Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL BARGADO | ||
Descritores: | DANO CAUSADO POR COISAS OU ACTIVIDADES INUNDAÇÃO FRACÇÃO AUTÓNOMA DEVER DE VIGILÂNCIA NEXO DE CAUSALIDADE PRIVAÇÃO DO USO DE IMÓVEL | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 07/11/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I – Provando a autora que as águas que inundaram e danificaram o seu estabelecimento provieram do interior do apartamento da ré, mostra-se preenchido o ónus da prova (art. 342.º do CC) de que o facto danoso teve origem na coisa sob vigilância da ré (art. 493.º, n.º 1, do CC), não lhe cumprindo provar ainda a sub-causa da inundação (uma torneira deixada a correr por mera incúria ou distracção, uma eventual ruptura da canalização, etc.). II – O proprietário que tenha o imóvel em seu poder tem o dever de vigiar o seu estado de conservação e responde pelos danos originados no imóvel salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa (art. 493.º, n.º 1, do CC). III – Não logra fazer essa prova o proprietário que demonstra, sem mais, não estar em vigor um contrato de fornecimento de água para o imóvel. IV – A privação do uso só constitui um dano indemnizável se o dono (ou possuidor) alegar e provar a frustração de um proprietário real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria não fora a inundação ocorrida. V - O cálculo da correspondente indemnização, não sendo possível avaliar o exacto valor dos danos, há-de ser efectuado com base na equidade (art. 566.º, n.º 3, do CC). | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I - RELATÓRIO C…, Lda., instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra S…, Lda., pedindo que esta seja condenada a indemnizá-la na quantia de € 6.236,00. Para tanto, alegou, em síntese, ser dona das fracções autónomas identificadas no artigo 1º da petição inicial, que se encontram unidas, e onde está instalado o estabelecimento comercial denominado “B…”, sendo que no dia 14 de Julho de 2006, pelas 22 horas e 30 minutos, ocorreu uma inundação dentro daquele estabelecimento, o qual foi causado pela água proveniente da fracção da ré situada imediatamente por cima, da qual decorreram os danos que descreve e dos quis se quer ver ressarcida. A ré contestou, invocando a sua ilegitimidade decorrente do facto da administração do condomínio ter transferido para a Companhia de Seguros X… o risco de eventuais ocorrências semelhantes às descritas pela autora, e alegou desconhecer os factos alegados pela autora, afirmando, porém, a sua estranheza quanto à ocorrência da inundação proveniente da sua fracção, isto porque a mesma se encontrava desabitada há cerca de 7 anos, quando o último inquilino que a ocupou rescindiu o contrato, a que acresce o facto da ré não pagar qualquer quantia ou manter em vigor contrato de fornecimento de água com os serviços municipalizados de água. A Autora respondeu pugnando pela improcedência das excepções e concluindo como na petição inicial. Dispensada a audiência preliminar e a selecção da matéria de facto, proferiu-se despacho saneador tabelar. Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento, sendo a matéria de facto decidida nos termos do despacho de fls. 272 a 275, sem reclamações. Por fim, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 4.006,00 (quatro mil e seis euros), acrescidos de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento. Inconformada com o decidido, recorreu a ré para esta Relação, encerrando as respectivas alegações com as seguintes conclusões: «A - A Recorrente vem apresentar recurso da douta sentença de fls…., onde a Srª. Juiz do Tribunal Recorrido decidiu: - “Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, decido: Condenar a ré “S…, Lda”, a pagar à autora, “C…, Lda”, a quantia de € 4.006,00 (quatro mil e seis euros) acrescidos de juros à taxa legal, desde a citação, até ao efetivo e integral pagamento, absolvendo a ré do demais peticionado. (...) Custas a cargo do autor e réus na proporção do respectivo decaimento.”. B - Com o devido respeito pela douta decisão ora em crise, não podemos de todo, estar de acordo com a mesma, uma vez que foi proferida com erro na apreciação de provas e na aplicação do direito. C - Da resposta dada à matéria controvertida da petição e da contestação estão provados indevidamente os factos articulados supra, nos artigos 23 a 31 desta alegação. D - Assim, a Recorrente pretende a modificabilidade da decisão de facto, nos termos do artigo 712º, do Código de Processo Civil E - Independentemente, da alteração ou não da matéria de facto, houve uma má aplicação do direito. F - Não pode a ora Recorrente conformar-se de maneira alguma com a decisão do Tribunal a quo. G - Porque a matéria de facto apurada nos autos está em contradição com os documentos que lhe servem de suporte e, H - Além do que, as conclusões de direito contrariam manifestamente a fundamentação de facto apurada em sede de julgamento quer por contradição, quer por erro na factualidade apurada. I - A discordância da Recorrente centra-se em aspectos distintos, que o presente recurso coloca a decidir: - Se a água que inundou a loja de propriedade da Apelada teve ou não origem no apartamento da aqui Apelante; - Se houve danos ao nível do sistema de ar condicionado; - Se podia ou não o dever de vigilância abranger erros grosseiros de terceiros, que ligaram indevidamente um contador de água, instalado nas partes comuns do prédio, com ligação ao seu apartamento; - Se deve a Apelante ser responsabilizada pelo pagamento dos danos decorrentes da inundação que resultem de tais actos produzidos por terceiros sem o seu conhecimento ou consentimento. J - Tendo em conta o erro na apreciação das provas e na aplicação do direito, escalpelizados todos os depoimentos e apreciando novamente as provas documentais, em conjunto com os referidos depoimentos, não se percebe, de todo, em que fundamentos se escudou o Tribunal recorrido para a formação da sua convicção. K - O Tribunal Recorrido, para além ter valorado de forma incorrecta, ignorado mesmo, os documentos juntos aos autos, baseou-se apenas, e só, em factos erradamente enunciados pela Autora. L - Mais concretamente, o tribunal a quo ignorou documentos autênticos que nunca foram postos em crise nem impugnados, como sejam, a certidão camarária e o relatório pericial, documentos que nunca poderiam ter sido ignorado, como foram pelo tribunal a quo, como meio de prova dos factos alegados. M - Caso tivesse sido considerado tais documentos, como devia, nunca poderiam resultar os factos provados, conforme foram, tendo, por isso, sido selectiva na prova, uma vez que, não a valorou na globalidade. N - O depoimento do Administrador do Condómino tem de ser visto pela globalidade, de modo a considerar não só as suas contradições como as afirmações que peremptoriamente corroboram a posição da aqui Apelante, bem como, não pode ignorar por completo a prova documental que o contrapunham. O - Tendo em conta a prova testemunhal e documental junta aos autos, verificamos, que o Tribunal a quo, nunca poderia ter considerado provado que a água que inundou a loja da Apelada tenha tido origem no apartamento da Apelante. P - Nem poderia ter sido dado como provado que houve danos no sistema de ar condicionado e o quantum da sua reparação. Q – Muito menos ser, como foi, condenada a Apelante no pagamento de danos que não foram por si produzidos. R - E, mesmo a entender dessa forma, teria que relevar o teor do declarado na certidão da Câmara Municipal, onde expressamente se diz: “, que não existe no arquivo municipal, em vigor ou não, qualquer contrato celebrado entre a requerente e este Município para fornecimento de água à fracção autónoma “CC” do Edifício …”. S - Contrariamente ao entendido pela Mm.ª Juiz do tribunal a quo, com o devido respeito, a Apelante discorda integralmente de tal fundamentação, pois considera que não há nexo de causalidade, dever de vigilância tão lato, nem qualquer grau de culpa. T - Não tendo a água provindo do apartamento da Apelante, não está preenchido um requisito essencial à existência de nexo causal entre o facto e o dano, in casu. U – A haver água dentro do dito apartamento, tal se devia a um erro de terceiro (Serviços Municipais), por resultar de um acto, uma intervenção de terceiros, pelo que, caberia à Autora provar o nexo de causalidade, o que não fez. V - Como não provou, não há culpa da Apelante, pois, não há água, não há contador, não há contrato, nem qualquer poço no apartamento. W - De todo o modo, mesmo que assim não seja entendido, o que não se concebe, nem concede, por não provado, ainda assim, sempre há que considerar até onde subsistiria a obrigação de indemnização da Apelante. X - Não se pode ignorar que, mesmo a entender-se, se fosse devidamente provado, que a inundação teve origem no apartamento da Apelante, mas dando como provado que tal água apenas teria entrado no seu imóvel por força de acto a si alheio e por meio da instalação de um contador pelos serviços da Câmara Municipal de Valença, sem o seu pedido, conhecimento ou consentimento, nunca este contador poderá integrar o sistema de canalização por não ter um carácter de ligação permanente. Y – O contador que faz a ligação da rede de águas públicas ao interior de um imóvel, é antes um objecto externo ao mesmo, que só poderá ser instalado a pedido dos interessados no fornecimento de água em determinado imóvel, tendo um carácter temporário, logo, a decisão prolatada claramente faz uma errada interpretação do disposto no art. 204, n.º 3 do CC. Z - Desta feita, a referida obrigação de vigilância, que pode recair sobre meros detentores, como o depositário, comodatário ou arrendatário, mas que normalmente recai sobre o proprietário, nunca poderia ser levada tão longe no caso concreto, ao ponto de se estender à Apelante, na medida em que: AA - A Apelante não reside no apartamento em apreço, nem próximo dele; BB - O apartamento não era ocupado desde há mais de 7 anos, pela Apelante ou quaisquer outras pessoas; CC - Apelante em momento algum requisitou qualquer contrato de fornecimento de água; DD - Nem havia à altura dos factos, ou houve antes, qualquer contrato de fornecimento de água com referência ao seu imóvel em apreço; EE - Os serviços da Câmara, sem que a Apelante soubesse de tal facto, colocou dois contadores, quando apenas deveria ter colocado um, aquando requisitado pela vizinha do lado, para o seu apartamento; FF - Os contadores são instalados no hall de entrada dos apartamentos, isto é, nas partes comuns, não no interior das fracções; - Os consumos dos dois contadores estavam, à data dos factos, a ser debitados à vi GG - A vizinha só quando confrontada com os factos em apreço é que constatou que estaria a pagar uma conta de água de valor elevado; HH - Nunca viu esta vizinha ou uma outra que vive no mesmo piso do mesmo edifício qualquer água a correr naquele patamar do edifício, junto à porta da Apelante; II – Nunca antes o administrador do condomínio, que reside no mesmo edifício, viu qualquer fuga de água à porta do apartamento da Apelante. JJ – Ora, conforme consta dos autos, a Apelante não tem residência no referido apartamento, nem próximo, todavia, isto não se traduz num abandono ou desleixo, nem nunca poderia ser assim entendido! KK – Ao contrário, a Apelante sempre cumpriu pronta e integralmente com todas as suas responsabilidades inerentes à fracção “CC” (apartamento), pagando os respectivos impostos e as correspondentes despesas cobradas pela Administração de Condomínio, além disso, tal como resultou dos depoimentos das testemunhas, uma senhora que trabalhava num imobiliária, tinha, à época dos factos, a chave do dito apartamento, a fim de o mostrar para arrendar ou vender, assim, alguém entrava e saía do apartamento com a frequência normal da actividade imobiliária, o que se compreende em, pelo menos, uma ou duas visitas por mês; LL – O que revela que, mesmo não sendo a Apelante directa e frequentemente a vigiar o seu imóvel, esta tinha alguém que o faria, natural e inevitavelmente por força do exercício da sua actividade de promoção do arrendamento ou venda do imóvel aqui em causa e que prontamente lhe daria conhecimento de qualquer evento anormal ou atípico que nele ocorresse. MM – O dever de vigilância não vai tão longe, quando não há qualquer contador de água requisitado pela Apelante; NN – A haver água dentro do seu apartamento, tal apenas pode ser imputado a um acto de terceiro, o que determina o afastamento da responsabilidade da Apelante pelo risco. OO – Não se vislumbra que ninguém possa obrigar a Apelante a ter um dever de vigilância tão lato, que a condicione a verificar a miúdo se alguém, sem mais nem menos, anda a colocar contadores em nome de terceiros ligados aos seus imóveis, sem que sejam requisitados, sem o seu conhecimento e consentimento; PP – Menos ainda, quando os mesmos não carecem da sua presença para que sejam ligados, por ficarem em partes comuns do edifício; QQ – Sendo que, em última análise, se houvesse que encontrar verdadeiro agentes com o dever de vigilância no caso concreto, antes de ser invocado o ínfimo e remoto dever de vigilância da Apelante, certamente, deveria ter sido chamada a essa vigilância, primeiramente a vizinha em nome de quem estavam os dois contadores e a quem eram debitados os seus consumos; em segundo lugar a outra vizinha que morava no mesmo piso e a Administração do Condomínio, a quem cabe a vigiar as partes comuns (onde se encontrava tal contador e onde diz ter visto água no chão) e, ainda, a Apelada, que sendo proprietária da loja, tal como foi exigido à Apelante, deveria vigiar também ela a miúdo o seu imóvel, por forma a evitar que o problema de eventuais infiltrações não avolumassem consequências de maior por tempo indeterminado; RR – Assim, no caso concreto, não estando provado que a água que originou a inundação no prédio da Apelada proveio do prédio propriedade da Apelante, que esta não tinha um dever de vigilância tão lato que, sabendo-se que, o seu apartamento não se encontrava arrendado ou emprestado, pelo contrário, não estava à altura dos factos, nem antes, com qualquer ligação de fornecimento de água, não houve culpa da sua parte; SS – Logo temos o afastamento da presunção da culpa estabelecida no n.º 2 do art.º 493 do CC, bem assim, do vigilando do imóvel, mediante a prova demonstrada e provada de que a Apelante não tem qualquer culpa; TT – Nem está preenchido o pressuposto da obrigação de indemnizar, mesmo na responsabilidade objectiva, da verificação do nexo de causalidade entre o facto e o dano, na medida em que, não foi qualquer acto da Apelante que deu originou a inundação, sim a intervenção de um terceiro com o total e absoluto desconhecimento daquela; UU – Desta feita, e porque a inundação se deveu a uma intervenção de terceiro, não há nexo de causalidade, nem presunção da culpa, ou seja, não há dever de vigilância, nem culpa; VV – No caso dos autos, para além da proveniência da água do imóvel da Apelante não ter ficado devidamente provada, não se considera provado que a água infiltrada até ao prédio da Apelada ao provocar a queda de parte do teto em pladour, a deterioração da pintura da parede adjacente ao teto danificado e a luminária situada na área do teto danificado, tenha causado danos no sistema de ar condicionado do estabelecimento da autora; WW – Não se entende onde se escudou o Tribunal a quo para considerar provado que o ar condicionado sofreu qualquer dano e, menos ainda, o valor da sua reparação, pois não consta em parte alguma do relatório pericial qualquer referência quer a esse dano em concreto, quer à necessidade da sua reparação, ou qualquer orçamento e/ ou factura de reparação; XX - Bem assim, não se considera provado que a Apelada tenha ficado privada do uso do seu estabelecimento., assim não se entende por justo e equitativo a fixação do montante de € 500,00 a título de indemnização pelo tempo que a Apelada alegadamente esteve privada do uso do estabelecimento, daqui resulta uma errada interpretação e aplicação do art. 566.º, n.º 3 do CC; YY - Pelo que, a ré, ora Recorrente, não tem a obrigação de pagar à autora, Recorrida, “C…, Lda”, a quantia de € 4.006,00 (quatro mil e seis euros) acrescidos de juros à taxa legal, desde a citação, até ao efetivo e integral pagamento, e custas na proporção do respectivo decaimento; ZZ - A douta decisão recorrida viola o disposto nos artigos 204.º, n.º3; 492.º, 493.º, n.º1 e 2; 563.º, 566.º, n.º1, 2 e 3, todos do Código Civil.» Não foram apresentadas contra-alegações. Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II - ÂMBITO DO RECURSO O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 660º, nº 2, 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1, do CPC), consubstancia-se nas seguintes questões: - se deve ser alterada a matéria de facto; - se independentemente dessa alteração a acção deve ser julgada improcedente, por não funcionar in casu a presunção de culpa prevista no art. 493º do Código Civil. III – FUNDAMENTAÇÃO A) OS FACTOS Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos[1]: 1- A autora é dona e legítima proprietária de dois imóveis, a saber: • fracção autónoma designada pela letra “ R “, correspondente às loja 15, situada no rés-do-chão e primeiro andar; • fração autónoma designada pela letra “ BC ”, correspondente à loja 47, situada no 1º andar. 2 - Estas duas fracções autónomas fazem parte do prédio urbano sito na Avenida …, conhecido por Edifício …, na freguesia e concelho de Valença, descrito na Conservatória do registo Predial de Valença sob o n.º …. 3 – Trata-se de um edifício em que o rés-do-chão e primeiro andar correspondem a uma área comercial, e do segundo andar para cima a ocupação é exclusivamente habitacional. 4 – Nas duas fracções autónomas da autora, que se encontram unidas, encontra-se instalado um estabelecimento comercial que gira comercialmente sob a designação de “ Brezo“. 5 – A ré é dona e legítima proprietária da fracção “CC”, sita no mesmo prédio, correspondente a um apartamento localizado no segundo andar do prédio. 6 – Esta fracção situa-se no andar imediatamente por cima das fracções identificadas no artigo 1º. 7 – O estabelecimento “ B… “ é uma sucursal de uma outra loja aberta ao público na cidade espanhola de Vigo e comercializa artigos têxteis e decoração interior num segmento de mercado elevado, sendo conhecida por ser uma loja de referência, com artigos exclusivos, direccionada para um público com elevado poder de compra. 8 – No dia 14 de Julho de 2006, pelas 22.30 horas ocorreu uma inundação dentro do estabelecimento “ B… “. 9 – Àquela hora, várias pessoas avistaram, através da montra do estabelecimento, água a correr pela escadaria existente no interior. 10 – Essa água corria continuamente, desde o teto do estabelecimento para o chão. 11 – Na garagem localizada debaixo das duas fracções onde se encontra instalado o estabelecimento comercial, jorrava para o chão e, infiltrada, descia do teto da garagem. 12 – Nessa altura tentou-se localizar a origem da inundação, e dirigindo-se ao 2º andar do bloco B, verificou-se que saia água pela porta do apartamento “ 2 A “, correspondente à fracção de que a ré é proprietária. 13 – Uma vez que esse apartamento se encontra desabitado, não sendo possível o acesso ao seu interior, nessa altura, foi desligado o passador, onde se encontrava o contador da água desse mesmo apartamento. 14 – Imediatamente, verificou-se que a água deixou de correr, o que estancou a inundação. 15 – Após a entrada no apartamento da ré, dias após a ocorrência do sinistro, foi constatado pela administração de condomínio, que a ocorrência da inundação teve origem na casa de banho da fração da ré, concretamente uma fuga de água existente entre o autoclismo do reservatório duma sanita e a entrada da abertura superior da mesma sanita. 16 – A inundação ocorrida causou vários danos dentro das fracções da autora, designadamente a destruição do teto falso que lá existia e que, devido à água, acabou por ruir. 17 – A ré recusou-se a assumir a responsabilidade pela ocorrência do sinistro. 18 – Recusando-se a indemnizar a autora pelos danos sofridos. 19 – Os danos sofridos pela autora prendem-se com a queda de parte do teto em pladour, a deterioração da pintura da parede adjacente ao teto danificado e a luminária situada na área do teto danificado. 20 - Para reparar esses danos será necessário efectuar obras, removendo e reparando a luminária danificada, colocando novas placas de pladour nas áreas removidas, colocar luminária e efectuar pintura do teto na área substituída e na parede adjacente ao teto substituído. 21 – Para efectuar as obras a que se alude no item anterior será necessário gastar a quantia de € 1.506,00. 22 – Por outro lado, a inundação causou, também danos no sistema de ar condicionado do estabelecimento, pois a água caída do andar superior entrou num equipamento instalado no teto. 23 – Essa entrada de água danificou todo o sistema de ar condicionado. 24 – Para reparar o sistema de ar condicionado será necessário gastar a quantia de cerca de € 2.000,00. 25 – O local esteve com aspecto deteriorado durante cerca de um mês, após o que outra via não restou à autora senão proceder a uma limpeza, retirando do chão as partes do teto que haviam caído. 26 – A autora pretendia trespassar e/ou arrendar o estabelecimento ficou privada de exibir o estabelecimento a potenciais interessados durante cerca de um mês. B) O DIREITO Da impugnação da matéria de facto. Como resulta do art. 712º, nº 1, al. a), do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa (os pontos impugnados pelo recorrente) ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 685º-B, a decisão com base neles proferida. Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto – prova documental e depoimentos testemunhais, registados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal a quo. Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode-se dizer que a recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo nº 1 do art. 685º-B do CPC, já que: - indicou os concretos pontos da materialidade fáctica que considera incorrectamente julgados, com referência ao que foi decidido na sentença recorrida (que fixou também a matéria de facto provada). - referiu os concretos meios de prova que, na sua óptica, impunham decisão diversa, ou seja, os depoimentos das testemunhas nos quais o tribunal a quo alicerçou a sua convicção, os quais transcrevem em parte. - indicou, como impõe o art. 522º-C, nº 2, do CPC, as passagens da gravação em que se funda, referindo os minutos da gravação, o que permite a este Tribunal ad quem identificar, de forma fácil e segura, os depoimentos visados, transcrevendo mesmo partes dos mesmos. No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorrecta avaliação da prova testemunhal cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo art. 712º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, reapreciar, não apenas se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os restantes elementos constantes dos autos revelam[2], mas, também, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto[3]. Presente deve ter-se, outrossim, que o sistema legal, tal como está consagrado, com recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, não assegura a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa, sofrendo a apreciação da matéria de facto pela Relação, naturalmente, a limitação que a inexistência da imediação de forma necessária acarreta. Feitas estas breves considerações, e após termos ouvido integralmente os depoimentos de todas as testemunhas inquirida no decurso da audiência de julgamento, vejamos então a factualidade posta em causa pela ré/recorrente – factos elencados sob os pontos 7, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 15, 22, 23, 24, 25 e 26 dos factos provados supra -, e o que se afere dos meios de prova que na 1ª instância estiveram na base da decisão de facto proferida. Começa a recorrente por se insurgir contra a factualidade dada como provada sob o ponto 7 do elenco dos factos provados, ou seja, que «o estabelecimento “ B…” é uma sucursal de uma outra loja aberta ao público na cidade espanhola de Vigo e comercializa artigos têxteis e decoração interior num segmento de mercado elevado, sendo conhecida por ser uma loja de referência, com artigos exclusivos, direccionada para um público com elevado poder de compra». Não tem, porém, razão, sendo de todo incompreensível a impugnação deste facto pela recorrente. Na verdade, a matéria em causa foi alegada pela autora no artigo 7º da petição inicial, sendo que no início da audiência de julgamento, os ilustres mandatários das partes disseram que acordavam “em dar como assentes os artigos 1º a 7º da petição inicial”, expurgando apenas do artigo 4º a expressão “vende artigos de decoração (cfr. a acta de fls. 268). Resulta, assim, incompreensível que a ré/recorrente venha pôr em causa matéria de facto relativamente à qual deu o seu assentimento, o que só pode atribuir-se a um qualquer lapso. Quanto à matéria dos pontos 8, 9, 11, 12, 13, 14 e 15 do elenco dos factos provados, também colocada em crise pela recorrente, refere-se a mesma à ocorrência da inundação e à origem desta. Adiantamos, desde já, que nenhuma censura nos merece a decisão sobre a matéria de facto em causa, o que resulta de uma apreciação crítica, conjugada e concatenada da prova testemunhal e documental produzida. Assim, há que destacar, desde logo, o depoimento da testemunha Francisco …, administrador do condomínio do prédio onde se situam as fracções em causa à data dos factos, que teve uma participação activa e directa no apuramento dos factos em discussão, tendo constatado no local que a água saía por baixo da porta de entrada da fracção da ré, o que o levou a desligado o contador da água e a contactar a responsável pelos assuntos relacionados com a fracção da ré, uma senhora espanhola de uma agência imobiliária sediada em Espanha, tendo igualmente constatado alguns dias depois, quando a dita senhora se deslocou a Portugal e permitiu o acesso ao interior da fracção da ré, a existência de vestígios de água na sanita da casa de banho de serviço que situa junto ao hall de entrada, que denunciavam ter sido dali que tinha saído a água que veio a infiltrar-se e a produzir os estragos mencionados no relatório pericial de fls. 66 e seguintes do apenso de produção antecipada de prova. Também a testemunha Vítor …, comerciante, que tem uma loja no mesmo edifício, constatou pessoalmente a existência de uma mancha de água que vinha da porta da fracção da ré, tendo entrado no apartamento da ré aquando da deslocação da já referida senhora da agência imobiliária espanhola, na companhia da testemunha Francisco …, onde pôde constatar, tal como aquela testemunha, a existência de vestígios de água na casa de banho junto ao hall de entrada, precisamente no local situado entre o autoclismo e a sanita, por onde se deu a fuga da água. Tais depoimentos merecem-nos, à semelhança da Mm.ª Juíza a quo, inteira credibilidade em função da forma clara e objectiva como depuseram as testemunhas, e encontram suporte na prova documental, nomeadamente nas fotografias de fls. 266 e 267, com as quais, aliás, as testemunhas foram confrontadas, tendo confirmado o respectivo teor. Esses mesmos depoimentos não foram de modo algum infirmados pelo relatório pericial e esclarecimentos prestados pelo senhor perito, o qual, obviamente, não podia ao fim de um ano e cinco meses atestar a origem da infiltração – segundo referiu o perito, o mesmo deslocou-se pela primeira vez à fracção da ré em Dezembro de 2007 -, nem tão pouco pelos depoimentos das testemunhas Manuel …, amigo e parente afastado do Dr. Jorge, administrador da ré, com quem alegadamente se terá deslocado ao local ainda no mês de Julho de 2006, no que não convenceu minimamente, desde logo porque a ter ocorrido tal visita à fracção da ré, não se compreende que não tenha sido contactado o administrador do condomínio - a testemunha Francisco -, e Domingos …, construtor do prédio onde se situam as fracções, que referiu ter-se deslocado à fracção da ré mais de um mês depois do sucedido, a pedido do Dr. Jorge, que é o contabilista da testemunha. Mais estranhas se afiguram tais deslocações, quando é certo que ninguém da ré se dignou comparecer no dia 14 de Setembro de 2006 à peritagem agendada para aquela data e que levou a companhia de seguros, para quem a administração do condomínio tinha transferido a responsabilidade civil por eventos dos da natureza dos autos, a não assumir qualquer responsabilidade, como resulta da carta enviada por aquela administração à ré, datada de 25 de Setembro de 2006 (cfr. fls. 28 e 159). Também a eventual inexistência de contrato de fornecimento de água celebrado entre a recorrente o Município de Valença para a fracção “”CC” da ré, o que, contrariamente ao proclamado pela recorrente, não está sequer documentado nos autos[4], nunca poderia infirmar os depoimentos das testemunhas Francisco e Vítor que presenciaram directamente os factos, isto independentemente de ser a vizinha do lado que estaria a pagar o respectivo abastecimento por erro dos serviços camarários, como explicou a testemunha Francisco, pois de outro modo não se compreenderia que as referidas testemunhas vissem a água a sair por baixo da porta de entrada da fracção da ré, o que só cessou quando a testemunha Francisco desligou o passador onde se encontrava o contador da água correspondente à fracção da autora e situado no exterior da fracção, como atesta a primeira fotografia de fls. 265[5]. Vejamos agora os pontos da matéria de facto relativos aos danos sofridos pela autora aqui postos em causa pela recorrente (22, 23, 24, 25 e 26). Quanto a esta matéria pensamos assistir, em parte, razão à ré. Assim, quanto aos pontos 22, 23 e 24, referentes aos danos causados pela inundação no ar condicionado instalado no tecto, não custaria muito admitir a existência de tais danos. Porém, verificamos que sobre esta matéria apenas depôs a testemunha Francisco, que se limitou a referir ter solicitado a uma empresa denominada “…” que fosse avaliar os estragos no ar condicionado, a pedido da gerente da autora. Certo é, porém, que nenhum orçamento ou factura foi junta aos autos, sendo tal matéria completamente omissa do relatório pericial, o que não pode deixar de causar estranheza, pelo que ficam as maiores dúvidas sobre a existência de qualquer dano no ar condicionado da autora, ainda para mais num valor de reparação de € 2.000,00 euros, montante referido pela dita testemunha, sem grande convicção, diga-se. Entendemos, por isso, que a autora não fez prova suficiente da existência de danos no ar condicionado, pelo que haverá que retirar do elenco dos factos provados os pontos 22, 23 e 24. Já quanto à matéria relativa à não utilização da fracção, pensamos que não tem razão a recorrente, pois o facto da loja se encontrar encerrada há um ano, como afirmou a testemunha Francisco, isso sucedia apenas porque a autora ainda não tinha conseguido arrendar a mesma, sendo certo que houve duas pessoas interessadas, como referiu a mesma testemunha, não havendo dúvidas que a fracção da autora esteve com aspecto deteriorado durante pelo menos o mês que se seguiu à inundação, antes de proceder à sua limpeza, como também relatou a testemunha Francisco. Devem, por isso, manter-se os pontos 25 e 26 do elenco dos factos provados, com uma nova numeração, resultante da eliminação dos pontos 22 a 24. MATÉRIA DE FACTO FINALMENTE FIXADA POR ESTA RELAÇÃO Uma vez parcialmente alterada por esta Relação a decisão sobre a matéria de facto proferida em 1ª instância, no que tange aos quesitos acima referidos, os factos finalmente julgados provados são os seguintes: 1- A autora é dona e legítima proprietária de dois imóveis, a saber: • fracção autónoma designada pela letra “ R “, correspondente às loja 15, situada no rés-do-chão e primeiro andar; • fração autónoma designada pela letra “ BC ”, correspondente à loja 47, situada no 1º andar. 2 - Estas duas fracções autónomas fazem parte do prédio urbano sito na Avenida …, conhecido por Edifício …, na freguesia e concelho de Valença, descrito na Conservatória do registo Predial de Valença sob o n.º …. 3 – Trata-se de um edifício em que o rés-do-chão e primeiro andar correspondem a uma área comercial, e do segundo andar para cima a ocupação é exclusivamente habitacional. 4 – Nas duas fracções autónomas da autora, que se encontram unidas, encontra-se instalado um estabelecimento comercial que gira comercialmente sob a designação de “ Brezo“. 5 – A ré é dona e legítima proprietária da fracção “CC”, sita no mesmo prédio, correspondente a um apartamento localizado no segundo andar do prédio. 6 – Esta fracção situa-se no andar imediatamente por cima das fracções identificadas no artigo 1º. 7 – O estabelecimento “ B…” é uma sucursal de uma outra loja aberta ao público na cidade espanhola de Vigo e comercializa artigos têxteis e decoração interior num segmento de mercado elevado, sendo conhecida por ser uma loja de referência, com artigos exclusivos, direccionada para um público com elevado poder de compra. 8 – No dia 14 de Julho de 2006, pelas 22.30 horas ocorreu uma inundação dentro do estabelecimento “B…”. 9 – Com efeito, àquela hora, várias pessoas avistaram, através da montra do estabelecimento, água a correr pela escadaria existente no interior. 10 – Essa água corria continuamente, desde o teto do estabelecimento para o chão. 11 – Na garagem localizada debaixo das duas fracções onde se encontra instalado o estabelecimento comercial, jorrava para o chão e, infiltrada, descia do teto da garagem. 12 – Nessa altura tentou-se localizar a origem da inundação, e dirigindo-se ao 2º andar do bloco B, verificou-se que saía água pela porta do apartamento “ 2 A “, correspondente à fracção de que a ré é proprietária. 13 – Uma vez que esse apartamento se encontra desabitado, não sendo possível o acesso ao seu interior, nessa altura, foi desligado o passador, onde se encontrava o contador da água desse mesmo apartamento. 14 – Imediatamente, verificou-se que a água deixou de correr, o que estancou a inundação. 15 – Após a entrada no apartamento da ré, dias após a ocorrência do sinistro, foi constatado pela administração de condomínio, que a ocorrência da inundação teve origem na casa de banho da fração da ré, concretamente uma fuga de água existente entre o autoclismo do reservatório duma sanita e a entrada da abertura superior da mesma sanita. 16 – A inundação ocorrida causou vários danos dentro das fracções da autora, designadamente a destruição do teto falso que lá existia e que, devido à água, acabou por ruir. 17 – A ré recusou-se a assumir a responsabilidade pela ocorrência do sinistro. 18 – Recusando-se a indemnizar a autora pelos danos sofridos. 19 – Os danos sofridos pela autora prendem-se com a queda de parte do teto em pladour, a deterioração da pintura da parede adjacente ao teto danificado e a luminária situada na área do teto danificado. 20 - Para reparar esses danos será necessário efectuar obras, removendo e reparando a luminária danificada, colocando novas placas de pladour nas áreas removidas, colocar luminária e efectuar pintura do teto na área substituída e na parede adjacente ao teto substituído. 21 – Para efectuar as obras a que se alude no item anterior será necessário gastar a quantia de € 1.506,00. 22 – O local esteve com aspecto deteriorado durante cerca de um mês, após o que outra via não restou à autora senão proceder a uma limpeza, retirando do chão as partes do teto que haviam caído. 23 – A autora pretendia trespassar e/ou arrendar o estabelecimento ficou privada de exibir o estabelecimento a potenciais interessados durante cerca de um mês. Da responsabilidade da ré/recorrente. Arredada a pretensão da recorrente de ver alterada a matéria de facto relativamente ao nexo de causalidade entre os danos ocorridos no estabelecimento da autora e a inundação com origem na fracção da recorrente, ainda assim, entende a recorrente que se encontra afastada a culpa presumida prevista no art. 493º do Código Civil, pois não existindo qualquer contrato de fornecimento de água para o local, a obrigação de vigilância que recai sobre o proprietário da coisa não pode ser levado tão longe no caso concreto, quando não há qualquer contador de água requisitado pela recorrente, pelo que a haver água dentro do seu apartamento, tal apenas pode ser imputado a um acto de terceiro, o que determina o afastamento da sua responsabilidade pelo risco, não sendo exigível que verifique a miúdo se alguém, sem mais nem menos, anda a colocar contadores em nome de terceiros ligados aos seus imóveis, sem que sejam requisitados, sem o seu conhecimento e consentimento. Ora, para além de não estar provado nos autos que no momento da inundação inexistisse qualquer contrato de fornecimento de água à fracção da ré, o que por si só afasta toda a retórica argumentativa da recorrente, ainda que tal prova tivesse sido carreada para os autos não resultava excluída a responsabilidade da ré. O artigo 493º, nº 1, do Código Civil quando prescreve que “ quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel com o dever de a vigiar e bem assim quem tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua” está a responsabilizar quem tem a vigilância de coisa imóvel, no caso a vigilância do estado e das condições de um apartamento. Assim, «(…), se de uma fracção, designadamente do seu interior, provém água, cabe ao respectivo proprietário responder pelos danos decorrentes da inundação ou infiltrações provocados nos pisos ou apartamentos inferiores visto que, feita a prova de que a água provém de uma fracção, e localizadamente do seu interior, isso significa que nessa fracção e no seu interior teve origem, estando apenas indeterminado o que levou à inundação, mas não estando indeterminado o local de origem da inundação. (…). A lei admite que a presunção de culpa que incide sobre quem tem o dever de vigilância seja ilidida: uma coisa é a ilisão quanto à culpa, outra a prova de que o dano não teve origem na coisa sob vigilância. Ali há uma excepção, aqui, mais rigorosamente, uma contraprova, pois compete ao autor o ónus de provar (artigo 342.º/1 do Código Civil) que o facto danoso ocorreu ou foi causado pela coisa sob vigilância.»[6] Assim, conseguindo a autora/lesada provar que as águas infiltradas na sua fracção tiveram a sua origem, proveniência ou causa no interior do imóvel da ré, a autora produziu a prova necessária e suficiente para ser imputada a esta última a responsabilidade pelos danos causados, não sendo exigível que provassem a causa, rectius, a sub-causa que em concreto originou o escorrimento das águas, porventura uma ruptura de canalização, porventura uma possível torneira deixada aberta. O proprietário tem o dever de vigiar o estado de conservação do imóvel que é sua propriedade de sorte a impedir que nele se ocasionem focos danosos[7]. Não é atendível o argumento de que o dever de vigilância não pode ser exercido sobre as canalizações pelo facto de não haver um contrato de fornecimento de água, o que, repete-se, não está demonstrado, ou que a ré não tem residência no apartamento, nem próximo. Aliás, como refere a própria recorrente, «a apelante sempre cumpriu pronta e integralmente com todas as suas responsabilidades inerentes à fracção “CC” (apartamento), pagando os respectivos impostos e as correspondentes despesas cobradas pela Administração de Condomínio, além disso, tal como resultou dos depoimentos das testemunhas, uma senhora que trabalhava num imobiliária, tinha, à época dos factos, a chave do dito apartamento, a fim de o mostrar para arrendar ou vender, assim, alguém entrava e saía do apartamento com a frequência normal da actividade imobiliária, o que se compreende em, pelo menos, uma ou duas visitas por mês» (conclusão “KK”). Mas se assim é, então não podia a ré desconhecer que havia fornecimento de água para a sua fracção, independentemente da existência ou não de contrato, pois não é concebível que a referida senhora nas deslocações que fazia ao apartamento não se apercebesse que havia aí água disponível, o que obrigava a ré a ter os cuidados inerentes, não custando sequer admitir que tenha sido numa dessas visitas e nalguma descarga do autoclismo que a situação se tenha despoletado. Dos danos. Assente, pois, a culpa presumida da ré, nos termos do art. 493º, nº 1, do Código Civil, vejamos quais os danos indemnizáveis. Em primeiro lugar, temos os danos verificados na fracção da autora decorrentes da inundação e enunciados no relatório pericial, cujas obras de reparação importam em € 1.506,00. A indemnização pela reparação do ar condicionado, no montante de € 2.000,00, considerada na sentença, não pode subsistir por força da alteração da matéria de facto acima operada. Resta-nos, por último, o dano da privação do uso do imóvel, que na sentença recorrida se fixou em € 500,00. A privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem, nos termos genericamente consentidos pelo art. 1305º do Código Civil. A privação do uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano correspondente a essa realidade de facto[8]. Tal privação «só constitui um dano indemnizável se o dono (ou possuidor) alegar e provar a frustração de um proprietário real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria não fora a ocupação – detenção pelo lesante.»[9]. No caso concreto não se trata, como é bom de ver, de nenhuma ocupação, mas provou-se que a loja da autora esteve com aspecto deteriorado durante cerca de um mês, até que fossem retiradas do chão as partes do teto que haviam caído. Mais se provou que a autora pretendia trespassar e/ou arrendar o estabelecimento e que devido à situação anteriormente referida, ficou privada de exibir o estabelecimento a potenciais interessados durante cerca de um mês. Não logrou a autora provar o valor locativo de € 2.000,00. Pensamos que a factualidade descrita permite concluir que a autora alegou e provou o tal propósito de utilização imediata – por arrendamento/trespasse – frustrado pela situação decorrente da inundação ocorrida na sua fracção. Deste modo entendemos que se justifica uma indemnização pela privação do uso no mês em que a autora esteve impedida de mostrar o estabelecimento a potenciais interessados. E entendemos também que o cálculo da correspondente indemnização, tal como se decidiu na sentença recorrida, há-de ser efectuado com base na equidade, por não ser possível avaliar “o valor exacto dos danos” (nº 3 do artigo 566º do Código Civil). Tendo em conta a concreta individualidade do caso concreto, nomeadamente o tipo de imóvel em causa, destinado à actividade comercial, e o espaço temporal em que a autora esteve privada do uso do seu estabelecimento (1 mês), afigura-se justa e equitativa a indemnização de € 500,00 fixada na sentença, que neste particular não merece qualquer censura. Sumário (art. 713º, nº 7, do CPC) I – Provando a autora que as águas que inundaram e danificaram o seu estabelecimento provieram do interior do apartamento da ré, mostra-se preenchido o ónus da prova (art. 342.º do CC) de que o facto danoso teve origem na coisa sob vigilância da ré (art. 493.º, n.º 1, do CC), não lhe cumprindo provar ainda a sub-causa da inundação (uma torneira deixada a correr por mera incúria ou distracção, uma eventual ruptura da canalização, etc.). II – O proprietário que tenha o imóvel em seu poder tem o dever de vigiar o seu estado de conservação e responde pelos danos originados no imóvel salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa (art. 493.º, n.º 1, do CC). III – Não logra fazer essa prova o proprietário que demonstra, sem mais, não estar em vigor um contrato de fornecimento de água para o imóvel. IV – A privação do uso só constitui um dano indemnizável se o dono (ou possuidor) alegar e provar a frustração de um proprietário real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria não fora a inundação ocorrida. V - O cálculo da correspondente indemnização, não sendo possível avaliar o exacto valor dos danos, há-de ser efectuado com base na equidade (art. 566.º, n.º 3, do CC). IV – DECISÃO Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar parcialmente procedente a apelação e, nessa conformidade, revogar, em parte, a sentença recorrida e condenar a ré a pagar à autora a quantia de € 2.006,00 (dois mil e seis euros), acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento. Custas pela autora e ré, na proporção do decaimento. Guimarães, 11 de Julho de 2013 Manuel Bargado Helena Gomes de Melo Rita Romeira ________________________________ [1] Mantém-se a sequência dos factos constantes da sentença. [2] Nesta concepção, a divergência quanto ao decidido pelo tribunal a quo na fixação da matéria de facto só assumirá relevância no Tribunal da Relação se for demonstrada, pelos meios de prova indicados pelo recorrente, a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório. [3] A jurisprudência tem vindo a evoluir no sentido de se firmar um entendimento mais abrangente no que se refere aos poderes de alteração da matéria de facto pela Relação, considerando-os com a mesma amplitude que a dos tribunais de 1ª instância. Nessa medida, e no que se refere à questão da convicção, já não estará em causa cingir apenas a sua actividade de apreciação ao apuramento da razoabilidade da convicção do julgador da 1ª instância, mas antes formar a sua própria convicção nos elementos probatórios disponíveis nos autos (cfr., inter alia, o Acórdão do STJ de 16.12.2010, proc. 2401/06.1TBLLE.E1.S1, in www.dgsi.pt). [4] Na verdade, não foi junta ao processo a certidão emitida pela Câmara Municipal a que alude a recorrente no ponto 21 do corpo alegatório. [5] Na segunda fotografia de fls. 265 é já visível a remoção do contador da água, o que, porém, só ocorreu depois dos factos em discussão e após os serviços camarários terem sido informados da situação, como bem explicou a testemunha Francisco Romeu. [6] Ac. do STJ de 14.09.2010 (Salazar Casanova), proc. 403/2001.P1.S1, in www.dgsi.pt. [7] Neste sentido, o Ac. do STJ de 14.09.2010 citado na nota anterior, onde se convocam, a propósito, os Acs. do STJ 31.01.2002 (Moitinho de Almeida), revista n.º 4050/01 - 2ª secção, de 24.05.2005 (Barros Caldeira), revista n.º 4695/04 -1ª secção, de 7.12.2005 (Lucas Coelho), proc. 2154/2005 e de 11.07.2006 (Fernandes Magalhães), revista n.º 1780/06 - 6ª secção, referindo-se neste último que o lesado não tem de provar sub-causas. [8] Cfr. o Ac. do STJ de 22.01.2013 (Nuno Cameira), proc. 3313/09.2TBOER.L1.S1, in www.dgsi.pt. [9] Cfr. o Ac. do STJ de 17.06.2008 (Sebastião Povoas), proc. 08A1700, in www.dgsi. No mesmo sentido, o recente Ac. do STJ de 04.07.2013 (Pereira da Silva), proc. 5031/07.7TVLSB.L1.S1, cujo sumário se encontra disponível no mesmo sítio. |