Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | JORGE BISPO | ||
Descritores: | CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL ATOS EXIBICIONISTAS ELEMENTOS TÍPICOS DO ILÍCITO CONDENAÇÃO ARTº 170º DO CP | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 11/23/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
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Sumário: | I) O crime de "importunação sexual" previsto no art. 170º do Código Penal visa proteger a liberdade sexual de outra pessoa, numa dupla dimensão: negativa, significando genericamente a liberdade de não suportar condutas que agridam ou constranjam a esfera sexual da pessoa, e positiva, como liberdade de interagir sexualmente sem restrições. II) A "importunação sexual" pode ter lugar através de três condutas típicas distintas: a prática de atos de caráter exibicionista, a formulação de propostas de teor sexual ou o constrangimento a contacto de natureza sexual. III) Considera-se ato exibicionista toda a ação com significado ou conotação sexual de exposição dos órgãos genitais imposta a outrem, por ser contra a sua vontade, de modo a perturbar a sua liberdade sexual. IV) Assim, integra o tipo legal de crime a conduta de exibição dos órgãos genitais pelo arguido, como o intuito sexual de constranger, chocar, vexar ou perturbar a vítima, forçando-a a um contacto com um comportamento de natureza sexual, sem necessidade de demonstrar que o ato exibicionista suscitou fundado receio da prática subsequente de um ato sexual com a vítima. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I. RELATÓRIO 1. No processo comum, com intervenção de tribunal singular, com o NUIPC 1700/17.1PBBRG, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo Local Criminal de Braga (Juiz 4), foi proferida sentença, lida e depositada a 09-03-2020, a (transcrição[1]): «a) - Condenar o arguido A. L., pela prática de um crime de importunação sexual, previsto e punido pelo artigo 170.º do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa; b) - Condenar o arguido A. L., pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa; c) - Condenar o arguido A. L., procedendo ao cúmulo jurídico das penas supra referidas, na pena única de 90 (noventa) dias de multa, a 10,00€ (dez Euros) por dia, totalizando o montante de 900,00€ (novecentos Euros); d) - Condenar o arguido/demandado A. L. a pagar à assistente/demandante M. M. a quantia de 1000,00€ (mil Euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da notificação e até integral pagamento, absolvendo-o do restante peticionado;» 2. Inconformado com essa condenação na parte relativa ao crime de importunação sexual, o arguido interpôs recurso da sentença, formulando no termo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem: «i. Discordamos em relação à interpretação dos factos pelo Tribunal a quo quando decidiu que a atuação do arguido se consubstanciava num crime de importunação sexual. ii. Em relação ao crime de importunação sexual a única matéria de facto considerada como provada na douta sentença encontra-se expresso nas alíneas b) e c). iii. O arguido pode, efetivamente, ter importunado a assistente, mas não de uma forma sexual. iv. Para comprová-lo, note-se que, não ficou demonstrado em lugar algum que a assistente se sentiu em perigo ou com medo de uma prática de ato sexual posterior. v. Apenas foi dado como provado que o arguido logrou conseguir constranger e perturbar a assistente e que a assistente se sentiu “humilhada, vexada e envergonhada” (alínea f) da matéria de facto provada da sentença). vi. Não se logrou provar que a assistente, em qualquer altura, sentiu medo ou qualquer tipo de perigo. vii. A intenção do arguido foi ofender a honra da assistente. viii. O ato desonroso levado a cabo pelo recorrente mais não se tratou de uma espécie de injúria, não teve qualquer sentido sexual, apenas pretendia constranger a assistente, no meio de uma discussão acesa entre vizinhos. ix. A intenção do recorrente nunca foi atingir a liberdade sexual da assistente, nem tampouco considerou efetuar qualquer ato sexual posterior. x. A injúria não necessita de ser através de palavras, mas também inclui os gestos. xi. Assim, o arguido não pretendia atentar contra a liberdade sexual da assistente, mas constrangê-la, uma vez que esta se encontrava a filmar a discussão o que despoletou as expressões utilizadas e o gesto utilizado. xii. Estes sentimentos, que foram dados como matéria de facto provada na douta sentença indiciam outro tipo de crime. xiii. Sendo assim, é possível perceber que os factos descritos na sentença como matéria de facto provada poderá consubstanciar um crime de injúrias, previsto e punido no art. 182.º do Código Penal, com a seguinte epígrafe “À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.” xiv. Pelo exposto, ao decidir como decidiu violou o Tribunal a quo, entre outros, o disposto no artigo 170.º do código penal. xv. Entende o arguido, considerando o exposto, que a indemnização fixada não é equitativa e excede em muito os danos sofridos pela assistente. TERMOS EM QUE deve o recurso merecer total provimento, e, em consequência: a) ser o arguido absolvido do crime de importunação sexual, fixando-se a pena em 60 dias de multa; b) ser reduzida a € 250 a indemnização devida à Assistente pelo cometimento do crime de injúria.» 3. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu à motivação do recorrente, entendendo que «[i]n casu, resultou provado que o arguido baixou as calças e exibiu os genitais à assistente com o intuito de a constranger e perturbar, ou seja, o arguido agiu como o objetivo de importunar a assistente no sentido de a surpreender, chocar e atemorizar, o que efetivamente conseguiu», pelo que « (…) encontram-se verificados os elementos objetivos e subjetivos do crime de importunação sexual pelo qual o arguido foi devidamente condenado, não tendo sido violado, tal como refere o recorrente, o disposto no art. 170.º do Código Penal», termos em que, aderindo por inteiro às considerações tecidas pelo Mmº. Juiz, pugnou pela manutenção da sentença. 4. Também a assistente respondeu à motivação do recorrente, aderindo à resposta da Exma. Procuradora da República e, quanto à indemnização civil fixada, defendendo que o recurso é inadmissível, por o respetivo valor ser inferior à alçada do Tribunal de Comarca. 5. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido de que o recurso «(…) deve, no mais, improceder, nos termos propugnados na exauriente argumentação que a Senhora procuradora da República expendeu na resposta ao recurso, já que vem aí escalonada reflexão adequada e suficiente para evidenciar a sem-razão do recorrente, posição que (…) subscreve na íntegra, dando-se (…) por integralmente reproduzida», acrescentando ainda que, «(…) a redação do art. 170º do Código Penal, introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 05 de Agosto, ao mesmo tempo que ampliou a tipicidade, procedeu a uma segmentação mais explícita das condutas típicas e, pese embora a consciência da já então existente interpretação em que se arrima a argumentação recursória, não foi trazida ao tipo qualquer conformação que dê legitimação sustentada ao questionada entendimento restritivo». 6. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi exercido o direito de resposta. 7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do citado código. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO Como é entendimento pacífico[2], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do art. 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do mesmo código – é pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites de cognição do tribunal superior. Todavia, impõe-se apreciar a questão prévia da inadmissibilidade do recurso no segmento relativo ao pedido de indemnização civil. De acordo com o disposto no art. 402º, n.º 1, do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem qualquer referência, o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão, ressalvando, no entanto, o preceituado no artigo seguinte, segundo o qual o recorrente pode limitar o recurso a uma parte da decisão, desde que ela possa ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas, como sucede, nomeadamente, com a parte da decisão que se referir a matéria penal e a matéria civil. Na presente situação, o arguido e demandado não limitou o recurso à parte criminal, entendendo também que a medida da indemnização devida pelos factos por si cometidos não é equitativa e excede em muito os danos sofridos pela assistente e demandante, devendo ser reduzida a € 250. Ora, nessa matéria, o art. 400º, n.º 2, estabelece regras idênticas às do processo civil, estipulando que, sem prejuízo do disposto nos arts. 427º e 432º (manifestamente inaplicáveis ao caso em análise), o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível se o valor do pedido for superior ao da alçada do tribunal recorrido e se a decisão impugnada for desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada. O art. 44º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), em matéria cível, fixou a alçada dos tribunais da relação em € 30.000,00 e a dos tribunais de primeira instância em € 5.000,00. Por conseguinte, a recorribilidade da decisão de primeira instância, relativa ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal, depende da verificação cumulativa de duas condições: que o pedido formulado seja superior a € 5.000,00 e que o decaimento para o recorrente seja superior a € 2.500,00. In casu, o valor global do pedido de indemnização civil deduzido pela demandante é de € 2.000,00, tendo o demandado sido condenado no pagamento da quantia de € 1.000,00, sendo, pois, este o valor do respetivo decaimento. Assim sendo, não se mostram verificadas as duas condições enunciadas, termos em que o recurso sobre a decisão proferida em matéria cível não é admissível. Nos termos do art. 420º, n.º 1, al. b), o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do art. 414º, onde se inclui a irrecorribilidade da decisão. Impõe-se, pois, rejeitar o recurso na parte relativa ao pedido de indemnização civil, por a decisão não ser recorrível, não se conhecendo dele, sem prejuízo, naturalmente, das consequências a extrair da eventual procedência do recurso na parte criminal. Posto isto, atenta a conformação das conclusões formuladas pelo recorrente, bem como a inadmissibilidade do recurso na parte relativa ao pedido de indemnização civil, a questão suscitada no recurso reconduz-se a saber se a conduta do arguido integra ou não o crime de importunação sexual. 2. DA DECISÃO RECORRIDA Na sentença proferida pela primeira instância foram dados como provados os seguintes factos com relevo para a decisão da causa (transcrição): «a) No dia 17 de novembro de 2017, cerca das 18 horas e 20 minutos, encontrando-se a assistente M. M. no terreno anexo à sua residência, sita na Rua …, União das Freguesias de …, … e …, concelho de Braga, o arguido A. L., seu vizinho, sem que para tal a assistente desse qualquer motivo, chamou-lhe “cabra louca”, “filha da puta” e disse “fotografa os colhões, queres que tos mostre”; b) O arguido A. L. mais baixou as calças e mostrou-lhe os genitais, dizendo “filma aqui minha filha da puta”; c) O arguido, ao mostrar os genitais desnudos à assistente, representou e quis constranger e perturbar a mesma, o que logrou conseguir; d) O arguido proferiu as palavras supra referidas com o propósito de ofender a honra e consideração pessoal da assistente, o que conseguiu; e) O arguido sabia que a sua conduta era criminalmente proibida e punida, tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento, o que não o demoveu de atuar como atuou; f) Em consequência da conduta do arguido, a assistente sentiu-se humilhada, vexada e envergonhada; g) Ainda hoje a assistente sente vergonha pelo sucedido e continua deprimida; h) Ainda hoje a assistente chora ao lembrar-se do sucedido; i) O arguido completou o Bacharelato em Engenharia Mecânica; j) O arguido A. L. foi funcionário público no IMT – Instituto da Mobilidade e dos Transportes, na Delegação de …, profissão que deixou de exercer há quatro anos, quando decidiu reformar-se, tendo em conta o stress no trabalho e os seus antecedentes psiquiátricos;k) O arguido aufere uma pensão mensal líquida de 1000,00€; l) O arguido é casado; m) Vive com a sua esposa em casa própria; n) O arguido reside com a sua esposa, enfermeira reformada, e um filho, maior e autónomo, com quem mantém uma dinâmica familiar equilibrada, coesa e solidária; o) O imóvel onde reside, propriedade do arguido há 29 anos, situa-se na morada indicada nos autos, reúne condições de habitabilidade e situa-se numa zona residencial sem qualquer tipo de problemáticas sociais relevantes; p) O seu quotidiano é essencialmente dedicado a cuidar da horta que tem junto à habitação, dedica algum tempo à leitura e aos fins-de-semana desloca-se à quinta dos pais, em … – Guimarães, onde ainda tem familiares e onde cuida dos terrenos da família; q) O arguido privilegia este tipo de espaços, para onde se desloca regulamente porque são locais mais calmos e lhe permitem alguma serenidade e sossego; r) A situação económica do agregado é alicerçada nas reformas do casal em valor global que ascende a 2.600,00€, referindo um padrão de vida estabilizado e com algum conforto; s) O arguido é uma pessoa normalmente respeitadora do próximo; t) O arguido padece de stress pós-traumático de guerra, decorrente do seu destacamento no Ultramar, tendo passado a beneficiar de acompanhamento médico psiquiátrico regular; u) O arguido é seguido em consulta de Psiquiatria do Hospital Privado de Braga por apresentar sintomatologia ansiosa e depressiva; v) Nada consta do certificado de registo criminal do arguido.» 3. APRECIAÇÃO DO RECURSO Defende o recorrente que deve ser absolvido do crime de importunação sexual pelo qual foi condenado, alegando para o efeito, em síntese, que para o preenchimento do tipo legal é exigível que a vítima se sinta em perigo ou com medo da prática de ato sexual posterior, o que não se provou, uma vez que apenas foi dado como provado que o arguido logrou constranger e perturbar a assistente, a qual se sentiu humilhada, vexada e envergonhada. Assim, a tê-la importunado, não foi de uma forma sexual, pois o ato desonroso que praticou não teve qualquer sentido sexual, para além de que não teve intenção de atentar contra a liberdade sexual da assistente nem tampouco considerou praticar qualquer ato sexual posterior, pretendendo apenas constrangê-la no meio de uma discussão acesa entre vizinhos, por a mesma se encontrar a filmar a discussão, o que despoletou as expressões e o gesto por si utilizados. Vejamos se lhe assiste razão. O art. 170º do Código Penal, na redação atualmente vigente, sob a epígrafe "Importunação sexual", dispõe que: "Quem importunar outra pessoa praticando perante ela atos de caráter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal." Esta redação resultou de duas alterações legislativas. Em primeiro lugar, da revisão do Código Penal levada a cabo pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, que veio substituir o anterior art. 171º, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, e que, sob a epígrafe "Atos exibicionistas", dispunha o seguinte: "Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de caráter exibicionista, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.». Visou-se, assim, alargar o âmbito do anterior art. 171º (decorrente da revisão do Código Penal pelo DL n.º 48/95, de 15 de março), que apenas punia os atos exibicionistas, aditando-lhe o segmento "ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual". Em segundo lugar, da alteração do Código Penal introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, que, por sua vez, introduziu o segmento relativo à formulação de propostas de teor sexual. Trata-se de um tipo legal de crime que se enquadra na categoria dos vulgarmente designados "crimes sexuais". Na versão originária do Código Penal de 1982, tais crimes estavam integrados na Secção II ("Dos crimes sexuais") do Capítulo I ("Dos crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social"), do Título III ("Dos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade"), do Livro II ("Parte especial"), deixando transparecer a ideia de que o bem jurídico tutelado se encontrava no domínio da moral social e não no domínio da liberdade pessoal. A versão inicial do Código Penal não continha qualquer disposição legal correspondente ao atual art. 170º, prevendo apenas, no art. 212º, o crime de “exibicionismo e ultraje público ao pudor" ("Quem publicamente e em circunstâncias de provocar escândalo, praticar ato que ofenda gravemente o sentimento geral de pudor ou de moralidade sexual") e, no art. art. 213º, o crime de “ultraje ao pudor de outrem” ("Quem ofender outra pessoa, praticando com ela, ou diante dela, ato atentatório ao seu pudor"), comportamentos esses que vieram a ser descriminalizados com a Reforma do Código Penal de 1995, orientada no sentido de deixar de considerar os crimes sexuais como crimes ligados aos “sentimentos gerais de pudor e de moralidade sexual”. Com efeito, essa revisão do Código Penal alterou profundamente o enquadramento legal da criminalidade sexual, tendo subjacente o pressuposto de que só se pode considerar legítima a incriminação de condutas do foro sexual se e na medida em que atentem contra um específico bem jurídico eminentemente pessoal, sob pena de, não o fazendo, se estar perante um crime sem vítima. Na sistemática do Código Penal, os crimes sexuais deixaram, assim, de ser tidos como crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida em sociedade, para passarem a ser crimes contra as pessoas, mais concretamente, contra a liberdade e autodeterminação sexual da vítima. Por outro lado, passou a distinguir-se, neste âmbito, entre crimes contra a liberdade sexual (previstos nos atuais arts. 163º a 170º) e crimes contra a autodeterminação sexual (arts. 171º a 176º-B). Os primeiros são crimes cometidos contra adultos ou menores sem o consentimento destes, em que o que se pretende é garantir a proteção da liberdade sexual da vítima, ou seja, o poder de disposição do corpo pela pessoa, independentemente da idade. Já os segundos são crimes cometidos contra menores de modo consensual, com “consentimento” destes, em que o objeto de proteção é o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual. Inserindo-se nos crimes contra a liberdade sexual, o tipo legal previsto no art. 170º do Código Penal criminaliza a "importunação sexual" de outra pessoa através de três condutas típicas distintas: a prática perante ela de atos de caráter exibicionista, a formulação de propostas de teor sexual e o constrangimento a contacto de natureza sexual. O bem jurídico protegido com a incriminação é a liberdade sexual de outra pessoa, numa dupla dimensão: - na dimensão negativa, significando genericamente a liberdade de não suportar condutas que agridam ou constranjam a esfera sexual da pessoa; - e, na dimensão positiva, como liberdade de interagir sexualmente sem restrições[3]. Nos presentes autos está em causa a conduta prevista no primeiro desses segmentos típicos, ou seja, a importunação da vítima através da prática de atos exibicionistas. O recorrente, invocando os acórdãos da Relação de Évora de 07-01-2014[4] e da Relação do Porto de 06-05-2009[5], defende que para o preenchimento do tipo legal é exigível que o ato exibicionista represente um fundado receio de que se lhe siga a prática de um ato sexual com a vítima e que, não tendo tal circunstância resultado provada no caso concreto, deveria ter sido absolvido. Efetivamente, refere-se no primeiro desses arestos que: «Nos casos de vítima “maior”, em que já não está em causa a tutela de um desenvolvimento livre da personalidade sexual (mas apenas da liberdade sexual), o tipo sempre exigiria a prova de factos complementares, dos quais tivesse resultado que o ato exibicionista teria representado, no caso e em concreto, para a pessoa visada, um perigo de que se lhe seguisse a prática de ato sexual que ofendesse a sua liberdade sexual. Só assim se poderia considerar ter sido atingido o bem jurídico protegido por este tipo de crime, o da liberdade sexual, tipo que já não protege o desenvolvimento livre da personalidade sexual de menor de 14 anos.» Por seu turno, no acórdão referido em segundo lugar pode ler-se que «(…) a realidade criminalizada pelo tipo do art. 171º do Código Penal na redação de 1995, tal como agora pelo art. 170º, era e é o facto de o ato dito ato exibicionista representar, para a pessoa perante a qual era praticado, um perigo de que se lhe seguisse a prática de um ato sexual que ofendesse a sua liberdade de autodeterminação sexual, precisamente por consideração ao local do corpo da vítima tocado pelo agente: o legislador preferiu criminalizar tais comportamentos pelo “convite” que eles envolviam. Desta opção resulta claro que o que era punido, antes como agora, repetimos, não era o ato mas o perigo de agressão à liberdade sexual que ele representava. Então, a conduta típica traduz-se num ato de natureza sexual, praticado contra a vontade da vítima, na presença dela ou sobre ela.» No mesmo sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque[6], ao referir que: «O crime de ato exibicionista é um crime de perigo concreto (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação). A razão de ser da punição do ato reside no perigo para a liberdade sexual da vítima, isto é, na possibilidade séria da prática de um ato posterior que ofenda a liberdade sexual. Verifica-se, pois, uma antecipação da tutela penal.» Também Anabela Miranda Rodrigues[7], em comentário ao art. 171º do Código Penal de 1995, que punia, como vimos, os "atos exibicionistas", escreve que: «Com efeito, há uma certa realidade que deve ser criminalizada. Mas apenas e só na exata medida em que o ato dito exibicionista representa, para a pessoa perante o qual é praticado, um perigo de que se lhe siga a prática de um ato sexual que ofenda a sua liberdade de autodeterminação sexual por forma a constituir crime. Só assim se pode dizer que é a liberdade sexual da pessoa visada com o ato exibicionista, já quando esta liberdade está em perigo, que a incriminação visa proteger.» O recorrente cita ainda um texto de Inês Ferreira Leite[8], onde se pode ler o seguinte trecho: «Importante é que a pessoa seja importunada com o ato exibicionista ou constrangida a um contacto de natureza sexual. Assim, no primeiro caso cabem apenas aqueles atos exibicionistas que limitem a liberdade de ação da vítima, impondo-lhe uma envolvência de caráter sexual, na qual esta é um participante involuntário, e nunca a mera exibição dos órgãos genitais.» É indiscutível que a afirmação "importunar outrem", com "atos de carácter exibicionista" terá de entender-se no sentido de imposição da vontade do agente, contra a vontade do sujeito passivo de um ato de natureza sexual. O que, obviamente, não se verifica em condutas como, por exemplo, andar nu, urinar ou defecar, praticar relações sexuais ou tomar banhos de sol desnudado, em lugares públicos ou a que o público tenha acesso, mesmo que restrito, ou quando terceiros sejam forçados a assistir, ainda que involuntariamente, situações estas que não podem configurar a prática do crime de exibicionismo por não haver um contexto ou envolvência sexual, sendo, por isso, atípicas. Com efeito, como defende Anabela Miranda Rodrigues[9], deve ficar fora do tipo tudo aquilo que seja uma mera expressão de uma “imoralidade intrínseca” do agente, pelo que «(…) fica definitivamente afastado qualquer entendimento que persista em ver nesta incriminação a proteção da "moralidade" ou do "pudor" de outrem», concluindo que «[n]ão é o ato em si que é passível de punição - por ter, como tem na maioria dos casos, um significado atentatório daqueles valores -, mas o perigo que representa de constituir uma agressão à (uma violação da) liberdade sexual da pessoa perante o qual é praticado.» Todavia, na situação em apreço nos autos, atentas as circunstâncias em que os factos foram praticados, a conduta de exibição dos órgãos genitais pelo arguido tem um significado ou conotação sexual, havendo um intuito (sexual) de constranger, chocar, vexar ou perturbar a vítima (conforme, aliás, é dado como provado na al. c) da matéria assente), forçando-a a um contacto com um comportamento de natureza sexual suscetível de merecer uma reação punitiva. Ora, nestas situações, afigura-se que a interpretação defendida pelo recorrente, com todo o respeito pelos meritórios apoios doutrinários e jurisprudenciais em que assenta, conduz a um esvaziamento do conteúdo da norma. Daí que perfilhemos antes o entendimento que considera desnecessário demonstrar que o ato exibicionista suscitou fundado receio da prática subsequente de um ato sexual com a vítima, defendido no acórdão da Relação do Porto de 09-03-2011, seguido também nos arestos da Relação de Coimbra de 26-02-2014 e de 15-03-2017[10], tal como foi entendido na sentença recorrida é propugnado pelo Ministério Público em ambas as instâncias. Como melhor se desenvolveu no primeiro desses acórdãos: «Neste ilícito tutela-se a liberdade sexual contra a imposição de atos de índole sexual, seja por visualização, seja por contacto, tanto numa dimensão positiva ou dinâmica, como numa dimensão negativa ou estática. Mediante a primeira cada um tem o direito de escolher, de acordo com a sua vontade, os atos sexuais que lhe são dirigidos, bem como o seu parceiro sexual, e, através da segunda, tem a faculdade de não suportar atuações sexuais, por mínimas que sejam, contra a sua vontade. Para o efeito e desde a Reforma de 1995 que passou a entender-se que ato exibicionista seria toda a atuação com significado ou conotação sexual realizada diante da vítima. Houve, porém, quem acrescentasse a necessidade desse ato só se poder qualificar como exibicionista se suscitasse fundado receio da prática subsequente de um ato sexual com a vítima. Afigura-se-nos porém que a exigência desse fundado receio da prática subsequente de um ato sexual com a vítima não tem assento na descrição do tipo objetivo do crime do art. 170.º e é manifestamente desadequado para a tutela do bem jurídico aqui em causa, por quatro ordens de razão. A primeira é porque o ato exibicionista de cariz sexual é, só por si, um ato de manifestação de sexualidade, que pode ou não ser consentido pela pessoa que o presencia. No primeiro caso é penalmente atípico, mas no segundo já não o é, na medida em que existe a imposição da observação de um ato, o de exibir-se, a outro que não o deseja presenciar, colidindo, por isso, com a liberdade sexual da pessoa visada. A segunda é porque o consenso nos atos sexuais e a escolha do parceiro sexual, é uma das facetas mais importantes da liberdade sexual e sabido que o relacionamento sexual tem diversas facetas, mas para as quais, em regra, se procura a intimidade e um inultrapassável envolvimento, incluindo a sua visualização, de corpos consentidos e nunca impostos. A terceira é que quando ocorre um puro ato exibicionista de cariz sexual não se segue, em regra, qualquer outro ato sexual adicional com a própria vítima, pelo que aquela exigência acrescentada do perigo de se seguir um ato sexual de relevo ou um ato de cópula ou equiparado, deixaria sem tutela penal a violação do bem jurídico aqui em causa. Por último, tal posicionamento equipara atos exibicionistas a atos preparatórios [21.º Código Penal] dos demais crimes contra a liberdade de autodeterminação sexual, o que são realidades jurídico-penais distintas. Nesta conformidade e tomando por base o bem jurídico aqui em causa, consideramos como ato exibicionista toda a ação com significado ou conotação sexual de exposição dos órgãos genitais que é imposta a outrem, por ser contra a sua vontade ou então quando a pessoa visada ainda não tem capacidade para manifestar esse consentimento, de modo a perturbar a sua liberdade sexual, no caso dos adultos, ou a violar a proteção da sexualidade e a preservação de um adequado desenvolvimento sexual, no caso dos menores de 14 anos.» Na esteira deste entendimento, afigura-se-nos que, efetivamente, é da própria natureza do ato exibicionista que o mesmo não tenha uma conduta subsequente. O agente satisfaz a sua libido com o ato em si, com a exibição dos seus órgãos genitais de forma a perturbar a vítima, envolvendo-a num contexto sexual, dessa forma atingindo o bem jurídico protegido, ou seja, a liberdade sexual da mesma, na sua dimensão negativa, enquanto liberdade de não suportar condutas que agridam ou constranjam a sua esfera sexual. O entendimento de que toda a pessoa tem o direito de não se ver envolvida numa atividade sexual sem a sua anuência, como concretização do bem jurídico protegido nos crimes contra a liberdade sexual, permite mais facilmente apreender o sentido do crime de exibicionismo. Em suma, apesar de inserido no âmbito das desavenças de vizinhança e no decurso de uma discussão entre ambos, o comportamento do arguido, ao exibir os seus órgãos genitais à assistente, foi realizado num contexto sexual suscetível de afetar um bem jurídico de carácter individual da visada, visando atentar contra a sua liberdade sexual. Esta viu invadida a sua privacidade sexual, sem ter possibilidade de rejeitar o comportamento que lhe foi imposto. O arguido incorreu, pois, na prática de atos exibicionistas integrantes do tipo legal de crime de importunação sexual. Nesta conformidade, o recurso não merece provimento, sendo de confirmar a sentença recorrida. III. DISPOSITIVO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em: A) - Na parte relativa ao pedido de indemnização civil, rejeitar o recurso interposto pelo demandado, A. L., por a decisão ser irrecorrível. B) - Na parte criminal, negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, A. L., confirmando a sentença recorrida. Custas da parte criminal a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a três unidades de conta (arts. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma), não se sancionando o recorrente pela rejeição do recurso na parte cível, atenta a isenção prevista no art. 4º, al. n), do Regulamento das Custas Processuais. * (Jorge Bispo)(Elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP) * * Guimarães, 23 de novembro de 2020 * (Pedro Miguel Cunha Lopes) (assinado eletronicamente, conforme assinaturas apostas no canto superior esquerdo da primeira página) 1. - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes e a ortografia utilizada, sendo a formatação da responsabilidade do relator. 2. - Cf. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995. 3. - Cf. o acórdão da RE de 15-05-2012, proferido no processo n.º 37/11.4GDARL.E1, disponível em http://www.dgsi.pt. 4. - Proferido no processo n.º 59/11.5GDPTG.E1, disponível em http://www.dgsi.pt. 5. - Proferido no processo n.º 598/06.0JAPRT.P1, disponível em http://www.dgsi.pt. 6. - In Comentário do Código Penal, 2ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 531. 7. - In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 534. 8. - A tutela Penal da Liberdade Sexual, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, n.º 1, Janeiro-Março 2011, pp. 71-73. 9. - In ob. cit., pág. 536. 10. - Proferidos nos processos, respetivamente, n.º 329/09.2PBVRL.P1, n.º 17/11.0GBAGD.C1 e n.º 13/15.8GBFIG.C1, disponíveis em http://www.dgsi.pt |