Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5907/09.7TBBRG-A.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: INTERVENÇÃO PROVOCADA
LITISCONSÓRCIO
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. O incidente de intervenção principal provocada pressupõe a existência de uma situação de litisconsórcio voluntário ou necessário.
2. Este tipo de incidente não se destina a acolher situações em que a Ré pretende fazer-se substituir por quem ela entende ser o responsável pelas anomalias verificadas no imóvel da Autora, pois é a esta que cabe escolher os interveniente processuais, aferindo-se a legitimidade das paqrtes pela forma como o autor configura a relação material controvertida.
3. O incidente de intervenção principal provocada é o adequado para a Ré assegurar a presença na lide da seguradora para a qual havia transferido a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiro por sinistro decorrente da sua actividade de empresa produtora de bens.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
E, LDA. intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra C, S.A., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe:
- pelas despesas que teve com as sucessivas reparações da fachada do prédio dos autos, o montante de € 37.470,00;
- pelos danos decorrentes da frustração e perda de negócios e empréstimos, o montante de € 41.090,00;
- pelos custos que decorreram das obras urgentes da integral renovação da fachada, o montante de € 218.500,00;
- a título de danos não patrimoniais, o montante de € 177.000,00;
- juros contados desde a citação até integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, ter acordado com a Ré o fornecimento de argamassa de reboco exterior para aplicar numa obra sua, a qual foi produzida numa central da Ré, na medida e quantidade necessária para aquela obra e posteriormente transportada em camiões cisterna para o estaleiro da Autora, onde a Ré instalou um silo vertical para a dita argamassa, sucedendo que após a aplicação daquele produto, começaram a cair, em diversos pontos da fachada do edifício, os cerâmicos que haviam sido colocados, o que ficou a dever a erros na concepção e produção da argamassa pela Autora, o que foi denunciado e reclamado desta, que reconheceu tal deficiência do produto, tendo oferecido à Autora um ou dois silos de argamassa de compensação, mas nada mais fez, estando o edifício em causa, que é destinado à habitação, vulnerável à intempérie, estando igualmente comprometida a sua impermeabilização, o que tudo causou à Autora os prejuízos que reclama na presente acção.
A Ré contestou, começando por excepcionar a sua ilegitimidade, defendendo que o contrato de fornecimento de argamassa de reboco exterior que celebrou com a Autora foi por si pontualmente cumprido, nada tendo a Ré a ver com os danos reclamados, mas sim a empresa que aplicou a argamassa fornecida, pelo que conclui não ter qualquer interesse em contradizer a acção que, no seu entender, não foi intentada contra as “partes exactas”.
Por impugnação defende que os danos alegadamente sofridos pela Autora se ficaram a dever à errada aplicação da argamassa, nomeadamente através do seu esponjamento em vez do talochamento recomendado na ficha técnica, e não a defeitos do produto por si fornecido.
Deduziu ainda a Ré o incidente de intervenção provocada da empresa E, LDA. e da COMPANHIA DE SEGUROS I, S.A..
Quanto à E, justificou a Ré a respectiva intervenção por ter sido esta a empresa contratada pela Autora para a aplicação da argamassa fornecida pela Ré, pelo que “é parte interessada na lide e detém um interesse igual ao do da R. em a contraditar”, sendo por isso “essencial para a descoberta da verdade material e dos seus efectivos responsáveis, a presença nos autos” daquela (arts. 112º a 114º da contestação).
Relativamente à Companhia de Seguros, fundamentou a Ré o pedido de intervenção “Para o caso de vir a ser condenada em algum dos pedidos deduzidos pela A. (…), a R suscita ainda o incidente de intervenção principal provocada da sua companhia de seguros, ao abrigo dos artigos 325º e seguintes do CPC”, pois celebrou com aquela “um contrato de seguro de responsabilidade civil, conforme apólice de seguro nº RC82029797”, resultando das condições gerais e particulares “que a responsabilidade civil geral é contemplada no âmbito do referido contrato de seguro”, pelo que no caso de vir a “ser condenada nos pedidos formulados pela A. na presente acção (…), terá a R., na qualidade de segurada do referido seguro, direito a ser indemnizada pela companhia seguradora com base na referida apólice de seguro”.
Na réplica a Autora não deduziu oposição a esses pedidos de intervenção provocada, tendo apenas respondido à excepção de ilegitimidade passiva suscitada pela Ré e a outras excepções que no seu entender foram arguidas na contestação, para concluir pela sua improcedência.
Foi então proferido o despacho de fls. 3 a 9, nos termos do qual o Tribunal a quo decidiu “não admitir os incidentes de intervenção principal provocada deduzidos pela ré na contestação”.
Inconformada com o assim decidido, a Ré interpôs o presente recurso de apelação, tendo formulado, a rematar a respectiva alegação, as seguintes conclusões:
1ª - A presente acção, tal como foi configurada pela Autora, designadamente nos artigos 2.º e 6.º da sua petição inicial, diz respeito a uma proposta de “produção e fornecimento de argamassa de reboco para aplicar numa obra”¸rectius, na “produção, fabricação e fornecimento de uma argamassa de reboco exterior”, dizendo que “se estabeleceu com E, Lda. um acerto, para a colocação do produto referido, produzido pela Ré”.
2ª - A própria Autora define que a colocação do produto fornecido pela Recorrente foi realizada por entidade terceira – a chamada E, Lda..
3ª - Sendo por demais evidente que o fornecimento do material e a colocação do produto na obra são actos sequenciais, absolutamente indissociáveis na análise da demanda, na medida em que – existindo efectivamente um defeito – sempre se terá de verificar se tal efeito procede do produto propriamente dito ou da sua colocação pela chamada E, Lda..
4ª - Resulta evidente, face ao exposto, que o interesse justificativo da intervenção daquele terceiro decorre da simples constatação de que a relação material controvertida, tal como é apresentada pela autora diz respeito à Recorrente mas também está relacionada com a chamada, pelo que esta tem também interesse em estar presente na discussão da causa (artigos 26º, nºs 1, 2 e 3, 27º e 28º CPC).
5ª - Nesta medida, pode intervir na causa aquele que, em relação ao objecto da causa, tiver um interesse igual ao do Réu, nos termos do artigo 27.º e 28.º do Código de Processo Civil.
6ª - Aliás, sempre se teria de conceder que, por razões de celeridade, economia processual e regulação efectiva e definitiva da demanda que a colocação do produto fornecido pela Recorrente consubstancia um elemento essencial da relação material controvertida e do qual emerge, indubitavelmente, um interesse directo em contradizer pela chamada E, Lda..
7ª - A Recorrente celebrou com a Seguradora I um contrato de seguro de responsabilidade civil, do qual resulta que a responsabilidade civil geral é contemplada no âmbito do referido contrato de seguro e a responsabilidade da seguradora não se encontra excluída do âmbito do contrato de seguro.
8ª - Assim, sempre teria a Autora, na qualidade de beneficiária, direito a ser indemnizada pela seguradora com base na mencionada apólice.
9ª - Sendo certo que, do ponto de vista da legitimidade passiva, tal relação contratual configura uma relação de litisconsórcio voluntário, nos termos do artigo 27.º do Código de Processo Civil.
10ª - Ora, do incontestável litisconsórcio voluntário emerge, inexoravelmente, o direito da Ré segurada fazer intervir a título principal a sua seguradora, como sua associada, mediante o incidente de intervenção principal provocada, nos termos da alínea a) dos artigos 320.º do Código de Processo Civil.
11ª - Ainda que assim não se considerasse, o que não se concede, sempre se teria de conceder que deveria ter sido, pelo menos, aconvolado o chamamento da Ré I.
12ª - Nos termos do disposto nos artigos 264º, 265º- A e 664º do CPC, na eventualidade do incidente de intervenção de terceiro ter sido indevidamente qualificado, pode o requerimento de intervenção principal provocada ser convolado oficiosamente para incidente de intervenção acessória.
13ª - Nessa medida, a mencionada seguradora poderá vir a responder, pelo menos, até ao limite do capital seguro, caso venha a demonstrar-se a sua responsabilidade da Ré perante os Autores, sendo que tais factos configuram a previsão do art. 330º do Código de Processo Civil, pelo que deve ser admitida a intervenção acessória provocada da Ré COMPANHIA DE SEGUROS I.
Não foram oferecidas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - ÂMBITO DO RECURSO
Tratando-se de recurso interposto em acção instaurada no ano de 2009, a sua tramitação e julgamento rege-se pelo regime processual introduzido pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08 (cfr. art. 12.º deste diploma legal).
De harmonia com as disposições contidas nos arts. 676º, nº 1, 684º, nºs 2 e 3, e 685º-A, nºs 1 e 2, do CPC, na redacção aplicável, são as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, desde que reportadas à decisão recorrida, que delimitam o objecto do recurso, sem prejuízo das questões de que, por lei, o tribunal pode conhecer oficiosamente (art. 660º, nº 2, do CPC).
Percorrendo as conclusões formuladas pela recorrente, a argumentação nelas debatida reconduz-se às seguintes questões:
1) se devem ser admitidas as intervenções principais provocadas deduzidas pela recorrente na contestação;
2) relativamente à Companhia de Seguros I, caso se venha a concluir pela inadmissibilidade da sua intervenção a título principal, se não deve a mesma ser admitida a intervir acessoriamente.
III - FUNDAMENTAÇÃO
A) - OS FACTOS
Os factos com relevância para a análise e decisão do presente recurso são os que decorrem do que acima ficou enunciado no relatório.

B) – O DIREITO
Após a citação do réu, a instância deve manter-se imutável quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, ressalvadas as modificações consagradas na lei - art. 268º do CPC. Este normativo consagra o princípio da estabilidade da instância, que visa assegurar o andamento normal da causa, por forma a que o tribunal administre, em tempo oportuno, a justiça que lhe é solicitada.
Na parte ora útil, diremos que tal princípio é susceptível de ser afectado por virtude de uma modificação subjectiva, seja em consequência da substituição de alguma das partes primitivas, seja por via da intervenção de terceiros.
Essa modificação adjectiva-se através de um incidente processual – típico ou inominado – que, como o seu próprio conceito sugere, pressupõe a pendência de uma causa.
Genericamente, dir-se-á que o conceito de “terceiros” se contrapõe ao conceito de “parte” e insere a ideia de alguém por quem ou contra quem é solicitada, em nome próprio, uma providência judicial tendente à tutela de um direito (cfr. Gama Prazeres, Dos Incidentes da Instância no Actual Código de Processo Civil, pág. 102).
Os incidentes de intervenção de terceiros foram estruturados na base dos vários tipos de interesse na intervenção e das várias ligações entre esse interesse, que deve ser invocado como fundamento da legitimidade do interveniente e da relação material controvertida desenvolvida entre as partes primitivas.
No quadro geral dos incidentes de intervenção de terceiros integram-se a intervenção principal, a intervenção acessória e a oposição.
No primeiro tipo, ou seja, na intervenção principal – como importa num primeiro momento ao tema do recurso – ela integra “…os casos em que o terceiro se associa, ou é chamado a associar-se, a uma das partes primitivas, com o estatuto de parte principal, cumulando-se no processo a apreciação de uma relação jurídica própria do interveniente conexa com a relação material controvertida entre as partes primitivas, em termos de tornar possível um hipotético litisconsórcio ou coligação iniciais” (cfr. Lopes do Rego, Comentário ao Código do Processo Civil, pág. 242).
Compreende-se a assunção desse estatuto de parte principal, visto que está em causa “…um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu” – art. 321º do CPC.
Essa assunção verifica-se a partir do momento em que é admitida a intervenção do terceiro (se ela for espontânea) ou em que ele intervém efectivamente na causa (se for provocada).
A intervenção principal, espontânea ou provocada, não é, naturalmente, admissível se forem contrapostos os interesses substantivos ou processuais do chamado e da parte ao lado de quem se pretende que intervenha.
Como não permite que o autor substitua o réu contra quem, por erro, dirigiu a acção.
Sobre o âmbito da intervenção principal provocada, rege o art. 325º do CPC, do seguinte teor:
«1. Qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
2. Nos casos previstos no art. 31º-B, pode ainda o autor chamar a intervir como réu o terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido.
3. O autor do chamamento alega a causa do chamamento e justifica o interesse que, através dele, pretende acautelar».
Prevê o nº 1 deste artigo o chamamento a juízo do interessado com direito a intervir na causa e estatui que qualquer das partes primitivas pode provocá-lo, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
Assim, o próprio autor pode chamar a intervir alguém, seja na posição de autor, seja na posição de réu. E este pode chamar a intervir alguém em posição paralela à sua ou à do autor.
Começa este incidente com um requerimento apresentado pela parte que pretenda chamar à causa determinada pessoa que, nos termos do art. 320º, pudesse intervir espontaneamente.
O requerente da intervenção deve alegar e justificar, sem possibilidade de apresentação de prova, a legitimidade do chamando e que ele está, face à causa principal, em alguma das situações previstas no art. 320º.
Como a intervenção principal provocada pressupõe que o chamado e a parte à qual pretende associar-se tenham interesse igual na causa, não é de admitir a intervenção apenas destinada a prevenir a hipótese de a parte primitiva não ser titular do interesse invocado.
Por outro lado, a intervenção na lide de alguma pessoa como associado do réu pressupõe um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida, cuja medida da sua viabilidade é limitada pela latitude do accionamento operado pelo autor, não podendo intervir quem lhe seja alheio (cfr. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, Coimbra - 1999, pág. 104).
Vejamos, então, o caso concreto, começando pela requerida intervenção provocada da E, Lda.”.
A Ré fundamenta o pedido de intervenção provocada desta sociedade alegando, no essencial, que os problemas verificados pela Autora na obra em causa não decorrem de qualquer defeito de composição do produto por si fabricado e fornecido à Autora, mas antes da sua deficiente aplicação pela sociedade cuja intervenção requer.
Para indeferir a intervenção daquela sociedade, lembremos os fundamentos da decisão recorrida:
“A legitimidade processual, que se não confunde com a legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido, afere-se pelo pedido e causa de pedir tal como são apresentados pelo autor, independentemente da prova dos factos que integram a última.
Logo o incidente de intervenção principal provocada supõe uma contitularidade da relação material controvertida, com participação do chamado à intervenção.
Verificado este pressuposto, admitido o chamamento, tal implicará um alargamento do objecto do processo, que passa a reportar-se não só à relação jurídica controvertida, como também ao “direito próprio” do interveniente, e à situação jurídica de que este é titular.
Face ao mencionado é fácil concluir que não está justificada a intervenção da E, Lda. na causa, uma vez que a pretensão da autora é deduzida com base em responsabilidade civil do produtor (D.L n.º 383/89, de 6 de Novembro, com as alterações introduzidas pelo D.L n.º 131/2001), não sendo a chamada a empresa produtora, fabricante ou fornecedora do produto (argamassa de reboco exterior projectada, tipo GP CSIV W), mas meramente a empreiteira contratada para proceder à sua aplicação, em obra.
Caso não se prove a factualidade invocada pela autora a única consequência daí decorrente é a absolvição da ré do pedido, o que esta pretende”.
Consideramos correcta a fundamentação da decisão posta em crise, o que não é afastado pela circunstância da Autora ter alegado que a aplicação da argamassa de reboco produzida pela Ré foi efectuada pela sociedade cuja intervenção veio requerer.
Ao longo da petição inicial a Autora é inequívoca em considerar que todas as anomalias, consequentes e sucessivas quedas da fachada do edifício dos autos, resultam do facto de, na produção da argamassa ter havido erros de concepção e produção da mesma, por parte da Ré produtora.
Em momento algum daquele articulado a Autora atribui qualquer responsabilidade na verificação de tais anomalias à sociedade que aplicou a argamassa.
Ou seja, a relação material controvertida está perfeitamente definida e não se vê, como e por que forma, a sociedade chamada possa ser qualificado como interessado, ou qual o direito que a mesma tem de intervir na causa, direito e interesse esse que não pode, obviamente, confundir-se com a configuração da acção nos moldes delineados pela ré.
Bem andou, pois, o Tribunal a quo ao não admitir a intervenção provocada da dita sociedade.
Vejamos agora o caso da seguradora I.
Defende a Ré que no caso de ser condenada terá direito a ser indemnizada pela companhia de seguros com base na apólice de seguro junta aos autos, a qual titula o contrato de seguro com a mesma celebrado e que teve por efeito a transferência da sua responsabilidade civil geral para a dita seguradora.
Embora o recurso não tenha sido instruído com certidão da mencionada apólice, porque tal conclusão não foi posta em causa pela recorrente, há que aceitar o que a propósito se escreveu na decisão recorrida:
“ Da análise da apólice de fls. 141 a 176 decorre que o contrato de seguro invocado não foi efectuado para vigorar associado a qualquer sinistro em particular, mas antes no sentido de garantir, de um modo geral, a responsabilidade civil da ré perante terceiros relativamente a riscos inerentes à sua actividade, nomeadamente relativamente a danos decorrentes de lesões causadas a terceiros pelos produtos fabricados, armazenados, fornecidos, distribuídos e/ou vendidos pelo segurado, após entrega. – v. ponto III a fls. 155 dos autos”.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se o incidente de intervenção principal é o adequado para chamar à lide, como associada da Ré, a seguradora para quem aquela transferiu a responsabilidade civil pelos danos emergentes de sinistros ocorridos pelos produtos fabricados e vendidos pela Ré, após a sua entrega.
Esta questão, como dá nota a decisão recorrida, que nesta matéria segue o que vem exposto no Acórdão da Relação de Lisboa, de 27.11.2008, proc. 8398/08-2, in www.dgsi.pt, não tem tido um tratamento unívoco nem na jurisprudência, nem na doutrina, sendo frequentemente convocada quando se analisa qual o tipo de incidente susceptível de fazer intervir na acção a seguradora, nas situações para as quais inexiste seguro obrigatório.
Daí que se justifiquem, antes de mais, algumas breves considerações sobre a natureza do contrato de seguro e os seus efeitos nas relações entre as partes e face a terceiros.
Através do contrato de seguro, a seguradora obriga-se a suportar o risco. Ou seja, como contrapartida do recebimento do prémio, a seguradora passa a estar disponível para fazer face às consequências da eventual realização do sinistro.
Desta forma, pode afirmar-se que, por força do contrato, nas relações internas, a seguradora coloca-se na posição de quem é obrigada a indemnizar e o segurado na posição de quem tem que demonstrar o dano, a sua relação com o sinistro, bem como a sua extensão e valorização.
Porém, atenta a natureza do contrato de seguro de responsabilidade civil, assumidamente concebido como um contrato a favor de terceiro (art. 444º, do Código Civil), a seguradora obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida, ficando aquele com o direito de demandar directamente a seguradora, ou o segurado, ou ambos, em litisconsórcio voluntário (considerando que o contrato de seguro de responsabilidade civil consubstancia um contrato a favor de terceiro podem ver-se, entre outros, os Acs. do STJ de 16.01.1970, BMJ, nº 193, pág. 359, e de 30.03.1989, BMJ, nº 385, pág. 563, e o Acs. da RL de 07.11.2006, proc. 7576/2206-7, e da RP de 06.07.2009, proc. 721/08.0TVPRT-A.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt; na doutrina cfr. Vaz Serra, RLJ, ano 99º, pág. 56, nota 1; Diogo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, 1991, págs. 13 a 16, Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 6ª ed., pág. 372 e segs.; José Vasques, Contrato de Seguro, pág. 258 e 259)
Acresce que, perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis, nos termos do art. 497º, do Código Civil, pelo que o segurado não fica desonerado perante o terceiro-lesado por virtude da existência de um contrato de seguro. Na verdade, pelo contrato de seguro apenas se transferiu o pagamento do quantum indemnizatório para a seguradora, mas não a responsabilidade jurídica pelo evento (cfr. Ac. STA de 01.02.2000, Acórdãos Doutrinais, 466º-1231).
Feitas estas breves considerações a propósito da natureza do contrato de seguro e dos seus efeitos nas relações entre as partes e perante terceiros, debrucemo-nos agora sobre a questão essencial decidenda, ou seja, a da admissibilidade do incidente de intervenção principal provocada da seguradora supra identificada, previsto nos arts. 325º a 329º do CPC.
Vimos já que o incidente de intervenção principal permite a modificação subjectiva da instância, por iniciativa das partes, e é admissível quando qualquer dos litigantes pretenda fazer intervir na causa um terceiro, como seu associado ou como associado da parte contrária, isto é, quando pretenda chamar um litisconsorte voluntário ou necessário (art. 325º, nº 1, do CPC), e, ainda, nos casos de pluralidade subjectiva subsidiária, quando o autor pretenda fazer intervir um réu diverso do demandado a título principal, nos termos previstos nos arts. 325º, nº 2 e 31º-B, do CPC.
Por seu turno, sendo suscitado pelo réu, há que ter em conta as especialidades previstas no art. 329º, em que se prevê o chamamento de co-devedores ou do principal devedor (nº1), bem como, tratando-se de obrigação solidária, e sendo a prestação exigida na totalidade a um dos co-devedores, o chamamento dos co-devedores, tendo em vista a condenação na satisfação do direito de regresso que lhe possa vir assistir (nº2).
O que caracteriza as situações tipificadas no art. 329º, do CPC é a circunstância de, existindo pluralidade de devedores ter o co-devedor demandado a possibilidade de repercutir sobre o chamado, no todo ou em parte, o sacrifício patrimonial resultante do cumprimento da obrigação que lhe é exigida.
Daí que ao objectivo normalmente prosseguido com a intervenção litisconsorcial provocada passiva – operar uma defesa conjunta no confronto do credor, opondo-lhe os meios de defesa que forem pertinentes – acresça o interesse do réu em acautelar eventual direito de regresso.
Tratando-se de obrigação solidária, admite-se expressamente que a finalidade do chamamento possa também consistir – para além do objectivo de possibilitar defesa comum – em o réu obter o reconhecimento eventual do direito de regresso que lhe assistirá, se for compelido a pagar a totalidade do débito.
No caso em apreço, verifica-se que os factos articulados para justificar o chamamento se inserem precisamente neste quadro normativo, pelo que não subsistem quaisquer dúvidas sobre a sua admissibilidade.
Afastamo-nos, assim, do entendimento sufragado no citado Acórdão da Relação de Lisboa de 27.11.2008, seguido na sentença recorrida, que apesar de reconhecer a pertinência destes argumentos deles não retira, salvo o devido respeito, as devidas consequências, pois entende que a cobertura garantida pela seguradora, por via do contrato, não a transmuta em titular da relação litigada, apenas lhe conferindo um interesse processual secundário, quando, no entendimento que se perfilha tal interesse reveste uma feição principal e não meramente secundária.
A apelação procede quanto à intervenção principal provocada da seguradora.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e, em consequência, decide-se:
- revogar a decisão recorrida na parte em que indeferiu a intervenção da “Companhia de Seguros I, S.A.”, ordenando-se a sua substituição por outra que admita o incidente requerido pela Ré, como de intervenção principal provocada, fazendo-se prosseguir os seus ulteriores termos;
- confirmar a decisão recorrida quanto ao indeferimento da intervenção principal provocada da sociedade “E, Lda.”.
Custas (devidas na 1ª instância e nesta Relação) pela apelante, na proporção de ½.

Guimarães, 6 de Janeiro de 2011
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Amílcar Andrade