Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | EVA ALMEIDA | ||
Descritores: | PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL DIREITO REAL DE GARANTIA PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 11/22/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I - Os créditos da recorrente e dos demais trabalhadores da insolvente, emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, gozam de privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual prestaram a sua actividade (art.º 333º do C.T.). II – O privilégio imobiliário especial é um direito real de garantia. Os direitos reais incidem sobre coisas em sentido jurídico – entidades do mundo externo, sem personalidade jurídica, corpóreas ou incorpóreas, dotadas de economicidade, autonomia e individualidade para serem passíveis de um estatuto de direito, i. é, serem objecto de relações jurídicas. III - Um dos “princípios constitucionais dos direitos reais é o “princípio da especialidade”. Este princípio, subjacente a toda a regulação deste Instituto, diz-nos que “só há direitos reais sobre coisas certas e determinadas, isto é, sobre coisas individualizadas. Não podem, por isso, constituir-se direitos reais sobre coisas não individualizadas ou indeterminadas”. Nem sequer há direitos reais sobre coisas individualizadas do ponto de vista físico ou material, mas que não o estão do ponto de vista jurídico. IV - O direito real de garantia (privilégio imobiliário especial) de que os créditos da apelante e das demais trabalhadoras da insolvente beneficiam, abrange todo o imóvel onde era exercida a actividade da insolvente e não apenas parte dele, materialmente inseparável e que não se mostra juridicamente autonomizada. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES I – RELATÓRIO Por sentença de 4 de Julho de 2017 foi declarada a insolvência de José. Findo o prazo para a reclamação de créditos, a Sr.ª Administradora da insolvência (A.I.) juntou aos autos a lista de todos os créditos por si reconhecidos. O credor Banco A veio impugnar a referida lista, defendendo que os credores reclamantes identificados como trabalhadores, mais concretamente A. M., C. H., C. M., M. A., M. B., M. D., M. F., M. J., e R. M., não poderão gozar do privilégio imobiliário especial, reconhecido pela Sr.ª A.I., uma vez que o imóvel sobre que incide se destina a fins habitacionais, não comportando uma utilização comercial/industrial. Subsidiariamente, aceita o reconhecimento deste privilégio sobre a parcela do imóvel onde, efectivamente, as trabalhadoras exerciam actividade, ou seja, a cave. As credoras trabalhadoras da insolvente responderam a esta impugnação, opondo-se. * Realizou-se tentativa de conciliação, sem que se tivesse chegado a acordo.* Fixados os temas de prova e o objecto de litígio, foi realizada audiência de discussão e julgamento, com produção de prova testemunhal.Proferiu-se sentença em que se decidiu: – «Assim, e pelo exposto, julgo parcialmente procedente a impugnação deduzida pelo Banco A, SA, limitando o privilégio imobiliário especial concedido pelo art.º 333,1,b) CT à parcela do prédio urbano, descrito na Primeira Conservatória de Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art...., efectivamente afecta a laboração pelas credoras A. M., C. H., C. M., M. A., M. B., M. D., M. F., M. J., e R. M., ou seja, à cave. Notifique. Para aferir da percentagem do imóvel ocupada pela cave, indique a secção Perito.» * Inconformada, a credora C. M. interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:«1.º A Credora vem interpor recurso da decisão proferida no âmbito do processo supra referenciado, que diz o seguinte: “Assim, e pelo exposto, julgo parcialmente procedente a impugnação deduzida pelo Banco A, SA, limitando o privilégio imobiliário especial concedido pelo artigo 333.º,1,b) CT à parcela do prédio urbano, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana sob o art. ..., efetivamente afeta a laboração pelas credoras A. M., C. H., C. M., M. A., M. B., M. D., M. F., M. J. e R. M., ou seja, à cave.” 2.º Contudo, a Recorrente não se conforma com a presente decisão que considera inconstitucional, por violar o princípio da proporcionalidade e o direito à retribuição do trabalho (artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa), aliás como bem alegou na sua Resposta à Impugnação e em Audiência de Discussão e Julgamento, assim como tal decisão padece de nulidade por falta de fundamentação sobre a medida restritiva adotada. 3.º Pela Exma. Senhora Administradora da Insolvência foi elaborada a lista de créditos reconhecidos em que fixou como créditos de natureza privilegiada mobiliária e imobiliária os créditos das trabalhadoras do Insolvente. 4.º Ora, o Insolvente exercia a atividade de indústria têxtil e vestuário, tendo estabelecido o local de trabalho das trabalhadoras na cave da sua casa de habitação, onde estas trabalhavam com as máquinas de costura. 5.º A Credora Hipotecária, Banco A, SA, impugnar a respetiva lista de créditos reconhecidos das trabalhadoras, requerendo que o privilégio imobiliário especial sobre o imóvel incida somente sobre a parte onde as credoras trabalhadoras laboravam efetivamente, isto é, na cave do imóvel. 6.º Pedido este que foi procedente e o que não se aceita nem se concede, pois viola gravemente a Lei Fundamental, bem como o artigo 333.º do Código de Trabalho! 7.º Todo o imóvel era afeto à atividade empresarial do Insolvente, sendo que todo o imóvel constituía uma organização produtiva. Era ali a sua sede social, o estabelecimento industrial/comercial. 8.º Ficou provado pelo depoimento da Credora C. M. e do Insolvente em sede de audiência de julgamento que na cave era a linha de produção, onde as trabalhadoras costuravam, e no andar superior funcionava o escritório da empresa, onde eram emitidas as guias de transporte, faturas, encomendas. 9.º Sendo que apenas a testemunha F., a qual é casada com o Insolvente, alegou que o escritório funcionava na cave, o que foi corroborado pelo depoimento do próprio Insolvente que afirmou nem sequer haver rede de internet na cave, pelo que seria impossível laborarem nesta parte do imóvel. 10.º Assim como ficou provado que também a parte exterior do prédio, o logradouro, o qual foi também dividido no Relatório Pericial e ao qual foi atribuído uma percentagem do valor do imóvel, estava afeto à atividade do Insolvente, nomeadamente para cargas e descargas. 11.º A Recorrente não se conforma com a limitação do seu crédito privilegiado sobre a cave do imóvel. 12.º Como bem refere o Acórdão da Relação de Lisboa, de 07-07-2016, processo n.º 286/16.9T8BRR-B.L1-2, o qual cita o Acórdão do S.T.J., de 13-11-2014 e de 23-02-2016, que fixa jurisprudência, diz o seguinte: “I. Para o efeito de graduação de créditos reclamados no processo de insolvência, o juiz poderá reconhecer aos trabalhadores da insolvente privilégio imobiliário especial sobre imóvel apreendido, ainda que na respetiva reclamação aqueles não tenham alegado terem exercido a sua atividade no referido imóvel, embora tenham invocado a natureza privilegiada do seu crédito, se dos elementos constantes no processo se colher que o imóvel em causa estava afetado à atividade empresarial da insolvente, existindo por conseguinte e em princípio uma ligação funcional entre o mesmo e o trabalhador, enquanto elementos da mesma organização produtiva. II. É de presumir, se nada for alegado ou demonstrado em contrário, que os trabalhadores reclamantes exerciam a sua atividade no único imóvel apreendido à insolvente, se no dito imóvel estava instalada a sede da devedora.” (sublinhado nosso). 13.º Ora, a norma prevista no artigo 333.º do C.T. prevê uma ligação meramente funcional e não naturalística, sendo que não está em relevância o concreto espaço físico do posto de trabalho mas antes toda a organização produtiva destinada à atividade do Insolvente, que ficou provado ser na sua casa de habitação, em todo o imóvel, sendo unicamente a cave destinada à linha de produção. 14.º É ainda entendimento da Recorrente que a decisão ora recorrida viola gravemente a Lei Fundamental, tendo feito uma ponderação errada sobre a aplicação do princípio da proporcionalidade no caso concreto. 15.º Isto porque, de um lado temos o crédito da trabalhadora, dos seus salários em atraso, o seu direito à retribuição do trabalho que efetivamente prestou. Por outro lado, estamos perante um crédito hipotecário e a confiança que este depositou num contrato de mútuo celebrado com o Insolvente. 16.º Isto para dizer que de um lado temos um direito constitucionalmente consagrado e análogo aos direitos, liberdades e garantias, e por outro temos um mero direito civilístico pertencente a uma instituição bancária que, como é de conhecimento geral, não necessita deste crédito para subsistir, ao contrário da trabalhadora. 17.º A intencionalidade problemática da norma constante no artigo 333.º do C.T. prende-se exclusivamente com a proteção social dos trabalhadores, no sentido de garantir o pagamento das suas retribuições e garantir a sua subsistência e da sua família. 18.º E segundo a Constituição, no seu n.º 3 do artigo 59.º, os salários devem gozar expressamente de garantias especiais, tendo o legislador com o artigo 333.º do CT limitado e restringido expressamente os direitos patrimoniais dos demais credores. 19.º Face a isto, é inconcebível conformar-se com a decisão ora recorrida, que claramente considera injusto e inconstitucional (?) a restrição do direito patrimonial do credor hipotecário. 20.º Mas pergunta-se: Qual o direito constitucionalmente consagrado e pertencente ao credor hipotecário para colocar em hipótese a inconstitucionalidade da manutenção do privilégio imobiliário especial sobre todo o imóvel? 21.º Talvez seja o princípio da segurança jurídica e da confiança no Direito, mas como bem decidiu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 335/2008, de 19-06-2008, o qual já se deliberou sobre esta matéria de direito, perante uma situação de conflito entre um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho, e o princípio geral da segurança jurídica e da confiança no Direito, ponderadas as exigências do princípio da proporcionalidade, deve entender-se que a restrição do princípio da confiança não encontra obstáculo constitucional. 22.º É de interesse público a proteção dos créditos salariais, o que não acontece com a proteção dos direitos reais de garantia que é um direito particular. 23.º E como bem refere Nunes de Carvalho, “a proteção especial de que beneficiam os créditos salariais advém da consideração de que a retribuição do trabalhador, para além de representar a contrapartida do trabalho por este realizado, constitui o suporte da sua existência e, bem assim, da subsistência dos que integram a respetiva família. Fala-se, para designar esta vertente da retribuição, como a dimensão social ou alimentar do salário” (em, Reflexos laborais do Código dos Processos Especiais de recuperação de Empresas e de Falência, na RDES, Ano XXXVII, n.º 1 – 2- 3, p 67). 24.º Atento ao princípio da proporcionalidade, o mesmo desdobra-se em três subprincípios: a. Princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); b. Princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); c. Princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adotar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos). 25.º Face ao exposto, é de concluir que a medida adotada é desadequada, excessiva para as trabalhadoras e desproporcional. 26.º É ainda do entendimento da Recorrente que a decisão recorrida padece de nulidade, por falta de fundamentação, pois desconhece-se os motivos que fundamentaram a restrição do direito à retribuição das trabalhadoras, assim como se desconhece quais os critérios utilizados para a resolução do presente conflito de direitos, e ainda desconhecesse qual o direito constitucionalmente protegido que permitiu a cedência do direito análogo aos direitos, liberdades e garantias previsto no artigo 59.º da Constituição. 27.º Ponderando este conflito de direitos e interesses, há vários aspetos que devemos ter em consideração, tais como: i) quais os direitos em conflito: o direito à retribuição do trabalho e o direito real de garantia. ii) de uma lado temos um interesse público, do outro um interesse particular. iii) de um lado, temos uma trabalhadora, desempregada que apenas vive do salário que, neste caso, não auferiu; do outro temos uma sociedade anónima cujo capital social é de mais de três biliões e, na prática, pouco ou nada faz qualquer diferença obter o crédito aqui em causa, de 60.000,00€. 28.º É desadequado, injusto e inexigível que seja a trabalhadora a ver o seu direito restringido para salvaguardar a confiança de um credor hipotecário. 29.º Pelo que, entende a Recorrente que a sentença ora decorrida viola a Constituição da República Portuguesa, sendo inconstitucional, pois viola o artigo 59.º da CRP, o artigo 333.º do C.T. e o princípio da proporcionalidade. 30.ºMais entende a Recorrente que a sentença é nula por não fundamentar a decisão de restringir o direito da Credora Trabalhadora. 31.º Assim, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogar a sentença recorrida e substituir por outra que reconheça o crédito da trabalhadora como privilegiado sobre a totalidade do imóvel. 32.º Caso assim não se entenda, sempre se dirá que o mesmo deve ainda incidir sobre o logradouro e primeiro andar da habitação, por ambos servirem a organização empresarial do Insolvente. Nestes termos, e nos melhores de Direito, deve ser dado provimento ao recurso e ser a sentença recorrida revogada por inconstitucional e substituída por outra que reconheça o privilégio imobiliário especial da trabalhadora sobre todo o imóvel, ou, caso assim não se entende, o que não se concebe mas por mero dever de patrocínio se coloca em hipótese, revogar parcialmente a sentença recorrida e substituir por outra que reconheça o crédito da trabalhadora como privilegiado a incidir sobre a cave, o logradouro e o primeiro andar da habitação, como é de inteira e liminar JUSTIÇA!.» * O credor impugnante, Banco A, apresentou contra-alegações.* O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.Colhidos os vistos, cumpre decidir. II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC). As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas. III - FUNDAMENTOS DE FACTO Factos julgados provados na sentença recorrida: 1. Foi apreendido à ordem dos presentes autos o prédio urbano, descrito na Primeira Conservatória de Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art..... 2. Tal imóvel, é composto por casa de cave, rés-do-chão e andar e destina-se a fins habitacionais – cfr. certidão permanente, junta fls. 10 e ss. 3. O referido imóvel é a morada da residência do insolvente, fixada na declaração de insolvência. 4. O espaço afecto à actividade laboral do insolvente consistia numa parte da garagem do imóvel supra referido, onde montou uma pequena confecção têxtil, onde as trabalhadoras exerciam a sua actividade. 5. O rés-do-chão e o primeiro andar daquele prédio eram utilizados, exclusivamente, como habitação do insolvente e da mulher. IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO Na sentença recorrida reconheceu-se à recorrente e aos demais trabalhadores da insolvente, créditos emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação. Considerou-se provado que a insolvente tinha um pequeno estabelecimento de confecção instalado no prédio apreendido para a massa insolvente, mais concretamente numa parte da garagem, ao que supomos na cave do edifício face ao que consta do dispositivo da sentença. Limitou-se o privilégio imobiliário especial de que os créditos da recorrente e demais trabalhadores da insolvente beneficiam, previsto no art.º 333º, nº1, al. b) do Código de Trabalho a uma parte do prédio urbano onde a actividade era exercida – “à parcela do prédio urbano, descrito na Primeira Conservatória de Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art...., efectivamente afecta a laboração pelas credoras A. M., C. H., C. M., M. A., M. B., M. D., M. F., M. J., e R. M., ou seja, à cave, gozam de privilégios creditórios – privilégio mobiliário geral e imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual prestaram a sua actividade”. Contra este entendimento insurge-se a apelante. Embora nas conclusões 8ª, 9ª e 10º a apelante manifeste a sua inconformidade com a restrição da actividade industrial/comercial da insolvente à garagem ou cave do edifício, alegando que também se provou que a actividade da empresa era exercida no andar superior, onde funcionava o escritório, e no logradouro, onde a mercadoria era carregada e descarregada, certo é que não impugnou expressamente a decisão da matéria de facto, nem a mesma se pode considerar implicitamente abrangida pelo recurso, por não ter a recorrente cumprido os ónus que lhe são impostos quando se recorre da matéria de facto – art.º 640º do CPC. Consequentemente o presente recurso cinge-se à aplicação do direito aos factos provados na sentença, que se têm por assentes. Neste conspecto a apelante limita-se a alegar que a sentença viola gravemente a Lei Fundamental, bem como o artigo 333.º do Código de Trabalho, concluindo que a sentença é inconstitucional (conclusão 29ª). Ora a inconstitucionalidade só pode reportar-se a normas e não a sentenças. A sentença não pode ser objecto de um juízo de inconstitucionalidade. O juízo de inconstitucionalidade abrange somente as normas jurídicas e a respectiva interpretação. Contudo, como é consabido, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5º nº 3 do CPC) e com o devido respeito, a Constituição só deve ser invocada quando a Lei viole norma ou princípio Constitucional ou a sua interpretação contrarie tais princípios. Não carece de ser invocada quando a questão se resolve nos termos das normas que regulam o próprio instituto de direito em que se insere, no caso os direitos reais de garantia. O privilégio imobiliário especial é um direito real de garantia, que consiste no direito que a Lei concede a certos créditos de serem pagos pelo produto da venda de um certo e determinado imóvel, com prioridade em relação aos demais credores (são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores). (artºs 733º, 735º nº3 e 751º do CC). Os direitos reais incidem sobre coisas em sentido jurídico, ou seja, entidades do mundo externo, sem personalidade jurídica, corpóreas ou incorpóreas, dotadas de economicidade, autonomia e individualidade para serem passíveis de um estatuto de direito, i. é, serem objecto de relações jurídicas. São coisas imóveis as que assim vêm definidas no Código Civil, art.º 204º: 1. São coisas imóveis: a) Os prédios rústicos e urbanos; b) As águas; c) As árvores, os arbustos e os frutos naturais, enquanto estiverem ligados ao solo; d) Os direitos inerentes aos imóveis mencionados nas alíneas anteriores; e) As partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos. 2. Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro. 3. É parte integrante toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência. Significa isto que sendo o prédio – edifício e terreno que lhe serve de logradouro – uma unidade ou coisa materialmente indivisível (art.º 209º do CC a contrario sensu) e não se mostrando constituída a propriedade horizontal sobre o prédio (divisão jurídica – artºs 1414º e segs. do CC), todas as partes do mesmo – os diversos andares, cave, garagem e logradouro – são estruturais desse prédio e dele incindíveis. Não têm autonomia e como tal não são passíveis de uma relação jurídica de natureza real. Sobre elas não se podem constituir direitos reais de qualquer natureza. No caso em apreço os créditos da recorrente e dos demais trabalhadores da insolvente, emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, gozam de privilégios creditórios – privilégio mobiliário geral e imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual prestaram a sua actividade (art.º 333º do C.T.). O privilégio imobiliário especial, como direito de natureza real que é, incide sobre o imóvel, isto é o prédio urbano apreendido nos autos, e não sobre parte deste indivisa (seja a cave, a garagem, cada um dos pisos ou o logradouro). Os trabalhadores têm assim direito a serem pagos pelo produto da venda do imóvel e não apenas sobre o valor que vier a ser atribuído por perito a uma parte indivisa dele, onde se encontravam as máquinas da confecção. O princípio Salomónico (equitativo) aplicado na sentença recorrida não pode prevalecer sobre as supracitadas normas, por se traduzir num desvio não consentido aos “princípios constitucionais dos direitos reais” (1), no caso, ao princípio da especialidade. Este princípio, subjacente a toda a regulação deste Instituto, diz-nos que “só há direitos reais sobre coisas certas e determinadas, isto é, sobre coisas individualizadas. É que só pode haver o direito de excluir todos (só há uma obrigação passiva universal) em relação a uma coisa, se esta for certa e determinada. Não podem, por isso, constituir-se direitos reais sobre coisas não individualizadas ou indeterminadas” (2) Nem sequer há direitos reais sobre coisas individualizadas do ponto de vista físico ou material, mas que não o estão do ponto de vista jurídico. Consequentemente, o direito real de garantia (privilégio imobiliário especial) de que os créditos da apelante e das demais trabalhadoras da insolvente beneficiam, abrange todo o imóvel onde era exercida a actividade da insolvente e não apenas a cave, que dele é materialmente inseparável e que não se mostra juridicamente autonomizada. Pelo exposto impõe-se revogar a sentença. V – DELIBERAÇÃO Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a sentença recorrida, julgando improcedente a impugnação deduzida pelo Banco A, SA.. Custas da apelação pela apelada. Guimarães, 22-11-2018 Eva Almeida Maria Amália Santos Ana Cristina Duarte 1. Ao contrário do que é sugerido pela designação, estes princípios “(…) não têm qualquer matriz jurídico-constitucional, nem sequer é possível encontrá-los na Constituição da República Portuguesa. Eles pretendem traduzir um conjunto de regras e princípios orientadores da constituição, transmissão e extinção de direitos reais. Tratam-se dos princípios fundamentais que dominam a constituição e a vida deste ramo do direito.” Direitos das Coisas”, Sebenta da cadeira leccionada pelo Prof. Liberal Fernandes na FDUP, págs. 107 e seguintes. www.studocu.com/en-ie/document/universidade-do-porto/direitos-reais/summaries/direitos-reais-fdup/2076535/view 2. Obra citada, pág. 123 e segs.. |