| Decisão Texto Integral: | - Tribunal recorrido:
Tribunal Judicial de Braga – Vara de Competência Mista.
- Recorrente:
O arguido Fernando A....
- Objecto do recurso:
No processo comum com intervenção de tribunal colectivo n.º 1202/11.0PB BRG, da Vara de Competência Mista, do Tribunal Judicial de Braga foi proferido acórdão, nos autos de fls. 188 a 195, no qual, no essencial e que aqui importa, se decidiu condenar o arguido nos termos seguintes:
“DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes que integram o tribunal colectivo da Vara Mista de Braga em julgar procedente a acusação e, em consequência, decidem condenar o arguido Fernando A..., como autor material de um crime de burla previsto e punível pelo artigo 217º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, e, como autor material, em concurso real com aquele, de dois crimes de falsificação de documento, previstos e puníveis pelo artigo 256º, números 1, alínea d), e 3 do mesmo diploma legal, nas penas parcelares de 1 (um) ano de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão efectiva.
Mais se julga parcialmente procedente o pedido de indemnização civil e, em consequência, condena-se o arguido a pagar ao demandante José Carlos B... a quantia de €349,05 (trezentos e quarenta e nove euros e cinco cêntimos).
O arguido suportará ainda as custas da parte crime, fixando-se em 3 UC’s a taxa de justiça, acrescida de 1% do respectivo quantitativo a favor do Cofre Geral dos Tribunais, nos termos do artigo 13º, n.º 3 do DL 423/91, de 30 de Outubro.
As custas do pedido cível serão suportadas por demandante e demandado na proporção do respectivo decaimento.” (o sublinhado e destacado a negrito é nosso).
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Inconformado com a supra referida decisão o arguido Fernando A..., dela interpôs recurso (cfr. fls. 222 a 229), terminando a sua motivação com as conclusões constantes de fls. 227 a 229, seguintes (transcrição):
“1) O recorrente foi condenado, como autor material de um crime de burla previsto e punível pelo artigo 217, n.º 1 do Código Penal, na pena de 10 ( dez) meses de prisão, e, como autor material, em concurso real com aquele, de dois crimes de falsificação de documento, previstos e puníveis pelo artigo 256°, números 1, alínea d), e 3 do mesmo diploma legal, nas penas parcelares de 1 ( um) ano de prisão e, em cumulo jurídico, na pena única de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão efectiva, por força do Acórdão do Plenário das Secções Criminais do ST J de 19 de Fevereiro de 1992, publicado no Diário da República, Série-A de 9 de Abril do mesmo ano
2) Sucede que, o Acórdão do Plenário das Secções Criminaís do ST J de 19 de Fevereiro de 1992, actualizado pelo Assento n.º 8/2000 de 4 de Maio de 2000 (DR l-A, de 23 de Maio de 2000), não pode ter aplicabilidade na situação em apreço uma vez que o mesmo se limita às previsões do crime de falsificação e do crime de burla, previstos no artigo 256°, n.º 1, alínea a), e no artigo 217°, n.º 1, respectivamente, do Código Penal e o recorrente foi condenado pela prática do crime de falsificação previsto e punido no 256°, números 1, alínea d) e 3 do Código Penal (e não no artigo n.º 1, alínea a) do Código Penal.)
3) Impunha-se, portanto, afastar a aplicabilidade do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 19 de Fevereiro de 1992 e consequentemente o concurso real e efectivo de crimes no caso em apreço.
4) No caso sub judice, entre o crime de falsificação de documentos e o crime de burla há um concurso aparente de normas sob a forma da consunção. Neste sentido, ARTZ e WEBER, FIGUEIREDO DIAS e RIBEIRO DE FARIA, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo 11, Artigos 202° a 30JO, Coimbra Editora, 1999, p. 690.
5) Terá que se entender que" Se a falsificação de documentos é realizada como meio para atingir um crime de burla o agente apenas deverá ser punido pela prática de um crime de burla ( e como se verifica sempre se tratar de um caso de uma falsificação de um dos documentos previstos no nO 3 deste artigo será um caso de consunção impura) JI, pois "a consunção apenas se verifica se houver uma unidade de resolução criminosa, isto é, o agente tem de falsificar para burlar'. - Cfr, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo 11, Artigos 202° a 307°, Coimbra Editora, 1999, p. 690.
6) Atendendo à doutrina descrita e aos factos dados como provados é claro e evidente que o recorrente forjou o endosso dos beneficiários nos dois vales de correio e fez-se passar pelo seu legítimo possuidor, apenas e só, para obter os montantes titulados nos mesmos, sendo certo que o vale do correio é um dos documentos tipificados no art. 257°, n.º 3 do Código Penal, facto que nos remete sem margem de dúvida para a consunção impura entre o crime de falsificação de documentos e o crime de burla.
7) Deste modo, a falsificação dos vales de correio apenas constituiu um meio necessário para o recorrente praticar o crime de burla, constituindo o meio ardiloso para induzir a entidade bancária, determinando-a a creditar o montante inscritos nos vales de correio na conta do recorrente à custa do empobrecimento dos beneficiários dos valores.
8) Trata-se, pois, de um caso de consunção impura na medida em que o crime punido com a pena mais grave que é consumido pelo menos grave.
9) Aliás, esta solução é a única que se impõe pelo respeito ao principio ne bis in idem, consagrado constitucionalmente no art. 29°, n.º 5 da CRP.
10) Pelo exposto, impõe-se a alteração da sentença recorrida, devendo o recorrente ser condenado apenas e só como autor material de um crime de burla previsto e punido pelo artigo 217°, n.º 1 do Código Penal, sob pena de violação do principio ne bis in idem, consagrado constitucionalmente no art. 29°, n.º 5 da CRP.
Nestes termos e nos melhores de Direito, no seguimento das conclusões apresentadas, decidindo em conformidade com as mesmas V.s Ex.as farão a acostumada JUSTIÇA!”.
* O M. P. respondeu, concluindo que o recurso do arguido não merece provimento (cfr. fls. 258 a 271). * O recurso foi admitido por despacho constante a fls. 273.* O Ex.mº Procurador Geral Adjunto, nesta Relação no seu parecer (constante de fls. 283 e 285) conclui, também, que o recurso não merece provimento.
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Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do C. P. Penal, não veio a ser apresentada qualquer resposta.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para conferência, na qual foi observado todo o formalismo legal.
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- Cumpre apreciar e decidir:
- A - É de começar por salientar que, para além das questões de conhecimento oficioso, são as conclusões do recurso que definem o seu objecto, nos termos do disposto no art. 412º, n.º 1, do C. P. Penal.
- B - No essencial, no recurso suscita-se a questão seguinte:
- De saber se no caso “(…) entre o crime de falsificação de documentos e o crime de burla há um concurso aparente de normas sob a forma de consunção” (cls. n.º 4 a fls. 227), “(…) devendo o recorrente ser condenado apenas e só como autor material de um crime de burla previsto e punido pelo artigo 217º, n.º 1 do Código Penal (…)” (cls. n.º 10, a fls. 228). * - C - Matéria de facto dada como provada e não provada, na 1ª instância e sua motivação - cfr. fls. 189 a 192 (transcrição):
“MATÉRIA DE FACTO PROVADA:
Por forma não concretamente apurada, entre os dias 8 e 12 de Abril de 2011, o arguido entrou na posse do vale de correio com o n.º 6678419661, no valor de €383,92, emitido pelo Instituto da Segurança Social a favor de Maria M... e expedido para a residência desta.
Uma vez na posse desse vale, o arguido apôs pelo seu próprio punho, ou solicitou a outrem que o fizesse, no espaço reservado ao endosso, a expressão “Eu Maria M... Endosso a Fernando A...”, bem como o nome da beneficiária e um número e data de emissão do bilhete de identidade desta por si inventados nos campos a tal destinados.
Inscreveu ainda no vale o número do seu próprio bilhete de identidade (11658735) e a respectiva data de emissão e assinou-o como suposto beneficiário do endosso que nele previamente forjara.
De seguida, depositou-o na conta n.º 48249983 do Finibanco de que é titular, depósito esse efectuado no dia 12 de Abril de 2011.
Por forma não concretamente apurada, entre os dias 7 e 16 de Junho de 2011, o arguido entrou na posse do vale de correio com o n.º 1138018646, no valor de €349,05, emitido pelo Instituto da Segurança Social a favor de José Carlos B... e expedido para a residência deste.
Uma vez na posse desse vale, o arguido apôs pelo seu próprio punho, ou solicitou a outrem que o fizesse, no espaço reservado ao endosso, a expressão “Eu Carlos B... Endosso a Fernando A...”, bem como o nome do beneficiário e um número e data de emissão do bilhete de identidade deste por si inventados nos campos a tal destinados.
Inscreveu ainda no vale o número do seu próprio bilhete de identidade (11658735) e a respectiva data de emissão e assinou-o como suposto beneficiário do endosso que nele previamente forjara.
De seguida, depositou-o na conta n.º 48249983 do Finibanco de que é titular, depósito esse efectuado no dia 16 de Junho de 2011.
Tais vales titulavam as pensões de reforma dos respectivos beneficiários.
Ao manuscrever os nomes dos ofendidos Maria M... e José Carlos B... nos vales de correio, o arguido agiu com o propósito concretizado de os colocar em circulação como se tivessem sido regularmente endossados pelos seus legítimos beneficiários, consciente de que punha em crise a genuinidade e a credibilidade que tais títulos merecem no tráfego comercial.
Acresce que, ao depositar o vale de correio emitido a favor de José Carlos B... por si adulterado na conta de que era titular, fez crer aos funcionários do Finibanco que era o seu legítimo portador, determinando-os ao pagamento do correspondente montante, que gastou em proveito próprio, à custa do empobrecimento do património do ofendido.
Agiu sempre livre e deliberadamente, com o propósito de obter para si benefícios ilegítimos, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
É viúvo e tem dois filhos menores, tendo integrado até Outubro de 2010, juntamente com os filhos, o agregado familiar de uma irmã.
Nessa altura iniciou um relacionamento afectivo com uma cidadã brasileira que, por não ser do agrado dos filhos e da irmã, determinou a sua saída de casa desta, com a qual deixou aqueles.
Abandonou o ensino após concluir o 4º ano de escolaridade, ingressando no mercado de trabalho como operário da construção civil, actividade essa que tem exercido intermitentemente.
Não indemnizou, sequer parcialmente, o ofendido Carlos B....
Respondeu sete vezes por condução sem habilitação legal, tendo sido condenado nas três primeiras ocasiões em penas de multa, que pagou, e nas restantes quatro ocasiões em penas de prisão, as duas primeiras suspensas na sua execução, embora ulteriormente tenha sido revogada a suspensão da segunda e determinado o seu cumprimento efectivo, a terceira em pena de prisão por dias livres e a quarta em pena de prisão efectiva.
Respondeu ainda em 5 de Fevereiro de 2010, 9 de Março de 2010, 12 de Abril de 2010, 2 de Julho de 2010 e 16 de Novembro de 2010 por falsificação de documentos e, na penúltima ocasião, também por burla, tendo sido condenado nas penas de 9 meses de prisão, 1 ano de prisão, 1 ano de prisão, 2 anos e 8 meses de prisão (pena única) e 15 meses de prisão, respectivamente, todas suspensas na sua execução.
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MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA:
Não se provou que em consequência dos factos de que foi vítima o ofendido José Carlos B... tenha sofrido um prejuízo de €350,00 (mas apenas de €349,05, correspondente ao montante titulado pelo vale).
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FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
A convicção do tribunal sobre a matéria de facto fundou-se na ponderação crítica da prova produzida, sendo de salientar que o ofendido José Carlos B..., evidenciando sinceridade e isenção, sustentou peremptoriamente que nunca recebeu o vale de correio referenciado na acusação e que o endosso nele aposto, com o qual foi confrontado, não é da sua autoria nem tem qualquer semelhança com a respectiva assinatura e bem assim que não conhece o arguido, com o qual nunca manteve qualquer relacionamento pessoal ou comercial.
Mais sustentou que não é titular de bilhete de identidade, mas antes de cartão de cidadão, e que o número deste não coincide com o inscrito no aludido vale, o que é confirmado pelo confronto daquele, reproduzido a fls. 42, com este, constante da metade inferior de fls. 83.
Deu-se igualmente como provado que o arguido forjou o endosso de Maria M... no vale constante da metade superior de fls. 83 porque, apesar desta não ter comparecido em julgamento, participou oportunamente o extravio de tal vale e, conforme se extrai da cópia do respectivo bilhete de identidade, constante de fls. 16, não sabe assinar.
Neste contexto e tendo ainda presente que, conforme se extrai dos elementos bancários juntos aos autos, ambos os vales de correio foram depositados numa conta bancária de que o arguido era o único titular (cfr. fls. 77 a 83) e que apenas ele podia movimentar, como movimentou, é forçoso concluir, à luz das regras da experiência comum, que foi o arguido o autor dos factos, por ser quem deles retirou proveito.
Essa conclusão é reforçada pela homogeneidade dos procedimentos adoptados e pela similitude da caligrafia com que foram manuscritos todos os elementos aditados aos títulos, incluindo os endossos forjados e os números e datas de emissão dos bilhetes de identidade falsamente indicados como correspondendo aos dos respectivos beneficiários, por um lado, e o número e data de emissão do bilhete de identidade de que o arguido é portador, por outro lado.
Ponderou-se ainda o teor do certificado de registo criminal e do relatório social do arguido, insertos a fls. 59 a 73 e 122 a 125, respectivamente.”.
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- Quanto às questões suscitadas no recurso:
No essencial, no recurso suscita-se a questão de saber se no caso “(…) entre o crime de falsificação de documentos e o crime de burla há um concurso aparente de normas sob a forma de consunção” (cls. n.º 4 a fls. 227), “(…) devendo o recorrente ser condenado apenas e só como autor material de um crime de burla previsto e punido pelo artigo 217º, n.º 1 do Código Penal (…)” (cls. n.º 10, a fls. 228).
A este respeito escreveu-se no acórdão recorrido:
“O arguido responde pela prática, em concurso real, de um crime de burla (o procedimento criminal relativamente ao crime de burla de que foi vítima a ofendida Maria M... foi declarado extinto por virtude de desistência de queixa) e de dois crimes de falsificação de documento, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 217º, n.º 1 e 256º, números 1, alínea d), e 3 do Código Penal.
E, efectivamente, provou-se que o arguido, após forjar o endosso dos respectivos beneficiários em dois vales de correio expedidos a favor dos queixosos, fez-se passar por legítimo portador de tais vales e depositou-os numa sua conta bancária, embolsando os montantes por eles titulados e logrando, desse modo, enriquecer o seu património à custa do correlativo empobrecimento do dos queixosos.
Sendo assim, é forçoso concluir que o arguido incorreu nos crimes de falsificação e burla que lhe vêm imputados (relativamente aos quais se verifica uma situação de concurso efectivo, por força do Acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19 de Fevereiro de 1992, publicado no Diário da República, série I-A de 9 de Abril do mesmo ano), por se mostrarem preenchidos os elementos essencialmente constitutivos de tais ilícitos.
Com efeito, surpreendem-se na conduta do arguido os elementos objectivos integradores da burla (traduzida no erro ou engano sobre a regularidade do endosso de José Carlos B... em que induziu a entidade bancária, determinando-a a creditar o montante inscrito no vale de correio na sua própria conta à custa do correlativo empobrecimento daquele) e da falsificação (traduzida na inserção nos vales de correio e nos cheques de endossos por si forjados e que criavam a aparência de ele ser o seu portador legítimo), bem como o dolo específico que constitui o elemento subjectivo de ambos os ilícitos, consubstanciado na intenção de obter o pagamento de quantias que não lhe eram devidas e que, como tal, representavam para si um beneficio ilegítimo.”.
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Desde já se refere que o nosso entendimento quanto á questão em apreço é, no essencial, coincidente quer com o referido na decisão recorrida, quer com o mencionado pelo Digno M. P. (no parecer fls. 283 a 285 e na resposta a fls. 258 a 271).
Daí que, aderindo nós a toda a argumentação aduzida pelo M. P., sem que praticamente mais se nos ofereça acrescentar, sendo inútil referir por outras palavras o que e bem ali se mencionou na aludida douta resposta, por isso mesmo, permita-se-nos que passemos, de imediato a transcrever a mesma:
“O recorrente Fernando A... foi condenado como autor de um crime de burla previsto e punido pelo arto 171º, no 1, do Cód. Penal, na pena de dez meses de prisão, e, como autor material, em concurso real com aquele, de dois crimes de falsificação de documento previstos e puníveis pelo artº 256º, nos 1, alínea d), e 3, do Cód. Penal, nas penas parcelares de um ano de prisão. Em cúmulo jurídico, pela prática dos referidos crimes, na pena única de um ano e oito meses de prisão.
Resultando dos factos dados como provados que o arguido dolosamente falsificou o endosso dos dois vales do correio que titulavam reformas de terceiros e que, após, os depositou numa conta bancária em seu nome como se fosse o legítimo portador de tais títulos, determinando os funcionários bancários a pagarem-lhe os montantes neles inscritos, assim conseguindo obter as quantias neles tituladas, as quais integrou no seu património, causando o correspondente prejuízo aos beneficiários daqueles vales do correio, concluiu o Colectivo de Juízes do Tribunal a quo «…que o arguido incorreu nos crimes de falsificação e burla que lhe vêm imputados (relativamente aos quais se verifica uma situação de concurso efectivo por força do Acórdão do Plenário das secções Criminais do STJ de 19 de Fevereiro de 1992, publicado no Diário da República, série I-A de 9 de Abril do mesmo ano) por se mostrarem preenchidos os elementos essencialmente constitutivos de tais ilícitos.».
Alega o recorrente que apenas deve ser condenado pela prática de um crime de burla (considerando que o procedimento criminal quanto ao outro imputado crime de burla relativo ao vale do correio da reforma da beneficiária Maria M... foi declarado extinto por desistência de queixa por parte desta) porquanto entre os provados crimes de falsificação de documentos e de burla verifica-se um concurso aparente de normas sob a forma de consunção (impura). Para o efeito alega que o Acórdão do Plenário das secções Criminais do STJ de 19 de Fevereiro de 1992, bem como o Assento nº 8/2000, não têm aplicabilidade neste caso concreto porquanto, tendo o Assento nº 8/2000 se limitado apenas a uma actualização dos artigos constantes daquele outro acórdão de uniformização de jurisprudência, é expresso que o concurso real e efectivo de crimes apenas se limita às previsões do crime de falsificação e do crime de burla previstos no artº 256º, nº 1, alínea a), e no artº 217º, nº 1, respectivamente, do Cód. Penal, e o recorrente foi condenado pela prática do crime de falsificação previsto e punido no artº 256º, nºs 1, alínea d),e 3 do Cód. Penal (e não pela alínea a) do nº 1).
O recorrente reclama pois a inexistência de concurso de crimes. Alega que existirá «um concurso aparente de normas sob a forma da consunção … se a falsificação de documentos é realizada como meio para atingir um crime de burla o agente apenas deverá ser punido pela prática de um crime de burla … Se considerássemos que entre o crime de falsificação de documentos e o crime de burla se verifica, in casu, um concurso real, quando o agente falsifica um documento para o utilizar como meio para enganar e assim praticar o crime de burla estar-se-ia a punir o agente duas vezes pelo mesmo facto. Isto é, o acto de falsificar seria não só punido pela falsificação mas também pela burla, uma vez que se não tivesse utilizado um meio ardiloso para enganar não teria preenchido todos os elementos do tipo …».
É o seguinte, o teor do tipo de crime «falsificação de documento», previsto no artigo 256º do Código Penal (redacção da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro):
“1- Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
c) abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores;
f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito.
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2- (…).
3- Se os factos referidos no nº1 disserem respeito a documento autêntico ou com força igual, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.
No crime de burla bem jurídico tutelado é o património globalmente considerado, entendido este como qualquer bem, interesse ou direito economicamente relevante – vide “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II (1999), p. 275; F. Muñoz Conde, in “Derecho Penal- Parte Especial” (1999), p. 404. A conduta típica deste crime deverá ser astuciosa de modo a induzir em erro ou enganar outra pessoa, podendo tanto consistir na afirmação de factos falsos, como numa simulação ou deturpação dos verdadeiros. Perante os factos dados como provados, não restam dúvidas que o recorrente, forjando um endosso válido do título, actuou astuciosamente perante os funcionários bancários fazendo-se passar pelo legítimo portador do vale do correio de que era beneficiário José Carlos Belchior para obter o pagamento do respectivo montante, cometendo o referenciado crime de burla.
Já quanto à falsificação do vale do correio trata-se de um delito pluri-ofensivo no qual se protege, por um lado, a fé pública do documento e, por outro, os interesses específicos que estão assegurados ou garantidos pelo documento como meio de prova. O bem jurídico aqui tutelado é assim o valor probatório dos documentos em geral e particularmente dos enunciados na sua “qualificativa”, assegurando a sua genuinidade no desenrolar da vida em sociedade, garantindo assim a estabilidade das relações sociais, pelo que mais recentemente tem se falado na segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório – vide Marques Borges, in “Dos Crimes de Falsificação de Documentos, Moedas, Pesos e Medidas”, p. 28; Luís Osório, in “Código Penal Português”, Vol. II (1927), p. 340 que no caso dos títulos de crédito alude à protecção da circulação comercial; “Comentário Conimbricence do Código Penal”, Tomo II (1999), p. 680.
Por outro lado, temos ainda de atender que tal ilícito é um crime de perigo abstracto, pois como se alude no Comentário Conimbricense (p. 681) “para que o tipo legal esteja preenchido não é necessário que, em concreto, se verifique aquele perigo; basta que se conclua, a nível abstracto, que a falsificação daquele documento é uma conduta passível de lesão do bem jurídico-criminal aqui protegido; basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança, que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico – verifica-se, pois, uma antecipação da tutela do bem jurídico, uma punição do âmbito pré-delitual”.
O crime de falsificação de documentos constitui pois um crime de perigo. Após a falsificação do documento ainda não existe uma violação do bem jurídico mas um perigo de violação deste: a confiança pública e a fé pública já foram violadas, mas o bem jurídico protegido, o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental apenas foi colocado em perigo. E é um crime de perigo abstracto pois o perigo não constituiu elemento do tipo. Basta que o documento seja falsificado para que o agente possa ser punido independentemente de o utilizar ou o colocar no tráfico jurídico, basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança. Por isso é também considerado como um crime formal ou de mera actividade, não sendo necessário a produção de qualquer resultado. Porém, o crime exige uma certa actividade por parte do agente, no sentido de fabricar, modificar ou alterar o documento. Podemos assim considerar que se trata de um crime material de resultado, isto é, um crime formal considerando o resultado final que se pretende evitar mas um crime material considerando o facto que o põe em perigo.
Como refere Helena Moniz, a falsificação de documentos constitui uma falsificação da declaração incorporada no documento (Helena Moniz, O Crime de Falsificação de Documentos, 1993, pág. 676). Mas o acto de falsificação poderá assumir formas distintas.
Assim, enquanto na falsificação material sucede uma alteração ou modificação do documento, que não é genuíno, porque falsificado na sua essência material, na falsificação ideológica, o documento é inverídico.
Nesta (a falsificação ideológica), é possível distinguir duas outras modalidades. Ocorrendo falsificação intelectual, o documento incorpora uma declaração falsa, uma declaração escrita, integrada no documento, distinta da declaração prestada. Se se presta uma declaração de facto falso juridicamente relevante – narração de facto falso -, então estamos perante a falsidade em documento.
No fabrico de documento falso integram-se os casos de falsificação intelectual, em que a declaração documentada é distinta da declaração realizada.
Já a falsificação ou alteração de documento reporta-se à falsificação material, ocorrendo uma falsificação posterior do documento, mediante uma sua alteração.
Finalmente, fazer constar falsamente em documento facto juridicamente relevante constitui a falsidade em documento. Estamos perante a falsificação ideológica, consistindo ela na inveracidade do documento. O facto será juridicamente relevante se apto a constituir, modificar ou extinguir situações jurídicas.
Ao nível do tipo subjectivo de ilícito, exige-se o conhecimento, por parte do agente, dos elementos objectivos do tipo que a sua conduta, objectivamente, preenche (elemento intelectual), e à vontade de realizar essa conduta e/ou de obter um certo resultado (elemento volitivo).
Assim, para que se mostrem preenchidos os elementos subjectivos do ilícito, o agente tem que actuar dolosamente – com conhecimento de que está a falsificar um documento e apesar disso querer falsificá-lo -, podendo o dolo assumir qualquer das suas modalidades (dolo directo, necessário ou eventual). E, ainda, um dolo específico: “a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo” Estamos, assim, perante um crime intencional, não se exigindo, no entanto, uma específica intenção de causar um engano no tráfego jurídico.
Com a reforma introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4/9, o referido tipo legal, agora designado como crime de “falsificação ou contrafacção de documento” (artº 256), sofreu alterações na sua configuração, sendo alargada a tutela penal de modo a abranger situações que anteriormente não estavam expressamente previstas na lei. O que sucedeu foi que os casos previstos anteriormente nas três alíneas do nº 1 do artº 256 passaram agora a estar distribuídas pelas actuais alíneas a) a e) do mesmo nº 1 do citado artigo, o que sempre torna mais clara a incriminação em questão, realçando a pluralidade de actos nela abrangidos.
Da factualidade dada como provada resulta que os vales do correio são genuínos mas, o arguido introduziu-lhe um facto falso (quando fez aqueles endossos falsos) juridicamente relevante.
No caso do abuso da assinatura de outrem para elaborar um documento falso, tanto se pode estar no âmbito da citada alínea a), como da alínea d), que alude a quem “fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante”, como sucede com uma assinatura, mas nesta previsão o documento em si deve corresponder a uma declaração verdadeira, em que apenas a assinatura é falsa, como sucede nas situações em que ocorre o preenchimento (data, quantia, sacador) de um cheque por quem de direito, mas ocorre o abuso da assinatura, enquanto naquela o abuso da assinatura consta num documento em si falso. Segundo M. Borges (ob. cit., p. 32) a primeira alínea abrange as hipóteses de falsificação material, enquanto a segunda alínea diz respeito à falsificação ideológica. No caso do abuso da assinatura de outrem para elaborar um documento falso, tanto se pode estar no âmbito da citada alínea a), como da alínea d), reportando-se esta às situações em que se “fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante. No caso em apreço, temos que a assinatura dos endossos foi falsificada, pelo que estaríamos perante um crime de falsificação da alínea d), do nº 1, com a agravante do nº 3, mas a jurisprudência (disponível no site www.dgsi.pt) divide-se, havendo também quem integre essa conduta no artº 256º, nº 1, alínea a) e nº 3 do CP na medida em que ao modificar o documento com a introdução daquele endosso falso está a alterar o vale do correio.
De qualquer modo, neste caso, independentemente das apontadas divergências, há consenso na jurisprudência no sentido de que se trata sempre de falsificação de documento prevista no nº 3 do artº 256 do CP, em qualquer das versões, por se tratar de vale do correio, título este que o legislador expressamente equipara a documento autêntico para efeitos de punição.
Daí que seja irrelevante a argumentação do recorrente porque não conduz a qualquer alteração da respectiva moldura abstracta que é sempre a mesma (sempre qualificada e não simples): neste caso o essencial é que o crime é punido na sua forma qualificada prevista no nº 3 do artº 256º do CP em qualquer das versões que se sucederam no tempo. Independentemente da interpretação que se faça na subsunção dos factos ao direito o que interessa é que a acção típica preenche os elementos constitutivos de um crime de falsificação de documento previsto e punível nos termos do artº 256º, nos 1 e 3, do Cód. Penal, sendo irrelevante para a questão do concurso entre o crime de falsificação e de burla saber se a conduta se enquadra na alínea a) ou d) do nº 1 do artº 256º, e, consequentemente, para a questão de saber se deve ou não afastada a doutrina seguida pelo STJ na fixação de jurisprudência sobre essa questão concreta. O que interessa pois é saber se deve ou não ser afastada a doutrina perfilhada pelo STJ na uniformização de jurisprudência sobre a questão do concurso entre os crimes de burla e falsificação de documento independentemente de a conduta típica de falsificação integrar a previsão da alínea a) ou da alínea d) do nº 1 do artº 256º.
De referir, apenas por uma questão de precisão, que contrariamente ao sustentado pelo recorrente o STJ no Assento nº 8/2000 não se limitou apenas a uma actualização dos artigos constantes daquele outro acórdão de uniformização de jurisprudência de 09/4/1992. É incontroverso que o Assento nº 8/2000 reafirmou, no âmbito da vigência da redacção de 1995 do Cód. Penal, a jurisprudência que já tinha sido fixada no acórdão anterior. Aí se referiu expressamente que « Ora, nem no Código Penal de 1982 nem no de 1995 existe qualquer disposição que ressalve o concurso da burla com a falsificação (enquanto meio de realização daquela) do regime geral estatuído no artigo 30.º:'O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.'
Logo, sendo distintos os bens jurídicos tutelados pelos tipos legais de crime de burla (o património) e de falsificação de documento (que não será tanto a fé pública dos documentos [...] mas, antes, 'a verdade intrínseca do documento enquanto tal' (cf. F. Dias e Costa Andrade, 'O legislador de 1982 optou pela descriminalização do crime patrimonial de simulação', Colectânea de Jurisprudência, ano VIII, t. III, p. 23) ou 'a verdade da prova documental enquanto meio que consente a formulação de um juízo exacto, relativamente a factos que possam apresentar relevância jurídica' (cf. Malinverni, Enciclopedia del Diritto, vol. XIII, pp. 632-633) e não se verificando, entre eles, qualquer relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção nem se configurando nenhum dos crimes em relação ao outro como facto posterior não punível [...] deve continuar a concluir-se que a conduta do agente que falsifica um documento e o usa, astuciosamente, para enganar ou induzir em erro o burlado integra (suposta, naturalmente, a verificação de todos os elementos essenciais de cada um dos tipos), efectivamente, em concurso real, um crime de falsificação de documento e um crime de burla.»
Ora no caso dos autos, os factos dados como provados integram - como, aliás, o próprio acórdão recorrido o reconhece - os dois aludidos crimes.
Por todo o exposto, não se vê qualquer razão para que a doutrina constante do acórdão fundamento deva ser alterada. Impõe-se, contudo, fazer uma actualização na referência aos artigos hoje vigentes.».
Também é incontroverso que de acordo com os factos dados como provados o recorrente cometeu dois crimes de falsificação de documento e um crime de burla e não apenas um crime de falsificação e outro de burla pelo que, mesmo na tese do recorrente em que haveria uma relação de consunção impura entre o crime de falsificação do vale do correio de que era beneficiário José Carlos B... e o de burla respeitante aos factos que respeitam ao locupletamento do montante desse vale do correio, sempre teria de ser condenado por esse crime de burla e pelo crime de falsificação do vale do correio de que era beneficiária Maria M.... Incontroverso ainda que, de acordo com a factualidade assente, o crime de falsificação do vale do correio do beneficiário José Carlos B... foi o meio com que cometeu o crime de burla e apenas com o fim de cometer o crime de burla é que falsificou esse vale do correio que não serviu para mais nada.
A questão a decidir é se esse crime-meio, naquelas circunstâncias, deve ou não ser punido em concurso efectivo com o crime-fim, ou seja, se existe concurso efectivo ou meramente aparente entre os crimes de falsificação daquele vale do correio e o crime de burla.
Ora, na esteira da lição do Prof. Eduardo Correia (v. A Teoria do Concurso em Direito Criminal, 1983, pág. 130), sempre a esmagadora maioria da doutrina e da jurisprudência, salvo raras excepções, entenderam existir concurso real entre os dois apontados crimes a despeito das alterações legislativas entretanto verificadas. De resto, tal solução encontra-se respaldada em dois acórdãos do STJ, proferidos pelo Plenário das Secções Criminais, de 19-2-92 e 23-5-2000, este com o nº 8/2000.
O primeiro veio dirimir as acesas discussões sobre a verificação de concurso real/aparente entre os crimes de falsificação de documento e burla, quando a falsificação é o meio utilizado para a concretização do crime de burla fixando a seguinte jurisprudência: «no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 228º, nº 1, al. a) e do artigo 313º, nº 1 respectivamente, do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes».
Já no âmbito das alterações introduzidas ao Código Penal pelo D.L. nº 48/95, de 15/3, o acórdão do S.T.J. de 4 de Maio de 2000 fixou a seguinte jurisprudência: «no caso da conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256º, nº l, alínea a) e do artigo 217º, nº l, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95 de 15 de Março, verifica-se o concurso real ou efectivo de crimes», isto mesmo que o crime de falsificação seja um meio para a realização do crime de burla.
Com a revisão do Cód. Proc. Penal de 1998 as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito dos recursos de fixação de jurisprudência deixaram de constituir «jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais …». No entanto, sempre que o tribunal discorde daquela jurisprudência deve fundamentar a divergência – artº 445º, nº 3, do C.P.P.
Ao dizer que os tribunais devem fundamentar as divergências quando não sigam a jurisprudência fixada não quis a lei, seguramente, referir-se ao dever geral de fundamentação das decisões judiciais (artºs 97º, nº 4, e 374º, do CPP). Visou, antes, consagrar um especial dever de fundamentação, destinado a explicitar e explicar as razões de divergência em relação a jurisprudência fixada.
É absolutamente compreensível que assim seja: apesar de aquelas decisões já não serem obrigatórias, o normal é que elas sejam seguidas por todos os demais tribunais. Falamos do S.T.J. que, por ser o nosso mais alto tribunal, está vocacionado para definir orientações jurisprudenciais, nomeadamente em áreas sensíveis e controversas, tanto mais que tais decisões surgem sempre na sequência de discussões prolongadas sobre uma questão concreta.
Portanto, o normal é que essa jurisprudência seja seguida. O seu acatamento não é obrigatório, sendo a discordância legítima v.g. quando:
- o tribunal em causa tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador, susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada;
- se tomar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na actualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou, finalmente,
- a alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a maioria dos juízes das Secções Criminais deixaram de partilhar fundadamente da posição fixada.
No caso o tribunal a quo seguiu, e bem, a jurisprudência fixada porque nenhuma destas situações se verificou. A jurisprudência fixada mantém toda a actualidade e deve ser reafirmada não obstante a Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, ter vindo dar nova redacção ao nº 1, do artº 256º, do Cód. Penal, aditando ao tipo outras acções “ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”.
Sustenta Paulo Pinto de Albuquerque: "Há concurso aparente (consunção) entre o crime de falsificação de documento e o crime de burla ou qualquer outro crime que tenha sido preparado, facilitado, executado ou encoberto por intermédio de documento falso, tendo o legislador propositadamente afastado a jurisprudência dos acórdãos de fixação de jurisprudência do STJ de 19/02/1992 e 8/2000, cuja constitucionalidade foi testada pelo ac. do TC 303/2005 (a favor da jurisprudência fixada, Miguel Machado, 1998 a: 254, mas contra ela, Helena Moniz, 1993, 84 e 86, e 2000: 466). Com efeito, o legislador deixou claro, na revisão do CP de 2007, que a acção típica de falsificação pode ser querida exclusivamente com a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir um crime, sendo este elemento subjectivo típico parte constitutiva do próprio ilícito subjectivo e não um facto de agravação (como sucede no crime de homicídio). Sendo assim, a punição nestes casos em concurso efectivo redundaria numa dupla punição do mesmo facto. A conclusão é inelutável, em face da opção política criminal do legislador: o concurso é meramente aparente, sendo a punição do crime-instrumento de falsificação subsidiária da punição do crime-fim (com conclusão idêntica em face da nova lei, mas com argumentação distinta, Sá Pereira e Alexandre Lafayette, 2008: 664)".
Em sentido contrário, encontramos:
- acórdão do STJ, de 26.10.2011, processo n.º 1441/07.8JDLSB.L1: “ Por outro lado, e ao contrário do que pretende o recorrente, da alteração da redacção do art. 256°, n° 1 do CP, introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, não resulta a alteração ou a caducidade da jurisprudência fixada, quanto ao concurso de crimes, pelos Acórdãos do STJ, de Uniformização, de 19.2.1992 e 8/2000. Provavelmente, ao alargar a acção típica aos segmentos «ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outros crimes», o legislador apenas terá pretendido incluir condutas que, até aí, não estavam previstas, por forma a abranger aquelas situações em que o agente pudesse não ter tido intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado, ou de obter, para si ou para outrem, beneficio ilegítimo, mas apenas tivesse a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime. Assim se justifica, na redacção actual da norma, a conjunção ou que antecede o novo segmento do texto e o pronome outro que precede a palavra crime. Esse alargamento introduzido pelo legislador em nada afecta ou contende com a dimensão normativa dos preceitos penais em causa, uma vez que o que releva nesta sede é a natureza distinta dos bens jurídicos tutelados pelas respectivas normas incriminatórias, e essa natureza não foi beliscada pela alteração legislativa introduzida”;
- Maia Gonçalves, in Código Penal Português, 18a edição, 2007, em anotação ao art. 256: “ Este crime concorre (concurso real) com o de burla, quando no processo de execução da burla o agente usa documento falso. Foi a orientação que sempre sustentámos a partir da entrada em vigor do Código, em face da não existência de dispositivo correspondente ao do § do art. 451º do CP de 1886 e dos diferentes valores protegidos por cada uma das infracções (. . .) Cremos que a revisão do Código operada pelo diploma referido supra, anotação 1, não colidiu, directa ou indirectamente, com esta orientação.”;
- acórdão da Relação do Porto, de 13.07.2011, processo n.º 53708.3PBMAI.P1 – 4.ª Sec.: “os elementos do tipo foram acrescentados e hoje o crime de falsificação pode ser cometido por quem tenha a intenção de causar prejuízo ou a intenção de obter benefício ilegítimo, e também por quem, meramente, vise preparar, facilitar ou encobrir outro crime", mas "o crime de falsificação mantém a sua identidade e autonomia relativamente ao crime que visa preparar na medida em que se basta e completa - nesse segmento da previsão - com a intenção de preparar, facilitar ou executar outro crime".
- acórdão da Relação de Lisboa de 15-12-2011 “Com a nova redacção do art.256, do Código Penal, introduzida pela Lei nº59/07, de 4Set., o legislador não teve a intenção de afastar a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça através do acórdão nº8/2000 (DR 119 SÉRIE I-A, de 2000-05-23); Com aquela nova redacção, o legislador limita-se a alargar o tipo, cometendo o crime, também, quem quiser apenas preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime; Não trazendo aquela alteração legislativa qualquer regime mais favorável aos arguidos, designadamente na questão relativa à existência de concurso aparente ou efectivo entre os crimes de falsificação de documento e de burla, não se justifica qualquer alteração ao acórdão transitado em julgado que condenou os arguidos em concurso efectivo por aqueles crimes”.
Aderindo à tese exposta nos acórdãos do STJ e das Relações do Porto e de Lisboa e de Maia Gonçalves, entendemos que da nova redacção do artº 256.º, n.º 1, do CP, não se vislumbra qualquer intenção do legislador em afastar a jurisprudência do acórdão 8/2000 e de vir definitivamente fixar que há concurso aparente entre os crimes de falsificação e de burla, quando aquele é crime-meio e este crime-fim.
Como se refere ainda no citado acórdão da Relação de Lisboa “ Na nossa perspectiva, o legislador não se envolve nessa questão. O que vem dizer o legislador é que comete o crime de falsificação, não apenas quem tem intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, mas também, a partir de 2007, quem, mesmo sem nenhuma dessas intenções, falsificar documento para preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”. Está alargado o tipo do crime. A intenção de causar prejuízo (ao Estado ou a outra pessoa) ou de obter (para si ou outra pessoa) benefício ilegítimo, já não esgota o tipo do crime de falsificação. Agora também comete este ilícito quem quiser apenas preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.
Como refere o STJ no acórdão citado, o que releva em sede de concurso real é a natureza distinta dos bens jurídicos tutelados pelas respectivas normas incriminatórias, e essa natureza não foi beliscada pela alteração legislativa introduzida.
Assim, não trazendo a alteração legislativa qualquer regime mais favorável aos arguidos recorrentes, designadamente na questão de saber se o concurso é aparente ou efectivo, não há motivos para alterar, nesta parte, o acórdão recorrido”.
Não vemos razões, nem as mesmas foram apontadas pelo recorrente, para dissentir deste entendimento.
Em face do exposto, é nosso modesto entendimento que este recurso não merece provimento.”.
* * *
O STJ fixou jurisprudência no sentido de que “no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes” – ac. de fixação de jurisprudência 8/2000 de 04.05.2000 Luís Flores Ribeiro (relator) DR 119 SÉRIE I-A, de 2000-05-23 (o destacado a negrito e sublinhado é nosso).
In casu a acção típica preenche os elementos constitutivos de um crime de falsificação de documento previsto e punível nos termos do artº 256º, nos 1 e 3, do Código Penal, sendo irrelevante para a questão do concurso entre o crime de falsificação e de burla saber se a conduta se enquadra na alínea a) ou d) do nº 1 do artº 256º, e, consequentemente, para a questão de saber se deve ou não de ser afastada a doutrina seguida pelo STJ na fixação de jurisprudência sobre essa questão concreta. O que interessa pois é saber se deve ou não ser afastada a doutrina perfilhada pelo STJ na uniformização de jurisprudência sobre a questão do concurso entre os crimes de burla e falsificação de documento independentemente de a conduta típica de falsificação integrar a previsão da alínea a) ou da alínea d) do nº 1 do artº 256º.
Ora, não constando da motivação do recurso algum argumento que não tenha já sido considerado pelo STJ naquele assento, nem se vislumbrando alguma razão nova para dele divergir, nada havendo a acrescentar ás considerações acima referidas, deve concluir-se pela improcedência do recurso.
Refere-se também jurisprudência dos nossos tribunais superiores no sentido da posição aqui tomada:
- Ac do T. R. Coimbra, de 28-09-2011, Proc. n.º 2510/09.5TACBR.C1, relator Jorge Jacob, com o sumário seguinte:
“A alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, no corpo do nº 1, do art. 256º, do Código Penal, aponta para a punição autónoma do crime de falsificação quando cometido como instrumental de outro crime.
Com efeito, onde anteriormente a lei dispunha apenas e tão-só que “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo (…)”, enunciando depois as condutas constitutivas do elemento material do crime, passou a dispor que “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: (…)”, comprometendo definitivamente o argumento da instrumentalidade como justificativo do concurso aparente, num claro reforço da tutela do bem jurídico tutelado pelo crime de falsificação, dando assim letra de lei àquele que era já o entendimento uniformizado da jurisprudência.”.
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-07-2010, Proc. n.º 4555/07.0TDLSB.G1, de 12-07-2010, relator Fernando Monterroso (embora não contando a questão no sumário é tratada no acórdão).
- Acórdão nº 0344554 de Tribunal da Relação do Porto, 14 de Julho de 2004, relator A. Freitas, com o sumário seguinte:
“Há concurso real entre os crimes de falsificação de documento e de burla, mesmo que a falsificação seja um meio de cometer o crime de burla.”;
- Acórdão nº 0210197 de Tribunal da Relação do Porto, 24 de Abril de 2002, relator E. Marques, com o sumário seguinte:
“O crime de falsificação concorre com o de burla, em concurso real ou efectivo, não obstante a falsificação ter sido meio ou instrumento para a realização da burla.”.
- Ac. do T. R. de Lisboa de 15-12-2011, Proc. n.º 29/04.0JDLSB.L1-5, relator Paulo Barreto, com o sumário seguinte:
“Iº Com a nova redacção do art.256, do Código Penal, introduzida pela Lei nº59/07, de 4Set., o legislador não teve a intenção de afastar a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça através do acórdão nº8/2000 (DR 119 SÉRIE I-A, de 2000-05-23);
IIº Com aquela nova redacção, o legislador limita-se a alargar o tipo, cometendo o crime, também, quem quiser apenas preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime;
IIIº Não trazendo aquela alteração legislativa qualquer regime mais favorável aos arguidos, designadamente na questão relativa à existência de concurso aparente ou efectivo entre os crimes de falsificação de documento e de burla, não se justifica qualquer alteração ao acórdão transitado em julgado que condenou os arguidos em concurso efectivo por aqueles crimes;(…)”
- (Todos os Ac.s in www.DGSI.pt)
*
Termos em que deve o recurso ser julgado improcedente mantendo-se o acórdão recorrido.
***
- Decisão:
Pelo exposto, decide-se nesta Relação em julgar o recurso como improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido. * Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Notifique / D. N.
(Texto processado em computador e revisto pela primeira signatária – artº 94º, nº 2 do CPP – Proc n.º 1202/11.0PB BRG.G1).
Guimarães, 18 de Fevereiro de 2013 |