Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
182/07.0GACBT.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: FURTO
FURTO QUALIFICADO
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Sumário: I - Para que se possa considerar que o agente cometeu um crime de furto qualificado, não basta que os factos integrem a previsão de uma das alíneas dos nºs 1 ou 2 do art. 204 do Cod. Penal. É necessário, também, que o valor do furto exceda uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto, já que não há lugar à qualificação se o valor for igual ou inferior – arts. 202 al. c) e 204 nº 4 do Cod. Penal.
II - A norma do nº 4 do art. 204 do Cod. Penal consubstancia um contra-tipo, ou, citando o Comentário Conimbricense, “um pressuposto negativo da aplicação da norma incriminadora”. Se o valor da coisa furtada não exceder o da unidade de conta “não chega sequer a preencher-se o tipo qualificador, remetendo-se o comportamento proibido para o tipo matricial”.
III – Sob pena de violação do princípio do acusatório, para que alguém possa ser condenado por um crime de furto qualificado é não só necessário que da acusação constem factos que integram a previsão da respectiva circunstância qualificativa, mas também que dela resulte inequivocamente que o valor do furto é superior à unidade de conta. Se assim não for, não estará devidamente delimitado o “contra-tipo” do furto qualificado ou, para repetir a frase acima citada, o “pressuposto negativo da aplicação da norma incriminadora”.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


No Tribunal Judicial de Calórico de Basto, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc.nº 182/07.0 GACBT), foi condenado o arguido José T..., pela prática de um crime de furto qualificado, em autoria material e na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), com referência ao artigo 202.º, alínea d) e e), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão que se substitui por igual número de dias de multa, 180(cento e oitenta), à taxa diária de 2,00 € (dois euros), o que perfaz o montante total de 360,00 € (trezentos e sessenta euros);
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O arguido José T... interpôs recurso desta sentença, suscitando as seguintes questões:

- impugna a decisão sobre a matéria de facto;

- alega que não não se verifica a circunstância qualificativa do art. 204 nº 2 al. e) do Cod. Penal, porque o arguido não chegou a entrar no estabelecimento;

- não pode ser considerada qualquer circunstância qualificativa do furto porque não há qualquer indicação do valor dos objectos de que o arguido se pretendia apropriar; e

- não integrando os factos mais do que uma tentativa de furto “simples”, carecia o MP de legitimidade por não ter sido feita queixa.


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Respondendo, a magistrada do MP junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso.

Nesta instância, o sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.

Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

a) Na madrugada do dia 17 de Julho de 2007, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial de café, denominado café C..., explorado por Manuel M..., situado na Praça Albino P..., em Celorico de Basto, com a intenção de aí se introduzir e apoderar dos bens que encontrasse no seu interior.
b) Aí chegado, cerca das 4h10, munido de um ferro, com cerca de 0,90 cm de comprimento e uma chave de fendas, tentou abrir a porta principal do café, para se introduzir no interior deste.
c) Nessa altura, o arguido foi surpreendido pelos militares da GNR Serafim M..., e António F..., que passavam no local em serviço de patrulha e vigilância nocturna.
d) De imediato, pôs-se em fuga deixando a chave de fendas que transportava consigo encaixada numa ranhura da fechadura da porta.
e) O arguido com a sua conduta danificou a porta do café, provocando um prejuízo de 100,00€.
f) O arguido só não concretizou os seus intentos por motivos alheios à sua vontade.
g) Agiu o arguido voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que os objectos que estavam no interior do café lhe não pertenciam, querendo, apesar disso, apropriar-se dos mesmos, fazendo-os coisa sua, contra a vontade dos seus legítimos donos, desiderato que apenas não logrou conseguir por facto alheio à sua vontade.
h) o arguido sabia que para se apropriar dos bens que estavam no interior do café teria que danificar a fechadura da porta principal, para deste modo, se introduzir no seu interior, mesmo assim prosseguiu a sua conduta, danificando a fechadura
i) Tinha ainda consciência de que era proibida a sua conduta.
j) Nada consta do seu certificado de registo criminal.
l) o arguido consumia produtos estupefacientes à data dos factos.
k) O arguido está desempregado e vive com o pai de quem depende economicamente.

FUNDAMENTAÇÃO
1 – A impugnação da matéria de facto
A discordância relativamente à decisão sobre a matéria de facto limita-se à prova de que na fechadura da porta do estabelecimento foi causado um dano no valor de € 100,00.
Alega o recorrente, em resumo, que a decisão apenas se fundamentou no conteúdo do documento de fls. 31, o qual, alem de “não ser susceptível de comprovar o que quer que seja”, “não é apto a fazer prova de que esse serviço foi efectivamente prestado, nem que, tendo sido, o foi por essa empresa e muito menos que foi esse o valor efectivamente pago”.
É uma alegação que improcede.
Não se trata de “prova plena” de um facto feita através de um documento. O documento, como outros elementos de prova, passou pelo crivo da livre apreciação do julgador.
A fundamentação indica que as testemunhas clarificaram que o arguido danificou a fechadura e o recorrente não contesta que, efectivamente, elas depuseram nesse sentido. Sendo certo que os danos existiram, o documento em causa é um orçamento feito por uma serralharia em que foi avaliado o preço do concerto. Apresenta um valor que não colide com as regras da experiência (cfr. art. 127 do CPP). Finalmente, no facto em causa (al. e)), apenas se afirma que o dano foi de € 100,00. Não se diz que o ofendido “pagou” o conserto, nem, sequer, que a fechadura já foi consertada. Pode, inclusivamente, a fechadura, apesar de danificada, continuar a fechar e a ser utilizada, mas não proporcionar as suas utilidades plenas, nomeadamente por ter perdido resistência.
2 – A qualificação do crime de furto
São duas as objecções que o recorrente põe à qualificação do furto: 1) não chegou a entrar no estabelecimento; e 2) não foi feita a quantificação dos bens susceptíveis de apropriação.
Improcede a primeira objecção. Está em causa apenas uma “tentativa” e esta, por definição, implica que não chegaram a ocorrer todos os actos de execução necessários para que se consumasse o crime que o arguido decidiu cometer – cfr. art. 22 nºs 1 e 2 do Cod. Penal. Não sendo suscitadas dúvidas de que o arguido já tinha iniciado a “execução” do crime, a questão está em saber que actos se teriam seguido se a sua actividade não tivesse sido interrompida. Estes implicavam a entrada, de corpo inteiro, no estabelecimento, como resulta inequivocamente dos factos provados (al. b). Fica, assim, inútil a questão de saber se a qualificativa da al. e) do nº 2 do art. 204 do Cod. Penal implica a entrada de corpo inteiro do agente no espaço fechado.
Porém, já procede o segundo argumento.
Escreveu-se no acórdão proferido no recurso 4020/00 do Tribunal da Relação de Lisboa, com o mesmo relator deste:
Após a revisão de 1995, a punição do crime de furto, bem como de outros crimes contra o património, passou a ser relacionada com o valor dos bens em causa.
Actualmente, para que se possa considerar que o agente cometeu um crime de furto qualificado, não basta que os factos integrem a previsão de uma das alíneas dos nºs 1 ou 2 do art. 204 do Cod. Penal. É necessário, também, que o valor do furto exceda uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto, já que não há lugar à qualificação se o valor for igual ou inferior – arts. 202 al. c) e 204 nº 4 do Cod. Penal.
A norma do nº 4 do art. 204 do Cod. Penal consubstancia um contra-tipo, ou, citando o Comentário Conimbricense, “um pressuposto negativo da aplicação da norma incriminadora”. Se o valor da coisa furtada não exceder o da unidade de conta “não chega sequer a preencher-se o tipo qualificador, remetendo-se o comportamento proibido para o tipo matricial”.
Para a decisão do recurso, o que fica dito tem de ser conjugado com o princípio do acusatório, que tem consagração constitucional (art. 35 nº 2 da C.R.P.). Este apenas permite ao tribunal investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado (o MP ou o juiz de instrução). É a acusação que define e fixa, perante o tribunal, o objecto do processo. É ela que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e é nela que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade e da consunção do objecto do processo penal – v., entre outros, Figueiredo Dias, Lições de Direito Processual Penal, UC, ano 88/89, pag. 99 e ss.
Isto é, para que alguém possa ser condenado por um crime de furto qualificado é não só necessário que da acusação constem factos que integram a previsão da respectiva circunstância qualificativa, mas também que dela resulte inequivocamente que o valor do furto é superior à unidade de conta. Se assim não for, não estará devidamente delimitado o “contra-tipo” do furto qualificado ou, para repetir a frase acima citada, o “pressuposto negativo da aplicação da norma incriminadora”.
Tal delimitação negativa faz-se, normalmente, através da indicação do valor dos bens furtados.
É certo que nem sempre é necessária a expressa indicação do valor dos bens. Se, por exemplo, alguém furta com chaves falsas um automóvel topo de gama em estado novo, não é imprescindível indicação do valor para que o tribunal possa concluir que a coisa valia mais do que uma unidade de conta. Trata-se de facto notório, de conhecimento geral, que não carece de alegação e prova – cfr. art. 514 nº 1 do CPC.
Mas sempre que não for notório que os bens valiam mais do que a unidade de conta, se a acusação for omissa quanto ao seu valor, sob pena de violação do princípio da acusação, não poderá o arguido ser condenado por mais do que por um crime de furto “simples”. Se a acusação, ao fixar e definir o objecto do processo, alega factos que permitem admitir que os bens têm valor igual ou inferior à unidade de conta, não pode o tribunal ultrapassar esse limite. Se o fizer (sem se socorrer do mecanismo da alteração substancial de factos – art. 359 do CPP), não estará a observar os limites dos seus poderes de cognição e da sua vinculação temática”.
Tudo o que ficou escrito vale, naturalmente, para a tentativa de furto. Seria um absurdo lógico dar tratamento mais favorável ao autor do crime consumado do que ao da tentativa, sob o pretexto de que o arguido “podia” querer furtar bens de valor superior à da Unidade de Conta.
No caso, o arguido foi surpreendido a tentar entrar num estabelecimento de café e a acusação limitou-se a alegar que o arguido pretendia “apropriar-se dos bens que lá encontrasse”.
Mas que bens eram esses, que lá existiam, susceptíveis de interessar ao arguido e que ele conseguiria levar consigo?
Responde a magistrada do MP na resposta ao recurso que “decorre da experiência comum que no interior de um café encontram-se, pelo menos, mesas, cadeiras, a máquina registadora e alguns bens de alimentação que terão valor muito superior a € 96,00”.
É certo, mas como se pôde concluir que o arguido pretendia levar o mobiliário e as máquinas do estabelecimento? Tinha um veículo de carga para transportar bens dessa natureza? Não é isso que decorre dos factos.
Há, pelo menos, uma hipótese plausível, que acode a favor do arguido: ele era toxicodependente (al. i) e podia procurar dinheiro ou bens imediatamente transaccionáveis para adquirir drogas para o seu consumo.
Ora, as “regras da experiência” não nos indicam que actualmente os proprietários de estabelecimentos de café deixem durante a noite, na caixa registadora, valores a rondar os € 100,00. Nesta época de aumento de criminalidade, o normal é o contrário. É recolher-se o apuro do dia, deixando na caixa apenas os “trocos” necessários para o início da actividade no dia seguinte. O mesmo se passa relativamente às bebidas de maior valor (vinho do Porto, Brandies e Whiskies), em que muitas vezes só estão expostas as garrafas já encetadas, sem valor comercial fora do estabelecimento. Quanto ao tabaco, muitos cafés já nem sequer o vendem.
Como quer que seja, afigurando-se evidente que o arguido actuava só e sem o auxílio de meios de transporte, nenhum esforço foi feito durante a investigação no sentido de apurar que bens (e respectivos valores) existiam no estabelecimento que ele pudesse levar nas mãos. Isso reflectiu-se na fragilidade dos factos narrados na acusação.
Assim, os factos não integram mais do que a tentativa de um crime de furto “simples” do art. 203 nº 1 do Cod. Penal, tentativa essa punível (art. 203 nº 2 do Cod. Penal).

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Suscita o recorrente a questão da ilegitimidade do MP para o exercício da acção penal, por ausência de queixa, no caso de se concluir, como se concluiu, pela existência de apenas um crime de furto do art. 203 nº 1 na forma tentada. Também a magistrada do MP junto do tribunal recorrido afirma na sua resposta a não existência de queixa – fls. 136.
Porém, em 14-8-07, a fls. 11 do processo, o ofendido Manuel M... foi inequívoco a declarar “desejar procedimento criminal contra o autor da tentativa de furto”. Fez esta declaração menos de um mês após a data dos factos, quando ainda não tinha caducado o direito de queixa – cfr. 115 nº 1 do Cod. Penal. É certo que na ocasião decorria o inquérito no pressuposto de que se tratava de crime público, mas nenhuma razão existe para não se considerar a eficácia daquela declaração. Nenhum sentido faria a exigência de que o ofendido fosse formalmente “dar conhecimento” (cfr. redacção da norma do art. 49 nº 1 do CPP) ao MP de um facto que este já conhecia.
Assim, improcede o recurso nesta parte.
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Resta, assim, determinar a pena concreta, considerando o enquadramento legal acima fixado.
Nenhuma razão existe para alterar a opção pela pena não privativa da liberdade de multa da sentença, opção que não foi impugnada por via de recurso. O mesmo se passa quanto à taxa fixada para cada dia de multa (€ 2,00).
Temos a moldura penal abstracta de multa de 10 a 240 dias – cfr. arts. 23 nº 2 e 73 nº 1 al. c) do Cod. Penal.
O dolo foi directo e intenso e a ilicitude de grau médio (ponderando-se nesta o valor dos estragos causados na fechadura). As exigências de prevenção especial não são relevantes, dada a inexistência de antecedentes criminais, mas as de prevenção geral positiva são significativas, considerando o crescente sentimento de insegurança colectiva relativamente a comportamentos similares. Estas últimas exigências, como se sabe, fixam o patamar mínimo da pena.
Deve, pois, a pena se fixada no meio da moldura penal abstracta, isto é, em 120 dias de multa.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães, concedendo provimento parcial ao recurso, condenam o arguido José T..., como autor de um crime de furto na forma tentada p. e p. pelos arts. 203 nº 1, 22, 23 e 73 do Cod. Penal em 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de € 2 (dois euros).
Custas pelo recorrente, por ter decaído parcialmente, fixando-se em 2 UCs a taxa de justiça, sem prejuízo do decidido quanto ao apoio judiciário.