Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE | ||
| Descritores: | TÍTULO EXECUTIVO INEXEQUIBILIDADE MÁ FÉ VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO DECISÃO SURPRESA NULIDADE DA SENTENÇA | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 02/06/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE/PROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I - Estamos perante uma situação de inexequibilidade extrínseca quando a prestação cuja realização coactiva se pretende, não consta do título executivo ou, dito de outra forma, o título não incorpora, não demonstra, não certifica o direito à prestação cuja realização coactiva se pretende II - Constando do título executivo/sentença que a executada deve proceder à substituição de dada prótese e adquirir uma outra e entregá-la à exequente, esta não pode, por si, proceder à substituição e aquisição referidas e, com base naquele título, intentar acção executiva para pagamento das quantias em dinheiro despendidas em tal substituição e aquisição, porque o titulo executivo não incorpora o direito a tal prestação. III - Como decorre do n.º 1 do art.º 542º do CPC, a litigância de má fé é de conhecimento oficioso. IV - O único aspecto em que nesse âmbito se aplica o principio do dispositivo é o da condenação numa indemnização à parte contrária, que depende de pedido da mesma. V - Apesar de ser matéria de conhecimento oficioso, isso não significa que o tribunal possa tomar conhecimento da mesma sem as partes serem confrontadas com essa eventualidade, por a tal se opor a necessidade de ser assegurada uma tutela jurisdicional efectiva, princípio contido no art.º 20º da CRPortuguesa, o qual implica a efectividade do direito de defesa no processo e, deste modo, do cabal cumprimento do princípio do contraditório. VI - Para que se possa considerar cumprido tal principio impõe-se que o juiz concretize e densifique adequadamente (o que, naturalmente, só caso a caso é identificável) os contornos de facto e de direito da questão que pretende conhecer. VII - Se pretender conhecer da mesma questão com fundamentos diferentes dos antes comunicados, deverá ser dado novo cumprimento ao contraditório. | ||
| Decisão Texto Integral: | Tribunal de origem: J ... do Juízo de Execução de Guimarães - Tribunal Judicial da Comarca de Braga Recorrente AA Recorrido EMP01... - Companhia de Seguros, S.A. * ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES1. Relatório AA intentou acção executiva, nos próprios autos, tendo por título executivo sentença condenatória, para pagamento da quantia de € 11.877,83, contra EMP01... – Companhia de Seguros, SA. Alegou para tanto que por Acórdão desta RG, que confirmou a sentença já transitada em julgado, foi a executada condenada nos termos que refere; não obstante tal decisão já ter transitado há muito, a executada nunca cumpriu, a não ser por força das posições assumidas pela exequente, nomeadamente no processo de execução nº 1092/22....; a executada foi condenada no pagamento da prótese que indica, adquirida pela exequente, pelo facto de a mesmo ter ultrapassado o cronograma definido pela sentença; a última substituição de tal prótese remonta a 03 de março de 2020, o que significa que já foi ultrapassado o cronograma definido nos pontos 59), alínea e) e 60) dos factos provados na sentença referida; a exequente, por diversas vezes, instou a executada para proceder à entrega da referida prótese, o que a mesma nunca fez, nem se presume que o venha a fazer; a exequente mediante a determinação de um técnico, procedeu à aquisição da mesma, o que teve o custo de € 8.167,41; a executada nunca entregou à exequente outra prótese que indica, referida no ponto 57) da sentença; a executada foi, por diversas vezes, instada a proceder à entrega da referida prótese, o que nunca fez; em face disso e de acordo com o relatório técnico “superveniente”, a exequente procedeu à sua aquisição, o que teve o custo de € 3.710,42. Após penhora do saldo bancário de uma conta da executada, foi a mesma notificada, tendo deduzido embargos de executado em que, no que à economia do recurso releva, invocou que a exequente intentou acção executiva contra a embargante sob o n.º 1092/22....; no âmbito do referido processo e à semelhança do que ocorre nos presentes autos, deu como título executivo a sentença condenatória proferida no processo nº4547/15.6T8GMR; para além de pedir o reembolso do valor despendido com a prótese por si adquirida e após a executada ter liquidado o valor correspondente, pretendia o prosseguimento dos autos com a execução dos “danos futuros”, ao que o tribunal não acedeu, decisão que foi confirmada por Ac. desta RG de 07/06/2023; naquela decisão foi determinado que a exequente só pode exigir as substituições de equipamento à executada quando determinado por técnico e dentro do cronograma definido; tal decisão incidiu sobre os “danos futuros”; mas tal decisão demonstra que também a aquisição e entrega de equipamentos pela executada à exequente se encontra dependente de apresentação de um parecer técnico; a exequente juntou Relatório técnico apenas aquando do incidente de liquidação no âmbito do processo nº4547/15.6T8GMR, correspondente à necessidade de aquisição da prótese cuja factura foi junta no processo 1092/22.... e daí que a executada liquidou o respectivo valor. Relativamente à execução de que os presentes são apenso, refere que a alínea b) da sentença que constitui título executivo deve ser interpretada no sentido de que também a aquisição e a entrega de equipamentos devem ser justificadas por um parecer técnico e dentro do cronograma definido; a exequente nunca interpelou a executada para fornecer equipamentos mediante a apresentação de qualquer parecer técnico como era pressuposto; a exequente, por sua própria decisão, antecipou-se em adquirir equipamentos por preços praticados fora da realidade do mercado; a exequente não foi condenada a reembolsar a exequente das despesas em que a mesma entenda incorrer. Por despacho de 09/10/2023 os embargos foram admitidos liminarmente e ordenada a notificação da exequente para contestar. Entretanto, nos autos de execução, a 12/10/2023 foi proferido despacho que considerou que a forma de processo era a ordinária por estar em causa execução de decisão judicial em que a obrigação está dependente de condição (art.º 550º, n.º 3 do CPC) e em função disso determinou: a) a correção da forma de processo, passando a ser ordinária; b) a anulação de todos os actos praticados após a entrada do requerimento executivo, nomeadamente penhoras e citação. E, além disso, determinou: Neste momento não podemos deixar de assinalar que a exequente, sabendo bem dos termos em que tinha de intentar a execução – pois que se fez munir do parecer técnico referido na sentença proferida no processo nº 1092/22...., não se coibiu de intentar a acção sob a forma de processo sumário o que, conforme acima exposto, causa inegáveis danos à executada, atenta a realização das penhoras.— Tal pode configurar, no nosso entender, uma actuação de má fé, passível de ser apreciada nos termos do art. 542º do Cód. Proc. Civil.— Assim, notifique a exequente para, querendo e em 10 dias, esclarecer o que tiver por conveniente.— A 16/10/2023 e ainda nos autos de execução pronunciou-se a exequente dizendo que a execução deveria ter sido intentada como ordinária e não como sumária, o que ocorreu em resultado da execução anterior, que tendo sido apresentada sem o relatório médico, seguiu a forma sumária; em momento algum houve intenção de lesar a executada [certamente por lapso diz-se exequente], a exequente nenhum benefício retira do facto de o processo seguir a forma sumária ou ordinária; não se afigura que tenha ocorrido algum prejuízo para a executada, que podia evitar as execuções assumindo o que decorre da sentença dada à execução. A executada também se pronunciou dizendo que a exequente foi notificada da sentença proferida no processo nº1092/22...., que decidiu que a execução dependia da junção de parecer técnico; a exequente nunca apresentou à executada qualquer pedido de entrega de equipamentos, acompanhado de parecer técnico; a exequente de forma, senão dolosa, negligente, executou uma decisão cuja interpretação foi discutida no âmbito do processo no qual foi parte, quanto às condições para a mesma ser constituída num titulo executivo e mesmo assim deduziu a sua pretensão sob a forma sumária, o que não podia ignorar, omitindo o dever de cooperação, devendo o seu comportamento ser integrado no n.º 2 do art.º 542º do CPC; para efeitos de apreciação da conduta da exequente na tramitação do litígio ainda em outros processos, no âmbito do incidente de liquidação do processo nº4547/15.6T8GMR as partes chegaram a acordo quanto ao valor da indemnização para efeitos de readaptação da moradia, no valor que indica e que pagou; contudo, passado mais de um ano desde tal acordo, a adaptação não foi realizada; em Fevereiro de 2022 a exequente intentou execução no valor de € 8.836,08, que a executada liquidou para ser levantada a penhora; a exequente requereu o prosseguimento da execução com posterior pedido de conversão da execução no valor que indica, a que o tribunal não acedeu por entender que inexistia ou era insuficiente o título executivo; a executada tem novamente a sua conta penhorada, o que para uma seguradora, que tem de pagar em dia despesas de vária ordem, consubstancia um prejuízo significativo; requer que a exequente ser condenada no pagamento de uma indemnização a favor da executada no montante que vier a ser fixado pelo tribunal. A 30/10/2023 a exequente apresentou contestação aos embargos de executado dizendo que não obstante a penhora do saldo da conta bancária, foi determinada a anulação de todos os actos praticados após a entrada do requerimento executivo, nomeadamente penhoras e citação; a posição da embargante tem como único propósito prejudicar a embargada, continuando a furtar-se ao pagamento do peticionado no requerimento executivo; havia necessidade de trocar a Prótese Transtibial com interface em silicone atendendo ao parecer técnico e ao cronograma temporal e nunca foi entregue à embargada a Prótese Transtibial Aquática; a embargante faz uma interpretação tendenciosa da alínea b) da sentença dada à execução; a embargante litiga com o intuito de não cumprir com as suas obrigações, pelo que litiga de má fé, devendo ser condenada em multa e indemnização a favor da embargada. Foi designada data para tentativa de conciliação, a qual teve lugar, tendo sido requerido e deferido um prazo para as partes chegarem a acordo. Nada tendo sido dito pelas partes, foi proferido saneador-sentença cujo decisório tem o seguinte teor: Pelo exposto, decide-se:-- - julgar procedentes os embargos de executado e determinar, em consequência, a extinção da execução:--- - julgar improcedente o pedido de condenação da executada/embargante como litigante de má-fé;-- - condenar a exequente como litigante de má-fé, em multa que se fixa em 5 (cinco) UCs e em indemnização, que se fixa em €: 1000 (mil euros).---- Custas a cargo da exequente/embargada - art. 527º do Cód. Proc .Civil – sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.--- A exequente/embargada interpôs recurso, pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição “por outra” que julgue os embargos improcedentes [certamente por lapso, em função do que consta das alegações, diz-se “procedentes por provados”] e absolva a recorrente da condenação como litigante de má fé, tendo concluído nos seguintes termos: A) A recorrida não fornece voluntariamente os artigos que foi condenada a entregar à recorrida, nem nos períodos de tempo que se encontram definidos na sentença dada à execução, nem em qualquer outro período temporal; B) A recorrente cumpriu os prazos definidos na Douta Sentença dada à execução e a condição de se munir de relatório técnico; C) No que respeita à prótese transtibial de banho (aquática), nunca a recorrida entregou qualquer prótese deste tipo à recorrente, pelo que foi a primeira vez que a mesma, munida de relatório técnico apresentou à recorrida fatura para recebimento do montante correspondente; D) No que respeita à prótese transtibial endoesquelética, os prazos para a sua substituição já decorreram, razão pela qual, e tendo em conta que de forma igual a recorrente se muniu do relatório técnico, incumbia à recorrida proceder à entrega ou pagamento dos equipamentos, em causa; E) Decorridos mais de três anos, sobre o trânsito em julgado da sentença dada à execução, a recorrida não a cumpre e nem se preocupa com a situação vulnerável em que se encontra a recorrente; F) Diversos equipamentos ainda não foram fornecidos à recorrente, como os constantes dos pontos 54), alíneas a) a d) e 58) da sentença dada à execução; G) O Tribunal “a quo” mistura outros processos, com o presente, transmitindo a ideia de qua a recorrida atua indevidamente; H) Munida que está a recorrente de relatório técnico e estando, como está dentro do cronograma definido na douta sentença dada à execução, nada a pode impedir de adquirir os novos equipamentos; I) Tratando-se, como se trata de próteses, é do senso comum perceber-se que nem todas as próteses respondem às necessidade da recorrente; J) A aquisição de próteses, não pode ser colocada no mesmo plano da aquisição de uma cadeira de rodas, ou de uma scooter; as próteses têm claramente que se adequar ao paciente concreto, neste caso à recorrente; K) A única coisa que se entende ser razoável ter em conta e em defesa da posição da recorrida, é que esta demonstrasse que o montante que lhe está a ser pedido é superior àquele que ela pagaria; L) A recorrida não apresenta o valor que teria pago se tivesse procedido ela própria à aquisição daquele equipamento em concreto, pelo que se tem que considerar como adequado o valor apresentado pela recorrente e que se encontra sustentado nas faturas que lhe foram emitidas; M) A recorrente em momento algum litigou de má fé; N) A recorrida na sua oposição não faz nenhum pedido de condenação da recorrente como litigante de má fé; O) A decisão relativamente à litigância de má fé, é exclusivamente oficiosa; P) Nos termos que resultam do douto despacho proferido em 12/10/2023, que se reporta exclusivamente à forma de processo utilizada, a recorrente nunca podia litigar de má fé, mas sim o seu mandatário; Q) Nada mais apontou o Tribunal “a quo” à recorrente, razão pela qual apenas exerceu o principio do contraditório quanto à forma de processo que utilizou; R) A Douta Sentença recorrida, vai muito para além do que foi colocado à recorrente para que se pronunciasse, falando agora em vários processos e em uso indevido do apoio judiciário; S) Se se entender que o signatário não andou bem e que violou regras ou princípios deontológicos que estava obrigado a cumprir, deve então ser enviada participação à Ordem dos Advogados, para que o signatário possa defender-se de forma integral; T) Não se pode aceitar é que seja a recorrente a ter que assumir erros do seu mandatário, uma vez que a isso não está e nem pode ser obrigada; U) A Douta Sentença recorrida violou entre outras as normas ínsitas nos artigos 10º, 703º, nº 1, alínea a), 542º, nº 1 e 2 do C.P.C.. A embargante contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo concluído nos seguintes termos: 1. A Recorrida não encontra na sentença posta em crise qualquer violação de disposições legais citadas pela Recorrente, nomeadamente os artigos 10.º, 703.º, n.º 1, al. a) e 542, n.ºs 1 e 2 do CPC. 2. Como bem explicita a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, a sentença dada à execução não legitima a Recorrente em exigir da Recorrida que lhe entregue, quando bem entender os equipamentos, pelo contrário, a decisão é explícita quando refere que a Recorrida foi condenada a “B) a adaptar a habitação da Autora em conformidade com a solução plasmada no ponto 53) da fundamentação de facto, adquirir e entregar-lhe os equipamentos e produtos identificados nos pontos 57) e 58), bem como a proceder às substituições dos mesmos e daqueles que constam do ponto 54), sempre que determinado por técnicos, previsivelmente dentro do cronograma definido nos pontos 59) a 61). 3. A Recorrente não apresentou à Recorrida qualquer parecer ou relatório médico elaborados por técnicos que recomendassem a aquisição dos equipamentos e produtos identificados nos pontos 57) e 58), bem como a proceder às substituições dos mesmos e daqueles que constam do ponto 54), factor preponderante para que a Recorrente pudesse executar a sentença nessa parte. 4. É incompreensível que a Recorrente, mesmo após a decisão transitada em julgado do processo 1092/22...., tenha vindo novamente executar a mesma decisão com os mesmos fundamentos, ou seja, exigindo o reembolso, e não a prestação de facto, das despesas que entendeu incorrer, sem nunca ter apresentado à Recorrida qualquer parecer médico a solicitar quer a substituição, quer a aquisição de equipamentos. 5. Ao contrário do que refere a Recorrente, não tem que a Recorrida a entregar “voluntariamente” os artigos, pelo contrário, deve ser antes a Recorrente a interpelar a Recorrida, munida com parecer e dentro do cronograma pré-definido, para esta satisfazer a prestação; conforme definido na sentença condenatório proferida no âmbito do processo 4547/15.6T8GMR, tendo sido essa a interpretação dada pelo Tribunal no processo 1092/22..... 6. Quanto a litigância de má fé da Recorrente, a mesma não foi certamente apreciada, apenas, em função do erro empregado na forma de processo aquando da submissão do requerimento executivo. 7. Como referiu o tribunal, a Recorrente vem actuando de forma violadora dos princípios da verdade processual e colaboração, abusando da circunstância de beneficiar de apoio judiciário e, com essa capa, vem intentando sucessivos processos, com o mesmo fito: de obter o pagamento do preço de equipamentos, que a executada foi condenada a substituir mediante interpelação para o efeito nos termos e condições enunciadas na sentença.— 8. Nas duas decisões dos processos que antecederam a presente execução foi a exequente alertada para os limites da sentença proferida na acção declarativa, concretamente quanto ao fornecimento pela executada de equipamentos, sendo que é notório que pretende a exequente ignorar tal sentença e esses sobreditos limites.— 9. Não está em causa somente o erro na utilização da forma de processo, que sem dúvida causou prejuízos à Recorrida, mas acima de tudo, a utilização pela Recorrente dos mecanismos processuais para obter proveitos indiscriminados com pagamento de valores em espécie, a exemplo disso foi a reabilitação da habitação que não ocorreu, pelo menos no tempo estipulado. 10. Uma vez que é a Recorrente a parte interessada, e não o seu representante, deve ser a mesma condenada como litigante de má fé por fazer uso abusivo do direito na demanda, sem atentar para os prejuízos que possa causar a parte contrária. 11. Apesar da conduta da Recorrente ter sido apreciada oficiosamente, as partes foram ouvidas e a Recorrida pediu a condenação da Recorrente numa indemnização a ser fixada pelo douto tribunal face aos prejuízos que teve pelo período que esteve com contas penhoradas. 2. Questões a apreciar O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida. O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139). As questões que cumpre apreciar são: - a pretensão exequenda tem suporte na sentença condenatória proferida no processo nº4547/15.6T8GMR, confirmada por Ac. desta RG? - a recorrente não deve ser condenada como litigante de má fé? 3. Fundamentação de facto O saneador-sentença recorrido considerou: A) Estão provados, face aos articulados, acordo das partes e documentos juntos, com relevância para a decisão a proferir, os seguintes factos e dinâmica processual:---- a) Foi dada à execução a sentença proferida nos autos de acção de processo comum nº 4547/15.6T8GMR, do Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz ..., confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, junta por certidão e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;— b) A execução foi instaurada, em 31/7/2023, sob a forma sumária;-- c) No requerimento executivo alega a exequente, na parte de exposição dos factos, que:-- “1) Por douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de fls., que confirmou a douta sentença proferida a fls., já transitado em julgado em 12 de setembro de 2020, foi a executada condenada, para além do mais, no seguinte: B) “(…) a adquirir e entregar-lhe os equipamentos e produtos identificados nos pontos 57) e 58), bem como a proceder às substituições dos mesmos e daqueles que constam no ponto 54), sempre que determinado por técnicos, previsivelmente dentro do cronograma definido nos pontos 59) a 61).” 2) Dos pontos acabados de referir consta o seguinte: 54) A Autora possui como produtos de apoio fornecidos pela Ré: e) Prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono em retorno de energia (resposta ao artigo 87º da petição inicial § 16º do ponto 2) do articulado superveniente). 55) A prótese referida em 54) e) e seus componentes são adequados ao grau de atividade da Autora, mas beneficiaria com um pé que facilitasse a marcha em locais de elevada inclinação (resposta ao § 17º do ponto 2) do articulado superveniente). 56) (…) 57) A Autora necessita de uma prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático para permitir a sua autonomia na sua higiene e banho e em atividades recreativas em piscina ou na praia (resposta ao § 19º do ponto 2) do articulado superveniente). 58) Para facilitar as deslocações no exterior da habitação, designadamente, para permitir a realização de visitas à progenitora na casa desta, deslocação à igreja, assim como acompanhar as amigas em caminhadas, e em complemento da segunda solução aludida em 53), a Autora necessita de uma cadeira de rodas elétrica com comando de direção manual, tipo scooter (resposta ao § 20º do ponto 2) do articulado superveniente). 59) Os produtos identificados em 54) têm períodos expetáveis de substituição de, respetivamente: a) (…) b) (…) c) (…) d) (…) e) 6 meses para o interface, 2 meses para o revestimento cosmético e 2 anos para os restantes componentes (resposta ao artigo 87º da petição inicial, § 21º do ponto 2) do articulado superveniente). 60) O produto identificado em 57) tem período expectável de substituição de 6 meses para o interface, 2 meses para o revestimento cosmético e 2 anos para os restantes componentes (resposta ao § 21º do ponto 2) do articulado superveniente). 3) Não obstante tal decisão ter já há muito transitado em julgado, a verdade é que, até à presente data, a Ré nunca cumpriu, a não ser por força das posições assumidas pela Exequente, nomeadamente, no âmbito do requerimento executivo com a Refª ...78 e que correu termos no Juízo de Execução de Guimarães – Juiz ..., sob o processo n.º 1092/22....; 4) Nos termos do referido requerimento executivo, foi a Executada condenada no pagamento da prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono com retorno de energia, adquirida previamente pela Exequente pelo facto de o aludido equipamento ter ultrapassado o cronograma definido na Douta Sentença; 5) O certo é que, a última substituição do equipamento acima mencionado remonta a 03 de março de 2020 (Cfr. teor do doc. junto com o n. º1); 6) O que significa que foi já ultrapassado o cronograma definido no ponto 59), alínea e) e 60) dos factos provados e suprarreferidos na Douta Sentença; 7) Atendendo ao supra aludido, a Exequente, por diversas vezes, instou a Executada para proceder à entrega da prótese transtibial, contudo, a Executada nunca o fez, nem se presume que o venha a fazer; 8) Motivo pelo qual, a Exequente mediante determinação de um técnico (Cfr. teor do doc. junto com o n.º 2) procedeu à sua aquisição a expensas próprias (Cfr. teor do doc. junto com o n. º3); 9) Tal equipamento acarretou um custo total de 8.167,41€ (oito mil cento e sessenta e sete euros e quarenta e um cêntimos) para a Exequente, sendo certo que esta apenas suportou o valor parcial de 3.582,02€ (três mil quinhentos e oitenta e dois euros e dois cêntimos) em 29-11-2022 (Cfr. teor do doc. junto com o n. º3); 10) Continuando pendente o pagamento de 4.585,39€ (quatro mil quinhentos e oitenta e cinco euros e trinta e nove cêntimos); 11) O certo é que, tal equipamento deveria ter sido adquirido e entregue pela Executada à Exequente, o que não se verificou; 12) Acrescente-se que a Executada nunca efetuou a entrega à Exequente da prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático,referida no ponto 57) da Douta Sentença; 13) Pelo que, a Exequente até à data de hoje nunca teve a prótese transtibial de banho; 14) Nesta sequência, apesar de a Executada ter sido diversas vezes instada para proceder à entrega da prótese transitibial de banho, a verdade é que nunca o fez; 15) Face ao que e de acordo com o relatório técnico superveniente, a Exequente procedeu à sua aquisição; 16) Tal equipamento acarretou um custo total de 3.710,42€ (três mil setecentos e dez euros e quarenta e dois cêntimos) para a Exequente (Cfr. teor do doc. junto com o n.º4); 17) O certo é que, tal equipamento deveria também ter sido adquirido e entregue pela Executada à Exequente, o que, mais uma vez, não se verificou; 18) Em face do supra exposto, a Exequente vem requerer através da presente execução que a Executada proceda ao pagamento à Exequente do montante total de 11.877,83€ (onze mil oitocentos e setenta e sete euros e oitenta e três cêntimos) correspondente à compra da prótese transtibilal no valor de 8.167,41€ e 3.710.42€ correspondente à prótese transtibial aquática.” d) A Exequente/Embargada intentou, em 23/2/2022, ação executiva contra a Executada/Embargante que correu seus termos neste Juízo de Execução – J ... sob o n.º 1092/22..... -- e) No âmbito do referido processo, à semelhança do que ocorre nos presentes autos, a Exequente/Embargada deu como título executivo sentença condenatória dos autos de ação de processo comum nº 4547/15.6T8GMR, do Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz ..., confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães.--- f) Naqueles autos a Exequente/Embargada, para além de pedir o reembolso do valor despendido com a prótese por si adquirida, e após a Executada/Embargante ter liquidado o valor correspondente de 8.015,93€, pretendia o prosseguimento dos autos com a execução pelos “danos futuros”.--- g) Tendo sido proferida decisão, em 16/11/2022 (transitada em 22/6/2023), recusando tal pretensão, na qual se escreveu que “…Vista a sentença dada à execução constata-se que da mesma não resulta sustentada a pretensão que agora a exequente pretende ver satisfeita (de “fornecer todos os produtos de acordo com a sentença que ora se dá à execução e dentro do cronograma definido pela Douta Sentença executada, confirmada pelo Douto Acórdão da Relação de Guimarães.”) Com efeito, a sentença dada à execução condenou a exequente a "... adquirir e entregar-lhe os equipamentos e produtos identificados nos pontos 57) e 58), bem como a proceder às substituições dos mesmos e daqueles que constam do ponto 54), sempre que determinado por técnicos, previsivelmente dentro do cronograma definido nos pontos 59) a 61).” – sublinhado nosso. Quer isto dizer – como evidente é – que a exequente não pode exigir, pura e simplesmente, todos os equipamentos que seriam necessários até ao fim da sua vida, pretensão esta que formula no requerimento de conversão da execução. E não o pode porquanto a executada não foi condenada nesses termos. O que se extrai da sentença, e nomeadamente do segmento condenatório que a exequente transcreve no requerimento executivo, é que a exequente poderá exigir as substituições dos equipamentos: 1) quando determinado por técnicos e 2) dentro do cronograma definido. Assim, para poder executar a sentença na parte das substituições pretendidas e para além de ter de deixar o tempo seguir o seu curso normal, deverá a exequente fazer-se acompanhar de parecer técnico que o justifique”.— h) A decisão mencionada em i) foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 7/6/2023.-- i) A Exequente/Embargada adquiriu uma Protese Transtibial com interface em silicone, o que terá ocorrido em 13.10.2022, que terá custado 8.167,41€ e ainda uma Protese Transtibial Aquática que terá sido adquirida em 29.11.2022 e que terá custado o valor de 3.710,42€.-- j) Aquando da aquisição da Protese Transtibial Aquática já a Exequente/Embargada havia sido notificada da decisão de 1ª Instância que entendeu que a substituição de equipamentos deveria ser acompanhada de um parecer técnico para além do decurso do prazo previsto em cronograma.--- k) No seguimento de notificação para se pronunciar sobre uma eventual condenação como litigante de má fé, veio a exequente alegar, além do mais que “Tal facto ocorreu em resultado da execução anterior, que como foi apresentada sem o relatório médico seguiu a forma sumária.”-- l) A executada teve a conta bancária penhorada durante quase 2 meses, por força da precedência da penhora em relação à citação atenta a forma de processo utilizada pela exequente.— m) A exequente intentou em 21/4/2020, por apenso à acção declarativa onde se formou a sentença dada à execução, incidente de liquidação, que correu termos sob o nº 4547/15...., formulando a final a seguinte pretensão “Termos em que deve a presente liquidação ser julgada procedente por provada, declarando-se que o crédito do requerente ascende à quantia 441.519,87€, correspondente a 9.640,93€ já pagos pela Autora e 407.855,44€, a despender ao longo da sua vida e na aquisição dos serviços e produtos constantes dos pontos 34), 35), 36), 37), 44), 53), 54), 57), 58), 68), tendo em conta para a liquidação dos pontos 54) e 57) o constante dos pontos 60) e 61), todos da fundamentação de facto da referida sentença, nos termos sobreditos, acrescida dos juros à taxa legal contados desde a data da notifcação até efectivo e integral pagamento, com custas a cargo da requerida.” n) No incidente referido em m) foi, após a tramitação legalmente prevista, proferida sentença em 27/4/2021, transitada em 28/4/2022, que julgou improcedente a pretensão da exequente que visava o pagamento de equipamentos nos termos agora peticionados e que, no que aqui releva, dispôs na fundamentação de direito que:-- “No que se refere ao custo dos produtos e equipamentos e às respetivas substituições, a Ré foi condenada à sua entrega à Autora, não tendo sido essa obrigação relegada para ulterior liquidação, justamente porque a condenação não consistiu no pagamento de uma indemnização equivalente em dinheiro, mas antes na entrega de coisas àquela. Percorrendo a douta sentença proferida na ação declarativa, verifica-se que a condenação nesses termos correspondeu a uma opção judicial em face do pedido (principal) que havia sido formulado no articulado superveniente. Com efeito, segundo o que consta do relatório de fls. 449 e 449/verso (dos autos principais), nesse articulado superveniente, e na parte agora pertinente, a Autora pediu a condenação da Ré: - A adquirir e entregar-lhe uma cadeira de rodas elétrica com comando de direção manual tipo scooter para facilitar as deslocações exteriores nas proximidades da habitação, nomeadamente a transposição da rampa de acesso à cave, visitar a mãe e acompanhar as amigas nas caminhadas; - A adquirir e a entregar-lhe barra de apoio para duche e sanita, cadeira de duche, cadeira de rodas manual, canadianas, prótese transtibial com estrutura endosquelética, interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono com retorno de energia, prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética: interface em silicone e pé aquático e scooter, a substituí-los por novos nos períodos de 10, 5, 10, 1, 2, 2 e 5 anos, respetivamente ou, em alternativa, a pagar o seu custo, nos valores de € 120, € 100, € 500, € 20, € 4.000, € 2.200 e € 3.000, respetivamente, acrescido de IVA à taxa em vigor à data, dos custos com a manutenção e substituição variáveis conforme o modo de utilização e por cada período mencionado para cada equipamento/produto. Apreciando esses pedidos, na sentença, escreveu-se o seguinte: “Sabemos que a Ré forneceu à Autora produtos/equipamentos de apoio como barra de apoio para duche e sanita, cadeira de duche, cadeira de rodas manual, canadianas e prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono com retorno de energia, tendo também suportado o custo com obras de adaptação realizadas na casa de banho da habitação sita no primeiro andar da moradia e transformação de um espaço de arrumos, localizado ao nível da cave, em cozinha, sala e a casa de banho. Sucede que, além da circunstância de aqueles produtos sofrerem desgaste, implicarem manutenção, reparação e, ciclicamente, substituição de acordo com os tempos expetáveis patentes nos pontos 59) a 61) da fundamentação de facto, sendo da responsabilidade da Ré assumir tais prestações, atenta a prevalência dada pelo legislador ao princípio da restauração natural, consagrado no artigo 562º do Código Civil, existem ainda equipamentos destinados a ultrapassar alguns óbices que resultam das sequelas do acidente. Assim, provou-se que a Autora passa o dia no espaço adaptado situado na cave e dorme no primeiro piso da habitação; o acesso desde a cave até ao nível do rés-do-chão é realizado através de uma rampa íngreme e, por sua vez, desse piso para o primeiro andar existe uma escadaria com uma sequência de 3, 3 e 13 degraus, a maioria com corrimão; o membro amputado e as dificuldades associadas à deslocação com a prótese determinam perda de autonomia para a Autora e riscos para a sua segurança. Existem duas soluções alternativas para obviar a tais dificuldades: a primeira passa pela colocação de uma plataforma elevatória vertical que estabeleça o acesso direto externo entre a cave e o primeiro andar, ao passo que a segunda consiste na instalação de um assento elevatório na escadaria, solução menos completa, visto que se limita à ligação entre o rés-do-chão e primeiro andar, obrigando à complementaridade com um equipamento que vença a inclinação da rampa, também proposto para deslocações mais longas, designadamente, para permitir que a Autora visite a sua progenitora, acompanhe as amigas nas caminhadas como fazia antes do acidente e, mesmo para ir à igreja, ou seja, uma cadeira de rodas com comando de direção manual, tipo scooter. (…) No que diz respeito à scooter, não concordamos com o argumento da Ré: esse tipo de equipamento não se destina a cidadãos paraplégicos mas a todos aqueles que, devido às limitações que decorrem das deficiências de que são portadores, podem ver a sua autonomia reforçada com deslocações fora do âmbito estrito do seu lar, potenciando o convívio, a socialização, por sua iniciativa, sem esperar que venham ao seu encontro. (…) Caberá à Ré fornecer esse equipamento, bem como prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático para permitir a autonomia na higiene/banho e em atividades recreativas em piscina ou na praia. No que diz respeito às substituições, as mesmas terão de ser determinadas por técnicos, em função do seu estado, cabendo à Ré levá-las a cabo” (itálico e destacado nossos). Do que se transcreveu resulta que a obrigação em que a Ré foi condenada correspondeu, portanto, ao pedido principal formulado no articulado superveniente, e traduz-se na entrega dos equipamentos, e não do seu valor. É claro que as partes que poderão, tendo com conta o que foi fixado quanto ao custo e o período de substituição dos equipamentos, converter essa obrigação de entrega de coisa numa obrigação em dinheiro, mas essa solução (que libertará a Ré da condenação) depende de acordo, tal como o fizeram em relação à adaptação da casa de habitação. Não o tendo feito até ao presente, sob pena violação do caso julgado, não se pode neste incidente de liquidação transformar a prestação de uma coisa numa prestação em dinheiro. Tal poderia suceder, e ressalvando o (já abordado) caso de acordo, apenas na hipótese de execução coativa da obrigação, pois que, nos termos do artigo 867º, do CPCiv, quando não seja encontrada a coisa que o exequente devia receber, este pode, no mesmo processo, fazer liquidar o seu valor e o prejuízo resultante da falta da entrega, observando-se o disposto nos artigos 358º, 360º e 716º, com as necessárias adaptações. Essa liquidação ulterior pressuporia, contudo, como se disse, a interpelação executiva da devedora ao cumprimento das obrigações de entrega fixadas na sentença. Assim, o pedido será julgado improcedente nesta parte, já que as prestações de entrega a cargo da Ré não são suscetíveis de ser liquidadas através do presente incidente, sem prejuízo de a Autora e a Ré, querendo, aproveitando o que ficou provado, de fixarem em dinheiro aquelas obrigações (tendo em conta a esperança média de vida adiante considerada).”-- 4. Fundamentação de direito 4.1. Acção executiva 4.1.1. Enquadramento jurídico Dispõe o art.º 817.º do CC (sublinhado nosso): Não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, nos termos declarados neste código e nas leis de processo. E o art.º 2º do CPC dispõe (sublinhado nosso): 1 - A proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar. 2 - A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação. Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 10º do CPC, as acções podem ser declarativas ou executivas. As «ações executivas» são aquelas em que o credor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida (n.º 4 do art.º 10º do CPC). Ou como refere Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 5ª edição, pág. 26 “as acções executivas, partindo de um direito previamente declarado e/ou reconhecido num título executivo, destinam-se a permitir o cumprimento coercivo da obrigação, através do poder de autoridade do Estado.” Para que possa ter lugar a realização coactiva duma prestação devida há que satisfazer duas condições: a) O dever de prestar deve constar de um título executivo. Trata-se dum pressuposto de carácter formal, que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe confere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da acção executiva. b) A prestação deve mostrar-se certa, exigível e líquida (cfr. art.º 713º do CPC). São pressupostos de carácter material que, intrinsecamente condicionam a exequibilidade do direito, na medida em que sem eles não é admissível a satisfação coativa da prestação (cf. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 7ª edição, pág. 39-40). É pelo título executivo que se determinam o fim e os limites da acção executiva, isto é, o tipo de acção e o seu objecto (cfr. art.º 10º n.º 5 do CPC). Dispõe o n.º 6 do art.º 10º que o fim da execução, para o efeito do processo aplicável, pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo quer negativo. A existência da obrigação exequenda não é pressuposto da execução: estando presumida pelo título executivo, dela não há necessidade de fazer prova. O exequente não tem de fazer prova da certeza, exigibilidade e liquidez da prestação, para além da decorrente da apresentação do título executivo. A disparidade entre a realidade e o que constar do título quanto à certeza, exigibilidade e liquidez da prestação ou a sua não verificação só em embargos de executado poderá ser colocada em crise (cfr. art.º 728º e alínea e) do art.º 729º, ambos do CPC, no que respeita aos fundamentos de oposição à execução baseada em sentença). Importa ainda considerar que o título, como documento escrito, por muito claro que seja, exige interpretação, nomeadamente quando se trata de definir o seu objecto, ou seja, o conteúdo da obrigação que dele emerge. Uma das espécies de títulos executivos são as sentenças condenatórias (alínea a) do n.º 1 do art.º 703.º (art.º 46.º CPC 1961). As sentenças, são actos jurídicos (são actos a que a lei atribui relevância e efeitos jurídicos), a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos (ex vi art.º 295º do Código Civil), pelo que as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial (artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1, do CC) são igualmente válidas para a interpretação daquela. Assim a interpretação dos despachos e das sentenças deve fazer-se de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo neles expresso, ainda que imperfeitamente (art.º 236º, nº. 1 do CC), pois, tratando-se de um acto formal, não podem os mesmos valer com um sentido que não tenha na respectiva letra um mínimo de correspondência verbal (art.º 238º, n.º 1 do CC). Ou seja: a interpretação tem como limite o texto decisório, apenas sendo lícito extrair dele o significado permitido pelas normas sobre interpretação dos actos processuais. Assente-se, no entanto, que a interpretação não serve para reabrir a discussão sobre o objecto do processo declarativo - pois a acção executiva não serve para definir direitos -, mas única e exclusivamente para, ultrapassada que está aquela fase, fixar o significado, o sentido do texto da decisão, de acordo com as normas sobre interpretação dos atos jurídicos e, consequentemente, estando em causa o objecto da prestação, determinar qual a sua exacta configuração. Os embargos de executado são uma das formas de oposição à execução, pela qual se visa a extinção, total ou parcial, da execução (cf. n.º 4 do art.º 732º do CPC), mediante o reconhecimento da actual inexistência (total ou parcial) do direito exequendo ou da falta de um pressuposto, especifico ou geral da acção executiva (com a concomitante declaração da sua inadmissibilidade) – Lebre de Freitas, in A Acção Executiva, 7ª Edição, pág. 195. Quando veicula uma oposição de mérito à execução, visa um acertamento negativo da situação substantiva (obrigação exequenda), de sentido contrário ao acertamento positivo consubstanciado no título executivo, cujo escopo é obstar ao prosseguimento da acção executiva mediante a eliminação, por via indirecta, da eficácia do título executivo enquanto tal – Lebre de Freitas, ob. cit. pág. 215. Quando tem um fundamento processual, o seu objecto é, já não uma pretensão de acertamento negativo do direito exequendo, mas uma pretensão de acertamento, também negativo, da falta dum pressuposto processual, que pode ser o próprio título executivo, igualmente obstando ao prosseguimento da acção executiva, mediante o reconhecimento da sua inadmissibilidade – autor e ob. cit. pág. 215-216. Os fundamentos por que podem ser deduzidos embargos de executado variam em função do titulo executivo que serve de base à execução. Sendo o título executivo uma sentença condenatória, os fundamentos porque podem ser deduzidos embargos de executado são, única e exclusivamente, os que constam do art.º 729º do CPC, que tem o seguinte teor (no que releva): Fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes: a) Inexistência ou inexequibilidade do título; Como acima ficou referido, para que possa ter lugar a realização coactiva duma prestação o dever de prestar deve constar de um título executivo Ou como referem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa in Manual de Processo Civil, II, AAFDL Editora, pág. 417-418: “a) A execução não deve iniciar-se sem que exista alguma garantia da constituição da pretensão exequenda; ab execuzione non est incohadum, afirmavam os juristas medievais. É isto que justifica que a pretensão material só seja exequível se a mesma constar de um título executivo. A exequibilidade extrínseca é atribuída pela incorporação da pretensão num título executivo, isto é, num documento que atribuiu ao credor, por disposição da lei, o direito à execução e que lhe faculta solicitar ao estado a realização coactiva da prestação não cumprida (art.º 10º, n.º 5). (…) b) A inexequibilidade extrínseca, o seja, a falta de título executivo constitui um dos fundamentos de indeferimento liminar e de rejeição oficiosa da execução (art. 726º, n.º 2, alínea a) e 734.º, n.º 1), bem como de oposição à execução por embargos de executado (art.º 729º, al. a), 730.º e 731.º)”. E neste sentido afirma-se no Ac. do STJ de 17/10/2019, proc. 3153/17.5T8OER-A.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj:” “…a pretensão é exequível extrinsecamente quando a exequibilidade radica na atribuição pela incorporação da pretensão, num título executivo, isto é, num documento que formaliza, por disposição expressa na lei, a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida.” Estamos, assim, perante uma situação de inexequibilidade extrínseca quando a prestação cuja realização coactiva se pretende, não consta do título executivo ou, dito de outra forma, o título não incorpora, não demonstra, não certifica o direito à prestação cuja realização coactiva se pretende 4.1.2. Em concreto A exequente pretende obter o pagamento das seguintes quantias: i) € 8.167,41 relativos à aquisição de uma prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono com retorno de energia. Invocou para tanto que a executada foi condenada no pagamento da referida prótese; a mesma ultrapassou o cronograma definido pela sentença para a sua substituição (pontos 59), alínea e) e 60) dos factos provados na sentença); a exequente, por diversas vezes, instou a executada para proceder à entrega da referida prótese, o que a mesma nunca fez, nem se presume que o venha a fazer; a exequente, mediante a determinação de um técnico, procedeu à aquisição da mesma. ii) € 3.710,42 relativos à aquisição de uma prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático, referida no ponto 57) da Douta Sentença. Invocou para tanto que a executada nunca entregou à exequente a referida prótese, referida no ponto 57) da sentença, apesar de instada, diversas vezes, para o fazer; em face disso e de acordo com o relatório técnico “superveniente”, a exequente procedeu à sua aquisição. Instaurou, por isso, uma execução para pagamento de quantia certa. E fê-lo invocando como titulo executivo a sentença proferida nos autos de acção de processo comum nº 4547/15.6T8GMR, do J ... do Juízo Central Cível de Guimarães. O saneador-sentença recorrido considerou: Vista a sentença dada à execução constata-se que da mesma não resulta sustentada a pretensão que a exequente pretende ver satisfeita (“que a Executada proceda ao pagamento à Exequente do montante total de 11.877,83€ (onze mil oitocentos e setenta e sete euros e oitenta e três cêntimos) correspondente à compra da prótese transtibilal no valor de 8.167,41€ e 3.710.42€ correspondente à prótese transtibial aquática.”)-- Com efeito, a sentença dada à execução condenou a exequente a "... adquirir e entregar-lhe os equipamentos e produtos identificados nos pontos 57) e 58), bem como a proceder às substituições dos mesmos e daqueles que constam do ponto 54), sempre que determinado por técnicos, previsivelmente dentro do cronograma definido nos pontos 59) a 61).” – sublinhado nosso.— Quer isto dizer – como evidente é – que a exequente não pode, sem mais, proceder à aquisição dos equipamentos e exigir da exequente o respectivo pagamento.— Vejamos A sentença proferida no processo nº4547/15.6T8GMR foi dada como reproduzida na alínea a) dos factos provados. Impõe-se, no entanto, ter em consideração o teor do respetivo decisório (no que releva à economia do recurso) e que é o seguinte: “Em face do exposto, o Tribunal, julgando a ação parcialmente provada e procedente, condena a Ré Companhia de Seguros EMP01..., S. A.: (…) B) (…) adquirir e entregar-lhe os equipamentos e produtos identificados nos pontos 57) e 58), bem como a proceder às substituições dos mesmos e daqueles que constam do ponto 54), sempre que determinado por técnicos, previsivelmente dentro do cronograma definido nos pontos 59) a 61). (…)” Na parte em referência a sentença foi confirmada por Acórdão desta RG de 19/06/2019. Em função do decidido e mais uma vez tendo em consideração o que releva à economia do recurso, os pontos 54, 57, 58, 59 a 61 da fundamentação de facto daquela sentença têm o seguinte teor: “54) A Autora possui como produtos de apoio fornecidos pela Ré: (…) e) Prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono em retorno de energia (resposta ao artigo 87º da petição inicial § 16º do ponto 2) do articulado superveniente). (…) 57) A Autora necessita de uma prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático para permitir a sua autonomia na sua higiene e banho e em atividades recreativas em piscina ou na praia (resposta ao § 19º do ponto 2) do articulado superveniente). (…) 59) Os produtos identificados em 54) têm períodos expetáveis de substituição de, respetivamente: (…) e) 6 meses para o interface, 2 meses para o revestimento cosmético e 2 anos para os restantes componentes (…). 60) O produto identificado em 57) tem período expectável de substituição de 6 meses para o interface, 2 meses para o revestimento cosmético e 2 anos para os restantes componentes (resposta ao § 21º do ponto 2) do articulado superveniente). Estão em causa duas realidades: - uma relativa à prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono em retorno de energia (ponto 54); - outra relativa prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático (57). Quanto à primeira, resulta da factualidade provada na sentença que constitui título executivo (ponto 54) que a Autora possui como produto de apoio fornecido pela Ré uma Prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono em retorno de energia. A sentença – alínea B) do decisório – condenou a ali Ré EMP01..., aqui executada (sublinhado nosso), “a proceder às substituições dos mesmos e daqueles que constam do ponto 54), sempre que determinado por técnicos, previsivelmente dentro do cronograma definido nos pontos 59) a 61).” É patente e manifesto que a prestação em que a executada/ embargante/recorrida foi condenada não se traduz imediatamente numa prestação pecuniária, ou seja, a executada/embargante não foi condenada a pagar uma quantia certa à exequente/embargada, o que em concreto significa que a executada não foi condenada a entregar à exequente o custo da substituição da prótese identificada no ponto 54) dos factos provados. Quanto à segunda, está provado que a executada necessita da mesma (ponto 57). A sentença – ainda a alínea B) do decisório – condenou a ali Ré EMP01..., aqui executada, a adquirir e entregar à exequente o equipamento identificado no ponto 57). Destarte, também aqui é manifesto que a prestação em que a executada/ embargante/recorrida foi condenada não se traduz imediatamente numa prestação pecuniária, o que em concreto significa que a executada não foi condenada a entregar à exequente o custo da aquisição da prótese identificada no ponto 57) dos factos provados. Assim e face ao título executivo/sentença exequenda, não cumprindo a executada com a substituição ou com a aquisição determinadas na alínea b) do decisório, a exequente pode intentar acção executiva tendo em vista a realização coactiva de tais prestações. Mas, como afirma a decisão recorrida, “a exequente não pode, sem mais, proceder à aquisição dos equipamentos e exigir da exequente o respectivo pagamento.” Neste sentido já foi afirmado no Ac. desta RG, de 21/02/2019, proc. 145/17.8T8CHV-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg: IV – Tendo o exequente título para determinada prestação de facto, não pode realizar a prestação por si ou por terceiro, e com [base n]esse mesmo título […] peticionar o pagamento de determinada quantia em dinheiro. Em face do exposto, estamos perante uma situação em que a prestação cuja realização coactiva se pretende – o pagamento das quantias de € 8.167,41 e de € 3.710,42 - manifestamente não consta do título executivo, não está incorporada no mesmo, ou, dito de outra forma, o título não demonstra, não certifica o direito imediato a uma prestação de uma quantia monetária cuja realização coactiva se pretende, pelo que estamos perante uma situação de inexequibilidade extrínseca determinante, à luz da alínea a) do art.º 729º do CPC, da procedência dos embargos de executado. E, sendo assim, a decisão recorrida, ao julgar os embargos de executado procedentes e, em consequência, extinta a execução, deve manter-se e, nesta parte a apelação da exequente/recorrente deve ser julgada improcedente. 4.2. Litigância de má fé 4.2.1. Enquadramento jurídico Qualquer pessoa que se considere titular de um direito pode solicitar a intervenção judicial para o ver reconhecido ou para alcançar a sua realização coerciva - arts. 20° da Constituição da República Portuguesa e 2° do Cód. Proc. Civil -, assim como qualquer pessoa demandada pode usar os meios processuais existentes para se defender. A ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição de todos os titulares de direitos, sendo indiferente que, no caso concreto, o litigante tenha ou não razão: num e noutro caso gozam dos mesmos poderes processuais. Mas uma realidade é o direito abstracto de acção ou de defesa; outra é o exercício concreto desse direito. O primeiro não tem limites, é um direito inerente à personalidade jurídica. O segundo tem as limitações impostas pela ordem jurídica. Como refere Paula Costa e Silva, in Responsabilidade por conduta processual – litigância de má fé e tipos especiais, Almedina, pág. 45 “o direito de acção, como qualquer outro direito subjectivo, não traduz uma liberdade absoluta: ainda que o direito a agir configure uma permissão normativa genérica, não pode significar uma possibilidade de actuação sem fronteiras de licitude. O direito de acção, como qualquer situação jurídica, está, desde logo, limitado pelos fins da sua atribuição.” Uma dessas limitações traduz-se nestas exigências: as partes devem agir de boa-fé, como estabelece o art.º 8º, cuja epígrafe é “Dever de boa fé processual” e devem observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo 7º. Se a parte procedeu de boa fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a conduta é perfeitamente lícita; se não tiver sucesso na sua pretensão, suporta unicamente o encargo das custas, como risco inerente à sua actuação. Mas se a parte procedeu de má-fé, determina o art.º 542°, n° 1 do Cód. Proc. Civil a sua condenação em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. Como decorre do normativo citado e é entendimento que não oferece qualquer dúvida (vd. a título exemplificativo o Ac. do STJ de 08/02/2022, proc. nº4964/20.0T8GMR.G1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj) , a litigância de má fé é de conhecimento oficioso. O único aspecto em que se aplica o principio do dispositivo é o da condenação numa indemnização à parte contrária, pois a mesma depende de pedido da parte contrária. Mas apesar de ser matéria de conhecimento oficioso, isso não significa que o tribunal possa sem mais tomar conhecimento da mesma sem as partes serem confrontadas com essa eventualidade, por a tal se opor a necessidade de ser assegurada uma tutela jurisdicional efectiva, princípio contido no art.º 20º da C. R. Portuguesa, o qual implica a efectividade do direito de defesa no processo e, deste modo, do cabal cumprimento do princípio do contraditório. Como já foi referido, a C. R. Portuguesa, no seu art.º 20º n.º 1, garante a todos «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…)». Mas não é suficiente a consagração legal do direito de acção e defesa, sendo necessário que seja assegurada uma tutela jurisdicional efectiva, princípio contido no art.º 20º da C. R. Portuguesa, o qual se desdobra em vários direitos, sendo um deles o direito ao processo e a um processo equitativo, como consagra o n.º 4 do art.º 20º da mesma CRP. O direito a um processo equitativo impõe normas processuais que proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e paridade entre as partes na dialéctica que elas protagonizam no processo. Um processo equitativo postula, por isso, a efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas ((Rui Medeiros, CRP Anotada, Universidade Católica Editora, Volume I, anotação ao art.º 20º, pág. 321). pág. 322-323, sublinhado nosso). Neste sentido, dispõe o art.º 3º n.º 3 do CPC que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. O principio do contraditório era tradicionalmente entendido como impondo que: a) formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, devia à outra ser dada oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão; b) oferecida uma prova por uma parte, a parte contrária devia ser chamada a controlá-la e ambas sobre ela tinham o direito de se pronunciar. A esta noção substitui-se uma mais lata, com origem na garantia constitucional do rectliches Gehör germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. (Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 3ª edição, pág.124-125). Decorre do exposto, além do mais, que o cumprimento do contraditório não deve ser encarado como uma mera formalidade que se cumpre por mera imposição da lei. Estando em causa questão de conhecimento oficioso, traduzindo-se o contraditório em garantir à parte a possibilidade de discutir as questões relevantes, de facto e de direito, não basta, para que se possa considerar cumprido aquele - e, assim, o direito a um processo justo e equitativo -, que o juiz se limite a comunicar às partes a sua intenção de conhecer uma dada questão, mediante uma pura e simples indicação genérica da mesma. Impõe-se que o juiz concretize e densifique adequadamente (o que, naturalmente, só caso a caso é identificável) os contornos de facto e de direito da questão que pretende conhecer. Exemplificando: numa situação em que o tribunal vislumbre que a parte litigou de má-fé, uma vez que, como decorre do n.º 2 do art.º 542º, a litigância de má fé contempla elementos subjectivos (corpo do n.º 2) e elementos objectivos (as várias alíneas do n.º 2), o cabal cumprimento do contraditório impõe que o tribunal indique as razões de facto (as condutas que vislumbra integrarem a litigância de má fé) e de direito (se a conduta é dolosa ou com culpa grave e qual ou quais alíneas do n.º 2 do art.º 542º do CPC vislumbra serem susceptíveis de estarem verificadas em virtude daquelas condutas). Por outro lado, comunicada uma determinada densificação dos contornos de facto e de direito da questão que se pretende conhecer, se se pretender conhecer a mesma com fundamentos diferentes, deverá ser dado novo cumprimento ao contraditório. Caso o tribunal decida uma questão de conhecimento oficioso, sem audição prévia das partes, estamos perante uma decisão surpresa. Coloca-se a questão do meio de reacção. Miguel Teixeira de Sousa, no blog do IPPC e nomeadamente in https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html e que também colhe o apoio de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in ob. cit., pág. 762, nota 1 tem vindo a responder nos seguintes termos. Assim, uma sentença (ou um despacho) pode ser visto como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença/despacho no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença. Enquanto trâmite está sujeita à nulidade processual plasmada no artigo 195º do CPC, se se verificar alguma das situações nele referidas: a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. Enquanto acto está sujeito à nulidade da sentença, se se verificar alguma das situações plasmadas nas diversas alíneas do n.º 1 art.º 615º do CPC, nomeadamente, a referida na alínea d), quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Deste modo, é fácil verificar que os citados vícios não se confundem. A decisão-surpresa, isto é, a decisão que não dá cumprimento ao disposto no art.º 3º n.º 3 do CPC, não constitui uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1 do CPC, mas uma nulidade da sentença de acordo com o estabelecido na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º, a qual é aplicável aos despachos nos termos do art.º 613º n.º 3 do CPC. E isto porque a decisão-surpresa, isto é, a adopção de uma decisão com um fundamento de conhecimento oficioso, sem que tenha sido dada a possibilidade ás partes de se pronunciarem, nada tem a ver com a decisão como trâmite, mas com a decisão como acto; a audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa e, assim, violadora do principio do contraditório (o “contraditório” não é um acto da tramitação do processo, mas um principio estruturante de todo o processo); a não audição prévia das partes numa situação em que a mesma se impunha repercute-se na própria decisão, constituindo um vicio intrínseco da mesma, que determina a nulidade da mesma por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronuncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar. Pelo exposto, a sua invocação deve ser feita através da interposição de recurso, como dispõe o n.º 4 do art.º 615º do CPC, a menos que a decisão não o admita, situação em que cabe reclamação para o tribunal que proferiu a decisão (sobre esta matéria pode ainda ver-se Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª Edição, pág. 24-29). 4.2.2. Em concreto A recorrente invoca que a recorrida não fez nenhum pedido de condenação da recorrente como litigante de má-fé, sendo a decisão oficiosa. Efectivamente a embargante não invocou a litigância de má-fé da exequente. Tal questão foi suscitada oficiosamente, tendo a exequente sido notificada para se pronunciar por despacho proferido nos autos de execução a 12/10/2023 nos seguintes termos: Neste momento não podemos deixar de assinalar que a exequente, sabendo bem dos termos em que tinha de intentar a execução – pois que se fez munir do parecer técnico referido na sentença proferida no processo nº 1092/22...., não se coibiu de intentar a acção sob a forma de processo sumário o que, conforme acima exposto, causa inegáveis danos à executada, atenta a realização das penhoras.— Tal pode configurar, no nosso entender, uma actuação de má-fé, passível de ser apreciada nos termos do art. 542º do Cód. Proc. Civil.— Assim, notifique a exequente para, querendo e em 10 dias, esclarecer o que tiver por conveniente.— Recorde-se que a exequente intentou a acção executiva para pagamento de quantia certa de que os presentes são apenso sob a forma de processo sumário, o que significa, além do mais, que a penhora precede a citação (cf. n.º 3 do art.º 855º do CPC). No entanto, o tribunal, também por despacho de 12/10/2023, determinou que a acção executiva passava a seguir os termos do processo ordinário e a anulação de todos os actos praticados após a entrada do requerimento executivo, nomeadamente penhoras e citação. A recorrente invoca que o despacho proferido a 12/10/2023 se reporta exclusivamente à forma de processo utilizada, nada mais apontou o Tribunal “a quo” à recorrente, razão pela qual apenas exerceu o principio do contraditório quanto à forma de processo que utilizou, o saneador-sentença vai muito para além do que foi colocado à recorrente para que se pronunciasse, falando agora em vários processos e em uso indevido do apoio judiciário. A decisão recorrida considerou: “Entendemos que vem a exequente actuando de forma violadora dos princípios da verdade processual e colaboração, abusando da circunstância de beneficiar de apoio judiciário e, com essa capa, vem intentando sucessivos processos, com o mesmo fito: de obter o pagamento do preço de equipamentos, que a executada foi condenada a substituir mediante interpelação para o efeito nos termos e condições enunciadas na sentença.— Nas duas decisões dos processos que antecederam a presente execução foi a exequente alertada para os limites da sentença proferida na acção declarativa, concretamente quanto ao fornecimento pela executada de equipamentos, sendo que é notório que pretende a exequente ignorar tal sentença e esses sobreditos limites.— Mais.— Importa salientar que ainda antes de transitada em julgado a decisão no incidente de liquidação – que advertia a exequente da inexigibilidade de prestações futuras – a exequente veio em execução (processo nº ...2) pugnar exactamente pelas mesmas.— E, tendo nessa execução sido esclarecida sobre os termos em como poderia fundamentar a sua pretensão, veio, poucos dias após o trânsito em julgado da decisão ali proferida, formular na execução de que os presentes autos são apenso, pretensão em derrogação daquela enunciação e, repete-se, uma vez mais em clara violação dos termos da condenação proferida nos autos declarativos.— A exequente pode não concordar com essa decisão, mas tem, ultrapassada a possibilidade de a impugnar, de a respeitar.— E tal não vem sucedendo, abusando a exequente do beneficio de apoio judiciário concedido e da disponibilidade das sucessivas decisões judiciais em tentar indicar-lhe o caminho adequado para obter o necessário ressarcimento nos termos da sentença do processo declarativo.— O tribunal não pode compactuar com esta actuação.— Assim, mais não restará ao Tribunal senão condená-la como litigante de má-fé, em multa e indemnização (uma vez que foi pedida em 25/10/23) – cfr. art. 542º, nº 1, do Cód. Proc. Civil.---- (…)“ Pelo despacho de 12/10/2023 o tribunal notificou a exequente para se pronunciar quanto à eventual configuração como uma situação de litigância de má fé o facto de ter intentado a execução sob a forma de processo sumário o que, conforme acima exposto, causa inegáveis danos à executada, atenta a realização das penhoras. A decisão recorrida não faz qualquer referência ao facto de a exequente ter intentado a acção executiva sob a forma de processo sumário, fundando-se, antes, no facto de ter intentado acção executiva ignorando o que já antes, em outras decisões, lhe havia sido quanto “[a]os limites da sentença proferida na acção declarativa”, ou seja, sem atender ao que está incorporado no título executivo. Tendo a decisão recorrida encontrado sustento em outros fundamentos que não aqueles que foram densificados no despacho que visou dar cumprimento ao contraditório, impõe-se concluir que não foi dado cabal cumprimento ao mesmo. A recorrente não invocou a nulidade do saneador-sentença. Mas invocou a factualidade consubstanciadora da mesma – a violação do contraditório. O tribunal ad quem pode qualificar livremente os factos na medida em que, como dispõe o art.º 5º, n.º 3 do CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. E aquela violação é de qualificar como nulidade da sentença à luz do disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC. O art.º 665º n.º 1 do CPC dispõe: “Ainda que se declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação”. O art.º 665.º, n.º 1 do CPC não pode ser interpretado e aplicado de forma tão ampla, ao ponto de nele se considerar incluída a situação em que o tribunal a quo proferiu uma decisão em violação do princípio do contraditório. Na medida em que a violação do principio do contraditório ocorreu no iter processual respeitante à 1ª instância (sentença), é ao tribunal recorrido que cabe, em primeiro lugar, dar cabal cumprimento àquele princípio e, em segundo lugar, proferir nova decisão quanto à litigância de má fé. Em face de tudo o exposto, a decisão que condenou a recorrente como litigante de má fé deve ser anulada, a fim de ser dado cabal cumprimento ao contraditório – ser a parte confrontada com os fundamentos invocados na decisão recorrida – e ser proferida nova decisão, pelo que, em consequência, nesta parte o recurso deve ser julgado procedente. 4.3. Custas Dispõe o n.º 1 do art.º 527º do CPC que a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito. E nos termos do n.º 2 do mesmo normativo, entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. A exequente/recorrente ficou vencida quanto à parte do recurso tendo por objecto a procedência dos embargos pelo que nessa parte deu causa às custas e tirou proveito na parte relativa à condenação como litigante de má fé, pelo que à luz dos normativos citados, é responsável pela totalidade das custas, sem prejuízo de estar dispensada do seu pagamento em virtude de beneficiar de apoio judiciário. 5. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 1ª Secção desta Relação em: - julgar improcedente o recurso quanto à parte do saneador-sentença que julgou os embargos de executado improcedentes; - julgar procedente o recurso quanto à parte do saneador-sentença que condenou a recorrente como litigante de má fé e, nessa parte, anular o mesmo a fim de em 1ª instância ser dado cabal cumprimento ao contraditório – ser a parte confrontada com os fundamentos invocados na decisão recorrida – e ser proferida nova decisão. Custas da apelação pela exequente/recorrente, sem prejuízo de estar dispensada do seu pagamento em virtude de beneficiar de apoio judiciário. Notifique-se * Guimarães, 06/02/2025 (O presente acórdão é assinado electronicamente) Relator: José Carlos Pereira Duarte Adjuntos: Alexandra Maria Viana Parente Lopes Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício |