Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães
I. Relatório
[1] Nos presentes autos com o NUIPC nº 459/05.0GAFLG do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, foi o arguido ..., acusado pelo Ministério Público e pronunciado pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs. 131º e 132º, nºs 1 e 2, als. c), g) e i), ambos do Código Penal Doravante referido por CP..
[2] Por despacho de fls. 2084-2085, vol. 11º, foi indeferido requerimento do arguido (fls. 1865 a 1869, vol 10º), insurgindo-se relativamente aos termos de perícia desenvolvida até então, bem como a solicitar o respectivo prosseguimento e a requerer, a título subsidiário, a realização de nova perícia ou a renovação daquela realizada, agora a cargo de outros peritos.
[3] O arguido interpôs recurso desse despacho (fls. 2170-2179 e 2226 a 2237), o qual foi admitido.
[4] Realizado julgamento, foi proferido acórdão em 18/07/2007 (fls. 2310-2349, vol. 11º), no qual se decidiu:
i. Julgar procedente a acusação e condenar o arguido como autor de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artºs. 131º e 132º, nºs 1 e 2, als. c), g) e i), do CP, na pena de 20 (vinte) anos de prisão;
ii. Julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Hospital de São João e condenar o arguido/demandado a pagar a quantia de €359,98 (trezentos e cinquenta e nove euros e noventa e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido e até efectivo e integral pagamento;
iii. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por ..., por si e em representação dos seus irmãos, e condenar o arguido a pagar-lhes a quantia de €115.000,00 (cento e quinze mil euros), acrescida de juros vincendos desde a data da decisão até efectivo e integral pagamento, mais o valor que se vier a apurar em execução de sentença a título de lucros cessantes.
[5] O arguido apresentou recurso desse acórdão e afirmou manter interesse no recurso referido no §3 desta decisão.
[6] Por acórdão desta Relação de 11/02/2008 (fls. 3056 a 3117, vol 14º) foi aquele recurso intercalar julgado parcialmente procedente e determinada a reabertura da audiência e a publicação de novo acórdão, após resposta do I.M.L. (Hospital Conde Ferreira) aos quesitos não respondidos e pronúncia sobre as demais questões suscitadas. O recurso interposto do acórdão condenatório não foi conhecido, por prejudicado.
1.1. Primeiro recurso intercalar
[7] Reaberta a audiência na sequência daquele aresto, no desenvolvimento da mesma foi requerido pelo arguido (fls. 3275-3276, vol. 15º) que «... o Tribunal ordene e solicite ao IML, e perito por estes a indicar, venha dar as respostas aos quesitos que a Relação de Guimarães entendeu [...] não se encontrarem respondidos...».
[8] Esse requerimento foi indeferido, por despacho de fls. 3277-3278.
[9] O arguido ... interpôs recurso dessa decisão, com formulação da seguinte síntese conclusiva Transcrição.:
1. Conforme é referido no douto despacho de 03 de Junho de 2008, aqui posto em crise, no "mui douto acórdão do venerando Tribunal da Relação de Guimarães, determinou-se que se solicitasse ao IML que respondesse aos quesitos ainda não respondidos e se pronunciasse sobre as demais questões suscitadas, nomeadamente constantes no ponto 7 ( página 61 e 66) do citado acórdão.",
2. Contudo, não foi dado, pelo Tribunal a quo, integral cumprimento ao ordenado, continuando a não se responder aos quesitos não respondidos anteriormente, insistindo-se com a mesma perita (que reconhecera dever ser a psiquiatria a responder) e, mais grave, nas mesmas respostas e esclarecimentos prestados, como se de novas respostas e esclarecimento se tratassem, o que de facto não o eram, como respondeu e reconheceu a senhora perita Dra. ..., a qual era, reitere-se, "incompetente" por razões técnicas para o fazer, devendo esses quesitos (quesitos formulados a fls. 1996) e essa respostas serem dadas por perito de psiquiatria forense;
3. O Tribunal da Relação de Guimarães não ordenou que fosse aquela perita a responder, tendo antes ordenado que "impõe-se a substituição do despacho recorrido por outro que solicite ao IML (Hospital Conde Ferreira) que responda aos quesitos (ainda não respondidos) e se pronuncie sobre as demais questões suscitadas..." o que se afigura ser bastante diferente, não possibilitando nunca o entendimento redutor do Tribunal a quo.
4. Mais ordenou o Tribunal ad quem que fosse integralmente realizada a perícia ordenada pelo próprio Tribunal a quo, o que continuou a não acontecer, numa reiterada violação do decidido e transitado em julgado. E decidido não só pelo Tribunal a quo, mas também pelo Tribunal ad quem;
5. Acresce que o Tribunal a quo e a senhora perita Dra. ..., para além de continuarem a não obter e dar resposta aos quesitos colocados — e que tinham que ser respondidos conforme ordenado por esse próprio Tribunal a quo e Tribunal da Relação de Guimarães — continuaram a limitar a perícia à autópsia psicológica por essa última realizada — a qual, conforme sempre o dissemos, foi tecnicamente deficiente —, quando o que foi solicitado e ordenado não se restringe, nem se pode restringir a essa autópsia, nem à opinião que a Sra. perita extraiu dessa perícia;
6. O Tribunal a quo fez tábua rasa do decidido e do requerido, não tendo promovido qualquer diligência útil que pudesse efectivamente dar cumprimento ao doutamente ordenado pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães — cfr. pontos 6 a 7 do douto Acórdão da Relação de Guimarães que aqui se dão por reproduzidos e integrados para todos os efeitos legais;
7. E para não o fazer o Tribunal a quo, veio este defender que o que arguido queria era uma nova perícia e que tal não fora o ordenado pela Venerando Relação de Guimarães, o que não é exacto nem correcto afirmar, porque o que se pretende e pretendia obter é que a perícia com objectos e quesitos ordenada seja integralmente realizada, independentemente do número de peritos que tenham que participar ou intervir para tal ser alcançado;
8. Mas mesmo que se entendesse que seria necessária uma "nova perícia" para responder aqueles concretos quesitos e para se dar cumprimento ao superiormente decidido e ordenado, e para se alcançar a descoberta da verdade material, o Tribunal a quo estava obrigado a ordenar a realização dessa perícia, quer a requerimento — como aconteceu sem prescindir entendimento distinto sobre "unidade" da perícia — quer oficiosamente. Não podia limitar-se a responder como o fez — como, com o devido respeito, se de um mero executor se tratasse — que "o tribunal solicitou à senhora perita subscritora do relatório inicial (fê-lo a essa e não a outro, porque senão estaríamos a falar de uma nova perícia, algo que nunca foi determinado pelo venerando Tribunal) que respondesse aos quesitos que, porventura ainda não tivesse respondido nos relatórios anteriores e nos esclarecimentos que prestou" pelo que nessa "conformidade é indubitável que se observou o determinado pelo douto acórdão da Relação, pelo que se indefere a primeira parte do requerido pelo arguido". Ao fazê-lo não deu cumprimento ao decidido, violou novamente o caso julgado formal e omitiu diligências essenciais à descoberta da verdade, o que aqui se alega para os devidos e legais efeitos.
9. Disposições violadas: As referidas supra citadas e as que V. Exas suprirão, bem como, as disposições dos artigos 672° do Código Processo Civil ex vi artigo 4° do Código Processo Penal e artigos 379° e 120º, n.° 2, d) do Código Processo Penal e artigo 32° da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que, se deverá revogar-se pelas razões supra indicadas o despacho posto em crise, substituindo-se por outro que solicite ao IML que responda as quesitos que continuaram sem ser respondidos e que deveriam e terão que ser respondidos por psiquiatria forense, completando-se e respondendo-se integralmente à perícia ordenada pelo Tribunal a quo.
[10] O magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta a esse recurso, no qual, em síntese, sustentou que «a interposição, nesta altura, do presente recurso, não deveria ter ocorrido porquanto o mesmo pode vir, a final, a revelar-se como um mero acto inútil» e que, por isso, dele não se deveria conhecer; que a Srª Perita foi «indigitada» pelo IML, devendo ser a mesma a responder aos quesitos ainda não respondidos. Pugna pela rejeição do recurso, por manifestamente improcedente.
[11] Por seu turno, também o assistente apresentou resposta. Considera que todas as questões foram respondidas pela Srª Perita; que o recorrente não arguiu qualquer nulidade relativamente ao despacho impugnado, mas sim relativamente a outro despacho, o que tem como consequência a sanação de eventual vício; que não se verifica nulidade prevista no artº 379º do CPP; e que também não existe fundamento para evocar qualquer preterição das garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Termina pela improcedência do recurso.
[12] O recurso foi admitido, por despacho de fls. 3842.
1.2. Segundo recurso intercalar
[13] Por despacho proferido em 30/01/2009, a fls. 4012-4014, foram apreciados e indeferidos vários requerimentos apresentados pelo arguido, organizados pelo tribunal a quo em quatro questões, assim enunciadas:
«1. Perda de eficácia da prova produzida na audiência de julgamento, em face do disposto no artigo 328º, nº6, do CPP.
2. Violação do princípio do contraditório relativamente aos esclarecimentos prestados pela Srª perita;
3. Violação do disposto no artigo 343º, nº1, do C.P.P., porquanto o arguido foi “obrigado” a prestar declarações.
4. A audição da Srª Perita por parte do Tribunal é irregular».
[14] Inconformado, veio o arguido interpor recurso dessa decisão. Extraiu da motivação as conclusões que seguem:
1. Por Despacho de fls. ... de 30-01-2009 foram indeferidas as nulidades e irregularidades e perda da eficácia da prova suscitadas nos requerimentos apresentados pelo arguido em 16 de Setembro de 2008, 31 de Outubro de 2008, 27 de Novembro de 2008 e 16 de Dezembro de 2008, relativamente à perda da eficácia da prova produzida na audiência de julgamento, em face do disposto no artigo 328°, n.° 6 do C.P.P; à violação do princípio do contraditório relativamente aos esclarecimentos da Sra. Perita; à violação do disposto no artigo 343º, n.° 1 do CPP, porquanto o arguido foi "obrigado"a prestar declarações e à audição da Sra Perita por parte do tribunal irregular.
2. Dispõe o art.328.°, n.°1, do Código de Processo Penal, que «a audiência é contínua, decorrendo sem qualquer interrupção ou adiamento até ao seu encerramento.». Consagra-se aqui o princípio processual da concentração ou da continuidade da audiência. A prossecução tanto quanto possível unitária e continuada de todos os termos e actos processuais, em que se traduz o princípio processual da concentração, embora enforme todo o decurso e fases do processo, assume todo o seu significado e relevo na audiência de julgamento, uma vez que esta se pauta pelos princípios da oralidade e imediação (cfr. entre outros, os artigos 355.°, 360.° e 363.° do Código de Processo Penal).
3. Debruçando-se sobre a oralidade e imediação refere o Prof. Figueiredo Dias que «Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais." - cfr. Direito Processual Penal, 1° Vol, Coimbra Ed., 1974, páginas 233 a 234 .
4. Efectivamente, só com uma audiência unitária e continuada, que decorra o mais possível sem interrupções ou adiamentos até final, permanece a necessária relação de proximidade entre o Juiz e os participantes no julgamento, que permite àquele obter uma percepção própria da prova, designadamente sobre a personalidade do arguido e a credibilidade das declarações e depoimentos prestados pelos participantes processuais, que haverá de ter em consideração na fundamentação da sentença.
5. A estreita ligação entre o princípio da continuidade da audiência e o princípio da imediação vislumbra-se no regime que o art.328° do Código de Processo Penal fixa para as interrupções e para os adiamentos.
6. A não repetição da prova produzida na sessão/sessões anterior/es configura uma omissão susceptível de configurar o vício da nulidade a que alude o art.120.°, n.° 2, alínea d), do C.P.P., que oficiosamente ou a requerimento deve logo ser suprida pelo tribunal de julgamento.
7. O acórdão do STJ n.° 11/2008, datado de 29 de Outubro de 2008, fixou recentemente jurisprudência no sentido de que «Nos termos do artigo 328.°, n.° 6, do Código de Processo Penal, o adiamento da audiência de julgamento por prazo superior a 30 dias implica a perda da eficácia da prova produzida com sujeição ao princípio da imediação. Tal perda de eficácia ocorre independentemente da existência de documentação a que alude o artigo 363.° do mesmo diploma.» DR, I Série, de 11 de Dezembro de 2008. — cfr. Acórdão de 28 de Janeiro de 2009, do Tribunal da Relação de Coimbra.
8. Dispõe o artigo 328°, n.° 6 do Código de processo Penal: " O adiamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, perde eficácia a produção de prova já realizada".
9. Ora, no caso dos autos, deveria ter sido reconhecida e declarada a perda da eficácia da prova já realizada na presente repetição do julgamento, uma vez que, sem prescindir ter a audiência de julgamento sido retomada nos dias 30 de Junho de 2008, 21 de Julho de 2008, 14 de Agosto de 2008, e 12 de Setembro de 2008, os actos ou prova produzida nessas continuações estão feridos de nulidade/irregularidade ou mesmo de inexistência jurídica, pelas razões que infra se referirá, pelo que tendo sido a audiência apenas retomada validamente no dia 4 de Junho de 2008, já tinham decorrida mais de cem (100) dias, nos termos do disposto no nº 6 do artigo 328° do Código Processo Penal, a prova produzida e realizada já perdeu eficácia.
10. Resulta dos autos que apesar de o Tribunal a quo ter violado o disposto no artigo 328° continuou a efectuar diligências, nomeadamente: na audiência de julgamento de 30 de Junho de 2008, sem que fosse dado qualquer conhecimento ao arguido, quer da realização da diligência de prestação de esclarecimentos por parte da Sr.a Perita ..., quer dos fundamentos de facto e de direito que fundamentaram a sua convocação e a prestação de declarações ou eventuais esclarecimentos complementares, veio a mesma a ser ouvida, sem que qualquer verdadeira ou nova questão lhe fosse colocada, em manifesta violação do disposto no artigo 340° do Código Processo Penal, sendo tal diligência absolutamente irrelevante para o objecto do processo ou para a descoberta da verdade, afigurando-se ser apenas uma diligência meramente dilatória, com único e exclusivo objectivo de assegurar a continuidade da audiência e assim tentar impedir a perda da eficácia da prova.
11. Acresce que não foi sequer respeitado o contraditório, não tendo sido dado conhecimento prévio, nem posterior, dos fundamentos de facto e de direito que motivaram a prestação de novos esclarecimentos por parte da senhora perita, nem mesmo da realização da própria diligência de prova, limitando-se o Ilustre Colectivo a entrar na sala de audiências e depois de um minuto e quinze segundos de diligência absolutamente irrelevante para o objecto do processo e para a descoberta da verdade, a interromper a audiência e designar nova data de continuação de audiência de julgamento. Situação que se repetiu em várias outras sessões de julgamento, sempre com a presença da Sra Perita, a qual nada de novo trouxe ao processo. Foram violados o disposto no nºs. 1 e 5 do artigo 32 da Constituição da República Portuguesa, bem como o disposto nos artigos 158°, 327°, 328°, e 340° do Código de Processo Penal, o que tudo se invoca para os devidos e legais efeitos.
12. Como se defende no Acórdão do Tribunal Constitucional de 21 de Outubro de 1997 "O contraditório surge como regra orientadora da produção pelo tribunal de um juízo que interfira com o arguido, para além de se justificar pela defesa de direitos. É, assim, o princípio do contraditório expressão do Estado de direito democrático e, nessa medida, igualmente das garantias de defesa.", e que foi no caso dos autos foi violado.
13. Acresce e no que respeita às declarações do arguido, na diligência de 21 de Julho de 2008, foi violado o disposto no artigo 343°, n.° 1 do Código de Processo Penal e essa violação fere de nulidade a prova produzida e a diligência em que a mesma teve lugar, nos termos do disposto no artigo 343°, n.° 1, 126°, n.° 3, todos do Código de Processo Penal e artigo 32°,n.° 1 e 8 da Constituição da República portuguesa, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos.
14. Situação idêntica à verificada na diligência de 21 de Julho de 2008 ocorreu na diligência de 14 de Agosto de 2008, com a particularidade de que nesta diligência o arguido expressou e renovou o seu desejo de não prestar declarações, vontade essa que não foi respeitada, tendo o Mmo. Juiz Presidente questionado na mesma o arguido sobre as suas condições sociais, apenas e exclusivamente para repetir ou confirmar dados constantes do relatório social — cfr. gravação da diligência de 14 de Julho de 2008, gravada em suporte digital, que aqui se dá por integrado e integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
15. Ao obrigar o arguido a prestar declarações mesmo que não sobre o objecto do processo, o Mmo. Juiz Presidente do Colectivo violou o direito ao silêncio do arguido e levou a cabo uma intromissão ilegítima na privacidade da pessoa sujeita a interrogatório, estando toda a prova produzida nessas condições ferida de nulidade não podendo ser valorada, nos termos do disposto nos artigos 343°, n.° 1 e 126°, n.° 3, todos do Código de Processo Penal e artigo 32°, n.° 1 e 8 da Constituição da República Portuguesa, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos. Acresce que na diligência de 12 de Setembro de 2008, o Tribunal a quo insistiu em questionar o arguido sobre as referidas condições sociais, tendo o arguido, novamente, invocado o direito ao silêncio, direito esse que acabou por ser respeitado, mas de forma forçada e em virtude da recusa peremptória do arguido.
16. Foram violadas as normas previstas nos artigos 97°, n.° 5, 340°, 343, n.° 1, 126, n.° 3, 327°, 328° todos do Código de Processo Penal e artigos 32°, n° 1, 5 e 8 e 205° da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que se deverá o despacho recorrido ser revogado pelas razões supra expendidas e ser substituído por outro que reconheça as nulidades e irregularidade suscitadas e a perda da eficácia da prova, ordenando-se a repetição da prova produzida no âmbito da repetição parcial do presente julgamento ordenada pelo Venerável Tribunal da Relação de Guimarães.
[15] O magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, no sentido da improcedência do recurso.
[16] Também o assistente respondeu, no mesmo sentido.
[17] O recurso foi admitido.
[18] Nesta Relação, o Ministério Público, através da Srª Procuradora Geral-Adjunta, proferiu parecer, no qual sufraga a posição assumida na 1ª instância e considera que nunca foi ultrapassado o prazo de 30 dias entre as sessões de produção de prova.
[19] Cumprido o disposto no artº 417º, nº2, do CPP, veio o arguido reiterar os fundamentos que exarou na motivação.
1.3. Recurso do acórdão condenatório
[20] Em 05/02/09, o tribunal a quo proferiu novo acórdão, nos termos do qual:
i. O arguido ... foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts.131.º e 132.º nº1 e nº2 alíneas c), g) e i) do C. Penal, na pena de 20 (vinte) anos de prisão;
ii. Foi julgado procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante Hospital de São João, e o arguido/demandado condenado a pagar-lhe a quantia de 359,80€ (trezentos e cinquenta e nove euros e oitenta cêntimos), acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido até efectivo e integral pagamento;
iii. Foi julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente por si e em representação dos seus irmãos e, em consequência condenado o arguido a pagar-lhes uma indemnização no valor de 115.000€ (cento e quinze mil euros), «a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros vincendos desde a data da decisão até efectivo e integral pagamento, mais o valor que se vier a apurar em execução de sentença a título de lucros cessantes».
[21] Inconformado, o arguido veio interpor recurso dessa decisão, pedindo, em primeira linha, a sua absolvição e a improcedência dos pedidos de indemnização civil. Extraiu da motivação as conclusões que seguem:
1. No Acórdão aqui posto em crise foram dados como provados factos que não o poderiam ter sido face á prova produzida em audiência, para além de ter sido feita uma errada qualificação jurídica, pelo que se impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto e de direito;
2. No Acórdão aqui posto em crise foram violados os princípios da presunção da inocência, da verdade material, da legalidade, da livre apreciação da prova, e também o dever de isenção e imparcialidade;
3. No Acórdão aqui posto em crise foi o aqui Recorrente condenado na pena de vinte anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, n.° 1 e n.° 2, alíneas c) g) e i) do Código Penal, bem como, nos pedidos de indemnização civil, nas quantias de, respectivamente, € 359,8 e € 115.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidas juros e, nas custas criminais do processo com taxa de justiça de 06 UC, acrescida de 1% e no mínimo de procuradoria. Quando o não deveria ter sido;
4. O Tribunal a quo deveria, na formação da sua convicção, ter sempre como presente — o que não teve — que, tal como preceitua o artigo 32°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa, "todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (...)",
5. Ora, da prova produzida em audiência não era possível, logicamente (no sentido de racionalmente, coerentemente, etc.) afirmar a presença, no caso concreto, de todos os elementos (objectivos e subjectivos) do crime trazido a Juízo, e, por outro lado, conduza, nos mesmos moldes, à conclusão de que foi o arguido o responsável pela sua ocorrência;
6. Não há, nem houve, nem era possível, a prova directa dos factos sujeitos a comprovação judicial na audiência de julgamento, ou seja, não foi, nem podia ser, produzida qualquer prova que incidisse directa ou imediatamente sobre os factos que integram o thema probandum do processo, nem sequer foram produzidos ou utilizados outros instrumentos de conhecimento e de representação judicial do facto que, ainda que não representando a realidade histórica fixada no referido thema probandum, pudessem ser-lhe reconduzidos através de uma inferência probabilística levada a cabo e assente, não em meras presunções (como aconteceu), mas sim em indícios precisos, graves e concordantes;
7. Isto que vem de escrever-se adquire, num caso como o vertente, um particular relevo, já que, para além de não ter sido produzida qualquer prova directa, é diminuta a prova indiciária reunida no processo e analisada em audiência;
8. Ora, naturalmente, neste tipo de processo, tendo em conta o concreto crime em causa e tendo em atenção a particular qualidade da alegada vítima e do alegado autor, teria o tribunal que proceder com o maior cuidado, objectividade, isenção e rigor, evitando a formulação de um juízo arbitrário ou intuitivo sobre a verificação, ou não, de um facto ou do próprio crime;
9. Mais deveria a convicção ser adquirida através de um processo racional, ponderado e maturado, alicerçado e objectivado na análise crítica e concatenada dos diversos dados e contributos carreados pelas provas produzidas, no máximo respeito pelo princípio da presunção da inocência e da verdade material, da legalidade e da democraticidade, bem como, da lealdade. Mais deveria ter sido respeitado o dever de isenção e imparcialidade. Mesmo que, na convicção dos julgadores, o respeito destes princípios e deveres pudessem resultar na impunidade de um crime que alegadamente tirou a vida a um ser humano;
10. Contudo, infelizmente, o respeito desses princípios e desses deveres que se impunham e que deveria ter sido consagrados no douto Acórdão, não ocorreu. E não aconteceu só no julgamento, mas em todo o processo, desde o inquérito até a prolação do douto Acórdão que aqui pomos em crise. Mas é só deste último que aqui recorremos pelo que só a este nos vamos cingir;
11. O Tribunal a quo, na formação da sua convicção, não teve, antes de mais, o cuidado de cotejar — ou fê-lo de forma insuficiente e deficiente — toda a prova documental (a qual não foi sequer toda examinada na audiência de julgamento) e pericial existente nos autos com a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento. Aliás, para além de não ter tido esse cuidado e rigor nesse cotejo, também não teve o tribunal, sequer, cuidado e rigor na analise individual dessas provas e, muito menos, na produção de um juízo crítico e sua descrição e explanação, por forma a que o mesmo seja conhecido e habilite uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório;
12. Aliás, salvo o devido respeito e melhor opinião, o Acórdão aqui posto em crise viola a obrigação de fundamentar, de facto e de direito, todo e qualquer acto decisório proferido no decurso do processo (art. 97°, n.° 4 do Código Processo Penal e 205°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa), bem como, viola as garantias de defesa do processo criminal (art. 32° da Constituição da República Portuguesa), uma vez que, na nossa opinião, para além de este não se pronunciar efectivamente e fundadamente sobre as questões de facto e de direito colocadas pelo aqui recorrente, nem sobre as diligências de prova requeridas, não habilita ou possibilita ao recorrente e ao tribunal superior — no caso este Tribunal da Relação de Guimarães — fazer uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório, coarctando o exercício, de forma plena, do direito ao recurso;
13. O Tribunal a quo, com pontuais excepções, limitou-se a dizer que a sua convicção quanto aos factos provados se baseou na apreciação crítica daquelas provas, sem contudo explicar a sua concreta valoração e em que medida as mesmas contribuíram para que esses factos fossem dados corno assentes ou então como não provados, sendo certo que várias das provas produzidas em audiência apontavam em sentido divergente ou contraditório;
14. Acresce que, reiteramos, não teve o Tribunal a quo o cuidado e o rigor de analisar toda a prova produzida e cuja valoração era legalmente possível e exigível. Nomeadamente, e a título de exemplo refere-se, que o Tribunal não analisou, nem valorou, entre outras, a prova documental e pericial junta aos autos, nomeadamente de fls. 346 a 352 (relatório de autópsia), 515 a 556 (reportagem fotográfica), 418 (relatório de episódio de urgência no Hospital de S. João), 837 a 923 (juntos com a contestação), 926 a 950 (trabalho concluído pelo arguido no dia 2/05/05, respectivo print screen (fls. 934) comprovativo da execução a laboração nesse trabalho na data e hora aí indicada, e recibo de farmácia), 1012 a 1013 (historial clínico da vítima no Departamento Psiquiatria do Hospital São Gonçalo posterior a Setembro de 2003), 1056 (Declaração da PsicoFelgueiras), 1142 (extracto de conta Farmácia Ferreira), 1168 a 1175 (articulado contendo declarações falecida ...), 1312 a 1323 (folhetos e informação sobre fármacos tornados pela vítima), 1374 a 1442 (detalhe do telemóvel [alegadamente] da vítima), 1466 e 1507 (ofícios dos peritos a requererem elementos que vieram completamente a serem ignorados na perícia realizada pela sra. perita ...), 1514 a 1526 (receitas médicas passadas por médicos psiquiatras que consultaram a vítima depois de Setembro de 2003 e até próximo da data do processo vitimação), 1939 a 1942 e 2033 a 2035 (esclarecimentos prestados [manifestamente insuficientes e deficientes] e respostas aos quesitos inconclusivas) e Apenso 1 contendo diários clínicos da vítima durante o seu internamento nos Cuidados Intensivos da Unidade de Queimados do H.U.C. — Hospitais da Universidade de Coimbra, prescrições e registos do Serviço de Patologia Clínica, bem como, da Unidade Funcional de Queimados e dos Serviços de Enfermagem;
15. Aliás este Apenso 1 nem sequer foi conhecido da defesa do arguido até momento posterior a leitura do primitivo Acórdão, porque nunca exibido quando o acesso ao processo foi solicitado e em momento algum foi o mesmo referido durante a primitiva audiência de julgamento, apenas o sendo aquando da confiança do processo para preparação do presente recurso. Só aí foi o mesmo conhecido, sendo certo que o mesmo contém todos os dados clínicos e informações relativas ao período de internamento da vítima naquela unidade hospitalar, os quais são (ou eram) de uma relevância extrema para a boa decisão da causa e que foram totalmente ignorados pelo Tribunal a quo, e motivou a arguição da nulidade por omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade, e que certamente, se fossem valorados (conjugadamente com a demais prova), imporiam decisão diversa, nos termos e pelas razões que infra explanaremos;
16. Encontra-se errada e incorrectamente julgada a matéria de facto vertida nos parágrafos 1 a 10, 12 a 14, 16, 20, 21 dos "Factos Provados", páginas 1 a 4 do douto Acórdão, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
17. São inúmeras as provas que impõe decisão diversa e que supra foram referidas e indicadas com respectiva fundamentação de facto e de direito e que tudo aqui se dá por integrada por brevidade e por reproduzidas para todos os efeitos legais;
18. Pelas razões supra expostas e aqui integradas, toda a matéria dada como provada pelo tribunal a quo nos seus parágrafos 1° a 10°, 12° a 14°, 16°, 20° a 21 (dos factos provados e supra reproduzida), deveria ter sido dada como não provada;
19. Ao não o fazer o tribunal a quo violou o princípio da verdade material, o principio da presunção da inocência, o dever de imparcialidade, o principio do in dubio pro réu, o principio da legalidade e das garantias do processo crime. Princípios estes que a livre convicção do julgador não pode postergar. Ao ter julgado de facto de outra forma, para além de haver uma errada avaliação e valoração da prova produzida em julgamento e contradição insanável entre a prova produzida e a matéria de facto assente, violou, o Tribunal a quo no seu douto Acórdão, reitere-se o princípio da presunção de inocência do arguido, as garantias do processo crime, o princípio da verdade material, e o principio da legalidade e o principio da livre apreciação da prova;
20. Do que se vem de expor, e que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, resulta que não se provou ou não se produziu qualquer prova de que o arguido Luís Gonçalves praticou o crime de homicídio qualificado em que foi condenado;
21. Sem prescindir, mesmo que se tenha por certo que foi o arguido Luís o agente do crime — o que só se refere para efeito de raciocínio —, nenhuma diligência de prova foi ordenada, nem foi produzida qualquer prova, no sentido de se apurar se a intenção deste era matar a vítima ..., ou se apenas era assustar a vítima com a prática de um alegado acto preparatório de um crime, que depois acidentalmente veio a ocorrer, ou se pelo contrário era sua intenção desfigurar ou marcar a vítima por esta tornar a sua vida num inferno e por esta ameaçar atacar e marcar a sua mulher ... através do mesmo método (fogo) fazendo-a intencionalmente abortar;
22. E mesmo assim, sem que se tenha compreendido e comprovado a etiologia do crime, não teve o Tribunal a quo qualquer dúvida em condenar o arguido de um crime de homicídio qualificado, sem sequer ter recolhido provas ou identificado comportamentos que claramente revelassem intenção de matar;
23. Mais a mais, que a (alegada) utilização de gasolina e na concreta e diminuta quantidade que terá sido utilizada (não se provou sequer a quantidade efectiva e alegadamente despejada), não se afigura um meio idóneo para matar alguém — independentemente de tal poder acontecer —, nem muito menos um qualquer agente do crime, que pretendesse efectivamente matar alguém, abandonaria a vítima sem ter a garantia de que esta efectivamente estava morta, principalmente quando, de acordo com a versão da vítima e da acusação esta fugiu, e depois de se ter iniciado a combustão da roupa que vestia, de imediato se começou a despir e rebolou no chão;
24. Se efectivamente fosse intenção do arguido matar a vítima, e tendo o crime sido alegadamente cometido num local ermo — o que resulta da reportagem fotográfica —, facilmente teria o arguido — a admitir-se a pratica do crime o que se faz para mero efeito de raciocínio — concretizado essa sua intenção ou concluído o seu "objectivo", bastando recorrer à força física para impedir a vítima de abandonar o local e recorrer a auxílio médico, ou por exemplo poderia recorrer a um objecto contundente para bater na vítima e assim atordoar ou provocar perda de consciência até se concretizar ou ocorrer a morte;
25. Ou ainda poderia utilizar uma das alegadas viaturas presentes no local, e nas circunstâncias do crime descritas na acusação, para atropelar a vítima .... O jipe da vítima era o meio ideal para um atropelamento, porque, para além da versatilidade para perseguir a vítima em qualquer terreno, a sua utilização permitiria garantir ao arguido que, se neste veículo resultassem quaisquer vestígios ou marcas resultantes de colisão com a vítima, dificilmente poderia ser a si associados, e nem a presença de vestígios biológicos dentro da viatura o poderiam comprometer muito, uma vez que era pública a sua relação com a arguida e quase diárias as suas incursões no monte e práticas sexuais de relevo naquela viatura, pelo que haveria naturalmente inúmeros vestígios, nomeadamente impressões digitais, cabelo, esperma e líquido seminal, etc., pelo que dificilmente os investigadores conseguiriam distinguir os vestígios anteriores ou contemporâneos do crime;
26. Pelo exposto, salvo o devido respeito e melhor opinião, nunca poderia ter o aqui arguido sido condenado de um crime de homicídio qualificado — crime este que o arguido aqui expressamente declara, novamente, não ter cometido;
27. Quanto muito deveria, nesse caso, e admitindo para efeito de raciocínio, a sua intervenção nos factos de que resultaram a lesões dos autos na vítima ..., ter sido acusado de um crime de ofensa à integridade física grave agravada pelo resultado, nos termos das disposições conjugadas do art. 144° e art. 145° do Código Penal, se não mesmo deveria antes ter sido acusado pelo crime de ofensa à integridade física privilegiada, p. e p. pelo art. 147° do Código Penal;
28. Mais a mais que é nosso entendimento e conforme resulta dos autos e da própria matéria de facto dada por assente e ainda do depoimento da testemunha ..., a vitima ... veio a morrer em virtude de uma infecção contraída por bateria multirresistente contraída durante o internamento nos Hospitais da Universidade de Coimbra, pelo que não há um nexo de causalidade entre a acção e a morte, ou quanto muito há uma concausalidade;
29. Pelas razões supra expostas, para além de não existir a prática de qualquer crime, também afigura-se que a indemnização em que o arguido foi condenado foi excessiva e desajustada, principalmente porque não foram produzidas quaisquer provas que permitissem demonstrar efeitos e consequências psicológicas nos assistentes — apesar de naturalmente as mesmas terem existido;
30. Pelo exposto deviam e devem improceder os pedidos de indemnização civil deduzidos nestes autos;
31. No que se refere a medida concreta da pena, não podemos deixar e referir que a mesma (pena) visa a protecção dos bens jurídicos violados (prevenção geral positiva) e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a medida concreta da pena exceder a culpa do agente (art. 40° do Código Penal), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem contra e a favor do agente (n.° 2 do artigo 72° do Código Penal);
32. Acresce que, sempre que forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art. 70° do Código Penal);
33. Ora, no caso dos autos, sem prescindir o supra referido quanto à inocência do arguido, sempre se dirá que, a pena concretamente aplicada (20 anos) é manifestamente exagerada e desajustada não tendo o Tribunal a quo valorado nenhuma circunstância que depusesse a favor do arguido, nem sequer o facto de este ser primário, ter o comportamento ajustado ao ordenamento jurídico - com (hipotética) excepção no crime dos autos se se considerar o seu agente -, estar socialmente integrado e ser bem visto pela comunidade de origem, ter um filho de dois anos de idade já nascido após a sua detenção, ter apoio familiar da sua esposa e restante família alargada, ser querido por parte dos seus alunos apesar do conhecimento concretos que estes têm dos factos imputados;
34. Aliás o Tribunal certamente por erro ou absoluta incompreensão do alegadamente sucedido e da personalidade do arguido, afirma sem qualquer suporte factual que o permitisse fazer, "uma tendência para delinquir que urge combater", quando do concreto crime e da prova produzida resulta, quanto muito, e admitindo a prática de um crime e a matéria de facto assente, que o mesmo é crime passional, isolado, não repetível.
35. Pelo exposto, e sem prescindir o supra referido, e admitindo-se a prática de um crime de homicídio qualificado, deveria o Tribunal a quo ter optado por uma pena inferior, próxima do limite mínimo, entre os 12 e os 14 anos de idade.
36. Disposições violadas: as referidas supra e as V. Exas. suprirão, nomeadamente, artigo 32° da Constituição da República Portuguesa, os artigos 119°, n.° 2, d), 124°, 127°, 151° a 163º, 340º, 348°, 350°, 354°, 355°, 356° 368°, 369° do Código Processo Penal e 70º, 71º, 72°, 131°, 132°, 133°, 144°, 145° do Código Penal e 640° e 641° ex vi art. 4° do C.P.P.;
37. Nos termos do n.° 5 do art. 412° do C.P.P., o aqui arguido declara que mantém interesse em todos os recurso interpostos e retidos.
Termos em que, se deverá revogar a douta sentença nos termos e pelas razões supra expendidas, absolvendo o arguido ou, quanto muito, reenviando-se o processo para novo julgamento.
[22] A magistrada do Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu a esse recurso. Em síntese – não formula conclusões -, refuta a violação do princípio in dubio pro reo e salienta que da fundamentação do acórdão não resulta que o Tribunal tenha ficado com dúvida razoável sobre o que se passou. Considera que a prova foi adequadamente ponderada, correcto o enquadramento jurídico-penal efectuado e ajustada a pena fixada. Termina pela improcedência do recurso.
[23] Também o assistente apresentou resposta, igualmente no sentido da inverificação da violação da presunção de inocência e do princípio in dubio pro reo. Antes considera que a decisão condenatória foi devidamente fundamentada, com correcto exercício do princípio da livre apreciação da prova e adequada fixação da dosimetria da pena. Conclui que o recurso do arguido não merece provimento.
[24] O recurso foi admitido.
[25] Foi proferido exame preliminar e colhidos os vistos, após o que procedeu a audiência.
II. Fundamentação
2.1. Questão prévia
[26] Antes de iniciar a apreciação dos recursos e enunciar as questões neles suscitas, importa tomar posição sobre questão que se coloca num plano prévio, a saber, a da propriedade da junção de um documento, constante de fls. 3774 a 3791, a que alude na motivação do 1º recurso intercalar, bem como dois documentos entregues com a motivação do 2º recurso intercalar, e o respectivo conhecimento por este Tribunal.
[27] Dispõe o artº 165º, nº1, do CPP, que «o documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência». Resulta, então, desse normativo que o momento final da cognoscibilidade da prova documental coincide com o encerramento da audiência em primeira instância, o que veda a sua apresentação - e apreciação - em fase de recurso.
[28] Com efeito, os recursos constituem remédio jurídico para erros de julgamento e não forma de obter decisões sobre questões ou matéria que não foram discutidas e decididas pelo tribunal a quo, salvo quando a lei determina o seu conhecimento oficioso, o que aqui manifestamente não acontece. Assim, e por regra, a junção em fase de recurso de documento não permite o seu conhecimento, razão por que não serão conhecidos os documentos de fls. 3774 a 3791 e de fls. 4357 a 4365.
2.2. Âmbito dos recursos
[29] É pacífica a doutrina e jurisprudência Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 24/03/99, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso Cfr., por exemplo, art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP e acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95.. Tomando as conclusões dos três recursos, as questões colocadas e a que cumpre dar resposta são as seguintes, colocadas pela ordem correspondente às consequências potenciais da respectiva procedência:
Do primeiro recurso intercalar:
i. Nulidade da decisão, nos termos do artº 379º do CPP;
ii. Violação de caso julgado formado pelo Acórdão desta Relação de 11/02/2008;
iii. Nulidade processual, por omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade;
Do segundo recurso intercalar:
iv. Perda de eficácia da prova, por efeito do disposto no artº 328º, nº6, do CPP, tendo como sub-questões a violação do princípio do contraditório e a nulidade da prova, por violação do disposto no artº 343º, nº1 do CPP e intromissão na vida privada;
v. Nulidade processual, por omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade;
Do recurso do acórdão condenatório
vi. Nulidade do acórdão, por falta de fundamentação (exame crítico da prova);
vii. Valoração de prova proibida;
viii. Impugnação alargada da decisão em matéria de facto, com referência aos §1 a 10, 12 a 14, 16, 20 e 21 dos factos provados;
ix. Insuficiência da matéria de facto para a decisão;
x. Inverificação do crime de homicídio, por ausência de nexo causal entre a conduta do arguido e a morte;
xi. Verificação de crime de ofensa à integridade física grave, agravado pelo resultado, ou crime de ofensa à integridade física privilegiado;
xii. Dosimetria da pena.
xiii. Responsabilidade civil e medida da obrigação de indemnizar.
[30] Importa aqui esclarecer que o recorrente sustenta nas conclusões do recurso relativo ao acórdão condenatório ter-se verificado ainda outra nulidade processual, por omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade. Porém, a sua formulação na conclusão 15º remete para impulso não apreciado na decisão recorrida - «... motivou a arguição de nulidade por omissão de diligência essenciais para a descoberta da verdade...» - o que afasta a inscrição daquele problema no objecto do presente recurso, circunscrito às questões apreciadas na decisão recorrida, ou que deveriam tê-lo sido. É que o arguido estará, ao que nos parece, a aludir à arguição constante de fls. 4113-4114, conhecida e indeferida pelo despacho de fls. 4115. Despacho esse que, porque não impugnado por recurso, formou caso julgado formal quanto à pretensão de ver declarada tal nulidade, que sempre conduziria ao afastamento do vício sustentado (artº 641º do CPC ex vi artº 4º do CPP).
2.3. Primeiro recurso intercalar
2.3.1 Dos elementos pertinentes ao recurso
[31] Numa primeira aproximação às questões colocadas no primeiro recurso intercalar, supra elencadas, importa tomar a decisão recorrida, a fls. 3277-3279, como ponto de partida necessário. É este o seu teor Transcrição, com correcção de erros de escrita evidentes.:
No mui douto acórdão do venerando Tribunal da Relação de Guimarães, determinou-se que se solicitasse ao IML que respondesse aos quesitos ainda não respondidos e se pronunciasse sobre as demais questões suscitadas, nomeadamente constantes no ponto 7 (página 61 e 66) do citado acórdão.
Em cumprimento do mesmo, o tribunal solicitou à senhora perita subscritora do relatório inicial (fê-lo a essa e não a outro, porque senão estaríamos a falar de uma nova perícia, algo que nunca foi determinado pelo venerando tribunal) que respondesse aos quesitos que, porventura ainda não tivesse respondido nos relatórios anteriores e nos esclarecimentos que prestou.
A fls. 3211 a 3214 e fls. 3133 e 3134 veio a senhora perita responder a tais questões, tendo hoje prestado os esclarecimentos reputados por convenientes por todos os intervenientes processuais.
Analisando tais depoimentos e esclarecimentos não vislumbramos em que medida é que tenha ficado algo por responder, sendo que a senhora perita realçou que não entendeu necessidade de solicitar uma perícia psiquiátrica complementar, em virtude de não ter encontrado indicadores de patologia psiquiátrica, da presença de ciúme patológico e indícios da presença de delírios.
Nesta conformidade é indubitável que se observou o determinado pelo douto acórdão da Relação, pelo que se indefere a primeira parte do requerido pelo arguido.
Quanto à segunda parte do referido requerimento, foi dito pela senhora perita, na presente audiência de julgamento, que no período em que esteve internada no hospital universitário de Coimbra, a vítima mortal teve períodos determinados de crítico e de delirium. Além disso, esclareceu que no mesmo dia tais estados poderiam alternar, referindo também que qualquer pessoa “normal” e muito mais qualquer profissional do ramo da Saúde (médicos ou enfermeiros) bem como pessoas próximas da vítima mortal (familiares) conseguiriam distinguir estes dois estados.
Por fim, também declarou que não esteve presente aquando das declarações da vítima mortal às testemunhas.
Ora, perante tais esclarecimentos indubitável que a audiência requerida não assuma qualquer relevância, nem pode conduzir a qualquer resultado, pois que, e para além de não se saber as datas concretas em que essas declarações foram prestadas também não se poderia concluir pela simples consulta aos relatórios médicos diários se a vítima mortal, estava em estado de delirium ou de crítica (conforme supra referimos, tais estados poderão alternar no próprio dia).
Por último, convém ainda referir que os depoimentos que tais testemunhas prestaram em audiência de discussão e julgamento e que resultaram do que ouviram dizer à vítima mortal, serão apreciados segundo os princípios da imediação da prova e da livre convicção do julgador.
Nesta conformidade e por tudo o exposto indefere-se o requerido pelo arguido.
Custas do incidente pelo arguido fixando a taxa de justiça em 4 Ucs.
Notifique.
[32] Essa decisão entronca no problema mais discutido nos presentes autos, a saber, o do alcance do exame requerido e ordenado pelo Tribunal a fls.1024 e 1025, bem como a qualificação e a qualidade - ou a falta delas na perspectiva do arguido – da actividade pericial efectuada. Perante o recorte com que a questão vem colocada – violação de caso julgado – cumpre ter em atenção toda a sua evolução nos autos, para o que se julga adequado transcrever a cronologia processual inscrita no Acórdão desta Relação de fls. 3056 a 3117, vol 14º, que se diz desrespeitado, até porque ajuda a contextualizar, e a compreender, o sentido daquela decisão:
a) Na sua contestação (cfr. fls. 802 e seguintes - vol. 4° o arguido recorrente depois de salientar que sem se ter a certeza que ocorreu um crime — crime que expressamente declara não ter cometido - nunca poderia ter sido acusado e pronunciado da sua autoria, que o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal deveriam ter-se socorrido de toda a actividade probatória científica ao seu dispor para compreender e reconstituir todo o processo de vitimação e definir a concreta etiologia - se criminosa, se acidental, se natural - alega, nos seguintes termos:
28°
E para termos essa certeza ou pelo menos termos indícios suficientes de se ter verificado um crime, deveria, o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal, ter-se socorrido de toda a actividade probatória científica ao seu dispor para compreender e reconstituir todo o processo de vitimação e definir a concreta etiologia - se criminosa, se acidental, se natural.
29°
A imolação é um dos métodos a que diversos indivíduos, que se encontram numa situação de autodestruição intencional desencadeada maioritariamente por factores sócio-ambientais (desintegração social, familiar, geográfica, etc) e endógenos ou biopsíquicos, recorrem para por termo a vida - cfr. estudo sobre o "Perfil do suicida na região centro de Portugal'', "Revista Brasileira de Medicina Legal", www. revistadernedicinalegal.com.br que se juntou com RAI e que por brevidade se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.
30°
E no caso presente essa hipótese não deve ser afastada, pelo menos liminarmente, uma vez que a vítima ..., como procuraremos demonstrar, sofria, em virtude de factores endógenos e exógenos, onde se incluem diversos acontecimentos marcantes e traumáticos, nomeadamente a morte violenta do marido há apenas 3 anos - foi vítima de homicídio ocorrido no dia 7 de Fevereiro de 2002 -, de um transtorno ou distúrbio psiquiátrico ou de personalidade - quando produz a antecedente afirmação, não está o requerente a querer diabolizar a vitima ou pôr em causa a sua honra ou bom nome ou a sua memória, mas antes a fazer uma análise objectiva de comportamentos presenciados e vivenciados e de que foi vítima o aqui requerente e nalguns casos a sua família, que infra relataremos. psiquiátricos e clínicos e ser traçado o seu percurso e personalidade - cfr. nesse sentido sumário de prelecção de Prof. J. Pinto da Costa que se junta em anexo sob doc. n.° 1 e que por brevidade se dá por integrada e reproduzida para todos os efeitos legais.»
Em consonância como que acima ficou exposto requereu, em sede de meios de prova, o seguinte:
"1) (...) que seja realizada perícia psiquiátrica forense ex post facto (ou autópsia psicológica) à vítima ..., para se avaliar a sua personalidade e suas características psíquicas e eventuais patologias (transtornos ou distúrbios psiquiátricos, depressões, ciúme patológico, delírios, etc...) bem como, para se historiografar todos os antecedentes psiquiátricos que sobrevieram à morte violenta do marido e antecederam os factos que deram origem aos presentes autos e para se elaborar diagnóstico diferencial. Para o efeito deverão ser facultados aos peritos, para além de todos os elementos que infra se requerem, cópias do presente articulado e das declarações da falecida ..., e cópias dos processos que tiveram termos por este Tribunal sob o número 278/05.3GAFLG, bem como, no Tribunal de Fafe, pelo 2° Juízo, sob o número 261/05.9GAFAF, solicitando para o efeito a emissão das competentes certidões, bem como, da declaração amigável de acidente automóvel e auto de diligência ou de ocorrência que venha a ser junto pela GNR de Felgueiras (e que infra se requer). Mais se requer que seja oficiado ao assistente ... para este vir aos autos informar a identidade dos médicos que assistiam clinicamente e psiquiatricamente a sua mãe ..., bem como, venha informar os autos se a sua falecida mãe tinha familiar ou amiga a trabalhar ou a ser proprietária de uma farmácia no concelho de Mesão Frio, e em caso afirmativo, qual a sua identidade e qual a identificação da referida farmácia, para que possam ser solicitadas informações sobre eventuais medicamento fornecidos, dados esses que deverão ser facultados posteriormente aos peritos que levarem a cabo supra requerida perícia à falecida ..." (fls. 827-828-4°vol.)
b) Este requerimento já fora feito em fase de instrução (cfr. fls. 446-3°vol) tendo sido indeferido pela M.a Juiz de Instrução [cfr. despacho de fls. 610- e verso-3°vol: "Indefere-se a requerida realização da perícia psiquiátrica, pois que a mesma dificilmente será conclusiva, uma vez que vítima já faleceu (...)"].
No decurso do debate instrutório foi indeferida a arguição de nulidade de tal despacho [cfr. despacho de fls. 632-633-3°vol.: "Apenas uma nota adicional quanto ao indeferimento da diligência requerida sob B9, dizendo-se nesta sede que se encontram nos autos declarações de vários médicos e inclusivamente um relatório psiquiátrico no que tange ao estado psiquiátrico da vítima, para além de que , para obviar quaisquer dúvidas, foi por mim contactado telefonicamente um médico psiquiatra que faz peritagens médico-legais a fim de confirmar a conclusividade de tal perícia, tendo o mesmo informado os termos que constam do despacho de fls. 611”].
*
c) Em 23 de Maio de 2006, no início da audiência de julgamento, (posteriormente adiada sine die), depois de admitida a contestação foi concedida "a palavra aos intervenientes processuais para se pronunciarem quanto aos meios de prova na contestação"( acta de fls. 956-968- 6° vol). Na ocasião, conforme consta da respectiva acta, pelo Exmo Procurador da República foi dito:
«Pelo arguido foi, além do mais, requerido que se procedesse a uma perícia
psiquiátrica "post factum" para avaliar a personalidade da vítima,
nomeadamente eventuais transtornos psíquicos, distúrbios, depressão, ciúme patológico, tendo para o efeito e previamente procedido naquela fase processual a uma descrição de onde flui que seria a vítima que nutria pelo arguido um ciúme doentio, perseguindo-o e chegando mesmo a tentar atropelá-lo, juntando como documentos comprovativos elementos de processos que chegaram a correr termos e relacionados com esse factualismo.
Partiu dai o arguido para uma segunda fase desse historial e referente à data da ocorrência dos factos descritos na pronúncia. Entendermos como se tratando de um processo de vitimização da falecida que eventualmente poderá ter culminado mesmo na tentativa de suicídio através de um processo de imolação.
Atento, essa descrição, considera o arguido essencial se proceda à de esclarecimentos, em primeiro lugar à personalidade psiquiátrica da vítima no período até à ocorrência em causa nos autos do dia 02.05.2005, nesta parte deverão os Senhores Peritos esclarecer, nomeadamente, se todos os elementos de que a seguir falaremos e que deverão ser postos ao seu dispor resulta que a vítima pretendia abandonar o relacionamento amoroso que tinha com o arguido, ou, pelo contrário, pretendia pressionar o arguido a manter com ela esse relacionamento.
Ainda, durante esse período deverão os Senhores peritos esclarecer sobre se daqueles elementos resulta que a vítima tinha para com o arguido um ciúme patológico, ou, se pelo contrário, a vítima era antes alvo de um ciúme patológico do arguido para consigo.
Quanto à segunda questão atrás referida e que tem haver com o que se passou no dia 02.05.2005 e posteriormente a essa data deverão os Senhores peritos esclarecer, nomeadamente, se as declarações prestadas pela vítima aos elementos da Polícia Judiciária e o relato que a vítima fez dos factos a todos aqueles que com ela contactaram depois destes, nomeadamente, profissionais de saúde do Hospital de Felgueiras (médicos, enfermeiros e auxiliares de acção médica), agente da G.N.R. que neste Hospital tomou conta da ocorrência, profissionais de saúde dos Hospitais da Universidade de Coimbra onde aquela passou o restante tempo de vida, se tais declarações correspondem a uma manifestação de verdade, ou, se pelo contrário, mais não são do que um modo de se vingar e prejudicar o arguido.
Deverão igualmente os Senhores peritos esclarecer se os delírios que a vítima apresentou enquanto esteve internada naqueles Hospitais de Coimbra correspondem a uma perturbação psicológica ou psiquiátrica sem qualquer nexo, ou, se pelo contrário, correspondem ao medo e pavor de alguém que foi vítima de uma agressão efectuada nos termos em que é descrita no despacho de pronuncia.
Por último, e ainda, sobre esta fase deverão os Senhores peritos esclarecer se a vítima apresenta um quadro psiquiátrico de propensão suicida, ou, pelo contrário, seria pessoa com forte motivação para viver e querer viver. Para tal perícia, deverá o Tribunal a nosso ver, disponibilizar o máximo de elementos e de informações que possam permitir aos peritos a realização da diligência.
Assim, e para além dos elementos clínicos referidos na contestação deverão ser fornecidos aos Senhores peritos, nomeadamente, para a parte da perícia que se deverá referir ao período que antecedeu a ocorrência do dia 02.05.2005, todos os elementos recolhidos pelas autoridades investigatórias no telemóvel da vítima quer no que respeita aos autos de leitura de mensagens, quer no que respeita ao tráfego efectuado do telemóvel do arguido para o telemóvel da vítima bem como, adiantamos desde já, do constante do telemóvel do arguido já que nada opomos à diligência que nesse âmbito é pedida na contestação.
Mais deverá ser fornecida a carta fornecida pela vítima escrita pelo arguido e constante dos autos e o documento escrito com sangue, igualmente constante do processo.
Cremos que tais elementos serão essenciais para esclarecer quem era agente ou vítima de ciúme compulsivo.
Quanto aos elementos que deverão ser disponibilizados para a perícia referente aos factos que ocorreram no dia 02.05.2005 e subsequentes, é essencial a nosso ver que sejam fornecidos aos peritos todas as declarações, não apenas da vitima como se refere na contestação, mas também de todos os profissionais de saúde, médicos e enfermeiros, auxiliares de acção médica, que contactaram com a vítima no Hospital de Felgueiras, bem como o auto de notícia efectuado pelo agente da G.N.R. de Felgueiras, sobre a ocorrência e o contacto mantido nesse mesmo Hospital, bem como todos os depoimentos recolhidos nos autos e prestados pelos profissionais de saúde que contactaram com a vítima nos Hospitais de Coimbra.
Cremos que estes elementos são importantes para que os Senhores peritos determinem sobre a credibilidade ou não dos relatos feitos pela vítima, bem como para esclarecer se esta apresentava quaisquer manifestações de natureza suicida, ou, pelo contrário, pretendia e queria e tinha apego à vida. Creio que em súmula e sendo viável a diligência requerida deverão os Senhores peritos do I.M.L. ou de instituição, por este indicada, dar resposta aos quesitos atrás formulados.
Assim, e, se tal diligência for viável nada opomos à sua realização solicitada pelo arguido. (...)»
Pelo assistente foi dito que:
«(...) uma vez que atenta a gravidade do crime em causa a descoberta da verdade se impõe como fim último do processo, exaurido que está todo o trabalho de análise às provas requeridas pela defesa por parte do Sr. Procurador, nada - mesmo nada - tem a opor ao laborioso requerimento deste último e a ele aderindo completamente»
Depois de o Ministério Público, o assistente e o arguido se pronunciarem sobre diversos outros problemas, nomeadamente sobre os elementos a fornecer aos peritos, foi proferido o seguinte despacho:
«No que respeita à perícia psiquiátrica forense requerida pelo arguido no ponto n° 1, dos meios de prova apresentado na contestação, o Tribunal entende que é relevante para a descoberta da verdade a realização da aludida perícia, atento o alegado pelo arguido na sua contestação, nomeadamente, no que respeita a um eventual processo de vitimização da falecida que, eventualmente, desencadeou a imolação daquela.
Contudo, partilhamos das mesmas dúvidas anteriormente referidas pelo Sr. Procurador, no que respeita à possibilidade da realização ou não da perícia em causa e quanto à credibilidade dos seus resultados.
Assim, solicite ao I.M.L, com nota de urgência, que informe o Tribunal sobre se é possível a realização da perícia psiquiátrica forense a alguém falecido em 15.07.2005 e, em caso afirmativo qual o grau de segurança das conclusões de tal diligência.
Oportunamente, e em caso de resposta positiva por parte dos Senhores peritos quanto às questões supra enunciadas nos pronunciaremos sobre os esclarecimentos solicitados pelo Ministério Público e pelo arguido (...).»
d) Depois de o Instituto de Medicina Legal ter informado ser possível a
realização da perícia psiquiátrica forense relativa a uma pessoa já falecida
(cfr. ofício de fls. 1019, em resposta ao ofício de fls. 982- 6° vol.), em 12 de Junho de 2006 foi proferido o seguinte despacho (fls. 1024-1025-6° vol):
"Fls. 1019:
Para a realização da perícia requerida, designo o Centro Hospitalar Conde Ferreira, entidade indicada pelo Gabinete Médico-Legal do Porto.
Objecto da perícia: os quesitos apresentados pelas partes.
Prazo para a apresentação do relatório pericial: 20 dias sobre a realização da perícia
(...)
*
e) Em 19 de Fevereiro de 2007 foi junto cópia do "Relatório de Psicologia forense [autópsia psicológica] (fls. 1762- 1781- 9° vol; original a fls. 2041- 2059- 10° vol), onde se formulou a seguinte,
«Conclusão
Através da entrevista aos informantes, e de acordo com os resultados obtidos nos testes aplicados, para proceder ao estudo retrospectivo e biográfico da falecida, ..., não encontramos factores preditivos ou indicadores de eventual acto de suicídio. Podemos ainda constatar através deste estudo retrospectivo, que a falecida perante os life events mais traumáticos da sua vida pessoal, reagiu aos mesmos de uma forma funcional e adaptativa, revelando um funcionamento psíquico adequado às situações.»
*
t) Em 12 de Março de 2007 foi junto um requerimento (fls.1865-1869- 10° vol), no qual o arguido, para além do mais, expõe e requer o seguinte:
«1. Notificado do "Relatório Psicológico Forense" e das suas conclusões, respeitosamente solicitar, por se afigurar essencial para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, que seja solicitado parecer, ao Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, sobre a validade científica dos métodos e instrumentos de avaliação utilizados na autópsia psicológica realizada nestes autos e das respectivas conclusões, uma vez que os instrumentos, nomeadamente a "Escala de Desesperança de Beck,", o "Inventário de Avaliação Clínica de Depressão" e a "Escala de Ideação Suicida de Beck", são instrumentos ou escalas concebidas e utilizadas exclusivamente para avaliar a depressão e desesperança no vivo e só podem ser utilizadas com o próprio indivíduo, e não com terceiros, familiares ou não.
Isso mesmo resulta da própria definição dos métodos/instrumentos empregues pela perita, nomeadamente e por exemplo, quando refere expressamente que a "Escala de Desesperança de Beck (Beck & Steer, 1993) mede a dimensão do pessimismo ou a extensão das atitudes negativas do indivíduo perante o futuro" (sublinhado nosso) ou quando esclarece que o "Inventário de Avaliação da Depressão" é "uma escala de auto-avaliação, de tipo Likert, para medir a intensidade dos quadro depressivos" (sublinhado nosso), ou ainda, quando diz que a "Escala de Ideação Suicida de Beck (Beck & Steer, 1991) é uma medida escalar de auto-relato, cujo objectivo é a identificação da presença de ideação suicida, para além de avaliar os planos, comportamentos e atitudes que podem ser encontrados no paciente, para que cometa suicídio "(sublinhado nosso) - cfr. fls. 1163 e 1164 dos autos.
Acresce que, também não é cientificamente correcto ou adequado utilizar apenas como "Informantes" apenas e exclusivamente familiares da falecida ..., os quais têm, face a sua posição processual assumida nos autos, respectivamente assistentes e testemunha de acusação/assistente e face ao comportamento demonstrado, nomeadamente antes, durante e após a audiência de julgamento de 23 de Maio de 2006 - como oportunamente denunciado -, bem como resulta das próprias entrevistas, uma atitude comprometida, parcial e hostil para com o arguido .... Deveriam também ter sido "Informantes", com a finalidade de "reconstruir a biografia da pessoa falecida" e avaliar" o estado mental da pessoa antes da morte", para além de indivíduos que pudessem ter trabalhado com a falecida ..., indivíduos que tivessem presenciado ou participado nos diversos episódios descrito na contestação, nomeadamente os guardas da G.N.R. e testemunhas quer da tentativa (da falecida) de atropelamento ao arguido, quer do "abalroamento" que esta (falecida) levou a cabo com a sua viatura contra a viatura em que seguia o arguido e sua esposa.
Mais acresce ainda que, na citada avaliação, não foram analisados e tidos em conta dados e diagnósticos sobre quadros depressivos da falecida que existiam nos autos, nomeadamente da Neurologista Dra. ... - cfr. fls. 1140 dos autos - e dados e diagnósticos que poderia ter sido facultados pelos médicos-psiquiátricos que consultaram e medicaram a mesma, nomeadamente Dr. ... (M 33148, cfr. fls. 1515 a 1516, 1518 a 1523, 1524 e 1525) e Dr. ... (M 14468, cfr. fls. 1526), nos períodos compreendidos entre 12-01-2004 e 28-10-2004, nem os dados sobre a medicação que esta, na data do processo de vitimação tomava. Mais não foram consideradas as próprias declarações da arguida sobre o seu estado depressivo e de angústia e de perda de gosto pela vida, constantes no articulado por esta apresentado no dia 12.02.2004, e que deu origem ao processo n.° 129/04.6TBLMG, que tem os seus termos pelo 2° Juízo do Tribunal de Lamego - cuja certidão se encontra junta aos autos e que crê ter sido disponibilizada a Sra. perita.
2. Sem prescindir o supra referido, e se o Tribunal não entender solicitar o citado parecer - o que não se concebe e só se refere para mero efeito de raciocínio -, requer, nos termos do art. 158°, n.° 1, alínea b), do Código Processo Penal, e pelas razões supra identificadas, a realização de nova perícia ou que esta última seja a renovada a cargo de outro ou outros peritos, que respeitosamente se sugere que fique a cargo do Prof. Dr. ..., Director de Psiquiatria Forense do Hospital Magalhães de Lemos.
3. Sem prescindir ainda, e por se afigurar que apenas foi remetidos aos autos o relatório da psicologia forense, e não o relatório final da psiquiatria forense que se terá que pronunciar sobre os quesitos e questões colocadas pelo Arguido e pelo Ministério Público - a que aderiu o assistente - (cfr. contestação e acta de audiência de fls. 956 a 968 dos autos, e despacho prolatado em 12.06.2006 a fls ) requer que se insista junto do Centro
Hospitalar Conde Ferreira para apresentação do relatório pericial que responda aos quesitos apresentados pelas partes nos termos ordenados (cfr. citado despacho de 12.06.2006).
(...)
g) Em 14-3-2007 foi proferido o seguinte despacho (fls. 1877- 10° vol):
"Notifique-se os Srs. Peritos para se pronunciarem sobre as partes 1 e 3 do requerimento antecedente".
h) Em resposta àquela notificação, os peritos prestaram os seguintes esclarecimentos juntos a fls. 1939 a 1941 (10° vol, originais a fls. 1964- 1967):
Dr. ...:
«Em resposta ao ponto 3 cabe-nos informar o seguinte:
1 - No pedido de marcação de exame (n.° de referencia 1219161, com data de 01-092006, que segue em anexo) é solicitado data para realização da "perícia psiquiátrica (ou autopsia psicológica) à vítima". Face a tal equivalência e levando-se em linha de conta que o nosso objectivo maior era o conhecimento do possível sofrimento psicológico da vítima, optamos por realizar a autópsia psicológica.
2 - E importante não esquecer - e a especificidade do caso em apreço coloca este facto mais evidente - de que o nosso conhecimento ou a possibilidade de conhecermos algo sempre é de forma indirecta. Até mesmo no campo fisiológico, por excelência, a simples mensuração da tensão arterial é um valor aproximado - não é o valor real de uma mensuração directa, na artéria - o que não quer dizer que não possamos utilizar, a medida indirecta para tomarmos decisões no campo prático quotidiano (como; por exemplo. medicar uma pessoa com anti-hipertensivos).
3 - A questão central que tínhamos nas mãos, a hipótese que necessitávamos ter em conta através de toda a documentação apresentada e avaliada era a seguinte: a vítima recebeu tratamento para depressão, as pessoas depressivas suicidam-se, logo a vítima suicidou-se? E esta a questão central. Uma suposição deste teor, implica, e é comum que assim seja, um determinado valor que defende de forma lógica um determinado ponto de vista. Cabe ao perito - e no caso em apreço a aplicação da autópsia psicológica - lançar mão de um determinado método (a ideia de método implica em "superar obstáculos") para que diante de um determinado valor dado (independente das partes em jogo) possamos ter e oferecer a quem avalia por ultimo um juízo de atribuição diante dos factos que observamos.
4 - Não devemos esquecer que a aplicação de um método não deve possuir um carácter teleológico e que deve ser adequado ao objecto em estudo, somos de opinião que o método clínico - fenomenológico que se encontra na base de uma perícia psiquiátrico forense, para a especificidade do caso em tela, não deveria ser o mais indicado, e seguimos aqui a explanação feita por Alonso Fernandez "para dar uma ideia clara da exploração fenomenológica, podemos distinguir sucessivamente estas duas pautas: em primeiro lugar, a de obter um registo em «alta fidelidade" do mundo de experimentar os sintomas pelo doente (suas vivências mórbidas) ou do mundo interior do doente. Obtém-se assim um documento anedótico, um documento biográfico. A análise intuitivo-racional em profundidade deste documento humano conduz ao documento fenomenológico. Na prática, ambas as tarefas, a de gravação exacta e da análise intuitivo-racional se confundem e mesclam-se inseparavelmente no seio de um trabalho que exige sobretudo participação compreensiva do psiquiatra no mundo do doente" (Fundamentos de La Psiquiatria Actual, Editorial paz Montalvo, Madrid, Tomo 1, 1979 pág. 74-75 - tradução livre).
5 - Em suma, aplicação de um método eficaz (autopsia psicológica) permitiu-nos deslindar a questão que nos colocamos como hipótese de trabalho, passamos então, com as conclusões apontadas, no relatório de psicologia forense, do campo lógico e retórico para o campo dos factos que o método permite.
6 - Por último, caso necessário, responderemos prontamente aos quesitos apresentados ao nos serem enviados.»
Dra ...:
«Em reposta ao ponto 1 temos a dizer o seguinte: Entendendo-se a Autópsia Psicológica; como uma forma de avaliar, após a morte, o que estava na mente da pessoa antes de falecer, pode-se conceptualizar a Autópsia Psicológica como uma forma de avaliação retrospectiva, que tem como finalidade reconstruir a biografia da pessoa falecida, por meio de entrevistas que contemplam a aplicação de instrumentos de avaliação para medir os traços mais relevantes da vítima.
Esta metodologia, é aplicada aos chamados Informantes, que são os familiares ou as pessoas próximas da vítima e que poderão fornecer uma melhor perspectiva sobre os traços da sua personalidade. Não só é cientificamente conecto e adequado utilizar como Informantes; os familiares próximos da vítima, assim como amigos próximos, como podemos ler em "EI uso de la autopsia psicológica forense en el proceso penal" de Dr. Jorge Núnez de Arco e Dra. Tatiana Huici.
No que se refere à aplicação de instrumentos ou escalas concebidas e utilizadas no vivo, informamos que está implícito que não existindo instrumentos para avaliar no morto, se recorre por isso, à chamada autópsia psicológica, cujos testes para avaliar dimensões psicopatológicas são aplicados através dos Informantes. A entrevista clínica realizada aos mesmos, permite igualmente avaliar o processo de luto ou eventuais processos de distorção, o que foi realizado na perícia em causa.
Os Informantes; ainda no que se refere ao ponto 1, terão de ser necessariamente pessoas próximas da vitima e que acompanharam o seu percurso de vida, de forma a reconstruir a sua biografia, e não pessoas que poderão ter presenciado eventuais episódios pontuais na vida da vitima.»
*
i) Por despacho de 17-4-2007 foi ordenada a notificação do "arguido para esclarecer, no prazo de 5 dias, que quesitos pretende que sejam respondidos pela Sra Perita do Hospital Conde Ferreira (fls. 1944- 10° vol.)
*
j) Na sequência da notificação referida em h), em 26 de Abril de 2007 (cfr. fls. 1969-1971) o arguido esclareceu que:
«Vem dizer que pretende ver realizada perícia e respondidos os quesitos já respectivamente requeridos e indicados na contestação - e que foram deferidas pelo Tribunal - nomeadamente:
1. Seja realizada perícia à vítima ... para se avaliar a sua personalidade e suas características psíquicas e eventuais patologias e eventual existência de transtornos da personalidade ou distúrbios psiquiátricos, como por exemplo depressão, ciúme patológico, delírios, etc..
Feita essa perícia deverá a senhora perita esclarecer e definir
A) A personalidade da ... e as suas características psíquicas;
B) Se a ... sofria de qualquer patologia?
C) Se a ... sofria de qualquer transtorno de personalidade?
D) Se a ... sofria de qualquer distúrbio psiquiátrico?
E) Se a ... sofria de depressão?
F) Se a ... sofria de ciúme patológico?
G) Se a ... sofria ou sofreu em qualquer momento antes e durante processo de vitimação de delírios?
H) Que tipo de relação amorosa tinha a ... com o arguido ..., devendo a senhora perita caracterizar e definir a mesma;
I) Que consequências emocionais, afectivas e psiquiátricas advieram da morte violenta do marido da falecida ... - deverá a senhora perita ter em conta, na resposta a este quesito, entre outros documentos, o articulado por esta apresentado e que deu origem a acção de processo ordinária que con-e termos no 2° Juízo do Tribunal Judicial de Lamego, com o n.° 129/04.6TBLMG (cuja certidão se encontra junta aos autos) - e se destas resultou qualquer tipo de sequelas ou danos;
.I) Qual o eventual estado emocional da ... quando preconizou os factos descritos nos artigos 51°, 52°, 56° e 57 que deram origem a participações cujos documentos se encontram juntos aos autos com o requerimento de abertura de instrução - cfr. respectivamente documentos juntos sob nºs 3, 2 e 4 com o citado RAI.
*
l) Em 3 de Maio de 2007 foi proferido o seguinte despacho (fls. 1972-10° Vol):
«Fls. 1969: Remeta os quesitos apresentados ao Hospital Conde Ferreira»
*
m) Ainda em 3 de Maio de 2007 foi junto aos autos urn requerimento apresentado pelo arguido no dia 2 de Maio, em que este reitera o entendimento e a pretensão de que
«necessário será realizar, como anteriormente requerido nova perícia ou que esta seja renovada a cargo de outro ou outros peritos, necessariamente de outra instituição (aliás a perícia que está a ser realizada ao arguido merece-nos, desde já, muitas reservas porque realizadas pelos mesmos peritos e/ou por peritos da mesma instituição [Centro Hospitalar Conde Ferreira]). Ou se o tribunal ainda tiver dúvidas sobre a qualidade e validade científica dos métodos e instrumentos de avaliação empregues na autópsia psicológica realizada nestes autos, deverá ser, com o devido respeito e salvo melhor opinião, solicitado parecer ao competente colégio da especialidade da Ordem dos Médicos, como anteriormente já requeremos.»
o) Em 7 de Maio de 2007, foi proferido o seguinte despacho (fls. 1988-10° vol): «Fls. 1976: Aguardem os autos a resposta dos Srs Peritos aos quesitos apresentados pelo arguido.»
p) Em 1 de Junho de 2007 foram juntos os seguintes esclarecimentos que tinham sido solicitados aos Exmos peritos (fls. 2032 — 2035- 10° vol)
«1) Relativamente à alínea a), sobre a personalidade da falecida ..., podemos dizer, em função dos elementos recolhidos, que a mesma teria uma personalidade adaptada, fazendo uso de mecanismos de defesa funcionais, não tendo sido possível evidenciar, tal como foi relatado na autópsia psicológica, indicadores de presença de patologia psicológica.
2) Relativamente à alínea b), e tal como foi relatado na autópsia psicológica, não foram detectados indicadores de presença de patologia psicológica.
3) Relativamente à alínea c), a resposta foi dada no ponto 1.
4) No que respeita à alínea d), a resposta foi dada no ponto 2, ou seja, não nos podemos prenunciar sobre eventuais distúrbios de natureza psiquiátrica, uma vez que essa avaliação deve ser realizada por perícia de psiquiatria.
5) Em relação à alínea e), foi anteriormente esclarecido na autópsia psicológica que a falecida ... não apresentava indicadores de natureza psicológica que a caracterizassem como uma pessoa depressiva.
6) Relativamente à alínea f), a mesma deve ser respondida por perícia de psiquiatria.
7) Relativamente à alínea g), a mesma foi respondida no ponto 6.
8) A resposta à alínea h), relativa à relação entre a falecida e o arguido, encontra-se descrita na Autopsia Psicológica, não sendo possível dar mais elementos para além dos que foram recolhidos para aquele exame forense.
9) No que respeita à alínea i), sobre as consequências emocionais, afectivas e psiquiátricas que advieram da morte violenta do marido da falecida ..., e tendo em conta os documentos do 2° Juízo do Tribunal Judicial de Lamego, com o número 129/09.6TBLMG, apenas nos podemos pronunciar do ponto de vista psicológico e não psiquiátrico. Sendo assim, temos a dizer que, de acordo com as folhas n.ºs 1172, 1173 e 1174, a resposta emocional e afectiva que a falecida teve à morte do marido demonstra ser uma resposta funcional e adaptada a um evento considerado traumático. Tanto mais que a depressão, sob o ponto de vista psicológico, é sinónimo de uma resposta funcional a uma perda, sendo necessário tempo para que as pessoas integrem essa perda e façam o luto psicológico da mesma.
10) Em relação à alínea j), sobre qual seria o eventual estado emocional da falecida descrito nos artigos 51º, 52°, 56° e 57°, que deram origem a participações, a resposta está prejudicada pelo facto de não haver testemunhos objectivos sobre o contexto que terá provocado a discussão entre o arguido e a falecida, contexto essencial para se poder deduzir as reacções psicológicas aos acontecimentos posteriores à discussão entre ambos.»
q) Conforme consta da acta de audiência de 5-6-2007 (cfr. fls. 2077- e seguintes - 11º vol), pelo ilustre mandatário do arguido foi pedida a palavra e, no uso da mesma disse:
" Notificado da resposta aos quesitos apresentada pelo ..., vem este dizer que, para além dos vícios e deficiências já anteriormente apontadas ao relatório '"autópsia psicológica", bem como aos esclarecimentos posteriormente prestados que aqui, infelizmente, voltam a verificar-se, nomeadamente nas respostas sinalizadas como ponto 1 a 10, onde a mero título de exemplo podemos constatar referências à inexistência de uma depressão que posteriormente se admite como verificada - cfr. ponto 1 e ponto 9- mais se verifica, por exemplo, também uma resposta dada aos quesitos C e D se negue a existência de qualquer patologia quando na resposta dada ao quesito F- ponto 6- se refere expressamente que essa resposta patológica de verificação dessa patologia só pode ser respondida por perícia psiquiátrica, quando as respostas aos quesitos C e D a perita já se pronuncia – negativamente- sobre a verificação ou ocorrência de patologia.
Acresce que também as presentes respostas aos quesitos apresentados no caso concreto ponto 4, 6 e 7 as mesmas não respondem às questões colocadas antes remetendo para perícia psiquiátrica.
Ora, é exactamente uma perícia psiquiátrica o que foi requerido na contestação e a qual foi doutamente ordenada pelo Tribunal, pelo que continuam os autos e este Tribunal sem uma efectiva resposta às perícias ordenadas.
Pelo exposto, dando-se como reproduzido todas as criticas já apontadas
nestes autos às citadas perícias, insiste-se pela necessidade de os Sr.s Peritos darem cumprimento ao ordenado pelo Tribunal, pelo que tendo em conta a morosidade com que as respostas periciais têm sido realizadas, se sugere e se requer, novamente, o adiamento desta audiência até que seja possível concluir as mesmas e obter as respostas e conclusões que este Tribunal tem como essenciais para a descoberta da verdade e boa decisão da causa."
*
Dada a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público, pela mesma foi dito:
«Salvo o devido respeito por opinião diversa, afigura-se não assistir qualquer razão à defesa, pois tal qual foi requerido no ponto 1 da contestação apresentada, foi realizada a perícia requerida, também designada, inclusivamente pelo arguido de "autópsia psicológica à vítima... .
Ora, como se prova dos autos, por diversas vezes foi o arguido notificado das diligências que estavam a ser levadas a cabo e do estado da perícia pelo mesmo requerida, nunca tendo sido posta em causa o objecto da mesma. Foi oportunamente requerida, pela defesa, que os Sr.s Peritos prestassem os esclarecimentos reputados como essenciais à descoberta da verdade, o que foi realizado. Os esclarecimentos já se encontram juntos aos autos, tanto assim, que tal cumprimento ao que havia sido ordenado pelo Tribunal, e bem assim, ao abrigo do disposto no art.° 157.° do CPP, sendo também certo que as conclusões que os mesmos extraíram estão devidamente fundamentadas, valendo por tanto como prova pericial, que será certamente apreciada e valorada pelo Tribunal, nos termos do disposto no art.° 127.° do CPP.
Quanto ao requerido adiamento da presente audiência, entende que o mesmo deverá ser indeferido por absoluta falta de fundamento legal, pois o motivo invocado na anterior audiência (23-05-2006), já não se verifica, nem vislumbramos existência de qualquer outro que possam a tal conduzir."
*
Dada a palavra ao ilustre mandatário do assistente pelo mesmo foi dito:
"Adere na totalidade às razões doutamente invocadas pelo Digna Magistrada do Ministério Público e com a finalidade (de não adiamento desta diligência) vertida na sua douta oposição.
Adita no entanto, ainda as seguintes razões:
- Foi de facto a defesa quem apelidou de autópsia psicológica o exame
pericial que realmente pretendia ver realizado. Nessa medida, em despacho fundamentado, foi solicitado pelo Tribunal a informação ao IML no sentido de saber se a mesma era ou não possível em relação à pessoa da falecida. Tal informação consta, expressamente e inequivocamente de fis. 1019 e a resposta foi no sentido afirmativo.
Na introdução do relatório forense diz-se, preto no branco, "através de autópsia psicológica podemos diferenciar a morte por suicídio das que têm outro tipo de origem". Ora, de acordo com as regras do processo e considerando a matéria da defesa vertida naquilo, que é conhecido na sua contestação, o tema do preâmbulo, em sua perspectiva consiste em saber, em primeira mão, se a morte acorreu por suicídio ou perpetrada por outrem Analisando o relatório e as suas respostas constata-se que não só a autópsia psicológica levada a cabo é idónea ao apuramento do que se pretende, como o seu relatório foi absolutamente conclusivo.
Os esclarecimentos pretendidos foram já devidamente prestados e as situações pontuais agora aludidas pela defesa, em nada inquinam ou abonam à conclusividade desse relatório.
Se a defesa continua insatisfeita em relação às respostas, pode muito bem solicitar que os autores dos relatórios sejam convocados para comparecer nesta audiência a fim de, uma vez por todas, e, se possível, remover todas as dúvidas.
Tal é o que resulta do art.° 158.°, n.° 1, alínea a) do CPP.
O Processo Penal não se compagina com extraordinárias demoras como aquelas que são reconhecidas na defesa no seu requerimento e nem tais demoras são abonatórias no interesse do arguido que se encontra preso preventivamente.
Por todo o exposto se afigura sem fundamento o que é requerido pela defesa, o qual sem prejuízo do que aqui se transigiu deve ser indeferido."
Foi de seguida proferido o seguinte despacho:
«Quanto ao requerimento de fls. 1865 a 1869 e hoje formulados:
Por despacho proferido por este Tribunal, em 23-05-2006, e constante a fis. 966 e seguintes dos autos, foi ordenada a realização de uma perícia, cujo relatório consta de fls. 1643 e seguintes.
Em qualquer altura do processo pode a autoridade judiciária competente determinar, oficiosamente ou a requerimento, quando isso se revelar de interesse par a descoberta da verdade, que os peritos sejam convocados para prestarem esclarecimentos complementares. Ora, tendo em conta as dúvidas suscitadas pela defesa do arguido, quer hoje, quer no requerimento de fis 1865 a 1869, consideramos, por ora, ser necessário que a Ex.ª Perita subscritora daquele relatório, preste os esclarecimentos necessários para dissipar tais dúvidas, sendo que só após tais esclarecimentos é que nos pronunciaremos quanto ao hoje requerido bem como o requerido a fls. 1865 a 1869.
Convoque a Ex.ma Perita (..)»
Depois de reaberta a audiência, pelas 14 horas e terem sido prestados esclarecimentos pela Exma Perita dra ..., foi proferido o seguinte despacho (Despacho recorrido de 05-06-2007, junto a fls. 2084-2085-11 vol):
" A perícia que foi requerida e que foi deferida, tinha como objecto os factos constantes no ponto 1, de fls. 827 (avaliação de personalidade da vítima ...) e as suas características psíquicas e eventuais patologias, bem como para se apurar todos os antecedentes psiquiátricos que sobrevieram à morte do marido e os factos que deram origem aos presentes autos para se elaborar diagnóstico diferencial e ainda o referido no primeiro parágrafo de fls. 960, (saber se a vítima apresenta um quadro psiquiátrico de propensão suicida, ou, pelo contrário, seria pessoa com forte motivação para viver e querer viver).
Analisando o relatório pericial e tendo em conta os esclarecimentos agora prestados, dentro, como é óbvio, das dificuldades inerentes à perícia em apreço, verifica-se que foi dada resposta cabal ao que foi solicitado pelo arguido e pelo Ministério Público.
Além disso, os quesitos apresentados pelo arguido a fls. 1969, que mereceram a resposta de fls. 2033 e seguintes não invalidam, como hoje foi referido pela Ex.ma Perita, as conclusões vertidas no relatório pericial. Na verdade, os quesitos formulados a fls. 1966, são meramente instrumentais, sendo que não obstante não ter sido dada resposta cabal a alguns deles, pelos motivos hoje referidos, tal não prejudica, conforme foi reiterado pela Ex.ma Perita, as conclusões vertidas no referido relatório.
Por fim, conforme foi referido pela Ex.ma Perita, o método utilizado na realização de tal exame foi aquele que reputou como sendo o adequado à situação em apreço, não tendo o mesmo sido cientificamente colocado em causa.
Nesta conformidade indefere-se o requerido a fls. 1865 a 1869 dos presentes autos, bem como os esclarecimentos e nova perícia hoje suscitada pelo arguido.
Notifique. "
[33] Depois de apresentar a sequência processual que se acaba de transcrever, o supra referido aresto desta Relação apreciou as questões colocadas pelo arguido, que enunciou em três dimensões:
- Violação do caso julgado por se ter considerado instrumentais quesitos a que foi dada resposta parcial ou a que não foi dada sequer resposta, em consequência da limitação pelo perito do objecto da perícia psiquiátrica forense ordenada ao diagnóstico diferencial relativo a vitimização da falecida, quando tais quesitos haviam sido anteriormente considerados essenciais para a boa decisão da causa;
- A validade científica da perícia autópsia psicológica realizada e dos métodos e instrumentos de avaliação utilizados na sua realização e das conclusões do respectivo relatório;
- A violação das mais elementares garantias do processo-crime, designadamente, do disposto nos artigos 124º, objecto de prova, 125º, admissibilidade das provas não proibidas por lei, 127º, livre apreciação da prova, salvo disposição da lei em contrário, 151º, 156º a 163º, prova pericial, 340º, do C.P.P., realização da prova pelo tribunal cujo conhecimento considere necessário para a descoberta da verdade e à boa decisão da causa, artigo 32º da Constituição da República, garantias de processo penal.
[34] No que se refere à primeira questão, concluiu o Tribunal que «apenas a autópsia psicológica requerida pelo arguido foi efectivamente realizada mas a perícia requerida e ordenada, nas suas diversas cambiantes, não foi integralmente realizada» Negrito nosso.. Os fundamentos para essa decisão foram os seguintes:
Conforme resulta claramente da contestação do arguido, a perícia por este requerida e que designou de "perícia psiquiátrica forense ex post facto (ou autópsia psicológica) à vítima ..., tinha por objectivo avaliar a sua personalidade e suas características psíquicas e eventuais patologias (transtornos ou distúrbios psiquiátricos, depressões, ciúme patológico, delírios, etc...) bem como, historiografar todos os antecedentes psiquiátricos que sobrevieram à morte violenta do marido e antecederam os factos que deram origem aos presentes autos e para se elaborar diagnóstico diferencial" e que o tribunal, logo por despacho de 23 de Maio de 2006 considerou relevante para a descoberta da verdade, por ter em vista desde logo demonstrar que se os factos ocorridos em constituiriam ou não uma tentativa de suicídio através de um processo de imolação.
É o que resulta claramente da contestação e assim foi entendido pelos demais sujeitos processuais (Ministério Público, assistente e pelo próprio tribunal).
Mas a perícia cuja realização foi ordenada não se limitou a uma autópsia psicológica.
Relembra-se o teor do despacho de 12 de Junho de 2006 (fls. 1024-1025-6° vol):
«Fls. 1019:
Para a realização da perícia requerida, designo o Centro Hospitalar Conde Ferreira, entidade indicada pelo Gabinete Médico-Legal do Porto.
Objecto da perícia: os quesitos apresentados pelas partes.
Prazo para a apresentação do relatório pericial: 20 dias sobre a realização da perícia »
Segundo este despacho a perícia ordenada pelo tribunal tem por objecto os quesitos apresentados pelas partes.
Na ocasião nenhum quesito fora apresentado pelo que o vocábulo ali utilizado se deve entender como questões apresentadas pelas "partes", na contestação e na acta da audiência de 23 de Maio de 2006.
Ora, conforme resulta daquela acta o Ministério Público não se limitou a não deduzir oposição à pretensão do arguido. Pelo contrário pronunciou-se demorada e pormenorizadamente sobre a questão não confinando o objecto da perícia à autopsia psicológica.
Com efeito, o Exmo Procurador da República pronunciou-se expressamente no sentido de ser necessário que os Srs. Peritos averigúem (para além de se saber se a vítima pretendia abandonar o relacionamento amoroso que tinha com o arguido, ou, pelo contrário, pretendia pressionar o arguido a manter com ela esse relacionamento, se daqueles elementos resulta que a vítima tinha para com o arguido um ciúme patológico, ou, se pelo contrário, a vítima era antes alvo de um ciúme patológico do arguido para consigo, se a vítima apresentava um quadro psiquiátrico de propensão suicida, ou, pelo contrário, seria pessoa com forte motivação para viver e querer viver."):
« quanto ao "que se passou no dia 02.05.2005 e posteriormente a essa data" deverão os Senhores peritos esclarecer, nomeadamente, se as declarações prestadas pela vítima aos elementos da Polícia Judiciária e o relato que a vítima fez dos factos a todos aqueles que com ela contactaram depois destes, nomeadamente, profissionais de saúde do Hospital de Felgueiras (médicos, enfermeiros e auxiliares de acção médica), agente da G.N.R. que neste Hospital tomou conta da ocorrência, profissionais de saúde dos Hospitais da Universidade de Coimbra onde aquela passou o restante tempo de vida, se tais declarações correspondem a urna manifestação de verdade, ou, se pelo contrário, mais não são do que um modo de se vingar e prejudicar o arguido.
"Deverão igualmente os Senhores peritos esclarecer se os delírios que a vítima apresentou enquanto esteve internada naqueles Hospitais de Coimbra correspondem a uma perturbação psicológica ou psiquiátrica sem qualquer nexo, ou, se pelo contrário, correspondem ao medo e pavor de alguém que foi vítima de uma agressão efectuada nos termos em que é descrita no despacho de pronuncia.»
E depois de enunciar os elementos que deveriam ser entregues aos peritos sublinhou:
«Cremos que estes elementos são importantes para que os Senhores
peritos determinem sobre a credibilidade ou não dos relatos feitos
pela vítima, bem como para esclarecer se esta apresentava quaisquer manifestações de natureza suicida, ou, pelo contrário, pretendia e queria e tinha apego à vida.»
Ora este último ponto embora conexionado com os demais é deles independente.
Por outras palavras, o Ministério Público quis que a perícia tivesse também por objecto a credibilidade dos relatos feitos pela vítima após os acontecimentos de 2 de Maio de 2005.
E esta pretensão do Ministério Público obteve acolhimento na medida em que o M° Juiz ao definir o objecto da perícia remete para os quesitos, isto é, para as questões enunciadas pelas "partes".
[35] Passou de seguida este Tribunal da Relação a apreciar a questão da «validade científica da autópsia psicológica realizada e dos métodos e instrumentos de avaliação utilizados na sua realização e das conclusões do respectivo relatório; o pedido de parecer ao Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e de realização de nova perícia», concluindo pela falência de todas essas pretensões. Esse é o sentido inequívoco deste segmento:
§3. À luz das considerações antecedentes, a pretensão do recorrente não merece acolhimento.
Com efeito, como se refere no próprio parecer junto a fls. 2290 pelo arguido recorrente, são vários os métodos científicos utilizados na realização da autópsia psicológica.
A própria perita subscritora do relatório pericial quando ouvida em audiência, reconheceu a existência de diversas metodologias e defendeu o método que utilizou.
Por isso, como bem acentua o assistente na sua resposta ao recurso, não é em função de um parecer que o tribunal pode ou deve desvalorizar um exame realizado por quem detém os conhecimentos científicos adequados a levá-lo a cabo a emitir um juízo de valor científico, tal como aconteceu.
Na verdade, citando agora o Ministério Público na sua resposta, existindo vários métodos para a realização da autópsia psicológica, cada um utiliza o método que entende mais correcto e adequado, sem que dai se possa concluir pela validade ou invalidade de uns em relação aos outros.
Aliás, ao requerer a realização de uma perícia psicológica o recorrente - agora muito preocupado em evidenciar uma alegada ignorância científica por parte do tribunal [" visivelmente sem quaisquer conhecimentos próprios sobre a perícia em questão", etc.] não ignorava a existência de várias metodologias.
E, no seu requerimento, nada peticionou a este respeito, quando o podia desde logo ter feito.
Acresce, ainda, que devido à existência de diversas metodologias, a nova perícia que viesse a ser realizada sempre poderia ser de novo questionada relativamente aos instrumentos utilizados (incluindo os informantes seleccionados), os quais fundamentariam nova perícia e assim sucessivamente ...
E fundamentamos esta asserção no próprio parecer junto pelo arguido recorrente (fls. 2293):
«4. MÉTODO
Infelizmente, o número de autores que têm escrito sobre AP [autópsia psicológica] é proporcional ao número de modelos propostos para realizar o procedimento próprio de uma AP.
Não há uma estandardização universal para o problema e não conhecemos nenhuma consensualmente aplicável nos estudos portugueses .
Alguns autores dão prioridade a uns aspectos, enquanto outros se centram noutros.
Tal facto afecta, sem dúvida, a validade do procedimento (Young, 1992; Annon, 1995).»
As considerações que deixámos exaradas valem, mutatis mutandis, para o pedido de parecer ao Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos.
[36] A partir daí, o mesmo aresto passou a apreciar a reclamada ausência de resposta aos quesitos que versaram «a credibilidade dos relatos feitos pela vítima após os acontecimentos de 2 de Maio de 2005» e respectivas consequências, nestes termos:
§1. Conforme já se demonstrou a perícia realizada é apenas parte da perícia que foi ordenada.
Como o próprio tribunal a quo reconheceu não foi dada cabal resposta a todos os quesitos apresentados pelo arguido e que haviam sido avalizados pelo próprio tribunal.
Com efeito, não foi dada resposta aos quesitos enunciados pelo arguido a fls. 1969-1971, enunciados sob as alíneas d), f. g) e h).[d) Se a ... sofria de qualquer distúrbio psiquiátrico?; f) Se a ... sofria de ciúme patológico?; g) Se a ... sofria ou sofreu em qualquer momento antes e durante processo de vitimação de delírios? h) Que tipo de relação amorosa tinha a ... com o arguido ..., devendo a senhora perita caracterizar e definir a mesma].
*
§2. Por outro lado, a perícia realizada omite por completo uma componente essencial da perícia que foi ordenada, qual seja a de aferir a credibilidade das declarações prestadas pela vítima aos elementos da Polícia Judiciária e o relato que a vítima fez dos factos a todos aqueles que com ela contactaram depois destes, nomeadamente, profissionais de saúde do Hospital de Felgueiras (médicos, enfermeiros e auxiliares de acção médica), agente da G.N.R. que neste Hospital tomou conta da ocorrência, profissionais de saúde dos Hospitais da Universidade de Coimbra onde aquela passou o restante tempo de vida, "se tais declarações correspondem a uma manifestação de verdade, ou, se pelo contrário, mais não são do que um modo de se vingar e prejudicar o arguido", se "os delírios que a vítima apresentou enquanto esteve internada naqueles Hospitais de Coimbra correspondem a uma perturbação psicológica ou psiquiátrica sem qualquer nexo, ou, se pelo contrário, correspondem ao medo e pavor de alguém que foi vítima de uma agressão efectuada nos termos em que é descrita no despacho de pronuncia."
*
§3. Estes últimos aspectos (omitidos) revelam-se também de importância crucial para a boa decisão da causa.
Conforme resulta à evidência dos autos, é aceite por todos os sujeitos
processuais e foi inclusivamente assinalado no acórdão ali proferido "não houve qualquer testemunha presencial dos factos ocorridos no monte de Santa Quitéria, tendo o Tribunal apenas a versão da vítima mortal, contada por alguns familiares e por pessoas que contactaram com ela no período compreendido entre a prática destes factos e a data da sua 'morte".
Independentemente da questão da validade dos depoimentos indirectos, a qual não faz parte do objecto do presente recurso (mas sim do acórdão final), em caso afirmativo a credibilidade de tais depoimentos indirectos está dependente não apenas da credibilidade da testemunha, do transmissor, isto é, de quem relata aquilo que ouviu dizer, mas também da credibilidade da fonte, isto é da credibilidade de quem relatou, no caso em apreço, da falecida ....
*
§4. Segundo a decisão recorrida (e é esta também a posição sustentada na douta resposta do Ministério Público junto da 1ª instância) "os quesitos formulados a fls. 1966, são meramente instrumentais, sendo que não obstante não ter sido dada resposta cabal a alguns deles, pelos motivos hoje referidos, tal não prejudica, conforme foi reiterado pela Ex.ma Perita, as conclusões vertidas no referido relatório."
Parece-nos indiscutível que tais quesitos são efectivamente instrumentais. Mas são instrumentais da autópsia psicológica.
Já não são instrumentais da perícia que foi requerida e ordenada que, conforme foi referida, não se esgota numa autópsia psicológica.
Nesta medida e pese embora todo o esforço argumentativo do Ministério público junto da 1° instância, é manifesta a ofensa ao caso julgado.
Pese embora a qualificação dada pelo arguido/recorrente perícia psiquiátrica forense ex post facto (ou autópsia psicológica) à vítima, a perícia que requereu não se reconduz a uma simples autópsia psicológica.
Por outro lado e mais decisivamente, o tribunal não se limitou a ordenar a realização de uma autopsia psicológica.
A decisão tomada pelo tribunal sobre o objecto da perícia, por não ter sido impugnada, tornou-se vinculativa, estabelecendo-se caso julgado formal cuja força obrigatória se impunha, impedindo o tribunal a quo de proferir decisão que colidisse com a anterior (artigo 672° do Código de Processo Civil ex vi do artigo 4° do Código de Processo Penal).
*
§5. Conforme resulta de tudo quanto ficou referido, contrariamente ao que sustenta o assistente, o recorrente não pretende que seja realizada uma outra perícia. O que pretende é que seja integralmente realizada a perícia que foi ordenada.
Por isso que improceda a arguida inadmissibilidade do recurso interposto pelo arguido, sem a prévia arguição de nulidade.
*
7. Consequentemente, na procedência parcial do recurso, impõe-se a substituição do despacho recorrido por outro que solicite ao IML (Hospital Conde Ferreira) que responda aos quesitos (ainda não respondidos) e se pronuncie sobre as demais questões suscitadas, nomeadamente:
- se as declarações prestadas pela vítima aos elementos da Polícia Judiciária e o relato que a vítima fez dos factos a todos aqueles que com ela contactaram depois destes, nomeadamente, profissionais de saúde do Hospital de Felgueiras (médicos, enfermeiros e auxiliares de acção médica), agente da G.N.R. que neste Hospital tomou conta da ocorrência, profissionais de saúde dos Hospitais da Universidade de Coimbra onde aquela passou o restante tempo de vida, se tais declarações correspondem a uma manifestação de verdade, ou, se pelo contrário, mais não são do que um modo de se vingar e prejudicar o arguido.
- "se os delírios que a vítima apresentou enquanto esteve internada naqueles Hospitais de Coimbra correspondem a uma perturbação psicológica ou psiquiátrica sem qualquer nexo, ou, se pelo contrário, correspondem ao medo e pavor de alguém que foi vítima de uma agressão efectuada nos termos em que é descrita no despacho de pronuncia."
Completada a perícia ordenada, deverá ser reaberta a audiência e, posteriormente, sempre com a intervenção dos mesmos juízes, elaborado e publicado novo acórdão, com estreita observância do disposto no n.°2 do artigo 374° do Código de Processo Penal.
Fica naturalmente prejudicada a apreciação do recurso respeitante ao acórdão condenatório.
III- Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em:
a) negar provimento ao recurso do despacho de 21 de Setembro de 2007 (que indeferiu a arguida nulidade e irregularidade do despacho 11 de Setembro de 2007, que declarou a especial complexidade dos presentes autos), confirmando a douta decisão recorrida.
b) julgar parcialmente procedente o recurso interposto do despacho de fls. 2084-2085 e, em consequência revogar o despacho recorrido o qual deverá ser substituído por outro que solicite ao IML (Hospital Conde Ferreira) que responda aos quesitos (ainda não respondidos) e se pronuncie sobre as demais questões suscitadas. No mais, mantém-se o ali decidido.
c) não conhecer do recurso interposto do acórdão condenatório, por o seu conhecimento ter ficado prejudicado.
[37] Retornado o processo ao Tribunal a quo, foi proferido em 05/03/2008 o seguinte despacho (fls. 3125):
A fim de evitar futuras discussões sobre se todos os quesitos (e questões) apresentados pelo arguido foram ou não respondidos pela perícia psicológica junta aos autos e esclarecimentos dos peritos em audiência de julgamento, notifique-se o arguido para, no prazo de 5 dias, discriminar os quesitos (e questões) ainda pretende ver esclarecidos e que já tenham sido suscitados nos autos, indicando a data dos requerimentos em que esses quesitos (e questões) foram apresentados.
Findo o prazo concedido, o tribunal entenderá o silêncio do arguido como tendo sido já devidamente esclarecido sobre a perícia psicológica em causa.
Com cópia do douto acórdão do Venerando Tribunal Superior, solicite ao IML, nomeadamente aos peritos subscritores da perícia psicológica junta aos autos, via fax, com menção de urgente (arguido preso) para responder às questões suscitadas pelo Venerando Tribunal da Relação e constantes no ponto 7 de fls. 3115.
Prazo: 10 dias
[38] Logo em 11/03/2008, foi recebido fax com texto assinado pela Srª Drª ... (fls. 3133-3134, vol. 15º). O seu teor é o seguinte:
Vimos por este meio responder aos quesitos indicados nas fls. 3115, ponto 7 e fls. 3112, ponto 6, com vista ao amplo esclarecimento dos quesitos e questões apresentadas, referentes ao processo número 459/05.0GAFLG. Temos a dizer o seguinte:
1. No que se refere ao ponto 7, sobre a credibilidade das declarações prestadas pela vítima a todos aqueles que com ela contactaram depois dos factos, a resposta encontra-se prejudicada face ao facto da perícia realizada não ter como objectivo-mor, a avaliação da credibilidade dos depoimentos prestados pela falecida, nesse sentido não existe possibilidade real e técnica de procedermos a urna Avaliação Retrospectiva da Credibilidade da falecida.
2. Ainda sobre o quesito apresentado no ponto 7, correspondente ao período de hospitalização da vítima, temos a dizer que esta padeceu dum quadro denominado Delirium. O Delirium, é uma perturbação da consciência que se acompanha por urna alteração da cognição, No caso em apreço, foi urna consequência psicológica dum estado médico geral. (a sepsis que a falecida sofreu em consequência das queimaduras), Concluirmos pois, que não existe nexo de causalidade entre o eventual "Medo e pavor de alguém que foi vítima de urna agressão" e o Delirium.
3. No que se refere aos quesitos apresentados nas fls. 3112, ponto 6 ternos a dizer no que respeita a alínea d) A partir das conclusões da Autopsia Psicológica, não tendo a perita encontrado indicadores de patologia psiquiátrica, não achou necessário solicitar uma Perícia Psiquiátrica Complementar. Relativamente à alínea f) embora a resposta a esta alínea pudesse ser respondida por Perícia de Psiquiatria, a perita não encontrou indícios da presença de ciúme patológico. No que se refere a alínea g), embora a resposta a esta. altnea pudesse ser respondida por Perícia de Psiquiatria, a perita não encontrou indícios da presença de delírios e por ultimo relativamente a alínea h), a resposta a este quesito encontra-se na Autopsia Psicológica.
4. Ainda de acordo com o Relatório Clínico constante nas fls. 141, assinado pela Psiquiatra que assistiu a falecida no período de internamento nos Hospitais da Universidade de Coimbra, a mesma afirma que "Não se registaram alterações de humor durante a observação (a doente não se encontrava deprimida), e não há informação de sintomatologia compatível com um quadro depressivo no período pré-mórbido, durante os períodos de critica e os períodos de agitação psicomotora nunca houve referencia a ideação suicida ou sequer ideação passiva de morte. Não são conhecidos antecedentes psiquiátricos na doente, aparentemente, divorciada, mãe de três filhos, com um funcionamento adequado até ao momento do incidente", conclusões estas que vão ao encontro das conclusões a que chegou a perita, após estudo retrospectivo e biográfico da falecida, tendo concluído que não foram encontrados factores preditivos indicadores de eventual acto de suicídio.
[39] Em 09/04/2008, a fls. 3189, foi proferido despacho a determinar:
Notifique-se a Srª Perita para responder a todas as questões apresentadas pelo arguido e já na sua posse. Prazo: 5 dias.
[40] A resposta surgiu através de ofício do Centro Hospitalar Conde Ferreira assinado pela Srª Drª ..., onde se refere que «todos os quesitos solicitados pelo arguido se encontram devidamente respondidos...» (fls. 3192).
[41] De seguida, foi proferido novo despacho, datado de 16/04/2009, a fls. 3194, no qual é determinado:
«Solicite à Srª Perita para responder aos quesitos identificados nesse acórdão. Prazo: 5 dias».
[42] Por fax de 22/04/2008, a fls. 3198, o arguido apresentou este requerimento:
..., arguido nos autos à margem referenciados,
Vem, na sequência da resposta dos senhores peritos, e após decisão do Venerando Tribunal da Relação sobre o impedimento dos senhores juízes, requerer e expor o seguinte:
•
A senhora perita continua a não dar resposta as questões colocadas, conforme ordenado por este Tribunal e Tribunal da Relação de Guimarães;
1 A senhora perita continua a limitar a perícia à autópsia psicológica por si realizada. — a qual, conforme sempre o dissemos, foi tecnicamente deficiente —, quando o que foi solicitado e ordenado não se restringe, nem se pode restringir a essa autópsia, nem à opinião que a Sra, perita extraiu dessa perícia;
3. Os senhores peritos têm que levar a cabo as perícias necessárias para responder a todas as questões colocadas e devidamente elencadas, quer pela defesa, quer pelo Ministério Público, respectivamente na contestação e acta de primeira audiência de julgamento, devendo para o efeito, e conforme requerido no ponto I do meios de prova requeridos na contestação, avaliar a personalidade da falecida ..., suas características psíquicas e eventuais patologias (transtornos ou distúrbios psiquiátricos, depressão, ciúme patológico, delírios, etc.) bem como, deve historiografar todos os antecedentes psiquiátricos que sobrevieram à morte violenta do marido e antecederam os factos que deram origem aos presentes autos e para se elaborar diagnóstico diferencial. Mais deverá responder a todas as questões colocadas pelo M.P.
Para o efeito deverão ser realizadas todas as perícias necessárias, por peritos do Instituto Nacional de Medicina Legal ou a indicar por este, e não a indicar pelo Centro Hospitalar Conde Ferreira, urna vez que se afigura que este último, nos termos da lei, não pode indicar quem deve realizar as perícias que estão por realizar — independentemente da questão suscitada de falta de qualidade técnica das perícias já realizadas,
Pelo exposto, não se compreende, nem se admite como aceitável que não obtenha este Tribunal as respostas as questões/quesitos colocados, nomeadamente porque "a resposta encontra-se prejudicada face ao facto da perícia realizada não ter como objectivo-mor, a avaliação da credibilidade dos depoimentos prestados pela falecida..." (cfr. ponto 1 da resposta do Sra. Perita ...). E se assim é, necessariamente que terá este Tribunal que ordenar a realização de perícia que tenha por objecto (ou objecto-mor) todas as questões e quesitos colocados, devendo estas ser realizadas por peritos nomeados com competência técnica própria para o efeito. O que respeitosamente se requer.
Mais também não se compreende que a perita que realizou a autópsia psicológica. e que não respondeu, em momento anterior à decisão do Tribunal da Relação, a vários quesitos colocados, porque não seriam da sua competência técnica (a perita é Psicóloga Clínica), mas sim de psiquiatria, continue após a tomada de posição do Venerando Tribunal, a ser quem responde aos quesitos que não obtiveram S/resposta e o faça da forma que o fez no ponto 3 da sua resposta, a qual aqui damos por reproduzida e integrada, e que novamente, não responde cabalmente e féria para além das competências técnicas próprias ou sem que tenha competência técnica para tal.
Pelo exposto, deverá o Tribunal ordenar que os quesitos e questões colocadas cuja resposta o Tribunal da Relação de Guimarães ordenou, sejam respondidos no âmbito de perícia a realizar por psiquiatra forense indicados pelo sugerindo-se, face as posições assumidas e às dúvidas técnicas suscitadas sobre a perícia realizada por peritos do Centro Hospitalar Conde Ferreira, que os mesmos, por questão de transparência, não integrem quadros dessa instituição.
Acresce que, para além dos documentos e meios de prova já disponibilizados anteriormente aos senhores peritos, também a estes deverá ser disponibilizado todo o Apenso 1 junto aos autos, compaginado pela Polícia Judiciária e constituído por todos os registos administrativos e clínicos relativos ao internamento da falecida ..., os quais anteriormente não foram a estes disponibilizados, nem aparentemente a qualquer sujeito processual, pelo menos não o foram à defesa até à fase de recurso. Destes registos consta a medicação ministradas todos os dias, diários clínicos, registos de evolução da paciente e diversos outros dados que são essenciais a resposta às questões e quesitos colocados nomeadamente referentes a credibilidade das declarações prestadas pela falecida durante o internamente ou relativas à existência de delirium — que não resulta, salvo o devido respeito, ao contrario do que é referido erroneamente e de forma infundamentada pela Sra perita, de um quadro de sépsis — ou outra perturbação da consciência, bem corno, relativas à sua personalidade, suas características psíquicas e eventuais patologias, anteriores ou posteriores ao internamento ou processo vitimação. O que respeitosamente se requer.
[43] A fls. 3202 e segs, em 23/04/2008, foram juntas aos autos novas respostas e esclarecimentos prestados pela Srª Drª ..., psicóloga clínica, nestes termos:
Vimos por este meio responder aos quesitos indicados nas fls. 3112 (ponto 6) e 3112, com vista ao amplo esclarecimento dos quesitos e questões apresentadas, referentes ao processo número 459/05.00AFLG. Ternos a dizer o seguinte:
1. No que se refere aos quesitos apresentados nas fls. 3112, ponto 6.1 , temos a dizer no que respeita a alínea d) A partir das conclusões da Autopsia Psicológica não tendo a perita encontrado indicadores de patologia psiquiátrica, não achou necessário solicitar uma Perícia Psiquiátrica Complementar. Relativamente a alínea f) Embora a resposta a esta alínea pudesse ser respondida por Perícia de Psiquiatria, a perita não encontrou indícios da presença de ciúme patológico. No que se refere a alínea g), Embora a resposta a esta alínea pudesse ser respondida por Perícia de Psiquiatria, a perita não encontrou indícios da presença de delírios e por ultimo relativamente a alínea h), a resposta a este quesito encontra-se na Autópsia Psicológica.
2. Relativamente ainda ao ponto 6.2, ternos a dizer que a credibilidade das declarações prestadas pela vítima a todos aqueles que com ela contactaram depois dos factos, a resposta encontra-se prejudicada face ao facto da perícia realizada não ter como objectivo-mor, a avaliação da credibilidade dos depoimentos prestados pela falecida, nesse sentido não existe possibilidade real e técnica de procedermos a urna Avaliação Retrospectiva da Credibilidade da falecida.
3. Ainda sobre o ponto 6.2, o quesito apresentado, correspondente ao período de hospitalização da vítima, temos a dizer que esta padeceu dum quadro denominado Delirium. O Deliriurn, é uma perturbação da consciência que se acompanha por urna alteração da cognição. No caso em apreço, foi urna consequência psicológica dum estado médico geral (a sepsis que a falecida sofreu em consequência das queimaduras). Concluímos pois, que não existe nexo de causalidade entre o eventual "Medo e pavor de alguém que foi vítima de uma agressão" e o Delirium.
4. No que respeita aos quesitos apresentados nas fls. 1969 e 1970, temos a dizer o seguinte: 5. A) Sobre a personalidade da falecida ... , podemos dizer em função dos elementos recolhidos, que a mesma teria uma personalidade adaptada, fazendo uso de mecanismos de defesa funcionais, não tendo sido possível evidenciar, tal como foi relatado na Autópsia Psicológica, indicadores de presença de patologia psicológica.
6. B) Não foram encontrados indicadores de presença de patologia psicológica.
7. C) Sobre a personalidade da falecida ... , podemos dizer em função dos elementos recolhidos, que a mesma teria urna personalidade adaptada, fazendo uso de mecanismos de defesa funcionais, não tendo sido possível evidenciar, tal corno foi relatado na Autópsia Psicológica, indicadores de presença de patologia psicológica,
8. F) A partir das conclusões da Autopsia Psicológica, não tendo a Perita encontrado indicadores de patologia psiquiátrica, não considerou necessário solicitar urna Perícia Psiquiátrica Complementar.
9, E) Foi anteriormente esclarecido na Autópsia Psicológica que a falecida ... , não apresentava indicadores de natureza psicológica que a caracterizassem corno uma. pessoa depressiva. Ainda de acordo com o Relatório Clínico constante nas fls., 141, assinado pela Psiquiatra que assistiu a falecida no período de internamento nos Hospitais da Universidade de Coimbra, a mesma afirma que "Não se registaram alterações de humor durante a observação (a doente não se encontrava deprimida), e não há informação de sintomatalogia compatível com um quadro depressivo no período pré-mórbido, durante os períodos de crítica e os períodos de agitação psicomotora nunca houve referência a ideação suicida ou sequer ideação passiva de morte. Não são conhecidos antecedentes psiquiátricos na doente, aparentemente, divorciada, mãe de três filhos, com um funcionamento adequado até ao momento do incidente", conclusões estas que vão ao encontro das conclusões a que chegou a perita, após estudo retrospectivo e biográfico da falecida, tendo concluído que não foram encontrados factores preditivos indicadores de eventual acto de suicídio. A perita não encontrou indícios relevantes para o pedido de urna Perícia Psiquiátrica Complementar.
10. F) Embora a resposta a esta alínea pudesse ser respondida por Perícia de
Psiquiatria, a Perita não encontrou indícios da presença de ciúme patológico.
11. G) De acordo com as informações recolhidas, não foi encontrada a presença de actividade delirante relativamente à falecida, no período anterior ao acidente, tendo no entanto e de acordo com as informações constantes nos autos correspondente ao período de hospitalização da vítima, ternos a dizer que esta padeceu dum quadro denominado Delirium, O Delírium, é uma perturbação da consciência que se acompanha por uma alteração da cognição, No caso em apreço, foi uma consequência psicológica durn estado médico geral (a. sepsis que a falecida sofreu em consequência das queimaduras). Concluímos pois, que não existe nexo de causalidade entre o eventual "Medo e pavor de alguém que foi vítima de uma agressão" e o Delirium.
12. H) A relação entre a falecida e o arguido, encontra-se descrita na Autópsia psicológica.
13. T) No que respeita às consequências emocionais, afectivas e psiquiátricas que advieram da morte violenta do marido da falecida ... , e tendo em conta os documentos de 2°Juizo do tribunal Judicial de Lamego, com o número 129/09.6TBLMO, ternos a dizer que de acordo com as folhas n°s 1172, 1173 e 11,74, que a resposta emocional e afectiva que a falecida teve à morte do marido, demonstra ser urna resposta funcional e adaptada a um evento considerado traumático. Tanto mais, que a depressão, sob o ponto de vista psicológico, é sinónimo de urna resposta funcional perante urna perda, sendo necessário tempo para quo as pessoas integrem essa perda e façam o luto psicológico da mesma.
14.J) Sobre qual seria o eventual estado emocional da falecida descritos nos artigos 51°, 52°, 56° e 57°, que deram origem a participações, a resposta está prejudicada pelo facto de não existirem testemunhos objectivos sobre o contexto que terá provocado a discussão entre o arguido e a falecida, contexto esse, essencial para se poder deduzir as reacções psicológicas aos acontecimentos posteriores à discussão entre ambos.
[44] A fls. 3216, foi designado dia para julgamento e ordenada a comparência da Srª Drª ..., a fim de prestar esclarecimentos em audiência. Conforme acta de fls. 3275 e registo áudio, a Srª perita prestou nesse acto os esclarecimentos que lhe foram solicitados pelo Tribunal e sujeitos processuais. Nessa sequência, o arguido formulou novo requerimento, nestes termos:
1 - Na sequência dos esclarecimentos e declarações prestados pela senhora perita agora em sede de audiência resulta claro que:
- No que se refere às respostas já por si anteriormente "respondidas" em relatórios juntos aos autos, nomeadamente a fls. 2033 a 2035 e nos quais a mesma remete as suas "respostas" para uma avaliação que deve ser realizada por perícia de psiquiatria, e dos esclarecimentos por si já prestados em audiência de julgamento neste Tribunal sobre o facto de, apesar dessas questões que mereceram essas respostas de não pronúncia, poderem e deverem ser respondidas por um perito de psiquiatria, a mesma já na altura emitiu opinião de não ter encontrado indícios quer da presença de ciúme patológico quer não ter encontrado a presença de delírios, as actuais respostas, nomeadamente o ponto 3 do relatório junto a fls. 3133 e 3134 não vieram suprir nem responder aos quesitos que o venerando Tribunal da relação considerou não respondidos e que ordenou que sobre os mesmos fosse obtida uma resposta.
Ora, o tribunal da Relação de Guimarães na altura em que prolatou o douto acórdão já conhecia essas respostas da senhora perita ..., porque naturalmente se indicou a prova, nomeadamente o referido relatório e as declarações por esta prestados em sede de audiência de julgamento.
Pelo exposto, no que se refere às concretas respostas e quesitos subjacentes vertidos no citado ponto 3 de fls. 2133 e 3134, não foi até ao presente momento cumprido o decidido no douto acórdão, uma vez que o tribunal ordenou, sem prescindir resposta e esclarecimento já prestado e conforme a resposta agora novamente reproduzida, que esses quesitos fossem respondidos, pelo que ordenou que se solicitasse ao IML esses mesmas respostas, que, obviamente, o nosso entendimento e do que parece resultar do próprio acórdão, por peritos que não o que já apresentara aquelas mesmas "respostas" ou "não respostas", em virtude da necessidade das mesmas serem prestadas por perícia de psiquiatria.
Pelo exposto, não tendo sido dado cumprimento ao ordenado ou sido ordenado à mesma perita que viesse dar as mesmas respostas que nessa matéria já dera, afigura-se essencial que o Tribunal ordene e solicite ao IML, e perito por estes a indicar, venha dar as respostas aos quesitos que a Relação de Guimarães entendeu apesar dos esclarecimentos e relatórios já juntos aos autos, não se encontrarem respondidos, sob pena de violação do caso julgado, forma e omissão de produção de prova que se reputa essencial, o que aqui se alega para os devidos e legais efeitos.
Esta perícia, que se requer engloba-se na perícia anteriormente requerida e ordenada e ao contrário do que hoje já foi referido por diversas vezes, não resulta na ampliação do objecto da mesma, mas apenas do seu cumprimento por perito que não, o que não pode responder, nos termos por si invocados quer no seu relatório quer nos esclarecimentos prestados em audiência.
2 - Na sequência das declarações ora prestadas pela Senhora Perita no que se refere às restantes respostas, nomeadamente com as que se prendem com delirium e da credibilidade das alegadas declarações prestadas pela vítima durante o seu internamento hospitalar - as quais deverão ser respondidas de acordo com o consignado no ponto 7 do douto acórdão - respeitosamente se requer que sejam facultados todos os dados e informações disponíveis nos autos, e que anteriormente não forma disponibilizados à Senhora Perita, para que esta possa com segurança e com acesso a todos os dados existentes, pronunciar e responder a todas as questões colocadas.
Tal disponibilização deverá ser por prazo que a Ilustre Perita julgue conveniente para poder conhecer e apreender todos os dados e elementos disponíveis nos autos. Na posse de todos esses elementos estará certamente a Senhora Perita em melhores condições e em segurança responder às supra citadas questões suscitadas, o que se afigura essencial à descoberta da verdade e boa decisão da causa.
[45] Sobre este requerimento, depois de ouvido o Ministério Público e o assistente, recaiu o despacho recorrido, supra transcrito (ponto 2.3.1. desta decisão).
2.3.2. Nulidade da decisão recorrida, nos termos do artº 379º do CPP
[46] Habilitados com estes elementos, passemos agora a apreciar as questões supra referidas, a começar pela incidência do vício de nulidade contemplado no artº 379º do CPP, norma que vem referida no elenco das disposições violadas nesses termos, ou seja, sem especificação de número ou alínea. Porém, percorrendo as conclusões, verifica-se que nenhuma alusão é feita a esse vício. Apenas no corpo da motivação surge singela referência a que o tribunal «deixou de se pronunciar sobre questões que tinha que se pronunciar».
[47] Ora, não se vê quais as questões que o despacho recorrido deixou por conhecer. O seu objecto versou os requerimentos formulados pelo arguido relativamente às respostas periciais ainda em falta e conheceu especificadamente dessa pretensão, que indeferiu. Nessa medida, é patente que todas as questões colocadas obtiveram a devida pronúncia, asserção que não é afastada pela circunstância da decisão não assumir o sentido defendido pelo recorrente. Aliás, exactamente porque o arguido não concorda com o decidido interpôs recurso, no sentido da respectiva modificação por esta Relação, e não o regresso ao Tribunal a quo para suprir qualquer omissão, o que demonstra, mesmo na sua perspectiva, a inverificação do apontado vício.
2.3.3. Da violação de caso julgado
[48] Passemos à questão a que o recorrente dedica maior atenção e expressão nas conclusões deste recurso intercalar. Trata-se de saber se foi respeitado o ordenado por este Tribunal da Relação no acórdão proferido em 11/02/2008, o que encontra resposta negativa por parte do arguido, a partir da consideração de que a Drª ... não estaria habilitada a pronunciar-se sobre os aspectos por responder evidenciados naquele acórdão e que, por isso mesmo, não foi ordenado naquela decisão que fosse a mesma perita a dar resposta aos quesitos e questões enunciados.
[49] Importa desde logo considerar que esse raciocínio – de que não foi ordenado no aresto de 11/02/2008 que a Drª ... continuasse a perícia – é falacioso, pois pretende transformar uma não-decisão em decisão de afastamento da srª perita. Como resulta expressis verbis do texto do referido acórdão, foi ordenado que se solicitasse as respostas em falta «ao IML (Conde Ferreira)», ou seja, à mesma entidade designada pelo Gabinete Médico Legal do Porto para desenvolver a perícia, em todas as suas componentes, e subsequentemente designada para o efeito pelo despacho judicial de fls. 1024. Em nenhum trecho da fundamentação ou do decisório - supra transcritos quase na íntegra - surge referência à necessidade, ou mesmo conveniência, de intervenção judicial na designação pelo Centro Hospitalar Conde Ferreira de perito mais habilitado a fornecer as respostas solicitadas ou simplesmente de outro perito ou especialista, seja em substituição da Drª ..., seja para constituir equipa multidisciplinar. Mais, a vontade do arguido de afastar a Drª ... e de questionar a sua competência e a qualidade do desempenho, através das pretensões de nova perícia e de pedido de parecer ao Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, foram consideradas sem fundamento e o recurso improcedeu nessa parte.
[50] Temos, então, que a questão de saber quem devia responder aos aspectos da perícia que não haviam obtido pronúncia não se coloca da forma como o recorrente a apresenta, pela negativa, mas sim pela positiva, pois só dessa forma poderemos considerar que existe uma injunção dirigida ao Tribunal a quo e encontramos campo de discussão sobre o seu desrespeito. Ora, o acórdão desta Relação de 11/02/2008 não determina quem deverá completar a perícia, nem toma posição sobre a necessidade de fazer intervir perito com qualificação distinta da da Srª Drª ... – psicóloga clínica – pelo que, ao dirigir a solicitação de respostas complementares ao «IML, nomeadamente aos peritos subscritores da perícia psicológica junta aos autos», e ao aceitar as respostas e esclarecimentos prestados pela mesma, na qualidade de perita do Centro Hospitalar Conde Ferreira, não se encontra qualquer violação de caso julgado por parte do Tribunal a quo.
[51] O recorrente considera, por outro lado, que a Srª Drª ... não estava habilitada a responder aos aspectos identificados no referido acórdão de 11/02/2008, pois apenas psiquiatra forense o poderia fazer. Sem razão, como se passa a demonstrar.
[52] Antes de mais, importa dizer que não cabe aqui densificar a linha de fronteira entre duas ciências: a psiquiatria e a psicologia, maxime a psicologia clínica, ambas ciências naturais forenses, de acordo com visão antropológica da saúde mental do indivíduo. Cremos que se trata de uma discussão sem resposta clara, com tendência expansiva em sentido que normalmente acompanha o ponto de visão do especialista que sobre tal se pronuncia, mas que, ainda assim, cremos, encontra consenso na consideração de que a psicologia estuda o funcionamento da mente no plano dos comportamentos humanos, em particular os processos psíquicos que precedem qualquer conduta, e de que a psiquiatria, ramo da medicina, mais concretamente da neurologia, estuda as doenças mentais Sobre estas distinções, cfr. João Curado Neves, A problemática da culpa nos crimes passionais, Coimbra Ed., 2008, pág. 25 e segs. Destaca-se, em particular, o reporte das frequentes disputas ásperas entre os psicólogos e os psiquiatras forenses no domínio dos estados passionais e do seu relevo jurídico-penal, como indicado nas págs. 30, 36 e 50 a 52, que apelida de «guerra de competências». . Todavia, porque estas decorrem muitas vezes de anomalias de origem não orgânica, com expressão nos comportamentos e nas vivências do sujeito, ou seja, no campo da psicopatologia João Curado Neves, op. cit, pág. 172. , de que a generalidade dos psiquiatras também se ocupa, o problema da delimitação de esferas de competências assume geometria marcada por círculos secantes, com campos de competência comum, mesmo que com diferentes perspectivas, partilhando o objecto: a mente humana. Em suma, o recorte claro entre a psicologia clínica e a psiquiatria, excluindo uns, ou outros, em particular na área da caracterização médico-legal dos estados passionais, incluindo naturalmente a caracterização post mortem, como pretende o recorrente, constitui exemplo de trabalho de Sísifo, supérfluo.
[53] A segunda consideração a este propósito prende-se com o escopo da actividade pericial nestes autos. No processo penal, o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial é posto ao serviço da verdade e da boa decisão da causa e exprime-se em função do objecto processual e não para satisfazer mera curiosidade ou a pesquisa científica. Não têm, por, isso, cabimento perícias que já não encontrem justificação nos princípios da investigação e da necessidade, porque irrelevantes ou supérfluas, de obtenção impossível ou muito duvidosa, como resulta do preceito que consagra os princípios gerais da produção da prova – artº 340º, nº1 e 4, al.s a) e b) do CPP. Nesse âmbito, a formulação de quesitos constitui um instrumento fulcral na centragem da perícia no que é importante e essencial para os autos, transmitindo ao perito com clareza o que se necessita saber. Porém, esse esforço de determinação queda-se no plano jurídico, sem transvase para o plano técnico, não podendo considerar-se que todo e qualquer quesito formulado pode ser respondido nos termos em que é colocado. Cabe ao perito, em primeira linha, indicar se o quesito é passível de resposta de acordo com as legis artis Sem prejuízo, como é óbvio, de esforço interpretativo do quesito ou da solicitação de esclarecimento dirigido ao Tribunal, com vista a precisar o que se quer saber. Do mesmo modo, ao determinar a perícia, deve o juiz escrutinar com atenção a formulação dos quesitos sugeridos pelos sujeitos processuais., o que, em si mesmo, constitui juízo técnico, científico ou artístico sujeito ao regime do artº 163º, nº2 do CPP: o Tribunal deve apreciar criticamente essa posição, mas apenas pode insistir e ordenar a resposta contra o parecer do(s) perito(s) com fundamentação acrescida e mais qualificada quanto à respectiva viabilidade científica.
[54] Posto isto, o acórdão proferido por esta Relação em 11/02/2008 foi muito claro na indicação de que se pretendia que a perícia fosse cabalmente respondida e completada quando a uma componente essencial, a saber, a credibilidade das declarações prestadas pela vítima a terceiros no decurso do internamento hospitalar e até que faleceu. Para tanto, e com esse escopo, determinou que fosse dada resposta a quatro quesitos, a saber:
d) Se a ... sofria de qualquer distúrbio psiquiátrico;
f) Se a ... sofria de ciúme patológico;
g) Se a ... sofria ou sofreu em qualquer momento antes e durante processo de vitimação de delírios?
h) Que tipo de relação amorosa tinha a ... com o arguido Luís Pereira, devendo a senhora perita caracterizar e definir a mesma.
A estes quesitos, acrescentou-se duas interrogações, nenhuma formulada pelo recorrente (foram ambas indicadas pelo Ministério Público):
- Se as declarações prestadas pela vítima aos elementos da Polícia Judiciária e o relato que a vítima fez dos factos a todos aqueles que com ela contactaram depois destes, nomeadamente, profissionais de saúde do Hospital de Felgueiras (médicos, enfermeiros e auxiliares de acção médica), agentes da G.N.R. que neste Hospital tomou conta da ocorrência, profissionais de saúde dos Hospitais da Universidade de Coimbra onde aquela passou o restante tempo de vida, se tais declarações correspondem a uma manifestação de verdade, ou, se pelo contrário, mais não são do que um modo de se vingar e prejudicar o arguido.
- “Se os delírios que a vítima apresentou enquanto esteve internada naqueles Hospitais de Coimbra correspondem a uma perturbação psicológica ou psiquiátrica sem qualquer nexo, ou, se pelo contrário, correspondem ao medo e pavor de alguém que foi vítima de uma agressão efectuada nos termos em que é descrita no despacho de pronúncia”.
[55] Ora, todos esses quesitos e questões foram respondidos:
i. Quanto à al. d), foi dada resposta negativa, o que se fez não só a partir das competências próprias – de psicóloga clínica – mas também tendo em atenção relatório subscrito pela psiquiatra que assistiu a falecida. O recorrente sustenta o essencial da sua argumentação que a perita prestou em audiência esclarecimento no sentido de que não era capaz de responder a essa questão, chamando inclusivamente à colação esclarecimentos prestados antes do acórdão de 11/02/2008 e das respostas subsequentes, ou seja, em enquadramento processual ultrapassado pelo que se passou depois. Observa-se, no entanto, que o que foi dito tem um sentido diverso do que é apresentado pelo recorrente. A Srª Perita refere que o processo de diagnóstico, ou seja, a classificação de indicadores psicopatológicos nos distúrbios constantes do manual DSM 4 – como é conhecida a 4ª edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders da American Psychiatric Association – pertence ao domínio da psiquiatria, o que não quer dizer que se considerasse incapaz de avaliar a total ausência de indicadores psicopatológicos. Por isso mesmo, disse logo na primeira prestação de esclarecimentos «... na minha opinião não existem», esclarecendo mais adiante que abrangia nessa declaração qualquer «sintomatologia patológica». Mais tarde, e já esclarecida pela leitura do acórdão de 11/02/2008 sobre o que o Tribunal queria saber e as áreas de tensão que justificaram o regresso dos autos à fase de julgamento, foi mais clara e precisa: não só referiu expressamente a sua habilitação técnica e científica para o efeito como disse que não encontrou «índices de natureza psicopatológica», o que, repete-se, encontra-se agora reforçado em relatório elaborado por médica psiquiátrica que examinou directamente a vítima. Aliás, não é preciso recorrer a elementos exteriores aos autos para encontrar exemplo de outro perito psicólogo que se pronuncia em primeira linha sobre a presença/ausência de sintomatologia psicopatológica, como emerge do relatório constante de fls. 2210-2223 relativo ao arguido, efectuado a pedido do perito psiquiatra, que depois, incorporando na sua avaliação os elementos referidos no relatório psicológico-forense, tomou posição relativamente à ausência de anomalia psíquica e imputabilidade do examinado (cfr. fls. 2193-2209). Isto porque o conceito normativo constante do artº 20º do CP convoca essas duas perspectivas e saberes técnicos, levando mesmo Figueiredo Dias a considerar que deveria, nesses casos, ficar consagrada no ordenamento processual penal a imperatividade da perícia colegial e interdisciplinar In Sobre a inimputabilidade jurídico-penal em razão de anomalia psíquica, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, pág. 279.. Porém, não foi esse o escopo da perícia – inimputabilidade ou imputabilidade diminuída – solicitada e realizada pela Srª Drª ..., incidente sobre a vítima e com notória prevalência da apreciação dos processos psíquicos que regem o comportamento humano sobre a avaliação sintomatológica, como ficou explicado a fls. 1939-1941 e esclarecido pela referida perita em audiência.
ii. Também a al. f), relativa à presença de ciúme patológico, foi respondida. Retomando as considerações referidas na autópsia psicológica, mas não se limitando a remeter para esta, disse a Srª perita que «não encontrou indícios da presença de ciúme patológico».
iii. E, quanto à al. g), respondeu que não foi encontrada actividade delirante relativamente à falecida no período anterior ao evento desencadeante das lesões físicas. Relativamente ao que aconteceu depois, já em ambiente hospitalar, refere-se que sofreu de perturbação da consciência acompanhada de alteração da cognição, consequência psicológica da sépsis. E conclui que não existe nexo causal entre o medo e pavor de alguém que foi vítima de uma agressão e aquele quadro psicológico, denominado “delirium”, respondendo assim também à segunda interrogação formulada pelo Ministério Público.
iv. Sobre a relação entre a falecida e o arguido, objecto da al. h), remete para a autópsia psicológica, o que se compreende como remessa para a parte descritiva do relatório de fls. 2041 e segs. Não foi, seguramente, a melhor forma de corresponder ao solicitado, tanto mais que, como já referimos, a Srª Perita tinha plena consciência do que se discutia e da exigência de clareza nas respostas, o que sempre fica prejudicado pelo reenvio para outro texto. Porém, partir dessa condicionante para concluir que houve uma «não resposta», como diz o recorrente, é caminho que se mostra claramente abusivo. Ao pedir uma «caracterização», o quesito apela a uma descrição analítica das componentes psicológicas dessa interacção passional, o que se encontra no supra referido relatório e foi completado nos diversos esclarecimentos prestados em audiência pela perita. Pode o recorrente discordar dessas respostas e esclarecimentos, mas não pode validamente sustentar que nada foi dito a esse propósito com valor técnico-científico.
v. Finalmente, e quanto à primeira interrogação formulada pelo Ministério Público, a resposta foi a de que não existia possibilidade real e técnica de proceder a uma avaliação retrospectiva da credibilidade da falecida. Aliás, recorde que essa interrogação foi logo formulada por aquele sujeito processual com a ressalva da sua «viabilidade» Cfr. requerimento em acta de fls. 956-968, supra transcrito, mormente o segmento «… sendo viável a diligência requerida…»..
[56] Aqui chegados, importa ponderar as referências da Srª Drª ... à realização de «perícia psiquiátrica complementar», o que foi apresentado apenas como caminho eventual, que considera sem justificação, e não como uma necessidade. Mesmo a parte transcrita pelo recorrente dos esclarecimentos prestados na audiência em 03/06/2008, comporta esse sentido inequívoco. Em jeito de ilustração, a situação apresentada aproxima-se daquela, vulgar, do doente que se dirige ao seu médico de família e expõe um conjunto de queixas interpretadas como relativas ao sistema cardíaco, as quais, depois de apreciadas, se revelam inequivocamente assintomáticas. O dever do clínico nessas situações passa por esclarecer que o especialista dessa área será um cardiologista e que o doente é livre de procurar essa – ou outra - especialidade mas que, em sua opinião, tal consulta não tem a menor justificação, sendo supérfluo gastar tempo – e dinheiro – na busca de apoio nessa área. Foi isso mesmo que disse a Srª Drª ... quando escreveu, a fls. 3204, «A perita não encontrou indícios relevantes para o pedido de uma Perícia Psiquiátrica Complementar» e depois, quando interrogada pelo defensor do arguido, «... se eu, enquanto psicóloga achasse que existiria patologia do foro psiquiátrico teria sido a primeira pessoa a solicitar uma prova complementar, uma avaliação complementar de psiquiatria...». E não se diga que a Srª perita manteve exactamente o que antes havia dito e escrito. Ao contrário do que aconteceu nos relatórios elaborados antes da prolação do acórdão desta Relação de 11/02/2008, a Srª perita não mais evocou a lateralidade de qualquer dos quesitos e questões formulados e deu-lhes resposta, socorrendo-se ainda, como já dissemos, de relatório elaborado por psiquiatra para atingir, quando necessário, a dimensão de pluridisciplinaridade.
[57] Assim, e em suma, não existe violação de caso julgado pelo tribunal a quo quando aceitou, por um lado, a continuação da actividade pericial da Srª Drª ... e, por outro, quando considerou prestadas por esta, nos termos em que o fez, todas as respostas e esclarecimentos impostos pelo acórdão desta Relação de 11/02/2008.
2.3.4. Nulidade, por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade
[58] A terceira e última questão colocada no recurso intercalar em apreço, prende-se com a arguição de nulidade prevista na al. d) do nº2 do artº 120º do CPP, vício que o recorrente parece colocar em dois planos: por não ter sido dado seguimento ao ordenado por esta Relação; e por não se ter ordenado «nova perícia», no sentido da intervenção de novos peritos.
[59] No primeiro plano, a conclusão de que foi dado efectivo e cabal seguimento ao ordenado por esta Relação, nos termos supra exposto, acarreta inexoravelmente a conclusão de que não foi omitida essa diligência, essencial para a descoberta da verdade.
[60] Passemos ao segundo plano. No corpo da motivação, o recorrente alude às respostas da Srª Perita de fls. 3133 e 3134, que transcreve, mas ignora por completo as últimas respostas apresentadas pela Drª ..., constantes de fls. 3202 e segs, bastante mais completas. Depois, transcreve requerimento por si formulado a fls. 3198-3200 (original a fls. 3206-3208), o qual não foi apreciado pela decisão recorrida. A decisão recorrida apreciou outro requerimento, formulado na audiência, aliás também transcrito logo no início da motivação de recurso.
[61] Ao que nos parece, o recorrente insiste em considerar que a perícia apenas poderia ser respondida por uma equipa multidisciplinar, onde se incluísse psiquiatra forense, e que foi isso que requereu. Ou seja, independentemente da arguição de violação de caso julgado, sustenta que essa omissão – equipa multidisciplinar – determina nulidade, por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade. Todo esse raciocínio assenta numa premissa que temos como indemonstrada, a saber, que a perícia, em qualquer das suas vertentes técnico-científicas, carece da intervenção de outro perito, para além da Srª Drª .... A Srª perita considerou que estava habilitada a fornecer todas as respostas e não foi apresentada outra opinião científica, mormente de qualificação superior, em termos de permitir postergar essa apreciação. Note-se que a intervenção da srª perita decorre da designação Gabinete Médico Legal do Porto do Centro Hospitalar Conde Ferreira, tendo os respectivos responsáveis designado quem consideraram habilitado a desenvolver a tarefa que lhes fora acometida. E não se diga que essa escolha desconsiderou a competência e o contributo da psiquiatria forense pois, como foi explicado a fls. 1964 pelo Dr. ..., médico psiquiatra, a perspectiva que enformou aquele Centro Hospitalar foi sempre pluridisciplinar, de acordo com o princípio da necessidade. Fez-se, assim, uma escolha técnico-científica com a qual o recorrente não concorda mas não fornece, nem carreou para os autos, razões suficientes para este Tribunal dela divergir.
Pelo exposto, afasta-se igualmente a verificação da nulidade processual prevista no artº 120º, nº2, al. d), parte final, do CPP, e, assim, improcede in totum o recurso do despacho de fls. 3277 a 3279.
2.4. Segundo recurso intercalar
2.4.1. Dos elementos pertinentes ao recurso
[62] Em 14/03/2008, através de requerimento de fls. 3140, o arguido veio requerer «a declaração de impedimento» dos juízes que compuseram o colectivo, a declaração de nulidade de todos os actos praticados desde o retorno dos autos à 1ª instância e que se procedesse a nova distribuição. Por despacho de fls. 3150, foi decidido que não se verificava qualquer impedimento à continuação do colectivo e ordenada a remessa dos volumes 11º a 14º ao Tribunal da Relação de Guimarães.
[63] Neste Tribunal da Relação, por despacho de fls. 3158, foi decidido que só em situação de recurso do despacho que não reconhecera impedimento podia ser conhecida a questão e determinada a devolução dos autos à 1ª instância.
[64] Por despacho de fls. 3216, datado de 28/04/2008, foi designado o dia 27 de Maio de 2008 para a realização de julgamento e determinado:
«Notifique os intervenientes processuais das respostas apresentadas pela Exmª Srª Perita
Notifique-se a Exmª Srª Perita para estar presente na audiência de julgamento a fim de prestar todos os esclarecimentos já requeridos, e a requerer pelas partes.»
[65] Por impedimento da Srª Perita, foi reagendado o julgamento para o dia 03/06/2008 e nessa data reaberta a audiência, na qual foram prestados esclarecimentos pela Srª Drª ... (fls. 3275) e designada a sua continuação para o dia seguinte.
[66] Nesse dia – 04/06/2008 – veio o arguido requerer a recusa dos juízes que compunham o Tribunal Colectivo, evocado o disposto no artº 43º do CPP (acta a fls. 3296 a 3305). Apreciado o requerimento e ordenado a remessa do incidente a este Tribunal da Relação, decidiu-se:
«Atento o disposto no artº 45º, nº2 do CPP, interrompe-se a presente audiência de julgamento e para a sua continuação designo o próximo dia 16 de Junho de 2008, pelas 14:00 horas».
[67] Distribuído o incidente de recusa nesta Relação, em 12/06/2008, e antes mesmo de ter sido proferido qualquer despacho judicial, veio o arguido requerer a recusa do Sr. Desembargador Relator, argumentando que havia intervindo como relator em recurso que manteve a sua prisão preventiva. Subidos os autos incidentais ao Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 02/07/2008, foi indeferida a recusa do Sr. Desembargador Relator. Subsequentemente, por acórdão desta Relação de 20/10/2008, foi julgado manifestamente improcedente o pedido de recusa dos juízes que compõem o Tribunal Colectivo. Na sequência de diversas arguições de nulidade, o apenso contendo os incidentes de recusa (agora a constituir o volume 16ª), baixou à 1ª instância apenas em 28/01/2009 (fls. 3612).
[68] Enquanto pendiam os incidentes de recusa nos tribunais superiores - o que, como se viu, demorou mais de sete meses, em virtude da sucessão de expedientes - o processo prosseguiu na 1ª instância. Assim, e na sequência de pedidos de reagendamento do arguido, por impedimento do seu mandatário, a audiência foi continuada no dia 30/06/2008, tendo sido ouvida em esclarecimentos a Srª Drª ..., na presença do defensor do recorrente, e designada data para a sua continuação (acta de fls. 3717).
[69] No dia 21/07/2008 realizou-se nova sessão, na qual foram registadas declarações do arguido (acta de fls. 3817), o que voltou a acontecer na sessão realizada no dia 14/08/2008 (acta de fls. 3851). Em 03/09/2008 foi atingido o prazo máximo de prisão preventiva, de acordo com o artº 215º, nº3 do CPP, e libertado o arguido. Por seu turno, em 12/09/2008, foi questionado o arguido, que disse não desejar prestar declarações, e ordenado a junção de CRC actualizado do mesmo, o que aconteceu (acta de fls. 3890).
[70] Em 16/09/2008 (fls. 3896), o arguido veio requerer:
«... que seja declarada nula a prova produzida nas citadas continuações de audiência de julgamento que tiveram lugar nestes autos nos dias 30 de Junho de 2008, 21 de Julho de 2008, 21 de Julho de 2008, 14 de Agosto de 2008 e 12 de Setembro de 2008, bem como, requerer que seja reconhecida e declarada a perda de eficácia da prova já realizada na presente repetição do julgamento, nos termos do disposto no nº 6 do artigo 328º do Código Processo Penal».
[71] Sobre esse requerimento recaiu o despacho de fls. 3910, dizendo:
Aguardem os autos que o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães se pronuncie sobre o pedido de suspeição suscitado pelo arguido».
[72] Em 10/10/2008, realizou-se nova sessão de julgamento (acta de fls. 3933), na qual foi discutido o relatório social entretanto junto aos autos (fls. 3916 a 3918). No decurso dessa audiência, o arguido deixou exarado em acta:
«... que é do nosso entendimento que actualmente deveria e deverá ser reconhecido e declarado a perda de eficácia da prova nos termos do artº 328º do C.P.Penal».
[73] Por despacho de fls. 3938, foi decidido:
«Considerando o teor dos requerimentos antecedentes apresentados pelo arguido, nomeadamente, quanto à apontada falta do exercício do contraditório pelo arguido relativamente às últimas declarações prestadas pela Srª Perita na audiência de julgamento, e ao abrigo do princípio da verdade material que ainda domina o processo penal, afigura-se-me de extrema relevância para a boa decisão da causa, a audição da senhora perita na data já designada para a continuação da audiência de julgamento (cfr. artigo 340º, do C.P.P.).
Quanto às demais questões suscitadas pelo arguido nos seus requerimentos antecedentes, determino que os autos aguardem que o Venerando Tribunal Superior se pronuncie sobre a alegada suspeição dos juízes que constituem este Tribunal, suscitada pelo arguido.»
[74] Em 31/10/2008, realizou-se nova sessão de julgamento (acta de fls. 3951-3953), no decurso da qual foram colhidos novos esclarecimentos à Srª Drª .... Nessa defluência, o Sr. defensor do arguido ditou o seguinte:
«o arguido continua a desconhecer os fundamento que justificaram a audição da Srª Perita, no passado dia 30.06.2008, pelo que face a esse desconhecimento e face à impossibilidade de conhecer as concretas questões que o Tribunal entendeu deverem ser esclarecidos pela mesma Perita, não é possível ao arguido colocar qualquer questão ou pedir qualquer esclarecimento.
Acresce que, salvo o devido respeito, que é muito, nenhum “verdadeiro” esclarecimento ou nova questão foi efectivamente colocada no pretérito dia 30.06.2008, afigurando-se, inclusive, tal diligência tenha apenas uma finalidade meramente dilatória e de alterar a continuidade da audiência de julgamento.
Pelo exposto, desconhecendo o arguido as concretas questões e o objecto e fundamento dessa – 30.06.2008 – nova audição, não pode a defesa exercer efectivamente contraditório questionar ou pedir esclarecimentos à Srª Perita.
Logo, face a essa indisponibilidade, impossibilidade, a defesa não pode nem tem qualquer questão a colocar à Srª Perita».
E, de seguida, foi proferido este despacho:
Desde que foi formulado o requerimento de recusa de Colectivo de Juizes que presidiu a este julgamento, o Tribunal tem-se limitado a cumprir o disposto no artº 45º nº2, do C.P.Penal – “Depois de apresentados o requerimento ou o pedido previstos no número anterior, o juiz visado pratica apenas os actos processuais urgentes ou necessários para assegurar a continuidade da audiência”.
Ora, como é bom de ver e tendo em conta a regra processual dos 30 dias o Tribunal tem-se limitado a produzir prova suficiente para que esse prazo não seja ultrapassado.
Além disso, e ainda antes desse requerimento pelo arguido, convém relembrar que este Tribunal reabriu esta audiência a fim de dissipar e esclarecer as dúvidas que o douto acórdão do Tribunal Venerando da Relação de Guimarães apontou.
Nesse sentido, convocou a Srª Perita, para prestar esclarecimentos tendo todos os intervenientes processuais formulado as questões que reputaram necessárias, a última pessoa a exercer tal direito foi o defensor do arguido, nada mais pretender da Srª Perita.
Posteriormente, e como já referimos, o Tribunal na sessão de julgamento do dia 30.06.2008, convocou a Srª Perita com o intuito de assegurar a continuidade da audiência, nos termos do disposto no já referido artº 45º, nº2, do C.P.Penal.
Nesse sentido, formulou-lhe a questão que reputou como necessária, não permitindo qualquer outro esclarecimento, ao abrigo do novamente, do já citado preceito legal.
Após, tal sessão de julgamento o defensor veio suscitar a nulidade de tal procedimento que não foi exercido o contraditório.
Por despacho, datado de 27.10.2008, foi decidido convocar novamente a Srª Perita, a fim do arguido exercer tal direito.
Dada a palavra ao seu ilustre defensor por ele foi dito o plasmado no requerimento que antecede
Assim sendo, e novamente e na observância do disposto no artº 45º, nº2, do C.P.Penal, o Tribunal irá solicitar à Srª Perita os esclarecimento que entender na sessão da audiência de discussão e julgamento.
[75] Em 27/11/2008 (fls. 3978), veio o arguido apresentar requerimento, no qual refere:
« 3. Reiteramos a perda da eficácia da prova pelas razões já anteriormente aduzidas que aqui damos por reproduzidas para os devidos e legais efeitos».
[76] Nesse mesmo dia 27/11/2008, realizou-se nova sessão de julgamento (acta de fls. 3981), no decurso da qual foram colhidos novos esclarecimentos à Srª Drª ....
[77] Em 15/12/2008 (fls. 3958), o arguido apresentou requerimento, no qual:
«... reitera – na sequência da posição já por si anteriormente assumida sobre a continuidade da audiência e perda da prova e sobre as infundadas e dilatórias convocatórias da senhora perita para que se leve a cabo nova tomada de declarações da senhora perita (em violação do disposto no 340º do Código Processo Penal) – a nulidade do processado e a perda da eficácia da prova, o que aqui novamente se suscita para os devidos e legais efeitos».
[78] Em 15/12/2008 e 09/01/2009 Embora na acta conste o ano de 2008, repetindo erro de simpatia comum no início de cada ano., realizaram-se novas sessões de julgamento (actas de fls. 3990 e 3995), no decurso das quais foram colhidos novos esclarecimentos à Srª Drª .... No decurso desta última, pelo Sr. defensor do arguido «foi dito que sem prescindir de esclarecimentos da Srª Perita, reitera argumentos e fundamentos anteriormente aduzidos quanto à perda da eficácia da prova, que aqui renova», sendo proferido despacho a remeter a decisão sobre tal requerimento para momento posterior.
[79] Em 30/01/2009 (fls. 4012), momento em que o apenso dos incidentes de recusa havia sido já recebido na 1ª instância, foi proferido o despacho recorrido, que se passa a transcrever:
Por requerimentos apresentados em 16 de Setembro de 2008, 31 de Outubro de 2008, 27 de Novembro de 2008 e 16 de Dezembro de 2008, veio o arguido suscitar as seguintes questões:
1.- Perda da eficácia da prova produzida na audiência de julgamento, em face do disposto no artigo 328º, nº6, do C.P.P..
2.- Violação do Principio do contraditório relativamente aos esclarecimentos prestados pela Sra. perita.
3.- Violação do disposto no artigo 343º, nº 1, do C.P.P., porquanto o arguido foi "obrigado" a prestar declarações.
4.- A audição da Srª Perita por parte do Tribunal é irregular.
Foi exercido o respectivo contraditório.
Os demais intervenientes processuais, pugnaram pelo indeferimento das alegadas nulidades e irregularidades.
Cumpre decidir:
Nos termos conjugados do disposto nos artigos 45º, nº2, e 328º, nº 5, do C.P.P., o juiz visado com o incidente de recusa tem de praticar os actos urgentes ou necessários para assegurar a continuidade da audiência de julgamento, reabrindo-a do prazo máximo de 30 dias, de modo a evitar a perda de eficácia de prova já realizada.
Compulsados os autos, verificamos que o Tribunal não só teve essa preocupação, como respeitou integralmente esse prazo.
E fê-lo, sempre que oportuno, e em estrito respeito pelos limites do objecto da discussão impostos pelo acórdão do V.T.R.G., com a audição da Srª Perita.
Resulta, assim, de um modo inequívoco que o Tribunal nunca ultrapassou esse prazo dos 30 dias, e que a audição da Srª Perita foi indispensável, repete-se, dado o teor do acórdão do VTRG, para cumprir esse prazo.
Concluímos, assim, esta primeira questão, dizendo que o Tribunal (conforme resulta clara e inequivocamente das datas da realização da audiência de julgamento indicadas pelo arguido no seu requerimento) respeitou o prazo supra identificado e, consequentemente, não existe fundamento legal para declarar perdida a prova produzida até à presente data.
Sobre a "questão" de que a audição da Sr.ª Perita foi "irregular" - e dando, desde já, como pacifico para todos os intervenientes processuais o facto do nosso legislador permitir que o Tribunal ordene oficiosamente a realização de todas as provas que (o Tribunal), reputa como relevantes para o apuramento dos factos (cfr. artigo 340º, n.º 1, do C.P.P.) - impõe-se dizer que a seu tempo, em sede própria (entenda-se, para que não haja mais dúvidas de interpretação, aquando da fundamentação do acórdão), o Tribunal apreciará a relevância das respostas da Srª. Perita, não só para o esclarecimento das dúvidas suscitadas pelo V.T.R.G., mas essencialmente para a descoberta da verdade dos factos em apreço nos presentes autos.
E nessa data, o arguido será doutamente esclarecido se as declarações da Srª Perita foram ou não pertinentes para o esclarecimento dos factos em discussão, e também das dúvidas suscitadas pelo douto acórdão do V.T.R.G..
Por sua vez, e no que concerne à alagada "Violação do disposto no artigo 343º, nº1, do C.P.P.", importa salientar que das actas de julgamento juntas aos autos não resulta que o arguido, nos dias em que quis prestar declarações sobre as suas condições sócio-económicas, tenha sido "obrigado a falar" pelo Tribunal.
Com efeito, se o arguido prestou alguma declaração nessas datas, fê-lo de forma livre, deliberada e conscientemente.
Por último, e no que diz respeito à alegada "violação do Principio do contraditório relativamente aos esclarecimentos prestados pela Sr, Perita", entendemos que a apreciação dessa questão pelo Tribunal ficou claramente prejudicada pelos esclarecimentos solicitados pelo mandatário do arguido à Srª Perita nas audiências seguintes à invocação da mencionada irregularidade.
E mesmo que assim não se entendesse, na audiência de julgamento em que essa alegada irregularidade supostamente ocorreu, o arguido estava presente, e não mencionou a violação desse ou de qualquer outro princípio constitucional.
Neste contexto, e sem mais delongas dada a simplicidade das questões suscitadas pelo arguido, julgamos improcedentes essas irregularidades e essas nulidades (cfr. artigo 118º a 123º, do C.P.P.).
[80] Em 05/02/2009 (fls. 4020-4023, original a fls. 4073-4078, vol 18º), o arguido formulou novo requerimento, evocando os esclarecimentos prestados pela Drª ... na sessão de 09/01/2009 para requerer a realização de perícia que apreciasse «a ministração diária dos fármacos durante o internamento na referida Unidade de Queimados dos Hospitais da Universidade de Coimbra, desde o dia 02/05/2005 até ao dia 19/07/2005, e seus efeitos sobre a sua capacidade cognitiva e de compreensão da realidade, e sobre capacidade de entendimento, de raciocínio, de memória e ainda de expressão e respectiva credibilidade e ou fiabilidade de declarações e afirmações produzidas nesse período sob influência desses fármacos e no decurso de todo um processo traumático resultante do processo de vitimização aqui em julgamento, e eventual fabulação e confusão mental». Esse requerimento foi indeferido no decurso da audiência realizada nesse mesmo dia (fls. 4113).
2.4.2. Perda de eficácia da prova
[81] A primeira questão colocada neste recurso radica na evocação do disposto no artº 328º, nº6 do CPP, preceito que comina com a perda de eficácia da produção da prova o adiamento da audiência por mais de 30 dias. Depois de elencar os princípios que enformam esse normativo – princípios da oralidade e da imediação – e convocar em seu apoio a jurisprudência vinculativa do acórdão de fixação de jurisprudência nº11/2008, de 29/10/200 - «Nos termos do artigo 328º, nº6, do Código de Processo Penal, o adiamento da audiência de julgamento por prazo superior a 30 dias implica a perda de eficácia da prova produzida com sujeição ao princípio da imediação. Tal perda de eficácia ocorre independentemente da existência de documentação a que alude o artº 363º do mesmo diploma» Publicado no DR, 1ª série, nº239, de 11/12/2008.- o arguido pugna pelo reconhecimento de que, também no caso em apreço, perdeu eficácia toda a prova pessoal produzida após a reabertura de audiência subsequente à decisão deste Tribunal da Relação de fls. 3056 a 3117.
[82] Ora, essa argumentação é manifestamente improcedente pois, como se vê da cronologia supra referida, entre as várias sessões de julgamento, todas com produção de prova, nunca mediou período superior a trinta dias, como bem se refere na decisão recorrida.
[83] Mas, para suportar essa evocação, sustenta o recorrente que na audiência realizada em 30/06/2008, teve lugar diligência absolutamente irrelevante para o objecto do processo ou para a descoberta da verdade e reputa esse acto, bom como todos os posteriores de prestação de esclarecimentos periciais complementares, como «meramente dilatório, com o único e exclusivo de assegurar a continuidade da audiência e assim tentar impedir a perda da eficácia da prova». Esta afirmação encerra em si mesma a demonstração da sua falência, pois não se concebe que um acto destinado exactamente a conservar a validade perante a pendência de sucessivos incidente de recusa, possa ser considerada, sem distorção lógica, como dilatório, ou seja, votado apenas a arrastar o processo e protelar o desfecho final. Na verdade, o propósito de assegurar a continuidade da audiência durante a pendência de incidente de recusa constitui um imperativo legal, como decorre do disposto n aparte final do nº2 do artº 45º do CPP, para mais em processo que na altura era urgente, e, principalmente, o arrastamento dessa situação deveu-se unicamente aos expedientes utilizados em cascata pelo recorrente, esses sim, claramente dilatórios.
[84] Dito isto, verifica-se o recorrente questiona a propriedade da recolha de esclarecimentos periciais complementares em audiência a partir de 30/06/2008 por parte da Drª ..., tanto que indica no elenco das normas violadas o artº 158º, para além do artº 340º, ambos CPP. Porém, o acto não foi ordenado pelo despacho recorrido, mas sim pelos despachos de fls. 3216 e 3938, e reafirmado no despacho de fls. 3952 e 3953, todos notificados ao defensor do arguido (cfr. 3219, 3941 e 3851), sem que deles tenha sido interposto recurso. Logo, essa questão encontra-se coberta por caso julgado, não podendo aqui ser discutida. O mesmo acontece relativamente a outra questão com reduzida expressão nas conclusões e que no corpo da motivação surge referido à falta de fundamentação da decisão judicial que determinou a diligência. O que, porque questão não conhecida no despacho recorrido, sempre estaria fora do objecto do presente recurso.
[85] Não obstante, observa-se que a verificação da necessidade para a descoberta da verdade na recolha de esclarecimentos periciais complementares, pressuposto para a determinação do acto, oficiosamente ou a requerimento, como estabelece o artº 158º, nº1 do CPP, fica demonstrada à saciedade pela circunstância do arguido transcrever parte dos esclarecimentos prestados pela Srª perita na motivação do 1º recurso intercalar e de ter fundado o requerimento de fls. 4020 exactamente numa das sessões que agora reputa de meramente dilatórias. E, fundamentalmente, dada a extensão das dúvidas colocadas à perícia e as dificuldades de delimitação a que já aludimos, só podemos concordar com a decisão de fazer comparecer em audiência a Srª Drª ... e permitir – exaurir - todos os esclarecimentos devidos, mormente para facultar à defesa o confronto com resultado que manifestamente não a satisfazia, e que repetidamente questionara por via de requerimento de forma acesa, em busca da descoberta da verdade num processo que, não se esqueça, tem como objecto crime que ofende o bem jurídico supremo: a vida humana.
[86] Argumenta ainda o recorrente que foi violado o princípio do contraditório e, nessa medida, postergadas as suas garantias de defesa, concluindo por infracção dos ditames constitucionais vazados nos nºs 1 e 5 do artº 32º, nº1 da CRP. Sem razão. Na verdade, o contraditório, o direito a ser ouvido pelo Tribunal e a confrontar os meios de prova, foi inteiramente respeitado pela presença e possibilidade de intervenção no acto efectivamente conferidas ao defensor do arguido e, manifestamente, não comporta a dimensão de informação prévia e circunstanciada dos sujeitos processuais sobre o que irá ser perguntado, claramente incompatível com a dinâmica e a dialéctica própria de qualquer acto de produção de prova oral. Como decorre claramente do disposto no nº2 do artº 327º do CPP, o contraditório sobre os meios de prova apresentados no decurso na audiência exerce-se no decurso da sua recolha, globalmente considerada. Foi o que aconteceu nos autos, na medida em que o defensor do arguido esteve presente nas sessões em que foram produzidos os esclarecimentos e pôde questionar a perita antes do encerramento da prova.
[87] Não colhe também a indicação de que o recorrente desconhecia o objecto dos esclarecimentos complementares, pois os supra referidos despachos deixaram claros que a diligência versava a actividade pericial produzida pela Drª ..., aliás, repetidamente questionada e posta em crise nos autos pelo recorrente, mormente nos termos que se referiu a propósito do 1º recurso intercalar.
[88] Também não colhe o argumento de que não foi sabia, porque não notificado, de que a Drª ... iria prestar esclarecimentos na sessão de 30/06/2008, pois não se encontra nas actas referência a que a Srª Perita tenha sido dispensada na anterior sessão. Mas, mesmo que assim não fosse, e porque nenhuma norma comina tal omissão de advertência sobre os meios de prova convocados de nulidade, estaríamos perante irregularidade a arguir nos dez dias posterior a essa sessão. O arguido não o fez, vindo mesmo a requerer cópia da sua gravação (fls. 3811), e só muito mais tarde, em 17/09/2008 (recorde-se que o processo correu em férias judiciais, pois o arguido foi libertado em 03/09/2008), veio aludir ao que se passara naquela sessão. Consequentemente, face ao disposto no artº 123º, nº1, do CPP, essa sustentada irregularidade sempre estaria sanada.
[89] Por fim, não se vislumbra, nem o recorrente indica, qual o fundamento de nulidade da prova consubstanciada nos esclarecimentos prestados, seja perante o disposto no artº 126º do CPP, seja em qualquer outro normativo. Seguramente, a circunstância dos esclarecimentos serem breves, ou mesmo parcos, ou a convicção do recorrente quanto ao seu demérito, não configura qualquer ilegalidade geradora de irregularidade, de nulidade ou, de forma ainda mais patente, de inexistência.
[90] Nessa medida, e sem necessidade de mais considerações, porque manifesta a falta de razão do recorrente, afasta-se a reclamada violação do disposto no nº 1 e 5 do art º 32º da CRP e dos artºs. 158º, 327º, 328º e 340º do CPP, com referência aos esclarecimentos complementares prestados em audiência pela perita Drª ....
[91] Num segundo plano, e com expressão nas conclusões 13 a 15, vem o recorrente sustentar que foi violado o disposto no artº 343º, nº1 do Código de Processo Penal. Para tanto, sustenta que foi obrigado a prestar declarações. Essa formulação e, especificamente, a utilização neste contexto do verbo obrigar remete para o sentido corrente de forçar, de violentar a vontade, o que convoca de imediato a regra do nº 1 do artº 126º do CPP, fulminando com o vício de nulidade a prova obtida por tortura ou coacção. Porém, percorrendo as actas e nelas não encontrando o menor sinal da grave imputação formulada, nem o exercício do indeclinável direito de protesto por parte do mandatário do arguido, forma-se a conclusão de que aquela alegação não corresponde à realidade, o que se sedimenta em definitivo com a audição da gravação da prova no âmbito da apreciação da impugnação ampla da decisão em matéria de facto, adiante apreciada. Na realidade, nas sessões que tiveram lugar nos dias 21/07/2008, 14/08/2009 e 12/09/2008, foram colocadas questões ao arguido, o qual escolheu responder nas duas primeiras sessões e declarou remeter-se ao silêncio na terceira, sem o menor sinal de constrangimento e, muito menos, de coacção.
[92] Diz o arguido que foi violado o disposto no artº 343º, nº1 do CPP. Esse preceito consagra no ordenamento processual penal o privilégio contra a auto-incriminação - nemo tenetur se ipsum accusare – e, em conjunto com o disposto no artº 345º, estabelece que o arguido tem o direito a não responder, espontaneamente ou a recomendação do seu defensor, a quaisquer questões que lhe sejam colocadas. Porém, porque o exercício desse direito ao silêncio pode ser a todo o tempo alterado, predispondo-se o arguido a prestar esclarecimentos, os normativos supra referidos não vedam que o Juiz Presidente se lhe dirija a qualquer momento da audiência e questione sobre a vontade de responder a questões e, em benefício da defesa, indique qual o âmbito das questões que pretende ver respondidas. Foi o que aconteceu nas três sessões supra referidas e, em todas, encontramos na reacção do arguido escolha livre e informada, desde logo porque efectuadas na presença do seu defensor constituído, seguramente ciente do direito consagrado na parte final do nº1 do artº 345º do CPP, e que não carece de ser reafirmado em cada sessão de julgamento: basta a advertência inicial, cumprida nos presentes autos. Aliás, como se ouve no registo em CD da sessão de 14/08/2008, o arguido referiu que mantinha o direito ao silêncio quanto aos factos imputados mas, depois de ser informado – com adequada urbanidade, acrescente-se - que os aspectos que o Tribunal pretendia esclarecidos incidiam apenas sobre as suas condições pessoais, aceitou expressamente pronunciar-se sobre tais aspectos. Disse: «Sim, isso confirmo».
[93] Esta conclusão permite igualmente dar resposta a outra alegação do recorrente – de que foi violada a intimidade do recorrente – pois a inquirição de arguido sobre as suas condições sócio-familiares releva para a questão da determinação da sanção (artº 369º do CPP). Assim, nada obsta que, mesmo constando dos autos relatório social, seja o arguido questionado sobre se pretende esclarecer ou acrescentar esse elemento de ponderação e, escolhendo aquele fazê-lo, seja ouvido sobre tais aspectos, sem violação da privacidade ou da intimidade. Desde logo porque a revelação, a existir, corresponde à vontade do titular do direito de personalidade.
[94] Termos em que improcede, também neste plano, a argumentação do recorrente, inexistindo nulidade da prova consubstanciada pelas declarações prestadas pelo arguido nas sessões de 21/07/2008 e 14/08/2008, ou qualquer vício nesses actos.
2.4.3. Nulidade, por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade
[95] Na 6ª conclusão, diz o recorrente, pressupondo o êxito de ver reconhecida a perda de eficácia da prova, que a sua não repetição configura omissão «susceptível de configurar o vício de nulidade a que alude o art. 120º, nº2, alínea d) do CPP». Afastada da perda de eficácia da prova, fica igualmente removida a necessidade da sua repetição e a verificação do apontado vício.
[96] Improcede, pelo exposto, na íntegra, também este recurso.
2.5. Recurso do acórdão condenatório
2.5.1. Da decisão recorrida (quanto aos factos)
[97] Apreciados os recursos incidentes sobre as decisões intercalares, cumpre, agora, defrontar as questões colocadas no recurso que versa a decisão condenatória, a começar por aquelas dirigidas à decisão em matéria de facto. Para tanto, importa ter presentes os fundamentos de facto exarados no acórdão condenatório Transcrição, inserindo no texto, entre parênteses rectos, as notas de rodapé, para maior facilidade de leitura.:
FACTOS PROVADOS
Há cerca de 3 anos atrás antes da prática dos factos, o arguido conheceu profissionalmente ... , tendo desse conhecimento, resultado uma relação amorosa entre ambos.
Essa relação amorosa, pelo menos nos meses que antecederam a prática dos factos, foi muito conturbada, tendo-se sucedido vários episódios que resultaram em queixas judiciais. Não obstante, durante esse período de relacionamento amoroso, o arguido desenvolveu um amor obsessivo pela ..., chegando, no mês que antecedeu a prática dos factos, a contactá-la dezenas de vezes ao dia, através de chamadas ou mensagens telefónicas.
Como o arguido não se divorciasse da sua esposa, a ... decidiu terminar a relação amorosa entre ambos, o que aquele não aceitou.
O arguido tomou, então, a resolução de tirar a vida à ..., utilizando para o efeito um líquido combustível inflamável.
Na execução desse plano, no dia 01/05/05, no período nocturno, o arguido utilizando o cartão de acesso à rede TMN, com o número ..., telefonou para o número ..., utilizado pela ..., tendo combinado com esta um encontro no dia seguinte, por voltas das 09h00, no monte de Santa Quitéria.
Na manhã do dia 02/05/05, o arguido não foi trabalhar e foi tomar o pequeno-almoço a um café, sito nas bombas Total, em Fafe, tendo, depois, por volta das 09h/09h15m, se dirigido ao referido local de encontro, conduzindo o veículo de marca Renault, modelo Mégane, de matrícula 61-42-NL, pertencente a ..., levando gasolina que acondicionou numa garrafa de plástico.
Aí chegado, esperou alguns momentos pela ... Maria, que se deslocou ao local de encontro, conduzindo o seu Jeep, de marca Mercedes, matrícula 97-71-VX, tendo esta estacionado perto do veículo em que o arguido se fazia transportar.
De seguida, ambos saíram das suas viaturas e, após uma breve troca de palavras, o arguido atirou a ... para cima de uns arbustos e, munido da garrafa que continha o combustível, despejou o seu conteúdo para cima da cabeça e tronco da ..., que ainda se encontrava caída, e ateou fogo à roupa que ela trazia vestida, com um isqueiro que possuía.
De imediato, as peças de roupa que a ... vestia se incendiaram e esta começou a gritar de desespero e dor, enquanto despia o dito vestuário. Nessa altura e indiferente a esta situação, o arguido abandonou o monte de Santa Quitéria, conduzindo o veículo supra identificado.
A ..., nua, calçando apenas umas botas, conseguiu alcançar o seu Jeep, tendo-o conduzido até ao Hospital de Felgueiras, onde deu entrada por volta das 10h00m.
Deste estabelecimento, veio a ser transferida para o Hospital de São João, no Porto, e daí para os Hospitais da Universidade de Coimbra.
Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ... sofreu queimaduras de 2.º e 3.º graus, com envolvimento da face, couro cabeludo, região cervical anterior e posterior, tórax, abdómen, dorso e membros superiores, num total de, aproximadamente, 55% da superfície corporal.
Estas lesões, para além de extremamente dolorosas, foram determinantes de um quadro de choque séptico, com falência multiorgânica, que lhe provocaram, em 15/07/05, paragem cardiorespiratória, determinante da sua morte.
O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.
Não tem antecedentes criminais.
É imputável, sendo uma pessoa reservada, defensiva, desconfiada, pouco tolerante ao stress e perfeccionista, tendo tendência a projectar as suas frustrações e falhas em causas externas.
O arguido é filho único, tendo concluído a licenciatura em Matemática e Ciências para ensino, exercendo a profissão de professor de ensino básico. Em virtude de se encontrar preso, aufere 5/6 do vencimento.
É casado, com um filho com cerca de 3 anos. No EP, enquanto esteve preso, adoptou uma postura adoptada às normas, colaborando no sector dos têxteis e no jornal.
É reputado por familiares e amigos, como uma pessoa boa, educada, calma e respeitadora.
A ..., apesar de já ter tido depressões e de ter sido assistida em consultas de psiquiatria até Setembro de 2003, revelava um funcionamento psíquico adequado às situações, não apresentando factores preditivos ou indicadores de eventual acto de suicídio.
Durante o período compreendido entre a prática dos factos até ser assistida e depois de ser assistida clinicamente até à sua morte, a ... sofreu fortes dores físicas e psicológicas, temendo a sua morte e temendo igualmente pelo futuro dos seus 3 filhos, um maior de idade (o assistente) e dois deles menores (... e ...), que já eram órfãos de pai.
A ... nasceu em 28/07/1963, era viúva e trabalhava na Psicofelgueiras, auferindo 750€ mensais. O filho mais velho, o assistente ..., estudava e estuda economia numa universidade privada no Porto.
O assistente e os irmãos viveram toda esta situação com muita angústia e tristeza.
Os serviços médicos prestados à ... no Hospital de São João importaram a quantia de 359,80€.
FACTOS NÃO PROVADOS
Não ficaram provados outros factos com interesse para a boa decisão da causa, designadamente, e para além daqueles que estejam em contradição com os factos dados como assentes, que o arguido tenha adquirido no posto de abastecimento da Shell, sito em Silvares, Fafe, 1€ de gasolina.
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Para formar a sua convicção o tribunal baseou-se em:
1 – relatório pericial de autópsia psicológica efectuada a ... , esclarecimentos por escrito prestados posteriormente e esclarecimentos verbais prestados em audiência de julgamento pela perita médica subscritora desse relatório:
Esta perita confirmou o teor do seu relatório, afirmando que o método que utilizou é, na sua opinião, o mais adequado a este tipo de situações. Mais referiu que apenas através de informações colhidas a pessoas próximas da vítima é que poderia recolher informações, explicando que o facto de serem familiares próximos da vítima também foi tido em conta no tratamento dos resultados. Contudo, realçou o facto de não ter havido discrepâncias entre os resultados obtidos. Além disso, ainda salientou a personalidade adequada que a ... tinha, referindo que a depressão que a mesma sofreu, após a morte do seu marido, foi uma resposta funcional e natural e que o facto de ter entrado em depressão não significa, necessariamente, que tivesse tendências suicidas.
Reinquirida, conforme ordenado pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, reafirmou de um modo muito convicto que a examinada não apresentava qualquer patologia de foro psiquiátrico e que se tal se sucedesse era a primeira solicitar exame psiquiátrico, o que não o fez por ser totalmente desnecessário. Reafirmou também que o método que utilizou é o mais adequado e que a examinada não tinha quaisquer tendências suicidas, não apresentando qualquer patologia, por mais ínfima que fosse, que lhe pudesse sugerir tal possibilidade. Por outro lado e quanto confrontada com os alegados períodos de alucinação que a vítima poderá ter sofrido, a Sr.ª Perita esclareceu os estados em que uma pessoa pode estar, distinguindo o período de critica do período de delirium, referindo também que um profissional da área da saúde sabe distinguir tais estados, o mesmo se sucedendo com um familiar próximo ou até mesmo uma pessoa normal. Logo, concluiu que, se na altura em que contou a sua versão dos factos às mais variadas pessoas, a vítima mortal estivesse num denominado estado de delirium, estas saberiam identificar tal estado.
2 - declarações do assistente ..., filho da vítima ... :
O assistente afirmou estar a estudar na faculdade no Porto, apenas se deslocando a casa aos fins-de-semana. Talvez por esse facto, afirmou não saber do relacionamento que a sua mãe mantinha com o arguido, embora suspeitasse que a sua mãe pudesse ter alguma relação com alguém. Questionado sobre o dia em que a sua mãe sofreu as queimaduras em causa nestes autos, afirmou que soube através do seu padrinho. Apenas cerca 2 semanas depois do sucedido é que foi visitar a sua mãe, afirmando que apenas os médicos e uma tia é que a viam. Quando visitou a sua mãe pela primeira vez, não lhe perguntou nada do que lhe tinha sucedido, apenas tendo tido uma conversa normal (como é que estava, se sentia dores, como estava a correr a escola, com estava ele e os irmãos, etc). Depois dessa ocasião afirmou visitar a mãe de 3 em 3 dias, confirmando que a mesma estava completamente lúcida. Na 3.ª visita que lhe fez e embora já soubesse do que tinha acontecido porque já lho tinham contado, perguntou à mãe quem lhe tinha feito aquilo, ao que ela lhe respondeu que foi o Prof. .... A partir nunca mais tocou nesse assunto com a sua mãe, porque não queria que ela sofresse. Mais confirmou o veículo que a sua mãe possuía (Jeep Mercedes), bem como o carro do arguido (comercial Mégane), referindo que conhecia o arguido por ser companheiro de trabalho da sua mãe. Quanto ao que aconteceu na noite anterior ao que está em causa nestes autos, o assistente declarou que se encontrava a jantar com a sua mãe, a qual estava muito bem disposta. No entanto e a dado momento do jantar, por volta das 09h30m/10h00, a sua mãe recebeu um telefonema, não sabe de quem, tendo ficado irritada e mal disposta. Por fim, confirmou a força de viver da sua mãe, força essa que demonstrou aquando do seu internamento em Coimbra, querendo muito recuperar para não deixar os seus filhos abandonados.
3- livre apreciação e segundo as regras da experiência dos depoimentos das testemunhas:
- ..., médico, coordenador da Unidade de queimados do hospital da Universidade de Coimbra, afirmou que a vítima ... entrou naquele hospital transferida do Norte (Felgueiras – S. João), dado que Felgueiras não tem unidade de queimados e a do Hospital de São João apenas foi inaugurada em Abril do ano passado. Acrescentou que a ... vinha ventilada e com queimaduras graves em cerca de 55% do corpo, confirmando o teor do relatório de fls. 169 e 170. Mais referiu que a vítima apresentou algumas melhoras, durante o período em que esteve internada, mas que depois teve uma recaída vindo a falecer, vítima de Sepsis (infecção generalizada do corpo). Disse também que essa infecção só apareceu cerca de 30 e poucos dias depois dos factos, sendo própria das pessoas vítimas de queimaduras graves. Explicou ainda que, nos dias de hoje, já poucas pessoas morrem nas 48/72 horas a seguir a uma queimadura grave, sendo que a infecção generalizada do corpo é uma consequência própria e tardia de uma queimadura, só aparecendo algum tempo depois. Confrontada sobre a possibilidade de a vítima ter sido salva se tivesse sido logo assistida pelo seu departamento, a testemunha afirmou que “cada caso é um caso” e que “quando mais cedo fosse assistida, melhor seria”.
Por outro lado, explicou os tratamentos que foram prestados à vítima (incluindo apoio psicológico pela enf.ª ...), referindo que acompanhou diariamente a sua situação clínica, embora não estivesse todos os dias com ela. Quando contactou directamente com a vítima, nunca lhe perguntou o que lhe tinha acontecido, nem esta lho disse, apenas referindo que esta se apresentava lúcida e consciente, com um discurso coerente, tendo vontade de voltar à sua vida activa e de voltar para a beira dos filhos, dos quais falava muito. Além disso, referiu que as lesões que a ... apresentava eram compatíveis com queimadura provocada por gasolina incandescente e que, das conversas que teve com ela, não lhe parece que a mesma tivesse tentado o suicídio.
- ..., enfermeira da unidade de queimados do hospital da Universidade de Coimbra, confirmou que prestou cuidados médicos à vítima, sendo a sua especialidade saúde mental. Acrescentou que todos os doentes na unidade de queimados recebem apoio psicológico e que, nessa conformidade, prestou tratamento à ... durante cerca de 1 mês, 2 vezes por semana. Nas conversas que manteve com ela, afirmou que a ... apresentava um discurso orientado e coerente, não lhe parecendo que tivesse tendência para o suicídio, embora não lhe competisse fazer tal diagnóstico. Mais referiu que a ... era uma pessoa que lutava e que queria sair dali, sendo que para ela o desfiguramento não era importante, mas sim ir para a beira dos filhos, que afirmava precisarem muito dela. Acrescentou ainda que não se lembrava da ... ter tido atitudes menos agradáveis com ela, afirmando que, no período em que contactou com ela, a ... não teve alucinações. Quanto aos ferimentos apresentados, declarou que a ... tinha queimaduras na face, no tronco e nos braços referindo que a pele é uma barreira para as infecções, pelo que, estando a mesma queimada é normal que essas infecções apareçam. Por fim, referiu que nunca perguntou à ... nem ela lhe disse o que lhe tinha acontecido, realçando ainda as dores físicas e psicológicas que aquela situação e os tratamentos acarretavam para a vítima, não obstante os sedativos que lhe eram ministrados.
- ..., gestor de empresas, dono do Centro Psicofelgueiras e sobrinho da vítima, que era gerente dessa instituição. Sobre o arguido referiu que o mesmo trabalhou naquela instituição, num período de um ano, entre 2003 e 2004, sendo que em 2005 já lá não trabalhava.
Esta testemunha afirmou ter visitado a tia em Coimbra, sendo que inicialmente esta esteve ventilada, não falando. Mais referiu que cinco dias depois, voltou a visitá-la, tendo chegado a falar com a .... Na conversa que manteve com ele, a ... apresentava-se bastante lúcida, mas triste, preocupada com o aspecto que iria ficar. Depois desta visita, a testemunha referiu ter ido várias vezes a Coimbra, visitar a sua tia, esclarecendo que, na 2.ª visita que lhe fez, perguntou-lhe o que se tinha passado. Nessa altura, a sua tia, que se apresentava bastante lúcida, contou-lhe que tinha um relacionamento com o arguido e que estava a tentar acabar com o mesmo. Depois de várias vezes ter terminado a sua relação, a sua tia disse-lhe que o arguido lhe telefonou e pediu-lhe para se encontrar com ela em Santa Quitéria, referindo que iria ser a última vez que se iam encontrar, prometendo que não a chatearia mais. Mais acrescentou que a sua tia lhe disse que, quando chegou ao encontro, o arguido já lá estava. Tendo parado o carro, a ... referiu que o arguido lhe pediu para ela sair do carro para conversarem ao que esta acedeu, não obstante lhe ter dito que não tinham mais nada para falarem. Mais lhe contou que, quando saiu do carro, o arguido agarrou-a e atirou-a para umas silvas, tendo ficado em pânico (...). De seguida e segundo o que a ... lhe relatou, o arguido pegou numa garrafa com gasolina, da qual não se tinha apercebido, e derramou-lhe tal líquido sobre o corpo ao mesmo tempo que lhe dizia:
“Vais morrer. Não és para mim, não és para mais ninguém”.
Logo depois, o arguido pegou num isqueiro e ateou fogo ao corpo da ..., tendo havido uma explosão. Nessa altura e segundo o que a ... lhe disse, o arguido fugiu do local, abandonando a ..., que ficou a arder, tentando apagar o fogo que consumia o seu corpo. Com esse objectivo, a ... tirou a roupa que vestia, apenas tendo ficado com as botas que calçava, ao mesmo tempo que se atirou para o chão rebolando-se. Por fim, disse-lhe que conseguiu pegar no carro e se dirigiu ao Hospital de Felgueiras, pedindo ajuda.
Questionado sobre se tinha conhecimento do relacionamento amoroso entre o arguido e a sua tia, esta testemunha confirmou-o, referindo que suspeitava haver uma intimidade entre os dois a qual lhe foi confirmada pela sua esposa, a testemunha ..., que era muito amiga da ... . Acrescentou ainda que foi ele quem entregou à PJ a carta de fls. 194 dos autos, a qual estava numa secretária dentro de uma bolsa da ..., não tendo dúvidas que a caligrafia constante daquela carta é do arguido. Por outro lado, realçou a força interior da ... , referindo que ela nunca quis por termo à vida e que, quando se encontrava no hospital, a sua grande preocupação eram os seus filhos, sentindo que os mesmos ficariam desprotegidos sem ela. Referiu também que a sua tia trabalhava na Psicofelgueiras auferindo cerca de 750€ mensais, mais um prémio no final do ano, caso a empresa fosse rentável. Vivia com a mãe e com os 3 filhos, sendo que o filho mais velho estudava Economia numa Universidade Privada no Porto, apenas vindo a casa aos fins-de-semana. Por fim e quando confrontado sobre se estava zangado com o arguido, esta testemunhou afirmou que sim, pois está convencido que foi ele quem matou a sua tia.
- ..., médico, exerce funções no Hospital de Felgueiras
Esta testemunha referiu que, no dia da prática dos factos, estava no Hospital de Felgueiras, juntamente com o Dr. ..., que também acudiu a doente. Acrescentou que a ... entrou despida no hospital, apenas com as botas calçadas, em aflição, a gritar por socorro, dizendo que ia morrer. Rapidamente foram ao seu encontro, tendo-a encontrado em pânico, mas não em estado de choque, estando plenamente consciente. De seguida, referiu que ela lhes repetiu por várias vezes, que aquele maroto incendiou-me e matou-me e que tinha filhos para criar, tendo-lhe também referido que tinha sido regada com gasolina, o que na opinião desta testemunha era compatível com o cheiro que apresentava.
Questionado sobre a parte do corpo onde a ... se apresentava com mais queimaduras, esta testemunha referiu a parte da frente, principalmente nos braços e mãos, sendo que o “cabelo saía em torresmos”. Declarou também que o discurso que a ... apresentava não era compatível com a possibilidade de ter sido ela a regar-se com gasolina e que a mesma esteve a falar com uns guardas da G.N.R, não tendo presenciado o teor da conversa. Por fim, confirmou que em Felgueiras não existia nem existe unidade de queimados e que a ... apenas lá esteve cerca de ½ hora, o tempo necessário para a sedarem, hidratarem as feridas e tratarem da sua transferência para o Porto.
- ..., médico do hospital de Felgueiras, que, em traços gerais, confirmou o que disse a anterior testemunha, ..., realçando o discurso coerente que a ... apresentava, o qual não era compatível com alguém que quisesse pôr termo à vida. Referiu ainda que foi ele quem chamou a polícia e providenciou pela transferência da ..., confirmando ainda o teor da ficha clínica de fls. 209 e 210, tendo também afirmado que a mesma tinha conduzido um Jeep até ao hospital.
- ..., enfermeira no Hospital de Felgueiras, que prestou os primeiros cuidados de saúde à ... , confirmou que, a meio da manhã, aquela entrou desesperada na urgência, apenas com umas botas calçadas, com a parte de frente do corpo queimada, a pedir auxilio. Mais referiu que lhe prestou os primeiros cuidados de saúde, tratando as feridas (esterilizando-as) e aplicando-lhe sedativos para as dores. Enquanto esteve com ela, a ... contou-lhe que tinha sido regada com gasolina e queimada por um homem, em Santa Quitéria, ao mesmo tempo que dizia que não podia morrer porque os filhos já não tinham pai e precisavam dela. Além disso, confirmou que elementos da GNR se deslocaram ao local e estiveram a falar com a vítima, tendo ouvido parte da conversa, pois estava-lhe a prestar os primeiros socorros. Nessa conversa, recorda-se de ter ouvido a ... a contar que tinha sido regada com gasolina por um professor de Sernande, não tendo conseguido ouvir o nome dele. Por fim, esclareceu que não obstante não ter conhecimentos na área da psiquiatria nem da psicologia, reputou o discurso da ... como coerente.
- ..., auxiliar de acção médica, no Hospital de Felgueiras, afirmou que, a meio da manhã, a ... entrou completamente nua naquele Hospital a pedir ajuda, para não a deixarem morrer, porque tinha filhos, os quais já não tinham pai. Mais referiu, que desde que ele entrou até ter saído sempre a acompanhou, tendo afirmado que a mesma se deslocou para aquela unidade de saúde a conduzir um Jeep e que lhe contou que, em Santa Quitéria, um senhor a tinha regado com gasolina e lhe tinha chegado fogo. Na altura, também disse o nome da pessoa, o qual não se recorda, mas que era professor e que dava aulas na escola de Sernande.
Acrescentou também que a ... lhe contou que recebera uma chamada telefónica para se deslocar a Santa Quitéria e que tinha um relacionamento amoroso com essa pessoa.
Questionada sobre o discurso da ..., classificou-o como coerente e lúcido, tendo inclusivamente referido que foi a ... quem lhe deu a informação para poder preencher a ficha de fls. 209 (dados pessoais nome, morada, data de nascimento, etc.), pois que não tinha qualquer elemento identificativo com ela, tendo ainda dado o número de telemóvel do seu irmão. Quanto à hora de entrada da ... na urgência, referiu não se recordar, tendo apenas esclarecido que metidos os dados no computador, o mesmo insere automaticamente a hora e que pensa que a ficha pode ter sido preenchida até cerca de 20m depois da ... ter dado entrada no hospital de Felgueiras.
- ..., Cabo da GNR, foi ao hospital tomar conta da ocorrência. Afirmou que falou com a vítima questionando-a sobre o que tinha acontecido e quem lhe tinha feito aquilo, ao que ela respondeu que tinha sido o colega dela, professor na escola de Unhão, perto de Sernande, de nome de nome ..., com quem havia mantido uma relação amorosa, que lhe ligou para o telemóvel, a pedir um encontro ao que ela acedeu, tendo o mesmo sido marcado para Santa Quitéria. Quando chegou ao local, referiu que ele pegou numa garrafa, lançou-lhe gasolina e chegou-lhe lume. Questionado sobre a ficha de fls. 8, esta testemunha referiu que foi ele quem a preencheu, mas que o nome completo do arguido apenas lhe foi fornecido posteriormente por um colega que se deslocou à escola de Sernande e recolheu tal informação. Acrescentou ainda que o Jeep da ... se encontrava à porta do centro de saúde e que se apresentava queimado no banco da frente. Por fim, reputou o discurso da ... como coerente.
- ..., abastecedor de combustíveis, apenas soube adiantar que, no dia da prática dos factos, uma pessoa do sexo masculino, que não consegue identificar, se deslocou ao posto de abastecimento, no período do seu turno (07h às 12h), tendo abastecido numa garrafa de plástico.
- ..., companheira de trabalho do arguido e da ... na Psicofelgueiras, sendo que com esta última mantinha também uma relação de amizade. Inquirida sobre os factos, esta testemunha apenas falou sobre o conhecimento que tinha da relação amorosa entre o arguido e a ..., o qual lhe adveio daquilo que a ... lhe confidenciava. Dessa relação, o que a ... lhe transmitia era que o arguido era casado e por isso a mantiveram em segredo. Além disso, a ... também lhe transmitiu que terminou essa relação e que o arguido aceitou muito mal. Acrescentou que viu cartas enviadas pelo arguido à ..., identificando a sua caligrafia (do arguido) na carta de fls. 195 e 196. Mais referiu que, próximo do dia em que se sucederam os factos, assistiu a um telefonema onde o arguido e a vítima discutiram, tendo também referido que, na 6.ª feira anterior aos factos, almoçou com os 2, sendo que a ... tinha ido comprar uma camisa para oferecer ao arguido, pois que, segundo ela, eles tinham discutido e ele tinha rasgado a camisa. Por fim, contou que soubera das discussões que a ... e a esposa do arguido tinham tido, dos incidentes e das queixas que o arguido tinha apresentado contra a ... e ainda de uma carta que a ... enviou para os pais do arguido, para lhes dar conhecimento do relacionamento entre os dois.
- ..., inspectora da PJ que acompanhou o colega ..., nas várias diligências que efectuou.
Esta testemunha confirmou que, quando chegaram ao posto da GNR, por volta das 11h00, verificaram que o Jeep da ... se encontrava no parque da GNR e que encontraram, na viatura, vestígios de queimaduras. Além disso, encontraram também o telemóvel da ..., o qual não parava de tocar, aparecendo no visor o nome de .... Mais referiu que, numa dessas chamadas, o seu colega ... atendeu o telefone, tendo falado com alguém que não soube identificar. Nessa altura, já na GNR circulava a notícia de que o agressor teria sido o arguido. Mais referiu que se deslocou ao local (Santa Quitéria) e que encontraram uma tampa de uma garrafa, além de vários papéis queimados, sendo que ainda cheirava gasolina. Questionado sobre os acessos ao local, esta testemunha afirmou que o mesmo era facilmente acessível por um ligeiro de passageiros, salientando o facto de se terem deslocado ao local numa viatura desse tipo. Além disso, também referiu ter encontrado vestígios dos rodados do Jeep da ..., o mesmo não podendo dizer acerca do veículo do arguido. Também referiu que no local não havia mata ardida e que pensa que a vítima terá andado de um lado para o outro quando estava a arder. Acrescentou ainda que chegaram a falar com o arguido tendo o mesmo autorizado que os agentes da PJ entrassem em sua casa e levassem camisas que alegadamente terá usado naquela manhã. Por outro lado, confirmou que as fotografias constantes dos autos a visores de telemóveis foram tiradas aos telemóveis da ... e do arguido, sendo que no telemóvel do arguido apenas havia 2 mensagens, tendo todas as outras sido apagadas. Por fim e das conversas que teve com a ..., achou-a uma mulher lúcida, ponderada e clarividente.
... – inspector-chefe da PJ, que foi o responsável por esta investigação.
Esta testemunha confirmou o que disse a anterior, referindo que a GNR quando os alertou para o sucedido, já lhes tinha informado que recaíam suspeitas sobre o arguido, uma vez que a vítima o teria indicado como autor dos factos.
Quanto ao local da prática dos factos, confirmou que o mesmo era propício ao encontro de namorados, constituindo uma reentrância, referindo também que ainda havia um cheiro intenso a gasolina. Além disso, confirmou os objectos que encontraram (tampa de garrafa, rasto de pneus e tecidos queimados recentemente), referindo que não foi possível recolher mais vestígios dado ter começado a chover, sendo que os vestígios que encontrou no chão eram típicos de alguém que se rebolou. Acrescentou ainda que, no período compreendido entre as 12h e as 13h daquele dia, o telemóvel da ... tocou, aparecendo no visor o nome de .... Nesse momento, atendeu o telefone e falou com o arguido solicitando-lhe que se dirigisse à GNR para conversarem, ao que o arguido, apesar de ofendido, acedeu tendo chegado pouco tempo depois, às instalações da GNR, conduzindo um Renault Mégane cinzento, vindo acompanhado da sua esposa. Mais confirmou que, juntamente com a sua colega, foram a casa do arguido recolher peças de roupa, com a devida autorização deste, e que procederam ao auto de leitura de mensagens dos telemóveis do arguido e da .... Além disso, também solicitou a facturação detalhada dos 2 telemóveis, tendo constatado um tráfego intenso de chamadas entre arguido e ....
- ..., esposa da testemunha ..., sobrinho da ... .
Esta testemunha, para além da relação de parentesco, afirmou ser muito amiga da ..., a qual lhe confidenciava muitos segredos. Um desses segredos foi a relação amorosa que mantinha com o arguido. Acerca dessa relação, a testemunha afirmou que mesma durou cerca de 1 ano e que a ... estava disposta a assumi-la, desde que o arguido se separasse da mulher. No entanto e como tal não acontecia, a relação entre eles foi-se degradando, tendo a ... terminado com a mesma, por volta de Fevereiro de 2005. Porém, o arguido não aceitou o fim dessa relação e começou a telefonar insistentemente para a ..., referindo-lhe que iria deixar a sua mulher e ameaçando que se matava. Questionada sobre alegados episódios de abalroamento e roubo em que foram protagonistas o arguido e ... , a testemunha afirmou desconhecer, não deixando, porém, de referir que a relação dos 2 sempre foi muito atribulada.
Quando a ... esteve internada, esta testemunha afirmou ter ido visitá-la, sendo que numa dessas visitas falou com a mesma sobre o que se tinha passado ao que esta depois de ter dito “Olha o que o professor ... me foi fazer, Olha o que ele me fez, como ele me pôs”, lhe contou tudo o que sucedera. Assim, afirmou que o arguido, no dia anterior aos factos, lhe tinha telefonado, tendo combinado um encontro com ela, no dia seguinte, em Santa Quitéria, referindo que iria ser a última vez que iriam falar. Perante as insistências do arguido, a ... afirmou que acabou por ir. Chegada ao local, a ... referiu-lhe não querer sair do carro, ao que o arguido insistiu, tendo-lhe feito a vontade e saído do carro. Nessa altura, a ... afirmou que o arguido a empurrou para umas silvas e mostrou-lhe gasolina, dizendo-lhe que a ia matar, bem como que “se ela não era para ele não iria ser para mais ninguém”. De seguida, regou-a com gasolina e chegou-lhe fogo com um isqueiro, queimando-a da cabeça aos pés e abandonando rapidamente o local.
Questionada sobre o estado da ... no hospital, aquando desta conversa, esta testemunha achou-a lúcida. Além disso, confirmou as dores que a ... sofreu, não só físicas como também psicológicas, pois pensava muito nos filhos. Por outro lado, também confirmou o sofrimento destes ao verem a situação da sua mãe, confirmando ainda que a ... era gerente da Psicofelgueiras e que o seu filho mais velho estudava no Porto, numa Universidade Privada.
- ..., sobrinha da ... .
Esta testemunha declarou que a sua tia lhe contou do relacionamento amoroso que tinha com o arguido, tendo referido que o mesmo demorou algum tempo e que terminou quando a sua tia pôs fim ao mesmo, em virtude de não querer continuar a ser apenas amante do arguido e de ter concluído que o arguido apenas queria isso e nada mais. Na verdade e segundo esta testemunha, a ... gostava do arguido e estava disposta a assumir uma relação com este, algo que nunca aconteceu porque este não abandonava a esposa. Depois do relacionamento entre os 2 ter acabado, esta testemunha afirmou que o arguido telefonava muitas vezes à ..., tendo até chegado a presenciar um telefonema, onde os dois acabaram por discutir. Além disso, referiu também que a sua tia lhe mostrou a carta de fls. 196, dizendo-lhe que tinha sido escrita pelo arguido e mostrando-se assustada com o seu conteúdo. Por outro lado, também confirmou que após o terminus da relação o arguido e a ... discutiam constantemente. Referiu ainda que, nas visitas que fez à sua tia, apenas falou com ela pelo inter-comunicador, nunca tendo chegado a falar directamente do que aconteceu no dia 02/05. No entanto e das conversas que teve com a mesma, verificou que a mesma tinha plena consciência da fase que estava a atravessar, demonstrando uma enorme força de viver e uma grande preocupação com os filhos, os quais sofreram muito com toda esta situação, ficando desorganizados e desamparados.
- ..., agente da GNR Fafe, afirmou apenas conhece o arguido por ele ter apresentado uma queixa na GNR de Fafe, nada mais sabendo.
- ..., Cabo da GNR Fafe, afirmou que apenas conhecer o arguido pela queixa que apresentou na esquadra. Mais referiu que elaborou o relatório constante a fls. 458 e que contactou ambas as partes, tendo achado a ... normal, do ponto de vista emocional.
- ..., cabo da GNR, refere ter sido chamado ao local, em 1 de Março de 2005, onde terá havido um despiste. Acrescentou ainda que quando chegou estava lá a ... o arguido e mais algumas pessoas, sendo que arguido e ... discutiam. A dado momento, a ... recusou dar a carteira ao arguido e foi-se embora no seu Jeep, não lhe dando boleia e tendo ainda tentado atropelá-lo. Por fim, afirmou que, naquele dia, a ... estava muito exaltada e nervosa.
- ..., soldado da GNR – Felgueiras confirmou o auto de fls. 501, referindo que a ... confessou ter abalroado, por 2 vezes, o veículo do arguido.
- ..., agente da GNR, não se recorda de nada com relevância para o caso.
- ..., amigo do arguido, afirmou ter presenciado um episódio em que a ... tentou atropelar o arguido, não o tendo conseguido pelo facto daquele se ter desviado. Além disso, confirmou ter estado com o arguido, no dia da prática dos factos, por volta das 9h00, 9h15m, no bar do posto de abastecimento da Total em Fafe, estando o arguido a tomar calmamente o seu pequeno-almoço. Mais referiu que considera o arguido uma pessoa calma e um bom amigo, tendo chegado a falar com o mesmo ao telemóvel nesse dia ou no dia seguinte de manhã.
- ..., amigo do arguido, confirmou ter presenciado a ... a tentar atropelá-lo, referindo também que considera o arguido como uma boa pessoa.
- ..., amigo do arguido, afirmou que o mesmo esteve na sua oficina, na data da prática dos factos, por volta das 09h30m da manhã (filha já lá estava e entra ao serviço às 09h00m), sem hora marcada, tendo deixado o seu automóvel, um Renault Mégane de 2 lugares, acinzentado, para mudar o óleo. Mais referiu que não tinha clientes e que, por isso, acedeu a mudar o óleo ao carro do arguido tendo, tal operação, demorado cerca de ½ hora a efectuar. Nesse lapso de tempo, o arguido foi tomar um café. Esclareceu ainda que era agente Renault, mas que, na altura, não tinha computador, sendo que a Renault não o obrigava a isso. Acrescentou ainda que apenas emitiu a factura quando o arguido lhe pagou, ou seja cerca de 1 ano depois, referindo que é normal os clientes conhecidos da casa pagarem algum tempo depois. Por fim, afirmou que anotava sempre os Km, quando o carro do arguido mudava de óleo, referindo que era normal fazê-lo de 15 em 15 mil km.
- ..., amigo da família do arguido há muitos anos, conhecendo o arguido desde pequeno, reputou-o como um rapaz honrado e educado, tendo por ele muita consideração.
- ..., padre que baptizou o arguido, reputou-o como um rapaz educado, respeitador, bem integrado na sociedade, não sendo agressivo.
- ..., Presidente da Junta de Freguesia de São Gens, referiu que o arguido é uma boa pessoa, sociável, não sendo de se meter em confusões.
- ..., amigo do arguido, com o n.º de tlm – ..., confirmou ter estado com o arguido, na data da prática dos factos, por volta as 09h, num café, numas bombas de gasolina em Fafe, onde também se encontrava a testemunha .... Mais referiu que já tinham falado por causa da intenção do arguido em lhe adquirir máquinas de costura e que, nessa manhã, combinaram encontrar-se, tendo ficado o arguido de lhe ligar quando estivesse pronto, pois que o arguido tinha um trabalho qualquer para fazer (pensa que ia resolver um problema com a carrinha). Acrescentou também que, por volta das 10 horas, o arguido ligou-lhe a ver se ele já estava na oficina e que tendo ele respondido afirmativamente, o arguido, cerca de 15m, chegou à sua oficina, com a sua esposa, tendo lá estado cerca de 30m. Referiu também que o arguido e a esposa já lá tinham estado dias antes a ver as máquinas e que, no dia anterior a estes factos, já tinha combinado com o arguido irem ver as máquinas. Também declarou conhecer a oficina do Sr. ..., referindo que habitualmente paga na hora e que a mesma dispunha de maquinaria própria para efectuar uma revisão total ao veículo. Por outro lado, referiu que considera o arguido como uma boa pessoa e que o mesmo reside em São Gens, sendo que a oficina do Sr. ... fica no centro de Fafe. Por fim, afirmou que o negócio da venda das máquinas acabou por não se realizar, em virtude dos acontecimentos que estão em causa nestes autos, sendo que era intenção do arguido e da esposa adquirirem cerca de 4 máquinas.
- ..., professora, exerce funções na Escola onde o arguido leccionava, referiu que o arguido tinha estado num colóquio no dia 28 de Abril, tendo tirado várias fotografias. Como o mesmo, naquele dia, não estava na escola (às 2.ªs feiras era habitual o arguido não estar) telefonou-lhe por volta das 10h30m (embora admita que possa ter sido às 10h58m) a pedir-lhe que aí se deslocasse para mostrar as fotografias, ao que o arguido acedeu dizendo “eu vou já aí”. Mais referiu que o arguido demorou uns vinte minutos a chegar, tendo-o feito por volta das 11 e 20, 11 e meia, apresentando-se excitado, agitado e eufórico. Confirmou também que o n.º do telefone da Escola era o 255341227 e que, às segundas-feiras de manhã, no período entre as 09h00 e as 12h00, o arguido costumava trabalhar na misericórdia (no Unhão), tendo faltado nesse dia, pois que alegadamente ia acompanhar a esposa, que estava grávida, a uma consulta médica.
- ..., esposa do arguido, afirmou que o mesmo, no dia da prática dos factos, não foi trabalhar porque tinha assuntos a tratar, nomeadamente a mudança do óleo do carro, que já estava combinada, e o visionamento das máquinas de costura para uma futura compra. Referiu também que o mesmo saiu de casa por volta das 08h50m, tendo ela ido levar um sobrinho à escola por volta das 09 e pouco. Depois de ter levado o carro à revisão (não viu mas arguido disse-lhe, sendo que quando ia aquela oficina costumava pagar na hora), esta testemunha afirmou que o marido lhe terá ligado, por volta das 10h00, dizendo que tinha tudo combinado com o Noré (testemunha ...), tendo os dois se deslocado à oficina do mesmo para verem as máquinas de costura, com vista a uma compra (cerca de 5/6 máquinas) que acabou por não se concretizar por causa deste processo. Quando se deslocavam para a oficina ou quando lá se encontravam (não se recorda bem) o arguido telefonou para o Noré (não se recordando se foi para dizer que iam a caminho ou se foi para lhe transmitir que já tinha chegado). Além disso, afirmou que, nesse dia, tinha consulta marcada com a sua obstetra, Dr.ª ..., a qual iria decorrer na parte da tarde, sendo intenção do arguido acompanhá-la a essa consulta.
Acrescentou ainda que, a dado momento dessa manhã, telefonaram da escola para o arguido a fim de o mesmo entregar material informático, tendo ambos ido a casa buscar esse material e depois se deslocado à escola de Sernande, onde o arguido esteve com várias colegas de trabalho. Mais referiu que, naquele dia, não notou nada de estranho, não cheirando as suas roupas a gasolina. Além disso, confirmou terem ido almoçar a casa dos pais do arguido, tendo depois estado a falar com elementos da PJ, os quais se faziam deslocar num Jeep verde. Por outro lado, confirmou que quando recaíram suspeitas sobre o arguido, várias pessoas, no próprio dia ou alguns dias depois, se disponibilizaram a depor em favor do arguido, pois tinham estado com ele naquela manhã.
Por fim e quanto à relação que o arguido mantinha com a ... afirmou ter tido conhecimento da mesma através do telemóvel (viu mensagens e chamadas), tendo tentado ignorar tal facto o mais que podia. Porém referiu que chegou a assistir a uma situação onde a ... abalroou o carro do arguido, sendo que não comentou as inúmeras chamadas e mensagens que o arguido enviou para a ... nos tempos que antecederam a prática destes factos, apenas referindo que a letra da carta constante a fls. 194 não é do arguido.
-..., perita PJ, que confirmou as conclusões do relatório pericial de fls. 218.
3 - relatórios de reportagem fotográfica de fls. 10 e sgs e 516 a 556, 889 a 923, embora quanto ao piso (foi aflorado pelo arguido no sentido de ser quase impossível um ligeiro deslocar-se para aquele local) não se pode concluir nada pois que não se sabe a data em que tais fotografias foram tiradas, sendo que as mesmas também não são conclusivas quanto à real impossibilidade de um veículo ligeiro por lá se deslocar.
4 – documentos de fls. 30, 38, 39, 1140 a 1142.
5 – auto de leitura de telemóvel de fls. 40 e 44 a 46, fotografias de fls. 42, 43 e 48 a 51, bem como detalhe de tráfego do telemóvel do arguido de fls. 104 a 151.
6 – relatórios médicos de fls. 168 e sgs. e 191 e sgs., episódios de urgências de fls. 208 e sgs., de fls. 408 e recibos de fls. 409 a 411.
7 – carta junta aos autos a fls. 194 e 195 e postal de fls. 924 e 925.
8- certidão de óbito e relatório de autópsia.
9 – exame pericial de fls. 218 a 220.
10 – avaliações psiquiátrico forenses de fls. 2193 a 2223.
11- relatório social do arguido e CRC do mesmo.
12 – parecer junto pelo arguido na última sessão de audiência de julgamento, bem como as várias participações penais referentes a incidentes alegadamente ocorridos entre arguido e vítima.
13- carta militar de fls. 951 e 952, livro de revisões, de fls. 953, e documentos de fls. 954 e 955
A convicção do tribunal quanto aos factos dados como provados formou-se com base na apreciação crítica de tudo aquilo que supra indicamos, tendo também em conta o princípio da imediação e ainda a livre apreciação e segundo as regras da experiência dos depoimentos das testemunhas.
Por outro lado e desde logo, há algo que convém realçar e esclarecer. É que independentemente das possíveis tendências suicidas da vítima (pergunta suprema que se colocava na perícia efectuada), as quais foram peremptoriamente afastadas pela Sr.ª Perita - conforme relatório que elaborou e esclarecimentos que posteriormente prestou em audiência de discussão e julgamento - pelos familiares próximos e por profissionais da área da saúde que com ela conviveram durante o período de internamento, certo é que da prova produzida (conforme analisaremos mais aprofundadamente a seguir) resulta claramente que a ... foi assassinada e foi-o pelo arguido. Logo, essas alegadas e eventuais tendências suicidas da vítima que, repita-se e sublinhe-se, não existiam, passam para um plano secundário face à restante prova, pois que, mesmo que existissem, o que, repita-se novamente, não aconteceu, isso não implicaria necessariamente que a vítima se tenha suicidado, antes tendo sido provado o contrário.
Por seu turno, convém referir também que não houve qualquer testemunha presencial dos factos ocorridos no monte de Santa Quitéria, tendo o Tribunal apenas a versão da vítima mortal, contada por alguns familiares e por pessoas que contactaram com ela no período compreendido entre a prática destes factos e a data da sua morte, sendo tal depoimento admissível, nos termos do disposto no art.º 129.º, do C.P.P..
Já o arguido apresentou uma versão diferente dos mesmos, argumentando nunca lá ter estado e não ter praticado os factos de que vem pronunciado, referindo e tentando demonstrar um percurso diferente naquele dia.
No entanto e pelas razões que passamos a descrever de forma mais pormenorizada, entendemos que tal versão não se mostrou verosímil, ao contrário da apresentada pela ... e que foi relatada por familiares, profissionais de saúde e elementos da GNR que com ela contactaram, devendo ainda salientar-se, em obediência ao principio da imediação, que tais testemunhas apresentaram uma total disponibilidade para este Tribunal, (o que não é normal nos dias de hoje) revelando-se bastante chocadas e repugnadas com o caso concreto, situação que a quase totalidade afirmou nunca ter presenciado.
Assim e desde logo, há que referir que todas essas pessoas, conforme os depoimentos que supra resumimos, foram unânimes em realçar o discurso coerente que a ... apresentava [nota de rodapé A este propósito nunca nos podemos esquecer do que foi dito pela Sr.ª Perita, nomeadamente de que é fácil distinguir o denominado período de delirium do período de crítica (estado normal), pelo que a análise dos depoimentos das testemunhas que contactaram com a vítima mortal deverá ser feita com base no parâmetro, por elas referido, de que a ... estava no seu estado normal]. Além disso, também referiram em uníssono a vontade que a ... tinha em viver, estando muito preocupada com os filhos e o que seria deles se algo lhe acontecesse. A isto devemos acrescentar a forma como a ... entrou e se dirigiu ao Hospital de Felgueiras (sem roupa e a pedir por socorro), bem como a denominada autópsia psicológica para afastarmos totalmente o quadro de suicídio.
Por outro lado e pelas mesmas razões que já referimos, não vislumbramos qualquer motivo para a ... ter incriminado o arguido, não obstante a relação amorosa entre os dois ter terminado [nota de rodapé: O facto de o arguido e a ..., segundo a testemunha ..., terem almoçado juntos na 6.ª feira que antecedeu a prática dos factos aqui em causa, não é suficiente para se poder concluir que os mesmos já tivessem reatado a relação, tudo apontando para o contrário, ou seja que a mesma tinha terminado essa relação e que o arguido tentasse reatá-la] após uma fase muito conturbada, com actos irreflectidos de ambas as partes. Além disso, há factos que confirmam e apontam para a veracidade das declarações da ..., nomeadamente os registos telefónicos e o auto de leitura do seu telemóvel, sendo que naqueles registos se pode constatar a quantidade de telefonemas e mensagens que o arguido lhe enviou no mês que precedeu estes factos, bem como o facto do arguido lhe ter telefonado no dia anterior pela noite, o que vai de encontro ao que a ... referiu, concretamente ao telefonema do arguido no dia anterior a combinar um último encontro. Por sua vez, as mensagens enviadas, bem como a sua quantidade e constância apontam claramente para um amor obsessivo por parte do arguido.
Já a versão do arguido, pelo menos na parte fundamental não apresentou credibilidade. Com efeito, não colocamos em dúvida que o arguido tenha estado com a testemunha ... no café das bombas, nem com a sua esposa, nem com a testemunha ... na oficina deste, nem que se tenha dirigido à escola e tenha conversado com colegas de trabalho. No entanto, já não se mostra minimamente verosímil e possível, o facto do arguido ter estado com a testemunha Evaristo e de, nesse dia, ter mudado o óleo ao seu carro (Renaúlt Mégane), no período em que ocorreram os factos.
Com efeito e desde logo é óbvio que não tendo o arguido o dom da ubiquidade, não poderia estar ao mesmo tempo nos 2 sítios, sendo que pelas razões que já referimos temos a firme convicção que o mesmo esteve no monte de Santa Quitéria e praticou aqueles factos. No entanto, há ainda alguns pontos que convém esclarecer. Desde logo, o depoimento da testemunha Evaristo foi totalmente desprovido de qualquer verdade, demonstrando uma enorme vontade de ilibar o arguido, tendo pensado em alguns pormenores para fortalecer o seu depoimento, mas esquecendo-se de outros. Assim e desde logo, juntou os documentos de fls. 953, 954 e 955, sendo que o primeiro, denominado carta de garantia e manutenção apresentava carimbos da sua oficina a comprovar a data e os serviços efectuados, bem como os km percorridos por tal veículo, na altura da prestação dos serviços. Ora, esse carimbo poderia ter sido aposto em qualquer altura, não estando acompanhado por qualquer ficha comprovativa dos serviços efectuados, o que deveria acontecer em qualquer agente oficial de uma marca, como o arguido afirmou ser, sendo que o documento de fls. 954 não constitui uma dessas fichas que acabamos de falar. Além disso e como é o do conhecimento comum de quem tem um carro, uma das primeiras preocupações das oficinas (e muito mais de representantes de marcas) é anotar os km percorridos pelo carro em que vão intervir. No caso em apreço, os km constantes no livro constituem um número certo (103.000km) o que sucede nas últimas 3 mudanças de óleo, ao contrário das primeiras, o que aponta claramente para que tais números tenham sido apostos em data posterior. Porém e mesmo que nos acreditássemos nos km percorridos pelo veículo do arguido, o que não se sucedeu pelas razões que referimos, há que realçar que o mesmo ainda não precisava de mudar o óleo, pois ainda não tinha percorrido os 15 mil Km. Por outro lado, a assinatura constante nos carimbos referidos, não é, no referente à data em causa nestes autos, igual aos demais. A isto acresce ainda a existência de um recibo emitido mais de um ano depois e não na altura, como acontece em qualquer oficina. Para justificar esse facto, a testemunha argumentou que o arguido era cliente habitual e que apenas pagava quando quisesse a pudesse, apenas sendo nessa altura emitida a factura. Tais declarações não foram secundadas por outros clientes habituais daquela oficina, como sendo a esposa do arguido e a testemunha ...que afirmavam pagar na hora. Por fim, convém ainda realçar outro aspecto que nos faz retirar qualquer credibilidade a este depoimento e a esta versão dos factos. É que a testemunha ... afirmou que o arguido apareceu sem marcação e que lhe conseguiu uma vaga porque tinha poucos carros naquela hora, ao contrário da esposa do arguido que afirmou que o mesmo faltou ao trabalho naquele dia porque tinha várias coisas para fazer, entre as quais se incluía a mudança de óleo. Ora, faltar ao trabalho para mudar o óleo ao carro, não é minimamente normal, sendo ainda mais anormal, quanto a pessoa não tem qualquer marcação prévia. Também não é normal faltar ao trabalho para ir ver umas máquinas à oficina dum amigo, máquinas essas que já tinha visto anteriormente e que não teria qualquer dificuldade, visto ser um amigo, de as visitar em horário pós-laboral ou em dia que não tivesse horário preenchido.
Nesta conformidade, não consideramos verosímil que o arguido estivesse estado na oficina da testemunha ... no dia da prática dos factos, antes tendo estado no monte de Santa Quitéria e tendo sido o autor material dos factos dados como assentes.
Isto não significa que o arguido, como já referimos, não tenha praticado os outros factos que invocou na sua contestação. Na verdade e analisando o horário das chamadas por si efectuadas ou recebidas, o seu destinatário ou o emissor, bem como a célula activada, temos que é possível tudo o mais se ter sucedido tudo o mais se sucedeu (tomou o pequeno-almoço nas bombas, foi à oficina do ... e foi à escola), mas fora do horário compreendido entre as 09h15m e as 10h10m. Com efeito, o período em que o arguido não recebeu nem efectuou qualquer chamada foi o compreendido entre as 09h15m e as 10h10, sendo perfeitamente possível, nesse lapso de tempo sair de Fafe, ir ao monte de Santa Quitéria, praticar os factos de que foi acusado e voltar para Fafe. Além disso, antes da última chamada efectuada às 09h15m, o arguido, naquele dia, já tinha telefonado 6 vezes à ..., não tendo telefonado a mais ninguém, o que apenas se sucedeu após as 10h10m. Por outro lado, a hora em que a ... deu entrada na urgência do Hospital de Felgueiras, por volta das 10h (essa hora já teve em conta o facto da ficha ter sido preenchida até cerca de 20m depois), é perfeitamente compatível com estes factos.
Por fim e quanto a estes factos, há ainda que realçar ser bastante estranho o facto do arguido ter estado em vários locais numa só manhã, o que nos aponta para uma clara preocupação do arguido em ser visto por o maior número de pessoas, com o intuito de arranjar um álibi para os factos que planeava executar e executou, não sendo também despiciendo o facto do arguido, aquando da sua ida à escola, se apresentar bastante nervoso e eufórico, conforme relatou a testemunha ....
Já a falta de prova na compra do combustível (vendedor não se lembra da pessoa que lá foi naquele dia) e a ausência de vestígios, pelo menos com algum significado, na roupa que alegadamente o arguido vestiu nesse dia, não assumem relevância suficiente, para colocar em dúvida a versão apresentada pela ... e dada como assente.
2.5.2. Da nulidade do acórdão, por falta de fundamentação
[98] A primeira questão colocada no recurso dirigido ao acórdão condenatório prende-se com a arguição de nulidade da decisão, por violação da obrigação de fundamentação. Nas conclusões 11ª a 15ª, o recorrente considera que o acórdão padece de falta de fundamentação, maxime não contém o exame crítico da prova, e, por isso, é nulo. Tanto o Ministério Público como o assistente consideram que a decisão não é merecedora dessa crítica.
[99] O artº 374º, nº2, do CPP contempla as exigências de fundamentação da sentença penal, desenvolvendo o imperativo constitucional constante do artº 205º, nº1, da CRP Artº 205º da CRP: As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.. Face a esse preceito, o acórdão comporta necessariamente, sob pena de nulidade, a enumeração dos factos provados e não provados, de forma a assegurar que o Tribunal ponderou todos os factos relevantes; a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos que conduziram à decisão, por referência às fontes de prova; e, finalmente, a explicitação do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, ou seja, «os elementos que, em razão das regras da experiência ou critérios lógicos, constituem o substrato lógico-racional que conduziu a que a convicção probatória se determinasse num dado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios probatórios» Ac. do STJ de 29-03-2006, relator Conselheiro Santos Monteiro, Pº 06P478, www.stj.pt., sem necessidade de esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas permitindo verificar que a decisão não é ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras de experiência comum.
[100] Num Estado de Direito Democrático as decisões judiciais impõem-se pela razão que lhes subjaz, não pela autoridade de quem as profere Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289., pelo que a fundamentação assegura, a um tempo, a independência e imparcialidade da decisão, porque assente exclusivamente no apuramento objectivo dos factos e na interpretação válida da norma de direito Michele Taruffo, Note sulla garanzia costituzionale della motivazione, BFDUC, 1979, vol L, págs. 31-32., e a sua legitimação externa, através da possibilidade que confere aos cidadãos de verificar os pressupostos e critérios valorativos que determinaram o juízo, situando-se então esse dever no cerne do «compromisso» democrático do órgão de soberania «tribunais» com o Povo, em nome do qual administra a Justiça Ac do STJ de 20/04/2006, relator Conselheiro Rodrigues da Costa, Proc. 06P363, www.dgsi.pt. Sobre a evolução e dimensão da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, destaquem-se os arestos do Tribunal Constitucional nº 680/98, 147/2000, 258/2001 e 61/2006.. Por outro lado, numa perspectiva intraprocessual, a exigência de fundamentação respeita ainda a finalidade de atingir o convencimento dos sujeitos processuais e, quando tal não acontece, a reapreciação da decisão no âmbito do sistema de recursos, permitindo ao tribunal superior conhecer o processo de formação do juízo lógico-racional contido na decisão recorrida para, sobre tais fundamentos, quando impugnados, formular o seu próprio juízo Essa tríplice função da obrigação de fundamentação encontra-se em muitas decisões do STJ, de que é exemplo o Ac. de 25/06/2009, Pº 537/03.0PBVRL, relator Conselheiro Oliveira Mendes, e em Paulo Saraggoça da Matta, A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, 221 e segs. Cfr., Igualmente a prelecção do Conselheiro Pires da Graça intitulada Aspectos metodológicos do discurso judiciário, acessível em www.stj.pt ..
[101] Tendo em atenção tais exigências, importa verificar se o Tribunal Colectivo explicitou devidamente o processo de formação da convicção na decisão sobre os factos. Confrontado o acórdão na parte relativa à «motivação da decisão de facto», constata-se que foi correctamente enunciado o exame crítico da prova e que a decisão recorrida não merece essa crítica do recorrente.
[102] Na verdade, o recorrente estriba a afirmação da nulidade na falta da «análise individual» das provas (conclusão 11ª) e, mais adiante, enuncia, «a título de exemplo», um conjunto de peças processuais, dizendo que tais elementos não foram analisadas nem valorados. Simplesmente, e como se explicou supra, a imposição de fundamentação da decisão final constante do artº 374º, nº2 do CPP não obriga a uma espécie de listagem das provas produzidas, em jeito de check-list, mas sim à exposição dos motivos que conduziram à decisão, por referência aos meios de prova, tarefa que o legislador indica claramente dever reger-se pela concisão. Não se vê, nem o recorrente concretiza, quais os segmentos da decisão em que não se percebe o porquê da decisão e/ou o processo lógico-mental que lhe presidiu, pelo que cumpre afastar qualquer limitação por essa via do direito ao recurso ou, em geral, do direito de defesa, constitucionalmente consagrados. Compreende-se da motivação que o recorrente não concorda com a decisão no julgamento dos factos mas essa simples circunstância encontra remédio jurídico na impugnação ampla contemplada nos artsº. 412º, nº3 e 431º do CPP – efectivamente exercida -, e não permite, por si só, concluir pelo incumprimento do dever de fundamentação da decisão em apreço.
[103] Também a propósito desta questão, o recorrente repete uma alegação que se encontra amiúde no processo, a partir do acórdão de 18/07/2007. Trata-se da indicação de que o apenso 1 (e os documentos que o integram) «não foi conhecido da defesa até ao momento da leitura do primitivo acórdão», e também que anteriormente não havia sido facultada a respectiva consulta. Será assim? Terá sido ocultada e negado acesso aos sujeitos processuais, mormente à defesa do arguido, qualquer parte dos autos? É evidente que tal não aconteceu. Consultado o processo, deparamos com a indicação na acusação, como prova documental, de «Boletins clínicos juntos no apenso I». Esse oferecimento em peça processual com a importância de uma acusação, notificada tanto ao arguido como ao seu mandatário judicial, faculta a ambos não só pleno conhecimento da existência como também do arrolamento desse elemento probatório pelo que, se não foi considerado e consultado até à fase de recurso do primeiro acórdão condenatório, essa omissão constituiu opção da defesa ou, em alternativa, desatenção inteiramente alheia ao Tribunal. Certo é que, como resulta do artº 355º, nº2 do CPP, a valoração dessa prova documental dispensa a sua leitura pública ou exibição em audiência, nada permitindo afirmar que foi ignorada pelo Tribunal Colectivo, embora sem fundar a respectiva convicção em qualquer momento da decisão de facto, como resulta da motivação exarada não lhes fazer referência. O mesmo acontece, com cristalina clareza, quanto ao acervo referido exemplificativamente na conclusão 14ª.
[104] Improcede, pelo exposto, a arguição de nulidade do acórdão recorrido, por infracção do disposto no artº 374º, nº2 do CPP.
2.5.3. Valoração de prova proibida
[105] Sem expressão nas conclusões, sustenta o recorrente no corpo da motivação que foi valorada prova em infracção do disposto no artº 129º do CPP, com referência à ponderação da narrativa efectuada em audiência pelo assistente ... e das testemunhas ..., ..., ..., ... e ...relativamente ao que foi dito na sua presença pela falecida. Trata-se da arguição de proibição de prova e de que cabe conhecer oficiosamente, tendo como pano de fundo o que vem afirmado com total clareza no acórdão recorrido: «não houve qualquer testemunha presencial dos factos ocorridos no monte de Santa Quitéria, tendo o Tribunal apenas a versão da vítima mortal, contada por alguns familiares e por pessoas que contactaram com ela no período compreendido entre a prática destes factos e a data da sua morte».
[106] Diz o artigo 129º do CPP, sob a epígrafe Depoimento indirecto:
1- Se o depoimento resulta do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
2- O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha.
3- Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.
[107] Este normativo consagra no ordenamento processual português o regime do depoimento indirecto, de ouvir dizer, ou seja, do depoimento em que a razão de ciência para a asserção formulada pelo depoente não emerge de conhecimento directo de qualquer realidade mas sim da transmissão – em primeira, segunda ou mais «mãos», oral ou escrita – da percepção de outra pessoa, que dessa forma é meramente ecoada. Não constitui inovação, pois já no domínio do Código de Processo Penal de 1929 a doutrina defendia, que a utilização e valoração irrestrita dos testemunhos de ouvir dizer é incompatível com processo de estrutura acusatória, por ser contrária aos princípios da imediação e do contraditório, consagrados no artº 32º, nº5 da CRP Costa Andrade, C.J., ano VI, tomo I, págs. 6 e segs. e Ac. do STJ de 21/06/1989, Pº40009, 3ª secção, apud Maia Gonçaves, Código de Processo Penal anotado, 14ª Ed., 2004, pág. 321..
[108] A origem e fonte de inspiração deste regime encontra-se na common law, sob a designação de hearsay rule, figura construída durante séculos no âmbito de sistemas jurídicos adversariais e baseados no julgamento por júri inteiramente composto por indivíduos desprovidos de conhecimentos jurídicos, como forma de garantir que toda a prova fosse produzida em audiência pública (open court), vedar a valoração de prova sem fidedignidade bastante e reduzir os erros judiciais «The rule against hearsay evidence originated in centuries-old judicial awareness that the admission of hearsay evidence involves two serious dangers. The first is that the repetition of any statement involves the inherent danger of error or distortion, which increases in proportion to the number of repetitions and the complexity of the statement. The second is that it is virtually impossible to engage in effective cross-examination of a witness who is testifying about a hearsay statement, because the witness did not perceive the events in question. The latter disadvantage is the more serious. As Lord Bridge of Harwich put it in Blastland [1986] AC 41 at 54: The rationale of excluding [hearsay evidence] as inadmissible, rooted as it is in the system of trial by jury, of assessing what, if any, weight can properly be given to a statement by a person whom the jury have not seen or heard and which has not been subject to any test of reliability by cross-examination». In Peter Murphy, Murphy on Evidence, Oxford, 10ª Ed.,2008, pág. 207., bem como de assegurar o respeito pelos direito de defesa, mormente face à garantia da possibilidade do acusado confrontar em audiência quem o acusa Cabe destacar, pela sua importância, a sexta emenda à constituição dos EUA, de 1791: In all criminal prosecutions, the accused shall enjoy the right to … to be confronted with the witnesses against him. . Esta dimensão tem sido acolhida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem como inscrita na esfera de protecção do artº 6º, nº 3, al. d) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - o acusado tem o direito de interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação - em especial a partir do caso Kostowski c. Países Baixos, de 20/09/1989 Acessível em www.echr.coe.int . Cfr., dentre a jurisprudência mais recente do T.E.D.H. sobre o testemunho de ouvir dizer e o respeito pelo contraditório, os casos Lucá c Itália (2001) e Al-khawaja e Tahery c. Reino Unido (2009)., sem deixar de salientar que o respeito do fair trial deve ser aferido pela globalidade do julgamento e não tomando as provas atomisticamente Cfr. Ac. do STJ de 13/11/2008, Pº 08P2889, relator Conselheiro Souto Moura. .
[109] Porém, mesmo nos sistemas de common law, a regra que veda o testemunho de ouvir dizer nunca foi afirmada sem excepções. Assim, incorporando precedentes seculares da case law, quer o ordenamento de Inglaterra e Gales, quer o ordenamento federal dos EUA, para referir os dois mais destacados, admitem, entre outras, a validade de testemunho de ouvir dizer quando a fonte não pode ser ouvida em julgamento por falecimento. O Criminal Justice Act de 2003 diz na secção 116, subsecção 1, alínea a) que uma das condições admissibilidade desse tipo de testemunha acontece quando a pessoa relevante faleceu Sobre essa excepção, cfr. Peter Murphy, op. cit., págs. 247, 264 e 265.. O mesmo acontece no artigo 804º, al. b), inciso 1, das Federal Evidence Rules no qual se consagra a excepção para as dying declarations, fundadas na consideração de que o que é comunicado a terceiro às portas da morte – numa perspectiva religiosa cristã como que em preparação ou mesmo em diálogo com o Criador - oferece maior fidedignidade e afasta as reservas apontadas aos testemunhos-eco Sobre as dying declarations, cfr. a recente decisão do Supreme Court no caso Giles v. California (25/06/2008), acessível em www.supremecourtus.gov/opinions/07pdf/07-6053.pdf, a qual afastou, por maioria, o entendimento que vinha granjeando adeptos ao nível dos diversos estados de que o homicida voluntário prescinde implicitamente do direito a confrontar a vítima em audiência..
[110] Entre nós, e como decorre expressis verbis do nº1 do artº 129º do CPP, supra transcrito, o legislador consagrou a admissibilidade do testemunho de ouvir-dizer quando a fonte do conhecimento ecoado faleceu, independentemente de se tratar da vítima Por inspiração clara, como acontece com muitos outros institutos, do Codice di Procedura Penale (o respectivo projecto preliminar data de 1978 e a sua publicação de 1987), no caso do seu artigo 195º, com o seguinte teor:
Art. 195.
Testimonianza indiretta.
1. Quando il testimone si riferisce, per la conoscenza dei fatti, ad altre persone, il giudice, a richiesta di parte, dispone che queste siano chiamate a deporre.
2. Il giudice può disporre anche di ufficio l'esame delle persone indicate nel comma 1.
3. L'inosservanza della disposizione del comma 1 rende inutilizzabili le dichiarazioni relative a fatti di cui il testimone abbia avuto conoscenza da altre persone, salvo che l'esame di queste risulti impossibile per morte, infermità o irreperibilità.
4. Gli ufficiali e gli agenti di polizia giudiziaria non possono deporre sul contenuto delle dichiarazioni acquisite da testimoni con le modalità di cui agli articoli 351 e 357, comma 2, lettere a) e b). Negli altri casi si applicano le disposizioni dei commi 1, 2 e 3 del presente articolo.
5. Le disposizioni dei commi precedenti si applicano anche quando il testimone abbia avuto comunicazione del fatto in forma diversa da quella orale.
6. I testimoni non possono essere esaminati su fatti comunque appresi dalle persone indicate negli articoli 200 e 201 in relazione alle circostanze previste nei medesimi articoli, salvo che le predette persone abbiano deposto sugli stessi fatti o li abbiano in altro modo divulgati.
7. Non può essere utilizzata la testimonianza di chi si rifiuta o non è in grado di indicare la persona o la fonte da cui ha appreso la notizia dei fatti oggetto dell'esame.
. Acresce que a compatibilidade dessa norma com os ditames constitucionais dos nºs 1 e 5 do artº 32º da CRP – estrutura acusatória, princípios da imediação e do contraditório - foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional, concluindo pela afirmativa. Lê-se no Ac. do TC nº440/99, de 8/9:
No artigo 128º, nº 1, do Código de Processo Penal, preceitua-se que "a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto de prova". E, no artigo 129º, nº 1, do mesmo Código, acrescenta-se: "Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas".
Destes preceitos legais decorre que, embora o testemunho directo seja a regra, o depoimento indirecto não é, em absoluto, proibido. Não existe, de facto, entre nós, uma proibição absoluta do testemunho de ouvir dizer (hearsay evidence rule). O princípio hearsay is no evidence (ouvir dizer não constitui prova) sofre, assim, limitações. E, com isso - tal como se mostrou no acórdão nº 213/94 (publicado no Diário da República, II série, de 23 de Agosto de 1994), para cuja fundamentação aqui se remete -, o processo penal continua a assegurar todas as garantias de defesa. Continua a ser a due process of law.
Escreveu-se nesse aresto:
Ora, entende-se que a regulamentação consagrada na norma do nº 1 do artigo 129º do Código de Processo Penal se revela como proporcionada, nela se precipitando uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público, e, por último, os do tribunal, preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law).
A disciplina contida no referido artigo 129º, nº 1 - mostrou-se no mesmo aresto - também não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o da imediação, nem a regra do contraditório: de facto, aquele preceito, ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer, impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor. E, desse modo, garante a imediação e possibilita a cross-examination.
Só assim não será (isto é, as pessoas referidas não são chamadas a depor), se a sua inquirição não for possível, "por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas". Nessa hipótese, tornado-se impossível interrogar as pessoas que as testemunhas de outiva indicaram como fonte, tem de considerar-se razoável e proporcionada a limitação introduzida à proibição do depoimento indirecto. Tanto mais que este depoimento é apreciado pelo tribunal, segundo as regras da experiência e o princípio da livre convicção (cf. artigo 127º do Código de Processo Penal).
[111] Considera o arguido que o legislador não pode ter querido com aquela regra «contornar» a proibição constante do artº 356º, nº4 do CPP, norma que veda a leitura de declarações de prestadas por pessoas falecidas quando não prestadas perante magistrado. São, no entanto, problemas e situações diferentes e que não se confundem A proibição de leitura de declarações prestadas perante órgão de polícia criminal (o.p.c) radica numa consideração de empenhamento no sentido da condenação por que quem desenvolve a investigação criminal, conferindo ao acto de recolha da prova por o.p.c. menores garantias do que acontece quando presidido por magistrados, no que se ponderou igualmente que o contraditório exercitável sobre a leitura de um texto é sempre reduzido. Diferentemente, a possibilidade de inquirir em audiência a(s) testemunha(s)-eco de pessoa falecida, assegura ao Tribunal e aos sujeitos processuais a possibilidade de reconstruir na sua plenitude as envolventes do que foi dito e, inerentemente, avaliar da credibilidade da testemunha-fonte, o que integra garantia acrescida relativamente à situação ponderada no nº4 do artº 356º do CPP.
[112] Aqui chegados, verifica-se que o recorrente aponta como elemento diminuidor dos seus direitos de defesa a circunstância de não ter sido ordenada a recolha de depoimento para memória futura da vítima. Com efeito, tendo presente que ... de foi inquirida no hospital por elementos da Polícia Judiciária, os autos não fornecem qualquer pista segura para compreender a razão por que a direcção do inquérito não apreendeu em tempo útil a conveniência que esse acto fosse presidido por magistrado do Ministério Público, nem a propriedade de requerer a realização do acto previsto no artº 271º do CPP, tanto mais que o arguido fora já interrogado e encontrava-se preso. Porém, não se encontra nessa – muito questionável – opção do Ministério Público significado bastante para considerar que o arguido não beneficiou de plenas garantias de defesa, face ao princípio da livre apreciação da prova. Por outro lado, os aspectos relativos à credibilidade da prova e à verificação última de dúvida razoável operante do princípio in dubio pro reo, escapam já ao plano, estrito, da proibição de valoração do depoimento indirecto constante do artº 129º do CPP.
[113] O recorrente sustenta ainda que foi considerado o depoimento de Carminda Pinto relativamente ao que a falecida disse na presença de elementos da GNR, destacando da motivação o seguinte segmento: «Além disso, confirmou que elementos da GNR se deslocaram ao local e estiveram a falar com a vítima, tendo ouvido parte da conversa, pois estava a prestar-lhe os primeiros socorros. Nessa conversa recorda-se de ter ouvido a ... contar a ... que tinha sido regada com gasolina por um professor de Sernade, não tendo conseguido ouvir o nome dele» e evoca a proibição constante do nº 7 do artº 356º, conjugado com o nº4 do mesmo preceito e o artº 355º, todos do CPP. Em termos similares, considera que o depoimento de Albino de Sousa, cabo da GNR, não pode ser valorado, pois todo o seu conhecimento encontra-se transposto no auto de fls. 8, e chama à colação o despacho de fls. 2122 e 2123.
[114] Diz o artº 356º, nº7 do CPP: Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas. Não sendo Carminda Pinto órgão de polícia criminal e não tendo participado por qualquer forma na recolha de declarações – estava a prestar cuidados de saúde – encontra-se aparentemente fora do alcance subjectivo daquela norma. Dizemos aparentemente porque a situação dos presentes autos escapa às situações ponderadas pelo legislador, na medida em que, por regra, as declarações prestadas durante o inquérito decorrem em ambiente fechado e apenas acessível a quem nelas participa. Sob pena de fazer entrar pela janela o que o legislador fez sair pela porta, cremos que a situação em apreço inscreve-se ainda no círculo de garantia de fidedignidade que justifica materialmente aquela norma.
[115] Acresce que, quer quanto a este depoimento, quer quanto ao depoimento de Albino de Sousa, a sua valoração, na forma traduzida na motivação exarada no acórdão recorrido, contraria frontalmente o que fora antes decidido. Com efeito, na audiência de 12/06/2007, no decurso da inquirição de ..., o arguido suscitou a nulidade da parte do depoimento coincidente com as declarações da falecida exaradas a fls. 8, o que foi julgado procedente, através de despacho com este teor (fls. 2122 e 2123, vol 11º):
Nos termos do disposto no artº 356, nº4 do CPP, é permitida a leitura de declarações prestadas perante o juiz ou o Ministério Público, se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoura.
Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo das mesmas.
Analisando o auto de fls. 8, verifica-se que, o mesmo contém declarações prestadas por ... .
Ora, as mesmas não foram prestadas perante Juiz ou Ministério Público, pelo que a sua leitura apenas seria admissível, nos termos do disposto no artº 356º, nº 2, alínea b) do CPP, caso o Ministério Público, o arguido e o assistente estivessem de acordo com a sua leitura.
“In casu” e porque não solicitado, tal acordo não foi obtido. Logo é inadmissível a leitura desse auto, na parte em que reproduz tais declarações.
Consequentemente, as declarações prestadas pela testemunha, às perguntas feitas pela Digna Magistrada do Ministério Público, após a leitura do auto em causa, não podem produzir quaisquer efeitos, sendo nessa parte nulas, o que se declara.
Notifique.
[116] Temos, então, que a valoração de declarações da testemunha ..., e, por identidade de razão, de ..., correspondentes ao que ficou exarado no auto de fls. 8, encontra-se coberto por caso julgado. E, por outro lado, dúvidas não ficam, face às referências na motivação da decisão em matéria de facto ao depoimento de ambas, em especial quanto a que o autor da conduta fora um «professor de Sernade» e, especificadamente, «professor na escola de Unhão, perto de Sernande, de nome de nome Luís, com quem havia mantido uma relação amorosa», consubstanciam violação do antes decidido relativamente à nulidade das declarações prestadas.
[117] Face ao exposto, ainda que por razões não inteiramente coincidentes, procede a arguição de valoração de prova proibida quanto aos depoimentos de ... e ..., improcedendo quando aos demais meios de prova.
[118] A violação de regra probatória patente na decisão, e no seu contexto, integra vício da decisão cognoscível mesmo oficiosamente e configura o vício de erro notório de apreciação da prova, previsto no artº 410º, nº2, al. c) do CPP. Todavia, e porque essa prova foi ponderada para a afirmação como provados de factos que se encontram impugnados nos termos do artº 412º, nºs 3 a 5 do CPP – maxime que tenha sido o arguido o autor da conduta que provocou as lesões mortais em ... e a sua etiologia – encontramo-nos numa das situações em que é possível decidir a causa e evitar o reenvio, como permitem as disposições conjugadas dos artºs 426º, nº1 e 431º do CPP.
2.5.4. Impugnação ampla da decisão em matéria de facto
[119] Passemos então à impugnação alargada da decisão em matéria de facto, cumprindo explicitar o seu alcance, frequentemente incompreendido. Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº3 do mesmo código. Tem sido salientado a uma voz pelos Tribunais Superiores que o recurso em matéria de facto é de fulcral importância para a salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa e, para tanto, deve a Relação proceder a efectivo controlo da matéria de facto provada na 1ª instância, mormente por confronto desta com a documentação – registo áudio ou audiovisual - da prova produzida oralmente na audiência. Porém, essa dimensão do recurso não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente Ac. do S.T.J. de 17/05/2007, Pº 071397, relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho, acessível em www.dgsi.pt. Cfr., ainda, dentre a jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal, acessível no mesmo sítio internet, os Acs. de 23/05/2007, Pº 07P1498 (relator Conselheiro Henriques Gaspar), 14/03/2007, Pº 07P21 (relator Conselheiro Santos Cabral) e de 15/03/2007, Pº 07P610 (relator Conselheiro Pereira Madeira)..
[120] Assim, para atingir a completa delimitação do objecto do recurso e obstar à utilização do recurso apenas para sobrepor uma nova apreciação àquela formulada em 1ª instância, veio o legislador processual penal da revisão operada pela Lei 48/2007, de 29/8, a par da eliminação da exigência da transcrição dos depoimentos O que foi justificado na proposta de Lei nº 109X da seguinte forma: «No âmbito da motivação, para pôr cobro a uma das principais causas da morosidade na tramitação do recurso, elimina-se a exigência de transcrição da audiência de julgamento. O recorrente pode referir as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida indicando as passagens das gravações; não é obrigado a proceder à respectiva transcrição (artigo 412.º). O tribunal ad quem procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que, porventura, considere relevantes»., impor ao recorrente em matéria de facto que na motivação proceda a uma tríplice especificação: concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e ainda, quando o solicitar, concretas provas a renovar. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: deve o recorrente ter como referência o consignado na acta quanto ao registo áudio ou vídeo das prova prestadas em audiência mas também indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nºs 4 e 5 do artº 412º do CPP). Tal exigência justifica materialmente a extensão do prazo de recurso de 20 para 30 dias Sem elaborar sobre a necessidade para o exercício da defesa de tal prazo, não pode deixar de se confrontar o mesmo com o prazo concedido pelo legislador para a prolação de sentença nos casos de especial complexidade – 10 dias, nos termos do artº 373º do CPP – e para a elaboração de projecto de acórdão ou elaboração da decisão – 15 dias, nos termos do artºs. 417º, nº9 e 425º, nº3, do CPP..
[121] Compulsada a motivação apresentada, verifica-se que o recorrente concretiza os pontos de facto que reputa de incorrectamente julgados: pretende a modificação da decisão de dar como provados os factos constantes dos § 1 a 10, 12 a 14, 16, 20 e 21 dos factos provados, passando todos para o elenco dos não provados. Encontra-se, então, respeitado o ónus imposto pela al. a) do nº3 do artº 412º do CPP.
[122] Verifica-se igualmente que, ainda que apenas no corpo da motivação, o recorrente indica provas que, no seu entender, impõem – esse é o critério legal – decisão diversa da recorrida, pelo que cumpre apreciar todos os argumentos apresentados. Para maior clareza, será seguida a mesma organização formulada pelo recorrente, ou seja, individualizada quanto ao §1º, 2º e 3º dos factos provados, em conjunto quanto aos § 4º a 10º e 12º a 14º e, por fim, quanto aos §20 e 21.
[123] Porém, como veremos no decurso da apreciação, nem sempre essa indicação de prova, mormente da prova pessoal, encontra nas conclusões ou no corpo da motivação a menor delimitação das passagens concretas – das palavras ditas em audiência - em que se funda a impugnação. Quando assim acontece tais fundamentos para a impugnação alargada não podem ser conhecidos, pois não pode o julgador respingar no registo da prova os segmentos cuja concretização o recorrente omitiu. O recurso rege-se, neste plano da impugnação da prova gravada, desprovido de qualquer oficiosidade, pelo princípio do dispositivo.
[124] Importa acrescentar que, porque estamos nessas situações perante inteira omissão de cumprimento das referidas exigências, não deve ter lugar convite ao aperfeiçoamento. De acordo com o disposto nos nºs. 3 e 4 do artº 417º, do CPP, o aperfeiçoamento pode ter lugar quando a motivação não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do artº 412º do mesmo código, mas sempre sem modificar o âmbito do recurso. Então, quando o corpo das motivações não contém especificações exigidas por lei já não encontramos insuficiência das conclusões mas sim insuficiência do recurso, com a cominação de não poder a parte afectada ser conhecida. A situação em presença é inteiramente similar àquela que levou o Supremo Tribunal de Justiça a referir que o «convite ao aperfeiçoamento conhece limites, pois que se o recorrente no corpo da motivação do recurso se absteve do cumprimento daquele ónus, que não é meramente formal, antes com implicações gravosas ao nível substantivo, não enunciou as especificações, então o convite à correcção não comporta sentido porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação, ao fim e ao cabo, contas direitas, inscreveria um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade do prazo de apresentação do direito ao recurso» Ac. do STJ de 31/10/2007, P07P3218, relator Conselheiro Armindo Monteiro.. Por outro lado, a conformidade constitucional deste entendimento, relativo à ausência de cumprimento do disposto no artº 412º, nº3, do CPP nas motivações e conclusões, e não apenas nas conclusões, face à norma do artº 32º, nº1, da CRP, tem sido unanimemente reconhecida pelo Tribunal Constitucional Ac.do TC nº 140/2004, de 10/3 e decisão sumária nº274/06, de 22/05..
2.5.4.1. §1. Há cerca de 3 anos atrás antes da prática dos factos, o arguido conheceu profissionalmente ... , tendo desse conhecimento, resultado uma relação amorosa entre ambos.
[125] Na impugnação do primeiro facto provado, o arguido não questiona verdadeiramente todo o facto: apenas que o relacionamento entre o arguido e ... possa ser situado em três anos atrás do evento que determinou a morte desta, contrapondo o período de dois anos. Para tanto, aponta os docs. de fls. 1056, 1656, 1057, 1058, 1168 e segs, um trecho do depoimento de Luís Teixeira e a sua contestação.
[126] Compulsando o acórdão recorrido, verifica-se que nele vem destacado o depoimento de Luís Teixeira e a indicação de que o arguido trabalhou no Centro Psicofelgueiras nos anos de 2003 e 2004, compreendendo-se que se atendera especialmente a essa fonte probatória para situar no tempo o conhecimento entre arguido e a vítima e qualificar esse conhecimento de «profissional». E, ouvido o depoimento, foi essa exactamente a indicação testemunhal.
[127] Nessa medida, tendo os factos ocorrido Maio de 2005, a referência a «cerca de 3 anos atrás» mostra-se errada, pois remete para o ano de 2002, o que não encontra correspondência na própria prova testemunhal evocada em fundamento da decisão, pois esta referiu como termo inicial o ano de 2003, sem poder precisar datas.
[128] Assim, e sem necessidade de mais considerações, tem o arguido razão neste ponto da impugnação, devendo antes afirmar-se que aquele conhecimento ocorreu em data incerta do ano de 2003. Em conformidade, modifica-se o facto provado no §1º, do qual passará a constar:
Em data incerta do ano de 2003, o arguido conheceu profissionalmente ... , tendo desse conhecimento, resultado uma relação amorosa entre ambos.
E, em consonância, passará a constar dos factos não provados:
Não se provou que o arguido conheceu profissionalmente ... em data distinta da constante dos factos provados.
2.5.4.2. §2. Essa relação amorosa, pelo menos nos meses que antecederam a prática dos factos, foi muito conturbada, tendo-se sucedido vários episódios que resultaram em queixas judiciais. Não obstante, durante esse período de relacionamento amoroso, o arguido desenvolveu um amor obsessivo pela ..., chegando, no mês que antecedeu a prática dos factos, a contactá-la dezenas de vezes ao dia, através de chamadas ou mensagens telefónicas.
[129] A impugnação dirigida a este momento da decisão de facto estriba-se em dois argumentos: a definição de «obsessão» exige especiais conhecimentos técnicos ou científicos; e o detalhe das chamadas realizadas não suporta essa afirmação. Sem razão, em qualquer deles.
[130] O segmento «amor obsessivo», no contexto discursivo em que surge, não traduz a afirmação de um qualquer diagnóstico e muito menos de uma patologia ou distúrbio, como aconteceria se se tivesse desse como provado que o arguido sofria de transtorno obsessivo-compulsivo Cfr. DSM IV TR, F42.8 - 300.3. Observe-se que essa patologia vem expressamente afastada no relatório psiquiátrico-forense de fls. 2192-2210.. A utilização de uma expressão ou conceito por uma ciência não os captura ou retira do léxico corrente. O adjectivo obsessivo comporta um sentido comum, não técnico, como acontece com muitos dos conceitos utilizados em psicologia clínica e em psiquiatria Dos muitos exemplos que podem ser fornecidos, pense-se no pânico, que pode assumir a natureza de um transtorno psiquiátrico (DSM IV TR F40.0 - 300.01), mas persiste de uso corrente. , de apego muito intenso, constante e exacerbado a um sentimento ou a uma ideia O dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2005, apresenta como segunda entrada do substantivo obsessão o significado de «apego exagerado a um sentimento ou a uma ideia desarrazoada». O contexto psiquiátrico surge apenas na entrada seguinte. Do mesmo modo, o Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 2006, apresenta como significado do adjectivo obsessivo «que está constantemente no pensamento, que não sai da cabeça».. E, porque é esse o sentido da declaração constante da sentença percebido por destinatário normal (artº 236º do CC), falece fundamento ao arguido para considerar que estamos perante facto - interno - que apenas pode ser afirmada por meio de perícia. Aliás, quando o recorrente apela na conclusão 34ª para a consideração da conduta como crime passional, ou seja de uma paixão, utiliza adjectivo que incorpora o mesmo sentido de emoção intensa No Dicionário da Língua Portuguesa, o primeiro significado do substantivo «paixão», é apresentado como «sentimento intenso geralmente violento». .
[131] O segundo argumento, fundado nas comunicações telefónicas, constitui mero exercício de soma diária dos minutos e segundos para, a partir do cômputo das chamadas feitas e recebidas, procurar convencer que o «amor obsessivo» partia da vítima e não do arguido. Simplesmente, e como o próprio admite, persistem as mensagens de texto (SMS), cuja natureza íntima, constante e repetida tornam totalmente inverosímil a evocação de que podiam ter como emissor outro utilizador daquele número de telemóvel. A sua ponderação permite claramente enquadrar a conduta do arguido para com a falecida no sentido comum supra referido de obsessão. Conforme listagem de fls. 45 e 46, as mensagens recebidas pela vítima, com origem em número do telemóvel reconhecidamente utilizado pelo arguido (...), entre a madrugada de 30/04/2005 e a tarde de 2/05/2005, num período de curtas 60 horas, foram as seguintes:
«Não brinques com o nosso amor»; «Não estou a gostar da brincadeira»; «Acho que está na hora de pensares no teu filho que vai nascer e no homem que tanto te ama e deseja e em ti, no quanto podes ser feliz ao meu lado»; «Onde estás. Diz-me por favor»; «Porque não dizes nada»; «Como está o meu amor»; «Quando sair ligo-te. Ta bem. Queres lanchar comigo?»; «Estás a brincar. Estás novamente a despachar-me»; «Eu amo-te muito e não quero perder. Por nada. Tu tens que ser a minha mulher. A mãe do meu filho»; «Por que não queres estar comigo?»; «E eu preciso ter-te?»; «A que horas pensas sair. Vais sair esta noite?»; «Estás a dizer que não me queres mais. Não foi isso que me disseste ontem. Vais realmente ficar com ele»; «Afinal já não me amas? Não vais dar-me a oportunidade de ser feliz a teu lado?»; «Eu quero ser só teu. Dá-me essa oportunidade. Por favor. O que sinto por ti é muito importante»; Vais estar comigo?»; «A que horas sais?»; «Quando ligar ligo-te»; «Não sei. Talvez mais quinze minutos»; «Tou a sair onde estas»; «No café toca»; «Já jantas»; «Eu amo-te muito muito»; «Chegou agora para nos incomodar. Eu amo-te muito»; «Eu quero ser feliz a teu lado. Amo-te muito»; «Nem penses eu quero-te. Estou a mandar-te mensagens na frente dela»; «por tua causa. Vou sair de casa agora»; «A falta de amor... Mais vale morrer»; «Podes descansar. Bons sonhos»; «Amo-te»; «Não é apenas uma mensagem é amor do tamanho do mundo»; «Estou a ver televisão. E tu»; «Com os teus filhos»; «Amo-te muito muito»; Eu vou amar-te muito e fazer-te muito feliz. Prometo. Eu ligo-te. Beijinhos de quem te ama muito muito»; «amo-te muito muito»; «por favor deixa-me fazer-te o que te prometi. Eu amo-te muito muito»; «Não podes deixar-me. Nos amamo-nos».; «Eu amo-te e quero-te muito»; «Estou a ver o jogo quando acabar ligo-te. Amo-te muito. Beijinhos de quem te ama»; «Onde estás»; «fala comigo por favor»; «Eu preciso falar contigo. Eu preciso dizer-te o quanto te amo»; «Vais tomar café comigo»; «porque não dizes nada».
[132] Note-se que o arguido sustenta no corpo da motivação que se verifica, em virtude da não transcrição das mensagens emitidas a partir do telemóvel utilizado pela arguida, «omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade», alegação de que, porque omitida nas conclusões, não cabe conhecer, pois não integra o objecto do recurso. Certo é, porém, que como o recorrente indica, essa questão foi apreciada e indeferida (despacho a fls. 2189), sem que fosse interposto recurso. Em todo o caso, e com valor horizontal a todas as questões suscitadas nesse âmbito, pois o recorrente reclama amiúde da omissão de diligências, cabe assinalar que o vício previsto na parte final da al. d) do nº2 do artº 120º do CPP, constitui nulidade do processo dependente de arguição e que fica sanada se o interessado não a suscitar até ao encerramento da produção de prova, como emerge do disposto na al. a) do nº3 do mesmo preceito.
[133] Face ao exposto, cumpre concluir que o recorrente falha aqui por completo a demonstração do erro de julgamento, sendo a decisão recorrida perfeitamente razoável e devidamente sustentada na prova produzida, pelo que cumpre afastar a pretendida modificação do decidido.
2.5.4.3. §3. Como o arguido não se divorciasse da sua esposa, a ... decidiu terminar a relação amorosa entre ambos, o que aquele não aceitou
[134] Relativamente a este ponto concreto, o recorrente pretende convencer do erro de julgamento através da indicação de que não foi produzida prova segura e inequívoca do propósito de ... de terminar a relação amorosa e a sua não-aceitação por parte do arguido. Mas, logo de seguida, o arguido admite que «a única prova que eventualmente poderia sustentar essa afirmação seriam os depoimentos das testemunhas ..., da mulher deste, ..., e da irmã do primeiro ... e de uma amiga e funcionária da falecida ..., de nome ...». Ou seja, o arguido acaba por reconhecer que o Tribunal Colectivo contou com prova pessoal em suporte do facto impugnado e apela à sua desconsideração, para o que oferece a circunstância de «estarem de “mal” com o arguido» e serem parciais.
[135] No fundo, a impugnação funda-se, neste ponto, no simples ataque à credibilidade das fontes de prova ponderadas pelo Tribunal Colectivo, pretendendo substituir a sua valoração àquela que se atingiu a partir da aplicação da livre apreciação da prova consignada no artº 127º do CPP. E, sendo certo que esse princípio não consente qualquer arbitrariedade Como refere o Germano Marques da Silva «a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão», in Direito Processual Penal, vol. II, Verbo, pág. 111., não é menos verdade que as opções do tribunal recorrido de valoração de prova pessoal fundada essencialmente em elementos que só a imediação permite – as hesitações, os olhares, os gestos, os suores, as expressões faciais, em suma, toda a panóplia de particularidades que compõem a comunicação não-verbal, inapreciáveis a partir da simples audição de registo sonoro – apenas podem ser afastadas se não forem de todo razoáveis Assim, entre muitos, o Ac. do STJ de 15/07/2008, Pº 08P418, relator Conselheiro Souto Moura, www.dgsi.pt..
[136] Ora, a circunstância das fontes de prova ponderadas estarem ligadas à vítima não as desqualifica, embora imponha prudência na apreciação do respectivo contributo probatório, o que, no caso, fica mitigado pela pluralidade de testemunhas que confirmaram o propósito de ruptura e a oposição do arguido. Cabe ainda considerar que, de acordo com a experiência comum, este tipo de envolvimento, para mais constituindo para um dos envolvidos relação extraconjugal, apenas se aborda num círculo muito chegado e de confiança estreita, pelo que não causa qualquer estranheza que as pessoas que o relataram em audiência tivessem uma relação próxima com a falecida.
[137] Acresce que esse relato encontra corroboração na sequência de mensagens recebidas pela vítima, emitidas pelo arguido. O anúncio «não te quero perder», a interrogação «Por que não queres estar comigo?» e, fundamentalmente, o apelo «Não podes deixar-me. Nós amamo-nos» revela que a ruptura da relação estava eminente, ou até consumada – a última mensagem pergunta «porque não dizes nada» - e que esse desfecho desagradava profundamente ao arguido. Mais, era verbalizado com angústia, evidenciada nas interpelações: «fala comigo por favor»; «Eu preciso falar contigo. Eu preciso dizer-te o quanto te amo».
[138] Paralelamente, evoca o recorrente «omissão de diligências por parte do Tribunal» após o que especula sobre o que seria apurado se tivessem sido determinada investigação sobre encontros no Hotel Fundador. De forma patente, uma «omissão» não constitui prova, enquanto demonstração da realidade de um facto, e muito menos prova que imponha decisão diferente da recorrida. E, em especial, não se compreende porque não requereu o arguido na sua contestação ou em audiência as diligências que agora diz omitidas, fundamentando a respectiva necessidade para a descoberta da verdade, valendo aqui o que se escreveu supra relativamente à sanação do vício previsto na parte final da al. d) do nº2 do artº 120º do CPP. Ou seja, mesmo que existisse a pretendida omissão, o vício estaria sanado. Note-se ainda que o arguido requereu na sua contestação (fls. 830) que fosse solicitado ao Hotel Fundador informação sobre os anos de 2003 a 2005, o que foi indeferido por despacho de fls. 967 irrelevante para o objecto do processo, decisão conformadora de caso julgado, pois com ela se resignou o recorrente.
[139] Tanto basta para afastar, também aqui, a verificação de erro de julgamento.
2.5.4.4. §4. O arguido tomou, então, a resolução de tirar a vida à ..., utilizando para o efeito um líquido combustível inflamável. §5. Na execução desse plano, no dia 01/05/05, no período nocturno, o arguido utilizando o cartão de acesso à rede TMN, com o número ..., telefonou para o número ..., utilizado pela ..., tendo combinado com esta um encontro no dia seguinte, por voltas das 09h00, no monte de Santa Quitéria.§6. Na manhã do dia 02/05/05, o arguido não foi trabalhar e foi tomar o pequeno-almoço a um café, sito nas bombas Total, em Fafe, tendo, depois, por volta das 09h/09h15m, se dirigido ao referido local de encontro, conduzindo o veículo de marca Renault, modelo Mégane, de matrícula 61-42-NL, pertencente a ..., levando gasolina que acondicionou numa garrafa de plástico.§7. Aí chegado, esperou alguns momentos pela ..., que se deslocou ao local de encontro, conduzindo o seu Jeep, de marca Mercedes, matrícula 97-71-VX, tendo esta estacionado perto do veículo em que o arguido se fazia transportar. §8. De seguida, ambos saíram das suas viaturas e, após uma breve troca de palavras, o arguido atirou a ... para cima de uns arbustos e, munido da garrafa que continha o combustível, despejou o seu conteúdo para cima da cabeça e tronco da ..., que ainda se encontrava caída, e ateou fogo à roupa que ela trazia vestida, com um isqueiro que possuía .§9. De imediato, as peças de roupa que a ... vestia se incendiaram e esta começou a gritar de desespero e dor, enquanto despia o dito vestuário. Nessa altura e indiferente a esta situação, o arguido abandonou o monte de Santa Quitéria, conduzindo o veículo supra identificado.§10. A ..., nua, calçando apenas umas botas, conseguiu alcançar o seu Jeep, tendo-o conduzido até ao Hospital de Felgueiras, onde deu entrada por volta das 10h00m. §12. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ... sofreu queimaduras de 2.º e 3.º graus, com envolvimento da face, couro cabeludo, região cervical anterior e posterior, tórax, abdómen, dorso e membros superiores, num total de, aproximadamente, 55% da superfície corporal.§13. Estas lesões, para além de extremamente dolorosas, foram determinantes de um quadro de choque séptico, com falência multiorgânica, que lhe provocaram, em 15/07/05, paragem cardiorespiratória, determinante da sua morte. §14. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.
[140] Após, como vimos relativamente aos §1, 2 e 3, individualizar os pontos de facto impugnados e de os pôr em relação com as provas que considera fundarem a pretendida modificação da decisão, o recorrente escolheu outra via e aglutinou a impugnação dirigida ao cerne do evento que lhe foi imputado. Começa por dizer que não existe prova sobre o que aconteceu naquele dia 01/05/2005, porque ninguém presenciou os factos. Depois, sustenta ter sido feita prova - positiva - de que o arguido não foi o autor da conduta, porque estava no momento indicado nos factos provados noutro local.
[141] Num primeiro momento, o arguido formula raciocínio em que, aceitando que tomou o pequeno-almoço na hora e local indicados nos factos provados e que saiu pelas 09.15h, ou seja, no final do intervalo referido como provado, conclui que a distância para o Monte de Santa Quitéria não lhe permitia chegar antes de 20 a 30 minutos depois. E, a partir dessa conclusão, considera que não era possível que o evento tivesse decorrido como provado, em termos da vítima entrar no hospital pelas 10:00h.
[142] Ora, todo esse raciocínio assenta em premissas que temos por não demonstradas. Desde logo a duração do percurso, que o recorrente funda num trecho do depoimento de ..., seu amigo. Ouvido esse depoimento, fica uma simples estimativa, desprovida de segurança, e mesmo assim formulada com muita relutância, apenas ultrapassada pela insistência do mandatário do arguido. Isso mesmo resulta da interjeição «Sei lá...» e da reserva «Ao certo não sei...».
[143] Acresce que, mesmo que se aceitasse como boa a distância sugerida pelo recorrente e o piso molhado, a experiência comum indica-nos que podemos apenas estimar uma duração média dos percursos e em velocidade regular. Em condução acelerada, como aquela desenvolvida por quem tem uma motivação forte para chegar a um local com a maior brevidade, ou então para dele fugir, o tempo de trajecto – qualquer trajecto - é susceptível de ser significativamente reduzido.
[144] Por seu turno, não vemos que o registo e a duração das chamadas tenham significado neste particular. O recorrente alude a que se tratou de «toques para devolução de chamada» mas, na verdade, não oferece qualquer demonstração dessa realidade. É uma explicação possível, apenas isso, notando-se do registo de fls.104 e segs, muitas chamadas de voz com duração de poucos segundos e sem relevo no contexto geral da prova ponderada.
[145] Assim, persiste razoável, e não contrariada, a valoração do Tribunal Colectivo de que era perfeitamente possível ao arguido naquele lapso de tempo sair de Fafe, ir ao Monte de Santa Quitéria, praticar os factos de que foi acusado e voltar para Fafe.
[146] Nesse ponto do recurso, o arguido pergunta-se como chegou o Tribunal a essa conclusão mas, lendo o acórdão com o mínimo de atenção, é fácil perceber que se teve em linha de conta a distância, a orografia, as condições climatéricas, a duração previsível das condutas desenvolvidas no Monte de Santa Quitéria e do trajecto até ao Hospital, valorados concertadamente com a prova pessoal produzida, mormente aquela incidente sobre o trajecto, salientando igualmente a circunstância do arguido não ter efectuado chamadas entre as 9:15 h. e as 10:10 h, ambas com activação de célula situada em Fafe, o que é perfeitamente compatível com o comportamento dado como provado.
[147] A certo passo, afirma o recorrente que a chamada efectuada pelas 9:15.18, que antes referira ter activado a célula Fafe 3 (ponto BB da motivação), activou afinal a célula de Margaride (ponto BE). Resulta, porém, de fls. 150 que estava certo na primeira afirmação e não na segunda. Por outro lado, não sendo registadas chamadas no período em que se dá como provado que a conduta desenvolvida no Monte de Santa Quitéria teve lugar, não se encontra valia no argumento de que nenhuma chamada feita pelo arguido activou a célula aí situada.
[148] Prosseguindo, no ponto BF, em termos algo confusos, o recorrente afirma a sua discordância quanto à suficiência de prova quanto ao facto de ter comprado gasolina e aponta ao acórdão omissão na indicação das concretas circunstâncias de tempo e de lugar em que esse combustível teria sido adquirido. Para tanto, refere que a perícia realizada foi inconclusiva.
[149] Com efeito, o exame de fls. 218 a 220 refere a detecção de resíduos de líquidos inflamáveis, sem tomar posição sobre a sua composição, mormente se correspondiam a gasolina. Porém, um dos objectos onde a detecção de combustível foi positiva corresponde à tampa de plástico recolhida no local, a mesma tampa de plástico que ... e ... referiram ainda cheirar a gasolina, odor bastante característico e de fácil identificação por qualquer pessoa, para mais por profissionais de investigação criminal. Também o Dr. ..., médico que assistiu a vítima, referiu o cheiro a gasolina que dela emanava, o que suporta plenamente a convicção do Tribunal Colectivo nesse ponto.
[150] Diz o recorrente, no âmbito do esforço de cálculo do tempo necessário para o trajecto da bomba de gasolina até ao Monte de Santa Quitéria e regresso a Fafe, que o arguido levaria no mínimo 5 a 10 minutos a adquirir esse produto. Simplesmente, não vem afirmado nos factos provados que a gasolina foi adquirida após a saída daquela bomba e das 09:15 h, o que deixa aquele cálculo sem sentido. Note-se que a versão constante da pronúncia – de que procedeu à aquisição daquele produto em Silvares – não ficou provada.
[151] Na mesma linha, o recorrente procura convencer que o arguido chegou ao Monte de Santa Quitéria entre as 9:35 e as 9:45 e a vítima entre as 9:40 e as 9:50. Todavia, esse exercício não encontra qualquer suporte probatório, configurando mera conjectura ou palpite, claramente incapaz de contrariar minimamente a decisão recorrida. O mesmo deve ser dito relativamente à fixação de uma linha temporal para a acção decorrida no Monte de Santa Quitéria, mormente a acção de despejar a gasolina sobre a vítima e desencadear a sua ignição, pois toda essa conduta é perfeitamente compatível com o decurso de poucos minutos, em especial se corresponder, como aponta a prévia obtenção de uma garrafa de gasolina, a acção pensada e preparada.
[152] O último plano de discordância apresentado no recurso relativamente ao aspecto temporal e a incompatibilidade, no entender do arguido, com o desenvolvimento de condutas dadas como provadas, prende-se com o trajecto da vítima do Monte de Santa Quitéria até ao Hospital Agostinho Ribeiro, em Felgueiras, e, em particular, o momento de chegada a esse estabelecimento hospitalar.
[153] Como qualquer pessoa que já tenha tido a desdita de deslocar a uma urgência sabe, os procedimentos hospitalares de registo de entrada estão pensados em função das operações de inserção de dados e não com referência ao momento em que o paciente entra no Hospital, especialmente se chega pelo seu próprio pé. Ora, ouvidos os segmentos indicados no recurso dos depoimentos de ... e ..., emerge indefinição total relativamente ao período de permanência da vítima até que fossem obtidos os seus dados identificativos e inscritos no sistema informático das urgências. Ambos foram claros na indicação de que não podem dizer com exactidão quanto tempo passou, o que até mereceu do mandatário do arguido o comentário aquiescente, dirigido a ...: «isso não lhe peço com rigor, a senhora não estava a olhar para o relógio...». Assim, face ao registado no sistema, apenas é possível afirmar com segurança que pelas 10:13h do dia 02/05/2005 a vítima ... já se encontrava naquele Hospital a ser assistida. Nessa medida, a indicação nos factos provados de que atingiu aquele local “por volta das 10:00h” mostra-se perfeitamente razoável e conforme com as regras da experiência comum. Acresce que a circunstância de ter registo de entrada no Hospital de S. João no Porto pela 11:09h não oferece qualquer valia na determinação do que se passou em Felgueiras, tanto mais que nas situações em que o doente segue em ambulância os dados colhidos acompanham-no, permitindo inscrição quase imediata no sistema informático de destino.
[154] O argumento seguinte (alínea BN) versa os movimentos do arguido no dia 02/05/2005, que se considera demonstrados, mormente a deslocação a casa, em Fafe, e a permanência na garagem dirigida por ... durante o período em que se dá como provado ter sido praticada a conduta no Monte de Santa Quitéria. Em suporte, o recorrente pretende a reponderação do registo do seu telemóvel e dos depoimentos de ..., ... e de ..., em conjunto com os docs. de fls. 926 a 933, 934, 953, 954 e 955. Será assim? Suporta essa prova a afirmação de que no período em que se dá como provado que despejou gasolina sobre ... e desencadeou a sua ignição com intenção de lhe causar a morte, o arguido encontrava-se noutro local, calmamente a aguardar pela finalização da mudança de óleo do seu veículo? Novamente, a resposta é negativa.
[155] Como se disse, os registos telefónicos não indicam qualquer chamada entre as 9:15:18 e as 10:10 e as chamadas posteriores não permitem aquilatar onde estava o arguido naquele período. Dito isto, observe-se que o recorrente abandona aqui por completo a objecção que antes opuseram às mensagens de SMS, assumindo que toda a utilização daquele número de telefone espelhada das listagem foi da sua responsabilidade.
[156] Relativamente aos depoimentos de ... e ..., que ouvimos na sua totalidade, considera o recorrente que o registo aposto no livro de manutenção é fidedigno, demonstra que esteve na oficina do primeiro durante a manhã do dia 2/05/2005 e que, por isso, não podia ter praticado a conduta reportada ao Monte de Santa Quitéria.
[157] No que toca ao contributo probatório de ..., amigo e companheiro de lazer no «todo-o-terreno» do arguido, verifica-se que o seu relato quanto aos movimentos anunciados pelo arguido foi impreciso e contraditório. Começou por classificar o encontro nas bombas de breve - «estive lá um bocadito, mas rápido» - seguido da indicação: «ele disse que tinha que fazer um trabalho e ir resolver um problema qualquer na carrinha», transcrita na motivação. Porém, como é sabido, na avaliação de credibilidade do relato vale não só o que se disse mas também como se disse. Mesmo com todas as limitações que a ausência de imediação acarreta, designadamente relativamente à panóplia de elementos compreendidos na denominada linguagem corporal, a audição da gravação oferece sinais de menor credibilidade. Com efeito, a voz da testemunha tornou-se subitamente mais nervosa, arrastada e pastosa, diferente do normal fluir de ideias, denunciando falta de convicção na narração dos detalhes do evento. Esse factor de reserva marcou a referência à invocada frase do arguido - «Ponto, daqui a meia hora, se puderes, uma hora, quando puderes, ligas-me e eu vou lá ter ao armazém» - e adensou quando a testemunha referiu que afinal não foi ele – ... - que ligou mas sim o arguido e por volta das 10:00 ou 10:15. Ora, a listagem de fls. 150 permite dizer que não foi assim que se passou. Encontra-se não um mas dois telefonemas do arguido dirigidos ao nº de telefone ... – aquele indicado pela testemunha – e, mais importante, nenhum pelas 10:00. O registo evidencia um telefonema às 10:34:17 e outro, quase de imediato, pelas 10:34:40. Ou seja, esse contacto, e a movimentação posterior relatada pela testemunha, situou-se bem depois do momento referido nos factos provados para a conduta. Refira-se ainda que ... recordou a presença de ... nas bombas de gasolina, e este negou peremptoriamente que o arguido tivesse anunciado onde ia, introduzindo outra dissonância na avaliação da credibilidade do contributo probatório.
[158] Por outro lado, importa sublinhar – a traço grosso – que a referência à operação de mudança do óleo não surge espontaneamente no decurso do depoimento mas sim na formulação de questão colocada pelo defensor do arguido. Até então apenas aludira, vagamente, «ao problema qualquer na carrinha» e, note-se, essas referências são contraditórias. Uma mudança de óleo constitui operação regular de manutenção, não uma reparação e só no contexto de qualquer anormalidade de funcionamento do veículo pode compreender-se a alusão a «um problema». Mais. Convidado a concretizar qual era o problema, a resposta da testemunha foi peremptória: «não, não faço ideia». Mas, estranhamente, quando o defensor do arguido repetiu, minutos depois, a pergunta, obteve da testemunha resposta distinta. ... disse então que o arguido referiu que «ia aproveitar de passar na oficina», não sem, cautelarmente, acrescentar «Mas, isso, tanto tempo, já não me recordo...», altura em que foi interrompido pelo mandatário do arguido. Depois, quando questionado pela Srª Procuradora, voltou à frase inicial - «que tinha que ver um problema qualquer na carrinha». Finalmente A testemunha foi confrontada sucessivamente com as mesmas perguntas, sem a devida correcção., perguntado pelo mandatário do assistente se o arguido falou em «problema» ou na «mudança do óleo», recordou apenas a referência ao primeiro, não à segunda.
[159] Temos, então, que o depoimento de ... foi logo marcado por pergunta sugestiva – a alusão à mudança do óleo – e é contraditório na referência à deslocação a oficina para reparação ou para mudança de óleo. Por isso, não lhe reconhecemos credibilidade para fundar a pretendida presença do arguido na oficina entre a saída da bomba de gasolina e o telefonema verificado pelas 10:35.
[160] O recorrente refere ainda um segmento do depoimento de ..., com o que pretende demonstrar que o arguido tinha que ir ao médico com a esposa e que faltara ao serviço por esse motivo. Trata-se de aspecto inteiramente lateral e que em nada influi na decisão impugnada, sendo certo que não se refere a hora da consulta, nem existe outra comprovação desse facto. Por ..., sabemos apenas a justificação que o arguido lhe apresentou. Aliás, cumpre observar que o arguido não lhe referiu que estava ocupado com a tese, ou com a manutenção do veículo. Resta referir que a testemunha apenas esteve na presença do arguido após as 11 horas, muito depois do período em que se deu como provada a conduta no Monte de Santa Quitéria e na sequência de telefonema oriundo do nº 255341227, verificado apenas pelas 10:58:41, como resulta de fls. 150. Importa ainda reter a indicação dessa testemunha de que o arguido apresentava sinais de muita excitação, o que, de acordo com a experiência comum, é compatível – não mais do que isso - com a conduta dada como provada.
[161] Cabe, agora, apreciar o depoimento de ..., relativamente ao qual o recorrente especifica dois segmentos: um relativo aos procedimentos contabilísticos e outro relativamente à alusão a que o arguido levou uma «maletazeta» para o café, testemunho considerado não credível pelo Tribunal Colectivo. Ouvido o depoimento, impõe-se considerar que essa apreciação como correcta, sem violação de quaisquer princípios probatórios ou avaliação afastada dos ditames da experiência comum. Sublinhe-se que, para tanto, assentou a consideração de falta de isenção e de desmerecimento em elementos que não podemos sindicar, porque inteiramente fundados na imediação.
[162] Ainda assim, a apreciação do registo sonoro oferece-nos uma testemunha inicialmente muito solícita, ciente da importância do que dizia, como aliás, lhe foi dito pelo mandatário do arguido. Alguém que tinha as respostas na ponta da língua, atitude bem distinta do que corresponde ao comportamento comum de quem comparece em julgamento para depor num caso de homicídio, em especial de quem atravessa toda a fase de inquérito e de instrução, com o arguido preso, sem ser chamado a depor, surgindo apenas no rol da contestação. Com o avançar do depoimento e sujeição ao contraditório, essa peremptoriedade foi-se esbatendo e revelou factores que põem fortemente em crise a sua credibilidade. A começar pela circunstância de se ter apresentado ao pai do arguido para testemunhar e facultar, a pedido deste, a documentação interna da oficina, capacidade de iniciativa que não se mostra conforme com o facto de ter aguardado cerca de um ano para facturar o serviço. Não colhe a explicação de que não teve coragem para exigir o pagamento, pois, então, não se percebe qual o factor de encorajamento que interveio para tomar ele próprio a iniciativa, na medida em que, como profissional experiente e informado dos seus deveres – bem demonstrado em audiência -, não ignorava que lhe seriam pedidos os documentos comprovativos do serviço e do pagamento, altura em que iria incontornavelmente dizer que permanecia credor do arguido. Do depoimento gravado não restam dúvidas que ... conhecia os seus deveres como agente da Renault e como empresário e contribuinte fiscal, mormente que obrigada a emitir factura, reter e declarar o IVA bem como guardar a documentação contabilística, como acontece com a generalidade das pequenas e médias empresas deste país, incluindo naturalmente as muitas que são dirigidas por uma família. Esse carácter familiar não é sinónimo de desorganização nem de ignorância.
[163] O Tribunal Colectivo destacou igualmente a circunstância do carimbo no livro de revisão poder ser aposto em qualquer data, memo posterior, e também o arredamento fora do comum da quilometragem. A primeira asserção constitui uma evidência, enquanto a segunda emerge do depoimento da testemunha. Com efeito, quando questionada se a aposição efectuada no livro de revisões correspondia à quilometragem real, respondeu pela afirmativa, explicando que essa era uma imposição da Renault, de que era agente. Mais tarde, a referência ao «arredondamento» da inscrição quilométrica surge novamente pela voz do mandatário do arguido, em termos fortemente sugestivos, como se demonstra por esta sequência:
Depois de a testemunha ter sido questionada pelo Sr. Juíz presidente e demais sujeitos processuais, o mandatário do arguido pede novamente a palavra e diz:
Eu penso que não percebeu completamente a pergunta do Sr. Juiz. Vocês normalmente apontam os quilómetros exactos. Mas às vezes também arredondam. Às vezes arredondam.
E, quando a testemunha se limita a aderir a essa afirmação, exclama:
Pois.
A testemunha ensaia então uma resposta, mas o mesmo mandatário prossegue:
Pelo menos eu arredondo.
A testemunha volta a ensaiar a resposta: trinta e nove e qualquer coisa, ponho..., mas é de novo interrompida pelo mesmo mandatário, que remata, com total inversão de papéis:
Depende de quem aponta. Há quem aponte bem, vai ao conta-quilómetros e aponta o número exacto...
Aí ouve-se a testemunha observar:
O óleo em si dá margem para,para se jogar ...
Mas logo o mandatário do arguido sobrepõe a sua voz à da testemunha e conclui, com ênfase:
E há quem arredonde porque assim é mais fácil, até para o cliente é mais fácil para fazer o cálculo.
[164] No recurso, o arguido prossegue essa senda e afirma que o arredondamento é comum nas oficinas portuguesas, para concluir que depende do rigor de quem a faz. Todavia, esse mesmo argumento só confirma a reserva manifestada pelo Tribunal Colectivo, na medida em que admite que se trata de manifestação de falta de rigor. Falta de rigor que, no exercício da livre apreciação da prova, é razoável comunicar a todo o relato efectuado em audiência.
[165] Na verdade, essa falta de rigor, ou melhor, a ligeireza como se declara em Tribunal a certeza absoluta sobre algo que não se sabe com exactidão, manifesta-se igualmente noutras passagens do depoimento. A certa altura, ... é questionado o que vestia o arguido no dia 2/05/2005 e responde, sem a menor hesitação, que usava calças de ganga. Logo que confrontado com a inverosimilhança dessa recordação tão viva e detalhada, acabou por reconhecer que não sabia o que o arguido vestia nesse dia e que respondera em função da convicção de que o arguido usava sempre aquele tipo de vestuário. Outra incidência dessa ligeireza, encontra-se na referência ao momento de chegada do arguido. Rápido, logo no início do seu depoimento referiu que esteve na oficina às 9.30 da manhã, «com certeza absoluta». Mas, no desenvolvimento das suas declarações, compreendeu-se que a testemunha não tinha qualquer segurança nessa indicação horária a não ser a circunstância da sua filha entrar, por regra às 9:00 h., e naquele dia já se encontrar na oficina. Só que, perguntado como podia acomodar o arguido sem marcação, foi vago relativamente ao número de marcações que assegurara na manhã e como pudera atender, praticamente de imediato, a solicitação que era efectuada.
[166] Por outro lado, a testemunha admitiu que a mudança do óleo havia acontecido antes do que seria de esperar, atento o tipo de óleo empregue, ocorrendo apenas 11.000 Kms depois da última intervenção, e não 15.000 Kms. Note-se que nenhuma alusão foi feita a que o veículo apresentava funcionamento anormal, mormente por consumo excessivo de óleo – hipótese suscitada na motivação -, o que certamente seria referido pelo cliente a quem assegurava a respectiva manutenção e motivaria mais do que um mero «serviço rápido». A sua condição de praticante de provas de todo o terreno seguramente levaria o arguido a não negligenciar sinal de degradação tão importante em qualquer motor. Certo é que a operação sempre foi apresentada como de rotina, quando, em função da periodicidade seguida anteriormente, representava uma antecipação importante.
[167] Mais, como refere o assistente, a mudança do óleo é apenas parte daquele procedimento de revisão. Como resulta da fls. 25 do manual de fls. 953, as revisões de manutenção inscritas no respectivo livro incluem um conjunto de operações, com destaque para a substituição do filtro de óleo, bem como várias verificações. Ora, resulta do depoimento de ... que nada disso teve lugar mas, ainda assim, foi preenchido o livro de revisões, o que acrescenta mais um elemento de inverosimilhança aos antes apontados.
[168] O recorrente apela ainda para a ponderação dos documentos de fls. 926 a 933 e 934. Nesse ponto dos autos encontra-se a impressão de dois textos, ambos não assinados, um intitulado «O caminho mais adequado para a aprendizagem para leitura» e outro «Educação perceptiva», acompanhados de uma impressão do ambiente gráfico da aplicação Microsoft Word, usualmente designada por print screen. Será, ao que nos parece, pois o arguido não é claro nesse particular, o trabalho ou tese que, sustenta, iria defender no dia seguinte.
[169] Ora, não é preciso ser perito informático – basta integrar as centenas de milhões de utilizadores de aplicações informáticas – para não conceder particular fidedignidade à inscrição horária em ficheiros informáticos sem certificação externa e independente, pois o sistema pode ser facilmente manipulado de forma a passar a considerar um dia e hora diferente da real, por exemplo o dia 02/05/2005, pelas 9:34, a qual é depois reflectida nos ficheiros criados pelas diferentes aplicações. E não só. A referida impressão incide sobre as propriedades de um ficheiro Word com a designação «educação perceptiva (estudo)», o que remete para o texto impresso a fls. 935 a 949, constituído por 15 páginas A4, na sua quase totalidade em espanhol, o qual, a fazer fé no «print screen» junto, foi criado pelas 9:34:45 do dia 2/05/2005 e sofreu a última modificação 14 minutos depois. Ou seja, com aqueles elementos, o arguido quer convencer que esperou para começar a escrever o texto de um trabalho com relevo internacional e que iria apresentar no dia seguinte pela deslocação a uma oficina para mudar o óleo do seu veículo, fazendo-o num café enquanto esperava que ficasse concluída a operação. Temos essa versão sobre o que aconteceu como inteiramente inverosímil.
[170] Pelos motivos expostos, consideramos que o recorrente falha, também aqui, na apresentação de prova que imponha decisão diversa da recorrida, ou seja, na demonstração do erro de julgamento, antes mesmo do confronto desses contributos probatórios com aqueles ponderados pelo Tribunal Colectivo para afirmar o que se passou no Monte de Santa Quitéria.
[171] Antes de aludir a tais depoimentos, o recorrente evoca a apreciação do relatório clínico de fls. 191, o conteúdo do apenso 1 e a reponderação de um segmento do depoimento de ..., mas sem que apresente com clareza qual o respectivo significado para a reconstituição do sucedido.
[172] Relativamente ao relatório clínico de fls. 191, o recorrente limita-se a sublinhar ou a destacar a negrito algumas passagens, que assim não se encontram no original, apesar da colocação de aspas, e, sobretudo, omite a parte final, aquela com interesse para aferir do estado geral de ... e onde toma posição – infirma - sobre a hipótese de a ideação suicida. Termina assim o relatório clínico, subscrito pela Drª ...:
«Não se registaram alterações do humor durante a observação (a doente não se encontrava deprimida) e não há informação de sintomatologia compatível com quadro depressivo no período pré-mórbido; durante os períodos de crítica e os períodos de agitação psicomotora nunca houve referência a ideação suicida ou sequer ideação passiva de morte.
Não são conhecidos antecedentes psiquiátricos na doente; aparentemente, divorciada, mãe de três filhos, com funcionamento adequado até ao momento do acidente».
[173] Essas conclusões, que cabe aqui aceitar, perante o valor que lhe confere o disposto no artº 163º, nº1 do CPP, não contrariado ou posto em crise por apreciação com maior valia científica, em nada colide com a asserção pericial da Drª ..., a fls. 3204, em especial quanto ao quadro de delirium, reiterada nos esclarecimentos prestados em audiência, e que, para maior clareza, se repete:
«De acordo com as informações recolhidas, não foi encontrada a presença de actividade delirante relativamente à falecida, no período anterior ao acidente, tendo no entanto e de acordo com as informações constantes nos autos correspondentes ao período de hospitalização da vítima, temos a dizer que esta padeceu dum quadro denominado Delirium. O Delirium, é uma perturbação da consciência que se acompanha por uma alteração da cognição (a sépsis que a falecida sofreu em consequência das queimaduras). Concluímos pois, que não existe nexo de causalidade entre o eventual “Medo e pavor de alguém que foi vítima de uma agressão” e o Delirium».
[174] Quanto aos diários e relatórios clínicos constantes do apenso I, não vemos que deles decorra qualquer elemento que não tenha sido já ponderado na perícia desenvolvida pela Drª ... e coberto pelos esclarecimentos prestados em audiência pela mesma. E, relativamente aos «especialistas» que o recorrente diz ter consultado à margem do processo, é por demais evidente que não se trata de prova produzida em julgamento ou pré-constituída nos autos, pelo que a sua valoração sempre estará vedada pelo artº 355º do CPP.
[175] Segue-se o segmento do depoimento do Dr. .... Do mesmo apenas resulta que a vítima estava em estado de pânico quando a observou, o que é absolutamente normal nas circunstâncias, atento o evidente perigo de vida em que se encontra. Mas, a partir dessa indicação, a testemunha foi bem clara na recusa de sinais de qualquer alteração na consciência e capacidade de ... . Pelo contrário, tal como ..., também médico no Hospital de Felgueiras, ambos qualificaram o discurso da vítima como coerente e afastado do que seria de esperar de quem tivesse acabado de tentar pôr fim à vida por imolação.
[176] Importa ainda assinalar que o recorrente elabora sobre a possível sugestão produzida no decurso da inquirição da vítima por inspector da Polícia Judiciária. Porém, essas declarações não foram lidas em audiência e, inerentemente, não puderam ser consideradas pelo Tribunal Colectivo, como não podem ser ponderadas por este Tribunal. Aliás, o recorrente opôs-se expressamente a que tal acontecesse. Essa mesma hipótese de influência na vítima - sugestão – vem igualmente referida à «versão inventada e prestada pelo arguido no seu primeiro interrogatório», mas em termos que encontram o mesmo obstáculo. Ao contrário do que aconteceu nesse primeiro interrogatório judicial, o arguido remeteu-se ao silêncio em julgamento, o que significa que as suas declarações anteriores apenas podiam ser lidas em audiência a sua solicitação (artº 357º, nº1, al. a) do CPP), o que não aconteceu. Nessa medida, a aferição da concordância entre o declarado pelo arguido perante Juiz e as declarações da vítima, pressuposto da arguição de sugestão desta última na atribuição da responsabilidade pelo sucedido, fica desde logo inviabilizada pela impossibilidade de conhecer desse primeiro termo de comparação, atento o disposto no artº 355º do CPP. Em qualquer caso, não se encontra, nem o recorrente indica, qualquer segmento dos depoimentos prestados em audiência que permita demonstrar que foi dado a conhecer a ... qualquer depoimento ou declaração prestado em inquérito.
[177] Assente a questão da proibição de prova suscitada quanto às declarações do assistente ... e depoimento das testemunhas ..., ... e ..., no sentido da sua improcedência, importa ponderar as razões apresentadas pelo recorrente para a pretendida modificação do juízo que deles fez o Tribunal recorrido. A este propósito, o recorrente avança essencialmente três argumentos: encontravam-se «de mal» com o arguido; são parte interessada no desfecho; existem dúvidas quanto às datas das visitas. Porém, nenhuma concretização de passagens dos respectivos depoimentos – das suas palavras - vem indicada, seja nas conclusões, seja no corpo da motivação, tão-somente a transcrição do que a esse propósito se diz no acórdão recorrido, pelo que a pretensão de reponderação dessa prova no âmbito da impugnação ampla da decisão em matéria de facto não obedece claramente ao disposto nos nº3 e 4 do artº 412º do CPP e, por isso, não pode ser apreciada. Exemplo gritante da alusão genérica às provas em lugar da especificação cirúrgica exigida pelo legislador de 2007 encontra-se na expressão «pela prova existente nos autos esse testemunho apenas pode ter falado com a falecida ... nos citados dias 2 de Junho ou 14 de Junho de 2005...». Qual prova? Testemunhal ou documental? E, caso documental, qual o concreto documento? Em todo o caso, porque a apreciação do recurso implicou a audição e exame de todas as provas, diga-se que não se encontra em qualquer parte do apenso 1 elemento que coloque minimamente em crise a razoabilidade da apreciação efectuada pelo Tribunal Colectivo quando à credibilidade e verosimilhança dos contributos probatórios prestados em audiência por ..., ... , ... e ..., nos termos expostos no acórdão recorrido, e, em especial, quanto à fidedignidade do relato efectuado pela falecida na presença daqueles sobre o que se passara.
[178] Acresce que a impossibilidade legal de valorar aqui os depoimentos de ... e ..., como se afirmou supra, deixa intocado um conjunto de relatos circunstanciado e convergente quanto ao estado perfeitamente vígil e orientado de ... aquando das visitas – o que não admira, pois de outra forma não podiam ser autorizadas pelos médicos – a qual, com coerência e consciência de que a sua vida podia terminar em breve, como terminou, embora esperançosa de outro desfecho, explicou o que lhe tinha sucedido e nomeou, sem equívoco possível, o arguido como autor da conduta que a vitimou, nos termos acolhidos nos factos provados. A tudo isso contrapõe o recorrente tão-somente que «as afirmações produzidas pela vítima ... não merecem credibilidade», como também «contradições» nas declarações de ... – que não se encontram, pois nas declarações em inquérito nada diz de oposto ao que referiu em audiência – o que é manifestamente insuficiente para concluir pela irrazoabilidade da asserção de tais factos.
[179] Prosseguindo, o recorrente elabora ainda sobre a ausência de prova «que permitisse identificar o local». Trata-se de mais um exemplo da linha de raciocínio transversal a todo o recurso, no sentido de que, porque era possível levar a investigação mais longe, explorando todas as hipóteses, nada se pode concluir sobre o que aconteceu. Esse argumento não apresenta qualquer mérito. Como é evidente, nestes autos, como em qualquer outro, em Portugal ou em qualquer país, será sempre possível fazer mais. Invariavelmente, será sempre possível ouvir mais testemunhas, mais (outros) peritos, nacionais e estrangeiros, abordar microscopicamente um detalhe lateral e explorá-lo até aos limites do estado da arte. Porém, o azimute de qualquer reconstituição histórica não se traça a partir da mera possibilidade: exige que a tarefa seja necessária para a descoberta da verdade. E, no caso em apreço, essa necessidade manifestamente não existe, em função dos contributos de prova que permitem formular juízo de certeza bastante, sem traço de dúvida razoável e em tempo decisório congruente com as exigências sociais incidentes sobre o sistema de Justiça. Acrescente-se que o recorrente apresentou com a contestação um conjunto de fotografias que intitulou «reportagem fotográfica relativa ao alegado local do crime e zona envolvente» (fls. 889-993), como já fizera no requerimento de abertura de instrução (fls. 515-556), para o que não necessitou de quaisquer coordenadas. Na realidade, e a partir das fotos de fls. 10 a 17, nenhuma dúvida persiste a propósito à área onde ocorreram os factos.
[180] Por outro lado, não se vê qual a «violação das garantias do processo-crime e de vários princípios processuais», nem, em especial, que a verdade material e a presunção de inocência fiquem minimamente afectados por não se saber, com precisão milimétrica, onde ficaram os pedaços de roupa queimada que ... despiu. Seguramente, não se vê que esse raciocínio imponha decisão diferente da recorrida, sendo certo que, ao que nos parece, o arguido não põe em causa que ... tenha sofrido queimaduras no corpo e que essas lesões ocorreram no Monte de Santa Quitéria, podendo organizar a sua defesa em função dessa localização, como decorre, aliás, da argumentação atrás apreciada relativamente aos tempos de percurso. Questiona, sim, que tenha sido ele o responsável por esse evento.
[181] O último argumento estribado pelo recorrente vem dirigido ao §12 dos factos provados, com referência ao grau e extensão das queimaduras, o que suporta no relatório de autópsia de fls. 346 a 352, a mesma autópsia que vem referida pelo Tribunal a quo como fonte de prova daquela realidade, em paralelo com o depoimento de ... e o relatório clínico de fls. 169 e 170.
[182] Apreciando tais elementos, cremos que o recorrente tem razão neste ponto. Diz a primeira conclusão do relatório de autópsia que a morte foi devida à inalação das vias aéreas e de queimadura do 1, 2º e 3º graus em 51% da superfície corporal, complicadas de falência multiorgânica, constituindo esse exame tanatológico prova de valor reforçado, como emerge do artº 163º, nº1, do CPP, insusceptível de ser contrariado por simples relatório clínico Como se diz no Ac. do STJ de 18/06/2009, Pº 1248/07.2PAALM.S1 , relator Conselheiro Fernando Frois: O juízo técnico-científico que, nos termos do art. 163.º do CPP, é subtraído à apreciação do julgador é o que foi recolhido segundo as regras do art. 151.º e ss. do mesmo diploma legal. O tribunal não se encontra vinculado aos exames/pareceres médicos emitidos fora do âmbito daqueles normativos, pois os relatórios médicos assim emitidos não consubstanciam uma verdadeira prova pericial, mas antes e apenas prova documental, podendo, por isso, ser livremente apreciados e valorados pelo tribunal.. Aliás, a informação constante do início relatório de autópsia demonstra que aquele relatório foi considerado pelos peritos do INML-Coimbra.
[183] Mas, ainda que deslocado na parte que o recorrente dedica ao direito, constata-se que questiona também a relação causal entre a acção do arguido constante dos factos provados e a morte. Para tanto, refere o testemunho de ... mas sem concretizar qualquer segmento do seu depoimento. Estamos, claramente, perante uma questão-de-facto, cumprindo interpretar essa alegação como impugnação da relação causal, directa e necessária, estabelecida no mesmo §12.
[184] Ora, o mesmo relatório de autópsia de fls. 346 a 352 não deixa qualquer dúvida quando indica que o mecanismo da morte – falência multiorgânica – constituiu complicação directamente decorrente das lesões por queimadura, tanto no hábito interno, como no hábito externo. A 2ª conclusão é peremptória: «Tal processo mórbido constitui causa adequada da morte».
[185] Também na parte de direito, encontramos nova manifestação de discordância dirigida verdadeiramente à decisão quanto aos factos – intenção de matar Como o STJ tem repetidamente salientado. Refira-se, dentre os mais recentes, cfr. o Ac. do STJ de 22/04/2009, Pº 303/06.0GEVFX, relator Conselheiro Fernando Fróis, e as decisões que nele se indicam. - compreendida nos parágrafos §4 a 10 e 12 a 14. Trata-se da argumentação de que nenhuma prova foi produzida que permita concluir que a sua intenção era provocar a morte de ... , dizendo, «para efeito de raciocínio», que poderia apenas querer assustar a vítima. Considera ainda que a utilização de gasolina, nos termos provados, não era meio idóneo a matar alguém e argumenta que, se fosse essa a sua intenção, poderia ter escolhido o atropelamento ou só abandonaria o local depois de se assegurar que havia falecido.
[186] Recorde-se aqui que o legislador apenas consente a modificação da decisão em matéria de facto quando ficar demonstrada prova que impõe sentido diverso, não bastando oferecer razões que apenas consintam outro entendimento. Como salienta o STJ, casos há em que, «face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção» Ac. do STJ de 17/02/2005, Pº04P4324, relator Conselheiro Simas Santos, www.dgsi.pt..
[187] Ora, a acção de despejar líquido combustível sobre a cabeça e tronco de alguém, cobrindo a roupa, e a respectiva ignição num local afastado e desprovido de ajuda, mostra-se claramente idónea a provocar a morte, como efectivamente causou. Quanto aos meios alternativos evocados pelo recorrente, não passam, novamente, de hipóteses e não resistem à demonstração de que houve escolha prévia e concreta do instrumento a utilizar. A experiência comum diz-nos que qualquer pessoa reconhece os perigos associados a líquido combustível acondicionado numa garrafa e só assume o risco de o trazer num veículo automóvel se estiver na disposição de o utilizar, o que suporta a consideração de que o arguido, professor do ensino básico, licenciado em Matemática e perfeccionista, seleccionou, entre os meios possíveis – e, para além dos referidos pelo recorrente, muitos mais podem ser hipotisados - aquele que queria empregar para o desiderato perseguido. Como efectivamente empregou.
[188] Estas considerações valem igualmente quanto à comprovação da intenção de matar. Enquanto facto psicológico, interno, a sua apreensão nunca acontece de forma directa, sensorial, decorrendo da avaliação crítica do comportamento humano em presença, de acordo com as regras da experiência. No caso, mostra-se inteiramente razoável considerar, como considerou o Tribunal a quo, que quem despeja líquido combustível sobre a cabeça e tronco de uma pessoa, trazido para esse efeito, assegura a ignição do vestuário e depois abandona o local enquanto a vítima luta para extinguir as chamas, não só quis o resultado-lesões, como, pela extensão, intensidade e ausência de socorro próximo, quis o resultado-morte.
[189] Face ao exposto, cumpre apenas modificar o decidido no §12 dos factos provados, que passará a dizer:
Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ... sofreu lesões das vias aéreas e queimaduras de 1º, 2.º e 3.º graus, com envolvimento da face, couro cabeludo, região cervical anterior e posterior, tórax, abdómen, dorso e membros superiores, num total de 51% da superfície corporal.
E, paralelamente, constará dos factos não provados que a superfície corporal queimada atingiu 55%.
No mais, improcede a impugnação dirigida aos §4 a 10 e 12 (parte não modificada) a 14.
2.5.4.5. §20. A ..., apesar de já ter tido depressões e ter sido assistida em consultas de psiquiatria até Setembro de 2003, revelava um funcionamento psíquico adequado às situações não apresentando factos preditivos ou indicadores de eventual acto de suicídio.
[190] Neste ponto do recurso, o recorrente impugna o juízo constante do §20º dos factos provados. Este, em bom rigor, apresenta uma formulação incorrecta, pois conjuga asserções – a vítima sofrera depressões e fora assistida em consulta de psiquiatria – com indicações vagas – funcionamento psíquico adequado – e até factos indiciários negativos – indicadores de acto de suicídio. Apenas as asserções, enquanto declarações de verdade, têm lugar nos factos provados, sendo despiciendo inscrever nos fundamentos de facto elementos negativos, a não ser quando a solução de direito envolva pressupostos de facto configurados pelo legislador dessa forma. Diferentemente, quando alguma realidade comportada no objecto do processo é infirmada, a inscrição dessa decisão negativa deve acontecer no elenco dos factos não provados, traduzindo o sentido da deliberação imposta pelo artº 368º, nº2 do CPP.
[191] Dito isto, verifica-se que o recorrente sustenta apenas que a actividade pericial ponderada pelo Tribunal nesse domínio, em particular os relatórios e esclarecimentos prestados pela Drª ... não lhe mereceram crédito, por «diminuta qualidade», remetendo para o que escrevera no recurso intercalar. E, conclui, «nada poderia ter o tribunal dado como provado sobre a personalidade da falecida ..., do seu funcionamento psíquico ou indicadores sobre eventual acto de suicídio». Ora, e como já se decidiu supra, o valor técnico-científico daquela actividade pericial não foi posto em crise. Consequentemente, o respectivo acolhimento, por aplicação do disposto do artº 163º, nº1 do CPP, não merece qualquer censura, cumprindo manter integralmente o decidido (parte assertiva).
2.5.4.6. §21 Durante o período compreendido entre a prática dos factos até ser assistida e depois de ser assistida clinicamente até à sua morte, a ... sofreu fortes dores físicas e psicológicas, temendo a sua morte e temendo igualmente pelo futuro dos seus 3 filhos, um maior de idade (o assistente) e dois deles menores (… e …), que já eram órfãos de pai.
[192] Como se disse, o recorrente dirigiu a impugnação ampla também quanto aos factos constantes do §21, com a redacção indicada. Porém, omite no recurso a indicação de qualquer prova ou razão a esse respeito. Apenas na parte de direito, com referência à indemnização em que foi condenado, diz que «não foram produzidas quaisquer provas que permitissem demonstrar efeitos e consequências psicológicas nos assistentes, o que escapa ao alcance daquele segmento dos factos provados. Porém, a asserção impugnada incide sobre os efeitos físicos e psíquicos sofridos por ... , e não pelos seus filhos. A angústia e tristeza sofridas por estes vêm referidas no §23, não impugnado e que a experiência comum suporta plenamente tais efeitos psicológicos – muita angústia e tristeza - em virtude do desaparecimento físico, na forma como aconteceu, da sempre importante referência materna.
[193] Fica então, também relativamente ao §21, por fazer a demonstração do erro de julgamento.
2.5.5. Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
[194] De acordo com o disposto no artº 410º, nº2, do CPP, consagrando a denominada «revista alargada», o recurso, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal ad quem a matéria de direito, pode ter como fundamento a presença de vícios na decisão de facto, desde que esse ou esses vícios resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. No corpo da motivação apenas, o recorrente sustenta que a sentença enferma de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pois não determinou o tempo necessário para percorrer a distância entre Fafe e Felgueiras e o regresso e «o tempo necessário para se preparar e praticar o crime». E, logo de seguida, encontra-se nova manifestação da alegação de omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade, não levada às conclusões.
[195] Ora, só há insuficiência para a decisão da matéria de facto quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto, necessária para a decisão de direito, ou quando há uma lacuna por não se apurar o que é evidente que se podia apurar, ou quando o tribunal não investiga a totalidade da matéria de facto, podendo fazê-lo. Essa insuficiência não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, em virtude de vícios do processo de formação da convicção do julgador e na aplicação das regras de experiência comum, susceptível de constituir razão para a impugnação alargada da decisão em matéria de facto, de acordo com as exigências decorrentes dos artºs. 412º, nºs 3 e 4 e 431º, al. b) do CPP, pedindo a sua modificação. O que foi feito e supra apreciado.
[196] O recorrente considera que deveria ter sido realizada em fase de julgamento uma reconstituição dos factos, que nunca requereu. Simplesmente, a inverificação dessa diligência, cuja utilidade está longe de atingir o nível de essencial ou indispensável para a descoberta da verdade e não significa que ficou por apurar facto necessário para a decisão de direito. Apenas que se podia – como sempre pode – ter determinado outras – mais – diligências de investigação e de comprovação para a compreensão adjuvante de conduta efectivamente dada como provada.
[197] Assim, inexiste o vício da decisão previsto na al. a) do nº2 do artº 410º do CPP, e acrescente-se, também não se confere validade ao argumento para suportar a nulidade do processo prevista na parte final da al. d) do nº2 do artº 120º do CPP, a qual, novamente, sempre estaria sanada por não arguida, finda a audiência.
2.5.6. Inverificação do crime de homicídio, por ausência de nexo causal entre a conduta do arguido e a morte
[198] Como se referiu supra, o recorrente considera ainda que não pode ser condenado pela prática do crime de homicídio, por ausência do indispensável nexo de imputação objectiva entre a conduta provada e o resultado-morte. Para tanto, sustenta na conclusão 28ª que não existe nexo de causalidade entre a acção e a morte, ou quanto muito haveria concausalidade.
[199] Importa desde logo dizer que as situações de concausalidade, de dupla causalidade ou de causalidades concorrentes, não afastam a verificação do crime. Como ensina Figueiredo Dias, a concorrência de várias condições para o resultado não afasta a causalidade: «todas as condições que, de alguma forma, contribuíram para o resultado se tivesse produzido são causais em relação a ele e devem ser consideradas em pé de igualdade, já que o resultado é indivisível e não pode ser pensado sem a totalidade das condições que o determinaram» Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Coimbra Ed., 2ª Ed., 2007, pág. 324..
[200] No caso, decorre dos factos provados que o processo causal desencadeado pela acção do arguido não sofreu qualquer interrupção ou intersecção, mormente por acção de terceiro ou de circunstância extraordinária ou imprevisível. Ao invés, a morte surgiu em resultado de uma complicação, com falência multiorgânica, a qual tem como conditio sine qua non as lesões provocadas pela inalação de ar sobreaquecido e as queimaduras sofridas em resultado da ignição do combustível e da roupa onde foi derramado pelo arguido. Nenhuma dúvida existe de que o arguido deu causa à morte de ... .
2.5.7. Verificação de crime de ofensa à integridade física grave, agravado pelo resultado, ou de crime de ofensa à integridade física privilegiado
[201] Com expressão na conclusão 27ª, diz o recorrente que deveria ter sido «acusado» da prática de um crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, p. e p. pelos artºs 144º e 145º do CP, «se não mesmo» de um crime de ofensa à integridade física privilegiado p. e p. pelo artº 147º do CP. Retoma aí, sem qualquer modificação, o que escrevera no requerimento de abertura de instrução e na contestação, ou seja, antes da pronúncia final sobre os factos.
[202] Estamos perante argumento manifestamente improcedente, tal a evidência da sua falência. Ficou provado que o arguido matou ... , agindo com vontade dirigida ao resultado efectivamente verificado, pelo que a verificação dos elementos essenciais do crime de homicídio, tipificado no artº 131º do CP, não suscita quaisquer dúvidas. Acrescente-se que o arguido não coloca em crise a verificação dos exemplos-padrão tipificadas nas als. c), g) e i) do nº2 do artº 132º do CP, na versão anterior à Lei nº 59/2007, de 4/9, aspecto em que a decisão recorrida mostra-se correcta, assim como na afirmação de especial censurabilidade – «presente quando as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal com os valores» - e perversidade – enquanto «atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade» As definições encontram-se em Teresa Serra, Homicídio Qualificado - Tipo de culpa e Medida da Pena, págs. 63 e 64.. Provocar a morte através do fogo integra acto de grande crueldade, por desencadear sofrimento muito forte, e é pesadamente repugnante, para mais quando executado de forma reflectida e preparada. Constitui, ainda, conduta que, no local e circunstâncias em que ocorreu, coloca a vítima em situação de profunda indefesa, incapaz de evitar a combustão rápida das roupas e as queimaduras profundas e, nessa medida, especialmente perversa.
[203] Pelo exposto, cumpre confirmar a decisão recorrida quanto à subsunção jurídico-penal da conduta apurada.
2.5.8. Dosimetria da pena
[204] A questão seguinte reside na consideração de que a pena fixada é «manifestamente exagerada e desajustada». O arguido apela à ponderação acrescida da sua primariedade criminal e das circunstâncias de estar socialmente integrado, ter um filho de dois anos de idade, apoio familiar e «ser querido por parte dos seus alunos apesar do conhecimento concretos que estes têm dos factos imputados». Insurge-se contra a referência a que possui «tendência para delinquir» e considera que se tratou de «crime passional, isolado, não repetível». Conclui pela aplicação de pena situada entre os 12 e 14 anos de prisão.
[205] Vejamos como motivou o Tribunal a quo a medida da pena:
Efectuado pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido debrucemo-nos sobre a natureza da pena a aplicar.
Assim para determinar a medida concreta da pena há que recorrer aos critérios orientadores fornecidos pelo art.º 71.º do Código Penal.
De acordo com esse preceito legal, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral e especial), devendo ter-se sempre em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o arguido.
A culpa consiste num juízo de censura dirigido ao arguido em virtude de uma conduta desvaliosa, porquanto este, podendo e devendo agir conforme o direito, não o fez.
Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta do arguido, o que significa que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide os limites mínimo e máximo para a pena que, em caso algum, podem ser ultrapassados.
Dentro destes limites e para fixar a medida concreta da pena intervêm os demais fins da pena, designadamente a prevenção geral e prevenção especial.
Com efeito, e segundo o disposto no art.º 40.º, n.º1 do Código de Processo Penal, a aplicação de uma pena visa “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
Protecção de bens jurídicos essa que se consubstancia na denominada prevenção geral, enquanto que a reintegração do agente na sociedade se reporta à denominada prevenção especial.
A prevenção geral, dita de integração, prende-se com as exigências comunitárias da contenção da criminalidade e da defesa da sociedade, decorrentes da necessidade de reafirmar as expectativas da comunidade na validade e vigência de uma norma, bem como da tutela do bem jurídico por ela defendido e assume a “função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa e, no mínimo, fornecidos pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico” [Nota: vide Acórdão do S.T.J. de 10/04/96, in CJ, Ac. do S.T.J., ano IV, tomo 2, pág. 168].
Por sua vez, a prevenção especial está ligada à neutralização do agente e à necessidade de reinserção social do delinquente, da sua conformação com o quadro de valores vigentes na sociedade, especialmente aqueles que tutelam o bem jurídico atingido e que aquela norma visava proteger, cabendo-lhe “encontrar o quantum exacto da pena, dentro dessa função, que melhor sirva às exigências da socialização” [Nota: vide Acórdão supra identificado].
Assim sendo e dentro destas duas balizas fixadas pela culpa, a medida da pena deve considerar o quantum indispensável para manter a crença da comunidade na validade e eficácia da norma e, por essa via, a confiança nas instituições, bem como as exigências de prevenção especial que ao caso se fazem sentir.
Nunca podendo, porém, a pena “ultrapassar em caso algum a medida da culpa”( art.º 40.º, n.º2 do Código Penal).
Depois desta breve alocução acerca da determinação da medida da pena convém aplicar estes conceitos ao caso em apreço.
In casu, as necessidades de prevenção especial, apesar da ausência de antecedentes criminais do arguido, são elevadas, pois que o meio empregue, a formulação de um plano e o crime praticado, demonstram uma tendência para delinquir que urge combater.
Também as necessidades de prevenção geral são muito prementes e se fazem sentir com muita acuidade, sendo que este tipo de crime é o mais grave do nosso ordenamento jurídico e causa grande repugnância na nossa sociedade, pois a vida humana é sempre o valor supremo.
Por seu turno, a ilicitude dos factos é muito elevada, atento o meio utilizado e as consequências que provocou (não só a morte, mas também o elevado sofrimento). Além disso, o arguido agiu com dolo directo.
Por fim, há que referir que o arguido não confessou os factos de que vem acusado.
Todos estes factos ponderados, afigura-se-nos como necessário, adequado e suficiente aplicar ao arguido ... a pena de 20 anos de prisão.
[206] Na ponderação concreta da pena, cumpre achar a medida da sanção tendo como limite e suporte axiológico a culpa do agente e em função das exigências da prevenção de futuros crimes, sem esquecer que a finalidade última da intervenção penal reside na reinserção social do delinquente, sendo incompatível com o Estado de direito democrático a finalidade retributiva Figueiredo Dias, Fundamento, sentido e finalidades da pena criminal, Temas básicos da doutrina Penal, Coimbra Ed., 2001, pág. 104 e segs.. No modelo que enforma o regime penal vigente, norteado, como decorre do artº 40º do CP, pelo binómio prevenção-culpa, cumpre encontrar primeiro uma moldura de prevenção geral positiva, determinada em função da necessidade de tutela das expectativas comunitárias na manutenção e reforço da validade da norma violada Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Ed. Notícias, 1993, pág. 227.. Fixada esta, correspondendo nos seus limites inferior e superior à protecção óptima e protecção mínima do bem jurídico afectado, deve o julgador encontrar a medida concreta da pena em conjugação com as exigências de prevenção especial de socialização do agente, sem ultrapassar a culpa revelada na conduta antijurídica. Aí chegados, os critérios do artº 71º do CP «têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha e medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento, ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente)» Ac. do STJ de 28/09/2005, Pº 05P2537, relator Conselheiro Henriques Gaspar, www.dgsi.pt..
[207] Como se disse, o primeiro argumento esgrimido pelo recorrente prende-se com a discordância relativamente o segmento da decisão em que se afirma a presença e ponderação de «tendência para delinquir», com o que pretende fundar a consideração de que o Tribunal recorrido incorreu em erro ou em «absoluta incompreensão do alegadamente sucedido e da personalidade do arguido». Importa desde logo apontar a contradição em que se enreda o arguido, pois põe em causa a sua participação, e responsabilidade, nos factos dados como provados e, ao mesmo tempo, diz que tais factos – os mesmos que rejeita – não foram compreendidos, sem cuidar de reflectir em que medida ele próprio contribuiu ou não para a revelação de todas as dimensões da conduta. Tendo em atenção que as condutas humanas acontecem sempre em função de um contexto e de uma atitude concreta, e que esta é modulada por factores afectivo-emocionais, com mutua interacção entre os aspectos cognitivos e emocionais próprios do comportamento humano, importa reconhecer o arguido vedou inexoravelmente o conhecimento pleno de todo complexo envolvido na conduta provada, para mais com intersecção de factores passionais Sem postergar a dificuldade que sempre acompanha a avaliação da motivação. . O respeito pela escolha do silêncio do acusado e a proibição de se retirar do exercício desse direito qualquer prejuízo constitui uma das traves mestras do respeito pelas garantias de defesa constitucionalmente consagradas, mas a escolha dessa via não é isenta de consequências, pois priva o Tribunal da descrição do sucedido na primeira pessoa, como também da percepção directa do trajecto post facto, incluindo eventual reflexão sobre a antijuridicidade e rejeição firme da conduta desviante. Nessa medida, admite-se que o arguido que não presta declarações em audiência se sinta, depois de condenado, incompreendido pelo Tribunal, contudo, em boa verdade, esse sentimento deve-se primacialmente a escolha – legítima, repita-se – dele próprio e da gestão da sua defesa.
[208] Deixadas estas considerações prévias, importa considerar que o arguido tem razão quando aponta a ausência de suporte factual para considerar demonstrada tendência para o crime. O arguido não regista passado criminal e, mesmo tendo em atenção a caracterização psicológica a que foi sujeito, vazada em boa medida nos factos provados – pessoa reservada, defensiva, desconfiada, pouco tolerante ao stress e perfeccionista, tendo tendência para projectar as suas frustrações e falhas em causas externas – não encontramos motivo bastante para apontar muito acentuada facilidade na passagem ao acto e inexistente contramotivação perante conduta tão profundamente enraizada no dever-ser colectivo como o comando que proíbe tirar a vida a outro ser humano, fora de legítima defesa. Não obstante, permanecem válidas as premissas que conduziram o Tribunal Colectivo a essa indevida - excessiva - afirmação de tendência, a saber, a escolha e reflexão sobre o meio empregue e a capacidade revelada na arquitectura e execução, a um tempo fria e proficiente, de um planeamento de matar, e matar em circunstâncias particularmente repugnantes, o que remete para capacidades intelectuais acima do mediano e que quando postas, como foram, ao serviço de prática desviante tão importante, fundam quadro de preocupação acrescida no domínio da prevenção especial. Nesse sentido depõe igualmente a tendência de projecção de responsabilidades para terceiros que domina, como provado, a sua personalidade, pela transferência de culpas e auto-desculpabilização que acarreta.
[209] Passemos ao segundo argumento apresentado neste âmbito, traduzido na evocação de que se tratou de crime «isolado» e «não repetível». Enquanto a primeira afirmação remete, sem margem de incerteza, para a primariedade criminal – reconhecida e ponderada pelo Tribunal recorrido – o mesmo não acontece com a segunda. O que se pretende transmitir com a irrepetibilidade do evento? Se com essa referência se pretende dizer que os factos não podem objectivamente voltar a acontecer, é por demais evidente que o desaparecimento físico de um dos intervenientes – ... – torna a asserção verdadeira. Porém, não se encontra nessa circunstância qualquer valor para a determinação concreta da pena, mormente no sentido mitigante do seu merecimento. Mas, se o sentido pretendido remete para o afastamento do receio de recidiva criminal, por efeito de arrependimento, então cabe assinalar que esse facto interno não ficou demonstrado. Em consonância, note-se, com a não admissão da conduta.
[210] Chegamos, assim, ao último argumento neste domínio: o de que se tratou de «crime passional». Sem mais, pois nem no corpo da motivação encontramos desenvolvimento argumentativo sobre esse enquadramento. Ora, a fenomenologia das emoções exacerbadas e dos factos passionais, e a problemática dos crimes passionais, mormente a sua influência na culpa, é fortemente complexa. Os factos apurados permitem afirmar que se tratou da conduta com uma dimensão emocional importante, no desenvolvimento de amor obsessivo e em execução de intenção de matar gerada pela decisão da vítima de terminar a relação com o arguido, contra a vontade deste. Mas, do mesmo passo, nota-se que a execução dessa resolução aconteceu no desenvolvimento de um plano prévio e estruturado, e não de exacerbamento súbito e violento, como se denota da circunstância de ter marcado o encontro com a vítima no dia anterior e surgir no local munido do combustível bem como pela forma rápida e eficiente como espalhou o líquido pela cabeça e tronco de ... e desencadeou a sua ignição, abandonando logo de seguida o local. Encontra-se nesse desenvolvimento a meticulosidade própria do perfeccionista e não a evidência de perturbação emocional. Cabe aqui sublinhar que o arguido foi sujeito a exame psiquiátrico e psicológico, os quais não apontam para a verificação de síndroma passional.
[211] Por outro lado, importa rejeitar com veemência a visão de que o crime cometido em contexto passional deve, apenas por esse facto, sem perturbação ou estreitamento da consciência, merecer condescendência jurídico-penal. Esse entendimento, enformado pela consideração de que o autor desses crimes sofre de uma espécie de loucura e também «na aura romântica que supõe um amor infindável e irreprimível» Curado Neves, op. cit, pág. 602., mostra-se mesmo contrário ao princípio da culpa, pois «a grande maioria dos psiquiatras que se pronunciaram sobre os factos passionais sustentaram que não lhes devia ser atribuído relevo para determinar a capacidade de culpa» Curado Neves, op. cit, pág. 517.. Porque a emoção é ubíqua à condição humana, a sociedade pode e deve esperar de cada um que controle as suas paixões e impulsos dentro dos limites que lhe forem possíveis Curado Neves, op. cit, pág. 89., e quanto tal não acontece em alguém com percurso de vida favorável, capacitação com educação superior e responsabilidades docentes, e que, para mais, não reagiu por impulso ou em estado de exaltação turvadora da consciência, cumpre afirmar a presença de culpa muito elevada.
[212] Assim, verifica-se que a imagem global da conduta sub judice aponta para forte gravidade, em nada afectada pelas decididas modificações dos factos provados, e a moldura de prevenção comporta perfeitamente a pena fixada, sendo o apelo do arguido para a sua redução para 14 anos de prisão claramente desajustado às exigências do caso. Com efeito, tendo em atenção o disposto no artº 71º, nºs 1 e 2 do Código Penal, sendo certo que a violação do bem jurídico – vida de ... - não comporta graduações, dado o valor absoluto da vida humana, encontra-se no desenvolvimento da conduta dolo directo e particularmente intenso, dada a forma como foi preparada e executada a conduta. Por outro lado, os sentimentos manifestados na conduta, mesmo em contexto passional, remetem para a insensibilidade moral, desprezo pela vida humana e pela observação das elementares regras de convivência, capazes de forte impacto no tecido social. O papel essencial do professor na formação dos jovens e, inerentemente, no futuro da sociedade, significa também que essa maior consideração social – o arguido diz-se querido dos seus alunos, o que não ficou provado; tão-somente que é reputado por familiares e amigos como uma pessoa boa, educada, calma e respeitadora -, quando imerecida, desencadeia preocupações acrescidas no domínio da prevenção geral positiva, nas três vertentes referidas por Roxin, a saber, confiança no Direito e na sua aplicação pela máquina judicial; efeito de aprendizagem; e tranquilização do conflito da sociedade com o agente, também designada por “prevenção integradora” Derecho Penal – Parte General, Tomo 1, Ed. Civitas, 1997, pág. 91.. Releva ainda a gravidade das consequências desencadeadas na vítima: forte sofrimento, não só no dia em que sofreu a conduta como também ao longo do internamento hospitalar.
[213] O arguido aponta ainda a sua integração social e recente paternidade bem como apoio da família e ex-mulher, o que não oferece relevo particular. A inserção social, nos termos invocados, já se encontrava presente no momento dos factos e, sem a demonstração de que o arguido reflectiu sobre a sua conduta, não se vê em que medida o nascimento do filho contribuiu para fundar ou reforçar a recusa da recaída criminal e facilitou a socialização. Recorde-se que a então esposa do arguido encontrava-se grávida do filho de ambos na altura dos factos, o que não constituiu contramotivação à conduta desenvolvida.
[214] Aqui chegados, cumpre dar resposta final à queixa do excesso da pena de 20 (vinte) anos de prisão fixada. Tendo em atenção as circunstâncias apontadas e a censura fixada pela jurisprudência recente do Supremo Tribunal de Justiça em casos de contexto aproximado Destacam-se as seguintes decisões, ambas acessíveis em www.dgsi.pt:
- Ac. do STJ de 11/02/2009, Pº 08P292, relator Conselheiro Maia Costa: Condenação em 20 anos de prisão por homicídio qualificado da esposa e mãe dos seus cinco filhos; arguido primário e com tendência para o ciúme doentio;
- Ac. do STJ de 21/10/2009, Pº 589/08.6PBVLG.S1, relator Conselheiro Pires da Graça: Condenação em 18 anos de prisão por homicídio qualificado da ex-companheira, depois desta recusar retomar a vida em comum; arguido primário, com 50 anos de idade, e marcado por perturbação emocional, o que remete para culpa inferior à presente no caso em análise., entendemos que a pena fixada pelo Tribunal a quo não merece censura, porque conforme às fortes exigências preventivas e não superior ao nível da culpa - muito elevada - do arguido, sem inviabilizar a sua ressocialização: o arguido conta 32 anos de idade.
[215] Improcede, então, neste vertente, o recurso criminal.
2.5.9. Responsabilidade civil e obrigação de indemnizar
[216] A última questão suscitada encontra-se formulada na conclusão 29ª, em termos singelos, sem qualquer desenvolvimento no corpo da motivação. Diz o recorrente que não pode ser condenado em indemnização, pois não praticou qualquer crime, e reputa o valor fixado de excessivo e desajustado. Para tanto, oferece um único argumento: «não foram produzidas quaisquer provas que permitissem demonstrar os efeitos e consequências psicológicas nos assistentes – apesar de naturalmente terem existido», o que remete para o universo dos danos não patrimoniais.
[217] Apurada a ilicitude criminal, dúvidas não restam de que, como dispõe o artº 483º do CC, o arguido constituiu-se responsável pelos danos resultantes da violação, seja de natureza patrimonial, seja de natureza não patrimonial. No que concerne aos danos não patrimoniais merecedores da tutela do direito, de acordo com artºs 496º e 494º do CC , a sua compensação deve ter em conta juízos de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e do lesado, no contexto da situação económica do cidadão médio e do significado do bem jurídico afectado para a vida em sociedade Ac. do STJ de 9/10/97, in BMJ 470, pág. 221.. Nesse esforço, como referido pelo mais Alto Tribunal: «sem se cair em exageros, a indemnização deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico, impondo-se que a jurisprudência caminhe seguramente para indemnizações não miserabilistas» Ac. do STJ de 28/02/2008, proferido no Pº. 08B388, relator Conselheiro Custódio Montes, www.dgsi.pt.
[218] Ora, tomando o único argumento apresentado pelo recorrente, ao contrário do que refere, ficou provado que o assistente e os irmãos viveram toda a situação por que passou a mãe até ao falecimento, incluindo naturalmente o seu desaparecimento, com muita angústia e tristeza. Em consonância com a normalidade das coisas, acrescente-se. Estamos, claramente, perante consequências psicológicas merecedoras da tutela do direito e que, pela sua extensão e significado, comportam plenamente a fixação da indemnização no valor fixado pelo Tribunal a quo em €30.000 (trinta mil euros) para o conjunto dos três filhos, dois deles menores, e que já eram órfãos de pai.
[219] Importa ainda referir quanto aos restantes montantes indemnizatórios fixados, em relação aos quais o recorrente não apresenta a menor razão para o recurso, salvo a simples e mera discordância, mostram-se adequados e enquadrados com os valores fixados pela jurisprudência.
[220] Improcede, pelo exposto, o recurso na vertente dirigida à condenação em indemnização civil.
III. Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
A) Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido do despacho de fls. 3277-3278;
B) Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido do despacho de fls. 4012;
C) Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido do acórdão final e, em consequência
I. Modificar o §1º dos factos provados, que passará a referir:
Em data incerta do ano de 2003, o arguido conheceu profissionalmente ... , tendo desse conhecimento, resultado uma relação amorosa entre ambos.
II. Acrescentar aos factos não provados:
Não se provou que o arguido conheceu profissionalmente ... em data distinta da constante dos factos provados.
III. Modificar o §12º dos factos provados, que passará a dizer:
Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, ... sofreu lesões das vias aéreas e queimaduras de 1º, 2.º e 3.º graus, com envolvimento da face, couro cabeludo, região cervical anterior e posterior, tórax, abdómen, dorso e membros superiores, num total de 51% da superfície corporal.
IV. Acrescentar aos factos não provados:
Não se provou ainda que a superfície corporal queimada de ... atingiu 55%.
V. Manter, no restante, a decisão recorrida.
D) Condenar o arguido nas custas criminais pelo decaimento (parcial quanto ao recurso do acórdão final), que se fixam, atendendo às suas condições económicas, complexidade e dimensão dos recursos, bem como a realização de julgamento nesta instância, em 15 (quinze) Ucs (artºs 513º, nº1 do CPP e 87º, nº1, al. b) do CCJ), a que acrescem as custas relativas ao decaimento, total, quanto ao recurso na parte cível (artsº 88º e 13º do CCJ e 446º do CPC).
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