáctico-processual articulada no requerimento inicial, nomeadamente a constante dos artºs 6º a 9º e 11º a 16º.
III – Direito aplicável:
a) Pressuposto da violência no esbulho;
No presente recurso levanta-se apenas a questão da violência no esbulho, como requisito específico da providência cautelar de restituição provisória da posse, previsto no artº 393º, do Código Civil (CC), já que na decisão recorrida se considerou estarem preenchidos os outros dois pressupostos: a posse e o esbulho.
A argumentação da requerente nesta apelação alicerça-se fundamentalmente em considerar que, entendendo a doutrina e a jurisprudência que a violência tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre as coisas, o factualismo alegado nos artºs 6º a 9º e 11º a 16º do requerimento inicial traduz um esbulho violento.
Entende-se que lhe assiste razão.
Cabe, então aquilatar, em primeira linha, se foram efectivamente alegados factos que se compaginem com esse conceito de violência no esbulho, a que alude o citado artº 393º, do CC.
Preceitua o artº. 1279º, do CC, que o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.
A procedência da providência cautelar de restituição provisória de posse depende da alegação e prova de três requisitos: a posse, o esbulho e a violência (cfr. art. 393 do C.P.C.).
“Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” (art. 1251 do C.C.).
Há esbulho sempre que alguém é privado, total ou parcialmente, contra sua vontade, do uso ou fruição do bem possuído ou da possibilidade de continuar esse exercício.
Quanto à violência, dividem-se, a doutrina e a jurisprudência, em duas posições distintas: a primeira delas defende que a violência relevante tem de ser a exercida contra a pessoa do possuidor; a segunda sustenta que basta a violência sobre a coisa, em especial quando esta esteja ligada à pessoa esbulhada.
A mais restritiva assenta em juízos lógico-formais que conduzem, com frequência, a resultados inaceitáveis Vide A. Geraldes a propósito das teses referidas (in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV vol., pág. 47),. É o caso do arrendatário que depara com a casa ocupada por um terceiro (ainda que seja o senhorio) que, sem intervenção do tribunal, procedeu ao arrombamento da porta da casa arrendada e à mudança da fechadura da porta, e que ficará, à luz desta tese, impossibilitado de recorrer à providência de restituição provisória de posse, justamente porque a violência do esbulho incidiu directamente sobre os bens possuídos e não sobre a sua pessoa.
Se é certo que, nestas situações, a falta de violência não afasta a possibilidade de recurso à tutela cautelar nos termos gerais, através do procedimento cautelar comum, impõe-se, todavia, ao esbulhado a alegação e prova das exigências gerais impostas por tais procedimentos deixando também de ser automática a dispensa do contraditório (o que pode, designadamente, determinar a demora na emissão da decisão final - cfr. artºs. 381º e 395º do CPC.
Conforme o autor citado (A.Geraldes), “sendo o esbulho uma das formas através das quais se pode adquirir a posse, a sua qualificação como violento deve ser o resultado da aplicação do art. 1261 do C.C., com o que somos transportados, por expressa vontade do legislador, para o disposto no art. 255 do C.C., norma que integra na actuação violenta tanto aquela que se dirige directamente à pessoa do declaratário (leia-se, do possuidor), como a que é feita através do ataque aos seus bens.” (ob. cit., pág. 48) Ver, ainda, neste sentido, A. Moitinho de Almeida, “Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis”, 1986, págs. 110 e ss, e Guerra da Mota, “Manual da Acção Possessória”, 1980, vol. I, pág. 131.
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“Considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física, ou de coacção moral nos termos do artigo 255” (art. 1261, nº 2, do C.C.). Estabelece, por seu turno, o art. 255 do C.C. que: “1. Diz-se feita sob coacção moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração. 2. A ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declarante ou de terceiro. 3. Não constitui coacção a ameaça do exercício normal de um direito nem o simples temor reverencial.”
Assim, na esteira também do Acórdão desta RG, Proc. nº. 4196/09.8TBGMR.G1, in dgsi.pt. dir-se-á que «o esbulho será violento sempre que o esbulhador tenha praticado alguma violência, física ou moral, e a violência física pode ser exercida sobre as pessoas ou sobre as coisas que servem de obstáculo ao esbulho, como sejam muros, vedações, portões ou árvores “pelo que tanto é esbulho violento o que se consegue contra a pessoa do possuidor como o que se leva a cabo por meio de arrombamento, escalamento, derrube, etc, embora não haja luta entre o esbulhador e o possuidor.” (A. Moitinho de Almeida, “Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis”, 1986, pág. 114). Como também refere Moitinho de Almeida (ob. cit., pág. 110), “desde o Direito Romano que a expressão «violência» se aplica em geral a todo o acto de alguém realizado contra a vontade efectiva ou presumida de outrem.”».
Segundo o entendimento de Guerra da Mota (“Manual da Acção Possessória”, 1980, vol. I, pág. 132), que o art. 366 do primeiro projecto da comissão revisora do Código Civil referia-se à violência dizendo “quer fosse exercida contra as cousas, quer contra as pessoas”, e Seabra, no seu projecto definitivo, terá redigido o mesmo artigo da forma seguinte: “Aquele que for violentamente esbulhado, ou a violência fosse exercida contra as cousas por meio de arrombamento, escalonamento ou dano, ou contra as pessoas em relação às cousas por meio de maus tratos ou ameaças”. Contudo, segundo explica o mesmo autor, tal redacção casuística e o temor das definições motivaram a supressão do normativo, deixando a redacção genérica do art. 487 do referido Código Civil de Seabra Dispunha este normativo que: “Se o possuidor foi esbulhado violentamente, tem direito a ser restituído, sempre que o requeira, dentro do prazo de um ano; nem o esbulhador será ouvido em juízo, sem que a dita restituição se tenha efectuado.”
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Coexistindo as duas teses, como se salienta no citado aresto (Proc. nº. 4196/09.8TBGMR.G1), parece prevalecer na jurisprudência aquela de que a violência tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre as coisas, sendo que algumas decisões das Relações vêm entendendo, por razões de compreensível coerência, que a violência no esbulho se concretiza na simples colocação de um obstáculo físico ao acesso ou utilização pelo possuidor à coisa esbulhada, consubstanciado, v. g., na colocação de um portão ou cadeado, sem fornecimento das respectivas chaves (cfr., a este propósito, Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I, 2ª ed., 2004, pág. 363).
Numa perspectiva mais aberta da segunda orientação, entende-se que a violência directamente exercida sobre as coisas constitui meio indirecto de atingir as pessoas.
E segundo o Prof. Lebre de Freitas, in Cod. Proc. Civil Anotado, 2ª ed.., vol. 2º, pág. 78, “ é, pois, violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador.
Como refere o mesmo autor (na linha, é certo, da tendência seguida na decisão recorrida), a coação tem de ser sempre, em última análise exercida sobre uma pessoa, mas a destruição (ou a construção) duma coisa, ou a sua alteração, pode ser o meio de impedir a continuação da posse, coagindo, física ou moralmente, o possuidor a abster-se dos actos de exercício do direito correspondente.
Também como se frisou no Ac. do STJ de 19.3.96 (Proc. 96 A110, sumariado em www.dgsi.pt): “Na restituição provisória de posse há esbulho se o possuidor fica em condições de não poder exercer a sua posse ou os direitos que anteriormente tinha, e violência se o possuidor é impedido de aceder ao objecto da posse.”
Assim, será de considerar “violento o esbulho, quando o esbulhado fica impedido de contactar com a coisa face aos meios (ou à natureza dos meios) usados pelo esbulhador” (Ac. RE de 12.3.98, CJ Ano XXIII, T. II, pág. 269). “A colocação pelos agravantes de pilares de madeira unidos por cadeado impedindo a passagem de carro que os requerentes vinham fazendo, por si e antepossuidores, há mais de 30/40 anos (...), integra o conceito de esbulho violento, para os efeitos dos artigos 1279 C.C. e 393 do C.P.C.” (Ac. RC de 28.11.98, CJ Ano XXIII, T. V, pág. 30). “É de concluir pela existência de esbulho violento sempre que haja necessidade de vencer um obstáculo, como seja o resultante da substituição de fechaduras de instalações” (Ac. RL de 23.4.02, CJ Ano XXVII, T. II, pág. 120).
Reportando-nos, então, à situação em análise e seguindo-se uma orientação mais flexível e hoje maioritária, importa ponderar, neste caso concreto, as circunstâncias em que o esbulho foi praticado Seguindo a tese rigorista ver, entre outros, o Ac. RP de 30.10.07 (Proc. 0725016, em www.dgsi.pt).
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A requerente alegou no seu requerimento inicial que é dona e possuidora de um prédio urbano e de um terreno onde se situa um ringue, cedidos em regime de comodato ao requerido, correndo termos acção principal em que se pede a resolução, por caducidade, do contrato de comodato entre si celebrado.
Mais articulou que o requerido, ameaçando realizar obras, começou a arrancar portas interiores dos balneários e respectivos aros e desmontou o cilindro de aquecimento de água, bem como retirou as fechaduras de tais portas, com o propósito de as mudar e impedir as crianças que frequentam o ATL – Actividades de Tempos Livres a aceder às ditas instalações, tendo-se oposto a tal o respectivo Presidente da Junta de Freguesia, aqui requerente. Recusando-se o pessoal das obras a identificarem-se e chamada ao local a GNR de Guimarães, o Presidente da Direcção, já presente, de forma categórica e hostil, afirmou que as obras iriam continuar, que não aceitava ordens de ninguém em contrário das suas e prosseguiu tais obras com desmantelamento de portas interiores, contra a vontade do requerente.
Na decisão posta em crise conclui-se que não houve qualquer comportamento físico ou verbal susceptível de ser configurado como lesivo ou ameaçador da integridade física do representante da requerente, nem é discriminado nenhum facto donde se possa concluir quanto à existência de razões para que o mesmo se tivesse visto sem liberdade de determinação.
Discorda-se deste entendimento.
Na verdade, como acima ficou dito, basta que a acção física exercida sobre a coisa traduza um meio de coagir uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade para tal configurar um esbulho violento.
Ora, segundo o que se alegou, por um lado, a destruição de portas interiores de balneários, a desmontagem do cilindro de águas quentes, o arranque de fechaduras das portas com o intuito de as mudarem e tudo com o propósito de se impedir a sua utilização e contra a vontade da requerente, e, por outro lado, a recusa de identificação dos executantes dessas obras e a postura hostil e de ordem do representante do requerido no sentido de que tal tipo de obras era para prosseguir, mesmo na presença da autoridade policial, chamada ao local, é de molde a configurar uma posição de força ostensiva e de intimidação, não deixando ao esbulhado outra alternativa que não o recurso ao uso de força de sentido contrário para repor o exercício do seu direito Neste sentido, veja-se, entre outros, (Ac. RL de 23.10.08, Proc. 8672/2008-6, in www.dgsi.pt). No sentido que seguimos, ver, ainda, entre outros, o Ac. RP de 25.9.95 (Proc. 9550342, sumariado em www.dgsi.pt), o Ac. RP de 5.1.95 (Proc. 440082), o Ac. RL de 1.7.99 Proc.033252), o Ac. RC de 4.4.06 (Proc. 552/06), e o Ac. da RL de 20.1.05 (Proc. 6966/2004-6), em www.dgsi.pt..
Para haver violência no esbulho, mesmo no caso de coisas, não é necessário que se chegue, em termos de agressão, a vias de facto sobre o esbulhado. Basta que os contornos desse acto sobre as coisas e os meios usados traduzam um cariz intimidatório, de ameaça latente, que pode vir a repercutir-se sobre o esbulhado, impedindo-o de aceder ou utilizar a coisa possuída.
Como se concluiu no já citado Ac. RL de 23.10.08 (Proc. 8672/2008-6), “... outro entendimento esvaziaria por completo a relevância da violência sobre as coisas comummente aceite na caracterização do requisito que nos ocupa, pois, no limite, só em situações extremas (v.g., a destruição ou danificação à bomba da coisa possuída), tal requisito seria de configurar.”
Assim, no circunstancialismo descrito – e não o de um mero desacordo de uma “empreitada”, como parece transparecer a decisão objecto de recurso - é de concluir-se que o requerente alegou factualidade que, a provar-se, integra o esbulho violento para efeitos dos artºs. 1279º do CC e 393º do CPC, assim se verificando o requisito da violência que justifica o decretamento da restituição provisória de posse.
Sumariando:
I- A violência no esbulho pode ser exercida tanto sobre as pessoas como sobre as coisas.
II- Na acção cautelar de restituição provisória de posse, quando a actuação do esbulhador sobre a coisa esbulhada é de molde a, na realidade, tornar impossível a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos ao acesso à coisa, seja através de meios que impedem a utilização pelo possuidor da coisa esbulhada, estaremos perante um caso de esbulho violento;
III- A violência no esbulho pode traduzir-se numa acção física exercida sobre as coisas como meio de coagir o esbulhado a suportar uma situação contra a sua vontade.
IV – Decisão;
Em face do exposto, acordam os Juizes da 1ª Secção Cível deste Tribunal em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e ordenando a sua substituição por outra que determine a produção da prova oferecida.
Sem custas.
Guimarães, 3 de Novembro de 2011
António Sobrinho
Isabel Rocha
Jorge Teixeira |