Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
36738/23.0YIPRT.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA
PRESCRIÇÃO
RENÚNCIA TÁCITA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A renúncia tácita da prescrição, para efeitos do artigo 302º, do Código Civil, só deve ser afirmada quando possa ser deduzida de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.
II - Por tal razão, não é qualquer comportamento do devedor, mas apenas aquele considerado manifesto, patente, irrefutável, ou seja, a renúncia tácita exige um ato inequívoco.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

EMP01..., Lda., intentou procedimento de injunção contra Administração Condomínio X, requerendo o pagamento da quantia de €6.602,78, sendo €6.065,32 de capital, acrescidos de €395,46 a título de juros de mora, €40,00 de outras quantias e €102,00 de taxa de justiça.
Fundamenta o seu pedido na existência de um contrato de fornecimento de eletricidade e gás, em que a autora forneceu à ré, para vários locais de consumo, e esta não pagou as faturas que elenca, no valor global de €6.065,32.
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A ré veio deduzir oposição, pugnando pela exceção de prescrição, uma vez que se tratando de faturas referentes ao período de 17.03.2022 a 16.08.2022, a ação apenas deu entrada no dia 17.04.2023, ou seja, cerca de 8 meses depois.
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Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgando procedente a exceção de prescrição relativamente a toda a quantia peticionada, absolveu a ré do pedido.
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Inconformada com a sentença veio a autor interpor recurso terminando com as seguintes conclusões:

1. Nos autos, a Ré/Recorrida foi absolvida de qualquer pagamento à Autora/Recorrente, em face da procedência da exceção de prescrição.
2. A Recorrente não concorda com a decisão proferida, entendendo que deve ser revogada e substituída por outra que julgue a acção improcedente, porquanto o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e valoração da prova produzida e, ao mesmo tempo, uma errada interpretação e aplicação da lei, devendo ser alterada a decisão de mérito proferida.
3. A Recorrente entende que, em face dos documentos constantes dos autos e da prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, impunha-se decisão diferente quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, e, por via disso, quanto à matéria de direito.
4. Isto porque a Recorrente entende ter havido uma situação de renúncia à prescrição por parte da Ré/Recorrida, em face da existência de pagamentos de faturas por parte da Ré após a cessação do contrato de prestação de serviços, e, da interação ocorrida entre a Autora e a Ré nesse período, com contactos telefónicos e troca de e-mails, pedido de conta corrente por parte da Ré, impondo as provas produzidas uma decisão diferente sobre a matéria de facto e, por via disso, sobre a matéria de direito.
5. A respeito da impugnação da matéria de facto, impõe-se referir que os factos constantes das alíneas a) e b) da matéria de facto dada como não provada, encontram-se incorretamente julgados, devendo ser julgados em conformidade com o que infra se descreverá.
6. Porquanto, entende a Recorrente que andou mal o Tribunal a quo ao não ter analisado e considerado uma parte do depoimento da testemunha AA, mormente, nos contactos telefónicos tidos, nos pagamentos de faturas efetuadas pela Ré no período entre o fim da relação contratual e a entrada dos autos, e, é de senso comum, que existindo contactos, pagamentos, pedidos de conta corrente, naturalmente criou-se na Recorrente, a expetativa de receber a totalidade das faturas em divida.
7. Resulta do depoimento da testemunha supra, que nunca existiu por parte da Ré uma clara comunicação ou intenção de não pagar, mas sim com pedidos de conta corrente, e, com alguns pagamentos efetuados, criou-se na Autora, a expetativa de receber a totalidade das faturas em divida, pelo que se impunha que se desse como provada a factualidade inserta sob a alínea a) dos factos dados como não provados.
8. Assim, a materialidade vertida nos artigos … da P.I. da Recorrente, dados como não provados na decisão em crise sob as alíneas a) e b) dos factos dados como não provados, deverá ser aditada ao conjunto de factos dados como provados, por ter sido produzida prova capaz de a confirmar.
9. As declarações da testemunha AA excerto transcrito dos 9 minutos e 24 segundos aos 14 minutos e 08 segundos e dos 14 minutos e 12 segundos aos 15 minutos e 26 segundos, deveriam sempre ser conjugadas com a demais prova constante dos autos, designadamente, com os documentos juntos aos autos (email, faturas, etc.) e de acordo com as quais podemos concluir, sem margem para dúvidas, que a recorrida praticou atos que consubstanciam uma renúncia (ainda que tácita) à prescrição.
10. Pois, a Recorrida ao solicitar mais elementos sobre a dívida, através do referidos emails e ao efetuar pagamentos parciais, reconheceu ser devedora da quantia em dívida e, através desse reconhecimento, em ../../2023, com o último email ou último pagamento, a recorrida renunciou tacitamente ao prazo de prescrição que havia decorrido até essa data, tendo-se aí          iniciado novo prazo, pelo que, à data da interposição da Injunção, 04/03/2023, ainda não tinha decorrido o prazo prescricional de 6 meses.
11. É que, respeitando as dívidas aqui em causa, de acordo com a matéria de facto fixada no probatório, a débitos resultantes de períodos de prestação de serviço que vão desde fevereiro de 2022 a julho de 2022, à data em que foi enviado o último email/efetuado o último pagamento, pela Recorrida, em ../../2023, tais dívidas já se encontravam prescritas, sendo que este ato da recorrida já após o decurso do prazo prescricional constitui uma renúncia tácita à prescrição, nos termos do artigo 302.º do CC, aliás, desde o terminus do contrato de fornecimento de bens, até ../../2023, existiram sempre contactos regulares entre Recorrente e Recorrida.
12. Estabelece o artigo 302.º do CC que a renúncia da prescrição, que só é admitida depois de haver decorrido o prazo prescricional, pode ser tácita e não necessita de ser aceite pelo beneficiário, tendo legitimidade para renunciar à prescrição quem puder dispor do benefício que a prescrição tenha criado.
13. A   renúncia tácita à prescrição respeita, assim, a um comportamento do devedor, sempre depois de decorrido o prazo prescricional.
A renúncia anterior ao decurso do prazo seria um dos negócios jurídicos feridos de nulidade, a que se refere o artigo 300.º do CC. O n.º 2, do citado artigo 302.º harmoniza-se com o disposto no artigo 303.º, na medida em que a prescrição não opera ipso jure.
14. Mostra-se assente que a recorrida solicitou, por email, à recorrente, entidade credora, um pedido de elementos da dívida, fez várias promessas de pagamento e, inclusive, efetuou pagamentos parciais durante esse mesmo período.
15. Ora, este comportamento importa, per se, a renúncia, inequívoca (ainda que tácita [Cfr., o art.217°, n.° 1, do C. Civil]), à faculdade que lhe havia sido atribuída, pelo decurso do prazo de prescrição da dívida, pois, em princípio, o devedor de uma obrigação prescrita que expressamente propõe ao credor formas de pagamento abdica, necessária e implicitamente, da prescrição.
16. Existe renúncia tácita quando o devedor pratica um facto incompatível com a vontade de se socorrer da prescrição: o pagamento da dívida prescrita, o pedido de moratória do pagamento, a promessa de pagar tão depressa quanto possível e o reconhecimento da dívida.
17. Tais atos foram praticados com conhecimento da prescrição, pelo que, tendo ficado demonstrado que a recorrida sabia, ou não poderia desconhecer, que as dívidas exequendas estavam prescritas, pode, assim, configurar-se o seu comportamento como como uma renúncia tácita à prescrição.
18. Ainda que seja irrelevante saber se a recorrida tinha ou não efetivo conhecimento de que a dívida estava prescrita, uma vez que sabia perfeitamente ser devedora (e a prova disso são os emails enviados à Recorrente).
19. Pelo exposto, verificou-se uma renúncia tácita à prescrição, nos termos do disposto no artigo 302.º CC.
20. E, como se demonstrou nos autos, a prescrição da dívida não opera quaisquer efeitos, na medida em que a Oponente/Recorrida renunciou à mesma.
21. Assim sendo, não se encontra prescrita a dívida dos presentes autos.
22. Pelo exposto, a douta Sentença recorrida incorreu em erro na determinação da matéria de facto, tendo desconsiderado factos provados nos autos que assumem particular relevo para a apreciação da questão sub judice.
23. Consequentemente, deverá ser aditada, ao probatório, a matéria de facto, que resulta provada face ao depoimento da referida testemunha, para a correta apreciação da questão a julgar e, salvo o devido respeito, determinante da decisão em sentido absolutamente inverso.
24.       Se a Sentença recorrida tivesse atentado na totalidade dos factos constantes dos autos e, concretamente, àqueles cujo aditamento ora se requer, não poderia ter considerado não provado a renúncia à prescrição por parte da Recorrida, face ao seu comportamento para com a recorrente.
25. A sentença recorrida fez, igualmente, uma errada interpretação e aplicação da lei, ao não considerar verificada a renúncia tácita, violando, assim, o preceituado no artigo 302º do C.C.
26. Por todo o exposto, deverá alterar-se a decisão sob censura, substituindo-a por outra que julgue a ação totalmente procedente, por provada, e, em consequência, decida pela condenação da Recorrida no pagamento à Autora/Recorrente da quantia peticionada.
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Foram apresentadas contra-alegações, pugnando o Recorrido pela manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC).
No caso vertente, as questões a decidir que ressaltam das conclusões do Recurso interposto são as seguintes:
– Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
– Da prescrição do direito da autora.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
3.2.1. Factos Provados
Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
1. A autora é uma sociedade comercial que explora com intuitos evidentemente lucrativos, o comércio de venda de eletricidade e gás.
2. A autora celebrou com a ré vários contratos de fornecimento de energia, no ano de 2018, para os seguintes Pontos de Entrega (CPE): ...39..., ...YC, ...AY, ...ML, ...SD, ...ZS, ...AF.
3. A ré ao longo da vigência dos contratos nem sempre cumpriu pontualmente os mesmos, pagando por vezes com atraso as faturas que não se encontram reclamadas, e, também deixando faturas mais antigas por liquidar e pagando as mais recentes.
4. Entre o fim do ano de 2022 e Março de 2023, a Ré, por troca de email´s com os comerciais da autora, ia solicitando a conta-corrente em divida e efetuou pagamentos de algumas faturas.
5. A ré enviou à autora, um email datado em ../../2023, a solicitar o envio da conta-corrente.
6. Pelos serviços prestados pela autora à ré, por solicitação desta, nos diversos pontos de entrega, aquela procedeu à emissão das seguintes faturas:
- Fatura ...32 de 02/03/2022 com vencimento a 17/03/2022, no valor de €432,08 (período de 27/01/2022 a 26/02/2022)
- Fatura ...67 de 10/03/2022 com vencimento a 25/03/2022, no valor de €422,60 (período de 08/02/2022 a 07/03/2022)
- Fatura ...71 de 10/03/2022 com vencimento a 25/03/2022, no valor de €197,40 (período de 08/02/2022 a 07/03/2022)
- Fatura ...69 de 11/04/2022 com vencimento a 26/04/2022, no valor de €179,48 (período de 08/03/2022 a 07/04/2022)
- Fatura ...82 de 11/04/2022 com vencimento a 26/04/2022, no valor de €458,80 (período de 08/03/2022 a 07/04/2022)
- Fatura ...95 de 11/04/2022 com vencimento a 26/04/2022, no valor de €230,80 (período de 08/03/2022 a 07/04/2022)
- Fatura ...50 de 29/04/2022 com vencimento a 14/05/2022, no valor de €397,49 (período de 27/03/2022 a 26/04/2022)
- Fatura ...42 de 10/05/2022 com vencimento a 25/05/2022, no valor de €325,18 (período de 08/04/2022 a 07/05/2022)
- Fatura ...43 de 10/05/2022 com vencimento a 25/05/2022, no valor de €193,76 (período de 08/04/2022 a 07/05/2022)
- Fatura ...44 de 10/05/2022 com vencimento a 25/05/2022, no valor de €130,42 (período de 08/04/2022 a 07/05/2022)
- Fatura ...45 de 10/05/2022 com vencimento a 25/05/2022, no valor de €192,50 (período de 08/04/2022 a 07/05/2022)
- Fatura ...46 de 10/05/2022 com vencimento a 25/05/2022, no valor de €152,12 (período de 08/04/2022 a 07/05/2022)
- Fatura ...47 de 10/05/2022 com vencimento a 25/05/2022, no valor de €168,46 (período de 08/04/2022 a 07/05/2022)
- Fatura ...77 de 16/05/2022 com vencimento a 31/05/2022, no valor de €143,57 (período de 13/04/2022 a 12/05/2022)
- Fatura ...98 de 30/05/2022 com vencimento a 14/06/2022, no valor de €376,39 (período de 27/04/2022 a 26/05/2022)
- Fatura ...84 de 11/07/2022 com vencimento a 26/07/2022, no valor de €187,27 (período de 08/06/2022 a 07/06/2022)
- Fatura ...90 de 11/07/2022 com vencimento a 26/07/2022, no valor de €472,41 (período de 08/06/2022 a 07/07/2022)
- Fatura ...05 de 11/07/2022 com vencimento a 26/07/2022, no valor de €202,98 (período de 08/06/2022 a 07/07/2022)
- Fatura ...63 de 11/07/2022 com vencimento a 26/07/2022, no valor de €239,61 (período de 08/06/2022 a 07/07/2022)
- Fatura ...90 de 15/07/2022 com vencimento a 30/07/2022, no valor de €193,35 (período de 13/06/2022 a 12/07/2022)
- Fatura ...68 de 01/08/2022 com vencimento a 16/08/2022, no valor de €502,57 (período de 27/06/2022 a 28/07/2022)
- Fatura ...17 de 01/08/2022 com vencimento a 16/08/2022, no valor de €320,08 (período de 08/07/2022 a 27/07/2022)
7. Por diversas vezes a autora interpelou a ré para proceder ao pagamento das faturas elencadas em 6.
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3.1.2. Factos Não Provados

Inversamente, foram dados como não provados os seguintes factos:
a. Que nas circunstâncias referidas em 4. a ré prometia pagar as faturas em divida.
b. Que a ré com o email referido em 5. tivesse a intenção de verificar os valores em divida para pagar os mesmos.
c. Que a ré tenha procedido ao pagamento integral das faturas descritas no ponto 6. supra.
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3.2. O Direito

3.2.1. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto
Nos termos do artigo 662º, do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A Recorrente considera que foram incorretamente julgados os factos não provados a) e b) que, no seu entender, deveriam ser considerados provados.
Os factos respeitam à intenção da ré de proceder ao pagamento, assentando o fundamento da impugnação no depoimento da testemunha AA e nas comunicações eletrónicas juntas aos autos.
Sem razão, porém.
Do depoimento da testemunha AA e do conteúdo dos e-mails trocados pelas partes, não resulta a promessa ou intenção da ré de proceder ao pagamento, antes um pedido de conta-corrente para aferir do acerto das contas.
Ressalvado o devido respeito, não se tem por segura a conclusão extraída pela autora de que existindo contactos, pagamentos e pedidos de conta corrente se criou naturalmente a expetativa de receber a totalidade da quantia reclamada, já que se tem por mais conforme a conclusão de que tantos contactos e aferições, visavam questionar o montante em dívida, não havendo intenção de pagamento.
O que se pode depreender do teor das comunicações eletrónicas é que a ré ao solicitar mais elementos sobre os valores em dívida, e ao efetuar alguns pagamentos, reconheceu esses montantes como devidos, mas já não os demais reclamados.
Nesta conformidade, é de manter como não provados os factos constantes sob as alíneas a) e b) e, consequentemente, a impugnação à decisão da matéria de facto.
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3.2.2. Da renúncia da prescrição
Não divergem as partes quanto ao prazo de prescrição do crédito e a natureza da prescrição.
A Lei n.º 23/96 de 26 de Julho veio criar no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais e qualificar o serviço de energia como serviço público ao prevê-lo no seu âmbito de aplicação (cfr. artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, alínea d) do referido diploma).
De acordo com o seu artigo 10.º, n.º 1, o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
Em 2008, com a Lei n.º 12/2008 foi introduzido um novo regime de prescrição, passando a atual redação do preceito a prever que o direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
Também o prazo para a propositura da ação pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos (n.º 4), incluindo-se aí igualmente a propositura da injunção.
Tanto significa que o direito de exigir judicialmente o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo (único) de seis meses após a prestação do serviço, contado desde o primeiro dia imediato ao último período de prestação do serviço (cfr. artigo 306.º do Código Civil).
Daqui decorre que o envio da fatura apenas revela para efeito de interpelação e consequente constituição em mora do devedor, não produzindo qualquer efeito na contagem daquele prazo, nomeadamente para interromper a prescrição.
Com tal prazo prescricional de seis meses pretendeu o legislador proteger o consumidor, ciente de que as empresas fornecedoras têm uma estrutura organizativa que lhes permite cobrar os seus créditos naquele prazo, em momento, pois, próximo do respetivo consumo.
Considerando tal escopo e a letra perentória da lei, «prescreve no prazo de seis meses», consideramos tratar-se de uma prescrição comum, liberatória ou extintiva. A este propósito refere Calvão da Silva, que «(…) a nova lei impõe que, decorrido o prazo de seis meses, se extingam o crédito e a correlativa obrigação civil, nos termos gerais da prescrição extintiva. Apesar da brevidade do prazo, não se trata de simples prescrição presuntiva, mas de autêntica e verdadeira prescrição, ainda que de curto prazo, com a nova lei a querer evitar que o devedor continuasse, ex vi do Código Civil, vinculado à obrigação pelo longo prazo de cinco anos: agora, pela lei nova, decorridos seis meses, dá-se a liberação do devedor, sem que o credor possa impedi-lo de se prevalecer da excepção peremptória»[1].
O Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2010, de 03.12.2009[2], pugna pelo mesmo sentido da prescrição extintiva, defendendo que “ o texto legal não dá abertura à qualificação, de iure constituto, como prescrição presuntiva; a duração do prazo, mais próximo dos prazos das prescrições presuntivas, não é argumento suficiente, sabendo-se que a lei pretendeu declaradamente proteger o utente. E, em bom rigor, não ocorre aqui uma das principais razões da existência das prescrições presuntivas, e que é a de corresponderem a dívidas para cujo pagamento não é habitual a exigência de recibo”.
Na situação presente, a autora reclama o pagamento de faturas referentes a períodos de prestação de serviço que vão desde fevereiro de 2022 a julho de 2022.
O procedimento de injunção foi instaurado em 06 de abril de 2023.
Tendo decorrido mais de seis meses, as faturas encontram-se prescritas.
Contudo, a questão posta no recurso consiste em saber se a ré com o seu comportamento renunciou tacitamente à prescrição.

Estipula o artigo 302.º do Código Civil que:

«1. A renúncia da prescrição só é admitida depois de haver decorrido o prazo prescricional.
2. A renúncia pode ser tácita e não necessita de ser aceite pelo beneficiário.
3. Só tem legitimidade para renunciar à prescrição quem puder dispor do benefício que a prescrição tenha criado.»

Como decorre do artigo 217º, nº1, do Código Civil a declaração negocial pode ser tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.
Todavia, impõe-se uma exigência acrescida relativamente aos factos concludentes, reclamando-se como factos significantes, positivos e inequívocos. Assim, haverá renúncia tácita, por exemplo, se, decorrido o prazo prescricional, o devedor reconhecer a dívida, obrigando-se a pagá-la, se admitir a subsistência da divida de capital e juros, se propuser formas de pagamento[3].

Por tal razão, não é qualquer comportamento do devedor, mas apenas aquele considerado manifesto, patente, irrefutável, ou seja, a renúncia tácita exige um ato inequívoco[4].
É esse também o sentido veiculado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.12.2023, ao reiterar que a afirmação da renúncia tácita do devedor à invocação da prescrição pressupõe uma ilação segundo a concludência concreta do comportamento e a doutrina e jurisprudência têm, reiteradamente, apontado a necessidade de reconduzir a atuação do renunciante a comportamentos significantes, positivos e inequívocos.
A propósito realça Júlio Gomes, que “só se deve afirmar uma renúncia tácita à prescrição nas hipóteses de incompatibilidade absoluta entre o comportamento do devedor e a vontade do mesmo de invocar a prescrição”.[5]
Neste contexto, o pedido de envio de conta corrente e o pagamento de algumas faturas não são de molde a concluir pela intenção de pretender pagar a totalidade do montante reclamado.
Não é, pois, de considerar que a ré praticou atos incompatíveis com a vontade de se socorrer da prescrição, e a inexistência deste ato inequívoco, afasta a consideração de renúncia tácita à prescrição.
Termos em que terá de improceder a apelação.
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Sumário:
I – A renúncia tácita da prescrição, para efeitos do artigo 302º, do Código Civil, só deve ser afirmada quando possa ser deduzida de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.
II - Por tal razão, não é qualquer comportamento do devedor, mas apenas aquele considerado manifesto, patente, irrefutável, ou seja, a renúncia tácita exige um ato inequívoco.
*
IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 31 de Outubro de 2024

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Maria Amália Santos
2º Adj. - Des. Margarida Pinto Gomes



[1] Revista de Legislação e Jurisprudência ano 132.º, página 152. O mesmo entendimento é defendido pelo autor na Revista de Legislação e Jurisprudência ano 137.º, págs 174 e seguintes, já na vigência das alterações decorrentes das Lei n.ºs 12/2008 e 24/2008.
Em sentido diverso, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V volume, edição de 2018, página 239.
[2] Publicado no DR, 1.ª série, n.º 14, de 21.01.2010.
[3] Acórdão da Relação de Coimbra de 11.12.2018, proferido no processo nº 96/18.9T8CBR-A.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Acórdão da Relação de Coimbra de 11.12.2018, proferido no processo nº 96/18.9T8CBR-A.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Comentário ao Código Civil: Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, anotação ao artigo 302.º, pag. 746.