Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
| ||
Relator: | ANTÓNIO TEIXEIRA | ||
Descritores: | RAI ASSISTENTE OMISSÃO DE FACTOS REJEIÇÃO AC. FIXAÇÃO JURISPRUDÊNCIA Nº 7/2005 DR 1ª SÉRIE A Nº 212 DE 4.11.2015 | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 10/08/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I) O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, na sequência do arquivamento pelo Ministério Público, deve conter a descrição sintética dos elementos objectivos e subjectivos dos ilícitos imputados ao arguido. II) A omissão desses elementos determina a rejeição daquele requerimento, nos termos do disposto no Artº 287º, nº 3, do C.P.Penal, não havendo lugar, nessa hipótese, ao convite ao aperfeiçoamento, tendo aqui inteira aplicação o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/2005, de 12/05/2005, in DR Iª Série A, nº 212, de 04/11/2005. | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO 1. No âmbito do Inquérito nº 1575/15.5T9BRG, a correr termos na 2ª Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal dos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi proferido despacho de arquivamento, nos termos do disposto no Artº 277º, nº 2, do C.P.Penal, relativamente a factos participados por A. C. contra “X-Clínicas Dentárias, Lda.” e S. F., pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo Artº 148º do Código Penal, ou pelo crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis, p. e p. pelo Artº 150º do mesmo diploma legal. 2. A queixosa, tendo-se constituído assistente, notificada daquele despacho de arquivamento, veio requerer abertura da instrução, nos termos contantes de fls. 181/205. Peça processual na qual, em síntese, expende longas (dos Artºs. 1º a 62º) críticas ao Mº Público, quer em termos de incorrecta apreciação das provas indiciárias produzidas em sede de inquérito (que conduziu ao arquivamento), quer em termos de diligências que, em seu entender, foram omitidas, e que reputa de essenciais para a descoberta da verdade material, quer, finalmente, em termos de errada aplicação do “direito atinente”, sustentando que a denunciada S. F. deve ser pronunciada pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo Artº 148º do Código Penal, e de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis, p. e p. pelo Artº 150º do Código Penal, “porquanto” (1) (transcrição (2)): “(...) 64º No dia 14/1/2015, a assistente foi sujeita a um tratamento de endodontia (desvitalização) do dente 45, na X-Clínicas Dentárias, Lda, sita no Largo (...), Braga, tratamento realizado pela arguida S. F., médica dentista, melhor identificada nos autos (...). 65º No âmbito dessa terapêutica endodôntica do dente 45, durante a irrigação do sistema de canais ter ocorrido extravasamento de hipoclorito de sódio, através do ápex para os tecidos periapicais. 66º Na sequência desse tratamento, a assistente sentiu, imediatamente, dores intensas e paralisia facial. 67º Que a levaram novamente a uma consulta com a aqui arguida, medica dentista, 68º Esta que, nas várias vezes que a assistente recorreu ao seu consultório médico, após o tratamento realizado em 14/1/2015, apenas fez tratamento com fármacos. 69º No dia 20/1/2015, dada a continuação das dores intensas sentidas pela assistente, novamente se dirigiu ao consultório da arguida S. F. esta que, apenas nesta data a assistente foi dirigida para o Hospital de Braga, onde foi realizada aspiração do conteúdo do edema. 70º Ao proceder da forma concertada atras descrita, optando por um tratamento em desuso, com sérios riscos de acidente, ciente dos riscos de tal prática, podendo optar por outros tratamentos, e verificando o acidente com o hipocloritoo de sódio, e apenas ter medicado a assistente, agiu a arguida S. F. negligenciando o dever de cuidado a que estava o brigada, violando as leges artis. 71º Mais violou as leges artis, quando após o acidente apenas receitou medicação. 72º Assim, a denunciada agiu de forma livre e consciente e deliberada, bem sabendo que toda a sua conduta atrás descrita era reprovável, proibida e punida por lei, no entanto, não se absteve que o fazer. 73º Deste modo, a denunciada S. F. cometeu os crimes de ofensa à integridade física por negligência e intervenções e tratamentos medico-cirúrgicos, respectivamente previstos e punidos pelos artigos 148 nº 1 e 150° n° 2 do C.P.”. 3. Tal requerimento de abertura de instrução foi rejeitado pelo despacho de 15/11/2017, do Mmº Juiz de Instrução Criminal do Juízo de Instrução Criminal de Braga – J2, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, por inadmissibilidade legal, nos seguintes termos (transcrição): “Inconformada com o despacho de arquivamento proferido pelo MP (fls. 155 e ss), vem a assistente A. C. requerer a abertura da instrução (fls. 181 e ss) contra S. F. – a qual assim assume a qualidade de arguida por força do disposto no artigo 57.º/1 do CPP), afirmando existência de indícios suficientes da prática por esta de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º/1 do Código Penal, e de um crime de violação das leges artis, p. e p. pelo artigo 150.º do Código Penal. Em suma, diz que: 1. No dia 14/01/2015 foi sujeita a um tratamento de desvitalização do dente 45, sendo a arguida, médica dentista, quem realizou o tratamento. 2. Durante a desvitalização ocorreu extravasamento de hipoclorito de sódio, através do ápex, para os tecidos periapicais. 3. Tendo a assistente de imediato sentido dores intensas e paralisia facial. 4. Após recorreu várias vezes à consulta da arguida mas esta apenas fez tratamento com fármacos. 5. No dia 21/01/2015, dada a continuação das dores intensas, dirigiu-se novamente a consulta com a arguida, tendo então esta a encaminhado para o Hospital de Braga, onde lhe foi realizada aspiração do conteúdo do edema. 6. Ao proceder da forma descrita, optando por um tratamento em desuso, com sérios riscos de acidente e ciente dos riscos de tal prática, podendo optar por outros tratamentos, e verificando o acidente com o hipoclorito de sódio, e apenas ter medicado a assistente, agiu a arguida negligenciando o dever de cuidado a que estava obrigada, violando as leges artis 7. Tendo ainda violado as leges artis quando após o acidente apenas recitou medicação. 8. Agiu a arguida de forma livre e consciente e deliberada, bem sabendo que todas a sua conduta era reprovável, proibida e punida por lei, no entanto não se absteve de o fazer. Decidindo. Como se sabe o inquérito, nos termos do disposto no artigo 262.º/1 do Código de Processo Penal, é a fase onde se prepara a decisão de acusação ou de não acusação. Assim sendo, quando, designadamente, o Ministério Público não obtém indícios suficientes da verificação de crime ou de quem são os seus agentes, profere despacho de arquivamento nos termos do disposto no artigo 277.º/1 e 2 do Código de Processo Penal. No caso dos autos o Ministério Público arquivou o inquérito, nos termos do disposto no artigo 277.º/2 do Código de Processo Penal. Não se conformando, como se disse, a assistente requer a abertura da instrução, nos termos acima sumariamente expostos. Acontece que o requerimento de abertura da instrução, quando apresentado pelo assistente, não pode ser formulado nos mesmos termos do arguido – cfr. Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Vinício Ribeiro, 2.ª ed. p. 790). Na verdade, o mesmo tem de equivaler a uma acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação, não competindo ao juiz suprir as suas eventuais falhas ou insuficiências na enumeração dos factos concretos a imputar inegável e directamente ao arguido e que permitam, caso venham a mostrar-se suficientemente indiciados, o preenchimento dos elementos não só objectivos como subjectivos do tipo de crime que seja efectivamente imputado. Na verdade para além da narração dos factos que o requerimento de abertura da instrução deve conter, susceptíveis de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, impõe-se, concomitantemente, que o mesmo contenha, a data e o lugar da ocorrência dos factos, o grau de participação que o arguido neles teve, sendo o caso, e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis aos factos narrados cuja autoria é imputada ao arguido, o qual deve estar identificado, ou pelo menos devem ser dadas indicações tendentes a essa identificação (artigo 287.º/2, por referencia ao artigo 283.º/3-b) e c) do CPP). Mas não só, importa também que dele constem os elementos respeitantes ao dolo. Como se diz no acórdão do TRE, de 24/10/2017, proc. 321/15.8PAPTM.E1: No caso de requerimento de abertura da instrução pelo assistente com pretensão de sujeição de arguido a julgamento tal peça tem mesmo que ser uma “acusação”. Tem que ser apresentada com autonomia factual. Tem que “contar uma história” apenas com factos essenciais a integrar os tipos penais pretendidos integrar – e todos eles, objectivos e subjectivos – sem adjectivações e/ou considerados probatórios ou de qualificações jurídicas de permeio. E tais factos têm que estar concentrados seguindo uma lógica de subsunção aos diversos tipos penais pretendidos. Esta asserção liga-se, naturalmente, à ideia sabida de que é boa metodologia na dedução de uma acusação dispor do tipo penal presente na dedução desta. E a qualificação jurídica só pode surgir a final, assim como as indicações probatórias que se impõem. Não compete ao juiz de instrução andar a escolher factos dispersos e a reduzir a factos – deduzindo as intenções dos requerentes - amálgamas de factos e considerandos probatórios e de direito. Ora, em face dos factos supra sumariamente referidos, pretende a assistente a pronúncia da arguida S. F. pela prática, em concurso efectivo, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º/1 do Código Penal, e de um crime de violação das leges artis, p. e p. pelo artigo 150.º do Código Penal. Dispõe o artigo 148.º do Código Penal que: 1 - Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. Nos termos do artigo 15.º do referido diploma legal: Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto. Pode entender-se que o que é característico dos crimes negligentes, ao contrário dos crimes dolosos, é justamente a incongruência entre a situação objectiva e a situação subjectiva. Na negligência, a pessoa não representa uma situação objectiva, ou se a representa como uma possibilidade, não se convence dela, e, portanto, essa incongruência, essa oposição, essa contradição entre a realidade objectiva e a representação duma pessoa é justamente aquilo que é característico dos crimes negligentes; e por isso talvez não se deva falar no elemento subjectivo do tipo de crime - Teresa Beleza, in Direito Penal Vol. II, pág. 573, AAFDL. Apesar desta posição da referida autora, a doutrina dominante entende que a negligência contém um tipo de ilícito e um tipo de culpa, ou seja, como violação de um dever de cuidado objectivo, faz parte do tipo de ilícito; como censurabilidade pessoal da falta de cuidado de que o agente é capaz, é elemento de culpa. O que aliás é consagrado na própria definição legal de negligência, plasmada no artigo 15.° do Código Penal: "Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado..." isto é violação do cuidado objectivamente devido, que corresponde ao tipo de ilícito e "... e de que é capaz", ou seja capacidade instrumental (violação do cuidado que o agente é capaz de prestar, segundo o seu conhecimento e capacidades pessoais), que corresponde ao tipo de culpa - neste sentido Figueiredo Dias in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora - 2001, pág. 352.). No caso concreto verifica-se que o requerimento apresentado é absolutamente omisso na alegação factual decisiva ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em causa (ofensa à integridade física negligente). Na verdade, para além dos dizeres legais, a assistente refere que a arguida optou por um tratamento em desuso, com sérios riscos de acidente, que estava ciente dos riscos de tal prática e que podia ter optado por outros tratamentos, o que, com todo o respeito, é manifestamente insuficiente. E o mesmo se passa quanto ao crime de violação das leges artis Nos termos do artigo 150.º Código Penal: 1 - As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física. 2 - As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal. As leges artis são entendidas como “um complexo de regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais. (…) Regras de índole não exclusivamente técnico-científica, mas também deontológicas ou de ética profissional, pois não se vislumbra qualquer razão, antes pelo contrário, para a exclusão destas da arte médica” – Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, “Responsabilidade Médica em Direito Penal”, Almedina, página 54). Deve dizer-se que “a atipicidade prescrita no nº 1 vale tanto para a invasão da integridade física em que se actualiza o acto médico (v.g., uma incisão, um corte, a abertura da cavidade abdominal para retirar um tumor, etc) como para as consequências lesivas para a integridade física ou para a vida, desencadeadas por aquela intervenção” – Comentário Conimbricense do Código Penal, 2.ª edição, tomo I, p. 461. Como se refere no acórdão do TRC, de 26/02/2014, proc. 1116/10.0TAGRD.C1 - São elementos constitutivos do crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis: [tipo objectivo]. - A realização de intervenção ou tratamento por médico ou outra pessoa legalmente autorizada, com propósito curativo, e com violação das leges artis; - A criação de perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde, em consequência da inobservância das leges artis; [tipo subjectivo] - O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto [que deverá abranger todos os elementos do tipo objectivo]. Trata-se de um crime específico próprio, pois só pode ser praticado por agente qualificado isto é, por médico ou por outra pessoa legalmente autorizada a levar a cabo a intervenção ou o tratamento. É também um crime de perigo concreto na medida em que o perigo faz parte do tipo [perigo este que, no entanto, não tem por causa uma concreta ofensa corporal]. É ainda um crime de execução vinculada [o tipo descreve o particular comportamento que a acção deve revestir] e um crime doloso, em que o dolo abrange a conduta típica – a realização de intervenção ou um tratamento com propósito terapêutico, mas com violação das leges artis – e o perigo para a vida ou o perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde. Daqui resulta que não estará preenchido o tipo, quer quando o dolo do agente abarca a ofensa grave à integridade física ou a morte [nestes casos, os tipos preenchidos serão o de ofensa á integridade física e o de homicídio, respectivamente], quer quando a conduta típica, a violação das leges artis tiver ocorrido por negligência. Ora, no caso dos autos, sempre com todo o respeito, afigura-se que a assistente misturou as situações e perdeu-se em generalidades. Enfatizando, o artigo 150.º/2 do Código Penal restringe a sua aplicação aos casos de perigo para os bens jurídicos. Se, ao invés, da violação das leges artis resultar dano já será de um homicídio ou de uma ofensa corporal que se trata. A contrário, se da violação das leges artis não resultar sequer qualquer perigo, não há crime (cfr. Do Acto Médico ao Problema Jurídico Vera Lúcia Raposo, Almedina, p. 165) Ora, mais uma vez, olhando para o requerimento de abertura da instrução, seja do ponto de vista da alegação factual à pertinência do preenchimento dos elementos objectivos ou subjectivos do tipo em causa (aqui o dolo é de perigo), verificamos uma absoluta deficiência, nos termos em que o tipo o exige, em face do supra exposto, parecendo que a assistente trata o crime em causa como se fosse um crime de dano que estivesse em alternativa ao crime de ofensa à integridade física negligente. São assim os vícios acima apontados determinantes na sorte do requerimento de abertura da instrução apresentado. Sem a imputação de factos concretos que permitam o preenchimento dos elementos objectivos e/ou subjectivos de um determinado tipo legal de crime e demais elementos necessários, o(s) arguido(s) – desde que visado pela investigação - só poderia(m) ser pronunciado)s) pelo crime de ofensa à integridade física negligente ou violação das leges artis se à pronúncia fossem levados factos que representariam uma alteração substancial dos descritos no requerimento de instrução, o que está vedado e torna a instrução legalmente inadmissível. Como é óbvio se não são alegados factos que permitam afirmar objectivamente o comportamento típico, nunca a acção nesses termos pode ser enquadrada, sendo que no que refere aos factos atinentes ao preenchimento dos elementos subjectivos do tipo, o Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte jurisprudência (acórdão 1/2015, DR, 1.ª Série, de 27/01/2015) “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”. Numa visão analógica entre a acusação e o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, a falta de indicação de indicação dos elementos referidos na alínea b) do artigo 283.º/3 do Código de Processo Penal não pode deixar de ser conducente a um caso legal - porquanto prevista na lei a consequência daquela falta, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 286.º, 287.º/2 e 3, 283.º/2 e 3-b), 308.º/2, e 311.º/1, 2-a), e 3-b), do Código de Processo Penal - de inadmissibilidade de um requerimento que não substancie a factualidade pertinente para o preenchimento dos referidos elementos típicos dos tipos de ilícitos imputados à arguida pela assistente. E também não há lugar a convite à assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução (cf. Ac. do STJ para fixação de jurisprudência, nº 7/2005, publicado no DR I série A, nº 212, de 04-11-2005). Chegados aqui, impõe-se a rejeição do requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente A. C., o que decido. (...)”. 4. Inconformada com essa decisão judicial, a assistente dela veio interpor o presente recurso (que consta de fls. 220/270), extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição): “1. O presente recurso vem interposto do Douto Despacho de Rejeição do Requerimento de Abertura de Instrução(RAI) apresentado pela Recorrente, proferido pelo Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de Braga, do Tribunal Judicial de Braga, nos autos à margem identificado, com fundamento na inadmissibilidade da Instrução – por inexequibilidade e por falta de objecto – e na nulidade do RAI, tudo nos termos das disposições conjugadas dos arts. 287.º, n.º 2 e n.º 3 e 283.º n.º 3 al. b), todos do CPP, 2. Porquanto, no entender do Meritíssimo Juiz de Instrução, o RAI da Assistente “é manifestamente omisso quanto à descrição factual dos imputados crimes de Ofensa à integridade física por negligência e intervenções e tratamentos medico –cirúrgicos, respetivamente previstos e punidos pelos artigos e 148 nº 1 e 150º nº 2 do C.P 3. O presente recurso fundamenta-se, em primeiro lugar, na irregularidade do despacho recorrido por deficiente e insuficiente fundamentação, nos termos do disposto no n.º 5 do art. 97.º conj. os arts. 118.º n.º 2 e 123.º, todos do CPP, bem como na impugnação da interpretação do requerimento de abertura de instrução levada a cabo pelo Tribunal a quo, e ainda na impugnação da matéria de direito aduzida pelo Tribunal a quo, mais concretamente na interpretação dada ao plasmado nas alíneas b) e c) n.º 3 do art. 283.º, ex vi art. 287.º n.º 2 conjugado com o n.º 3 do referido art. 287.º, todos do CPP, , e consequente nulidade insanável do despacho recorrido por determinar a não realização da instrução sendo a mesma obrigatória, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 119.º al. d) e 287.º n.º 3 a contrario sensu, ambos do CPP. 4. Relativamente à nulidade insanável do despacho recorrido, e não obstante a análise desta depender indubitavelmente da análise cuidada do RAI apresentado pela Assistente, desde já se diga que o mesmo padece de nulidade insanável nos termos do disposto no n.º 3 do art. 287.º, a contrario sensu, conjugado com a al. d) do art. 119.º, ambos dos CPP, porquanto, determina a não realização da fase instrutória em situação que a mesma se afigura obrigatória. 5. Pois, como melhor exposto e explanado nos pontos 4. e 6., das motivações de recurso, para onde expressamente remetemos, e que aqui damos por integralmente reproduzidos, o RAI oferecido pela Assistente, contrariamente ao preconizado pelo Ex.mo Sr. Juiz de Instrução, delimita devidamente e como exigido legalmente o objecto da instrução requerida, e alega o preenchimento dos elementos do tipo de crime Ofensa à integridade física por negligência e intervenções e tratamentos medico –cirúrgicos, respetivamente previstos e punidos pelos artigos e 148 nº 1 e 150º nº 2 do C.P cumprindo assim todos os formalismos legais impostos, pelo que, ao indeferir o RAI da Assistente determinando a não realização da fase instrutória, o Exmo. Juiz de Instrução fê-lo sem qualquer fundamento legal válido. 6. No que à irregularidade do despacho recorrido, por deficiente e insuficiente fundamentação, concerne, o despacho aqui colocado em crise, preconiza uma insuficiente motivação, porquanto, não indica com precisão, e de forma crítica, quais os elementos objectivos e subjectivos em falta no RAI da Assistente. Pelo que, tal despacho é inválido nos termos do disposto nos arts. 97.º n.º 5 e 118.º n.º 2 conjugado com o art. 123.º, todos do CPP, irregularidade essa que aqui expressamente se argui. 7. Relativamente à errada interpretação do requerimento de abertura de instrução, levada a cabo pelo Tribunal a quo, entendeu o Meritíssimo Juiz de Instrução que o RAI da Assistente é omisso quanto à descrição factual, à pertinência do preenchimento dos elementos objectivos ou subjectivos do imputado crime de Ofensa à integridade física por negligência e intervenções e tratamentos medico –cirúrgicos, respetivamente previstos e punidos pelos artigos e 148 nº 1 e 150º nº 2 do C.P 8. Salvo o devido respeito, ao contrário do entendimento preconizado no douto despacho recorrido, a Recorrente, no RAI oferecido, procede à devida identificação dos elementos objectivos e subjectivos do crime de Ofensa à integridade física por negligência e intervenções e tratamentos medico –cirúrgicos, respetivamente previstos e punidos pelos artigos e 148 nº 1 e 150º nº 2 do C.P, através da narração sintética dos factos consubstanciadores (indicando o tempo, o modo e o lugar) que fundamentam a aplicação de uma pena à arguida, 9. Inclusivamente, a Assistente nos arts. 73º a 83º do seu RAI, procede a uma descrição fáctica equivalente a uma acusação pública, com a indicação precisa dos factos que considera indiciados, integradores tanto dos elementos objectivos como dos elementos subjectivos Ofensa à integridade física por negligência e intervenções e tratamentos medico –cirúrgicos, respetivamente previstos e punidos pelos artigos e 148 nº 1 e 150º nº 2 do C.P. 10. É ainda entendimento da Recorrente que, o despacho de indeferimento do RAI, aqui recorrido, preconiza uma interpretação exacerbadamente positivista e formalista do dispositivo legal vigente relativo ao requerimento de abertura de instrução e formalidades a que o mesmo deve obedecer – arts. 287.º n.º 2 e 283.º n.º 3, ambos do CPP. O RAI oferecido pela Assistente não merece as críticas de omissão de formalidades tecidas no despacho recorrido. 11. É certo que poderia tal factualidade encontrar-se ainda mais fundamentada, porém, tal não significa, nem pode significar, como pretende o Tribunal recorrido, que não tenham sido cumpridas as formalidades que a lei exige, nomeadamente aquelas a que alude o art. 283.º n.º 3, al. b), do CPP. 12. Aliás, o próprio Tribunal à quo, contradiz-se na sua fundamentação, pois ora alega a total omissão do preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime, ora diz que tal é apenas deficiente! 13. E, contrariamente ao alegado no despacho recorrido, a Assistente alegou sim factos no seu RAI com os quais pretendeu demonstrar, e que claramente demonstram, o estado anímico da arguida na altura da prática dos factos. 14. No seu RAI, alega a assistente que a arguida (médica dentista de profissão) no âmbito de um tratamento ortodôntico pôs em perigo o corpo e a saúde da assistente, que desde logo de denotou pela paralisia facial provocada pela intervenção da arguida. Ao que acresce que dos relatórios constantes dos autos e dos depoimentos de testemunhas, Colegas de profissão da arguida, esta poderia ter optado por outro tratamento, ao invés de por em visco a saúde e quem sabe, a vida, da assistente. 15. Veja-se, relativamente a este, as expressões supra transcritas, no ponto 4. A) – referente ao crime de ofensa à integridade fisica– e no ponto 4. B) – relativo ao crime de intervenções e tratamentos medico –cirúrgicos, com violação das legis artis que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, constantes do RAI apresentado pelo Assistente, que contrariamente ao preconizado pelo Tribunal a quo transparecem, de forma clara, directa e manifesta, sem necessidade de recurso a quaisquer presunções, os elementos do tipo legal de crime. 16. Da leitura cuidada e atenta das aludidas expressões resulta demonstrado que se encontram alegados os elementos objectivos e subjectivos dos crimes enunciados. Leitura cuidada e atenta que se exige e que não foi levada a cabo pelo Tribunal Recorrido! 17. Resulta de todo o circunstancialismo descrito no RAI, decorrendo directamente dos actos praticados pela arguida, devidamente descritos e circunstanciados, conforme melhor explanado supra nas motivações do presente recurso (pontos 4. A) e 4.B), referentes ao crime de ofensas à integridade física por negligencia e de intervenções e tratamentos medico-cirurgicos com violação da legis artis respectivamente), para onde expressamente se remete e que aqui se dá por integralmente reproduzido, por questões de economia processual dada a necessidade de síntese das presentes conclusões. 18. Pelo que, a forma como a Assistente factualizou as condutas da arguida, permitem demonstrar o tratamento administrado à Assistente lhe criou perigo na saúde e até vida desta, quando existia à disposição da arguida um tratamento, com o qual evitaria tal perigo. 19. Que se diga que podia estar ainda mais descriminado a factualidade, até se aceita. Mas dizer que do RAI da Assistente não constam quaisquer elementos identificadores dos elementos objectivos nem subjectivos do crime que se pretende ver imputado à arguida, não se concebe nem se concede! 20. Neste conspecto, mal andou o tribunal a quo, ao decidir como supra exposto, não tendo, nitidamente, procedido a uma atenta apreciação do RAI oferecido pela Assistente, apreciação essa que lhe é exigida, tendo a Assistente cumprido, no Requerimento de Abertura de Instrução por si oferecido, todos os requisitos exigidos pelo art. 287.º n.º 2 conjugado com as al.b) e c) do n.º 3 do art. 283.º, ambos do CPP, procedendo à devida identificação dos factos - ainda que de forma sintética, indicando o tempo, o modo e o lugar da sua prática - que integram os elementos do crime p. e p. no art. 153.º do CP e que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido. 21. O entendimento plasmado no despacho recorrido, veda à Assistente a realização da Justiça material pelo simples facto de a mesma não utilizar um formalismo exacerbado, formalismo esse que a própria lei não impõe, mas que os usos forenses têm levado a algumas doutas peças processuais de acusação ou de RAI no nosso país, o que temos por manifestamente ilegal. 22. A Assistente, não se limita a relatar as circunstâncias externas da actuação dos arguidos, ao invés caracterizando, ainda que sem recorrer a chavões e frases feitas, o estado de espírito destes aquando das acções criminosas. 23. Os factos constantes do RAI da Assistente, a serem dados como provados em julgamento, sempre determinariam a condenação dos arguidos pelo crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. no art. 191.º do CP, bem como a condenação do Arguido Joaquim pelo crime de ameaça, p. e p. no art. 153.º do CP, não carecendo, ao contrário do que pretende fazer crer o Tribunal Recorrido, o Juiz de Julgamento de recorrer a presunções do dolo do arguido para que lograsse a sua condenação (negrito e sublinhado da nossa autoria, abstendo-nos de comentar a substância do parágrafo...). 24. Novamente anuímos, é certo que, no que aos elementos subjectivos concerne, não optou a recorrente por recorrer ao chavão típico como forma de alegar os dois elementos constitutivos do dolo, que a prática judiciária tem reconduzido à expressão “o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que tal conduta é proibida e punida por lei”, ou outra semelhante. Não obstante, constam alegados no RAI factos suficientes a caracterizar o seu elemento volitivo, sendo que, relativamente ao elemento cognitivo, o mesmo resulta da própria conduta do agente, objectivamente considerada e analisada à luz das regras de experiência comum. 25. Mas se o Juiz de Instrução, sentisse, ainda assim, necessidade de recorrer a uma formulação do elemento subjectivo dos ilícitos criminais, através do aludido jargão judiciário, sempre poderia, o tribunal a quo, ter emitido despacho no sentido de convidar a Assistente ao aperfeiçoamento do seu RAI, ou, em sede de debate instrutório, lançar mão do mecanismo previsto no art.303.º do CPP, propondo uma alteração não substancial dos factos descritos no RAI, no sentido de aperfeiçoar a formulação dos elementos subjectivos, mais conforme à prática judiciária, conforme melhor explanado supra, no ponto 5. das motivações do presente recurso, entendimento que aqui se dá por integralmente reproduzido e que apenas não se transcreve por razões de economia processual. Aliás, tais alternativas ao despacho de indeferimento liminar são apoiadas por alguma jurisprudência bem como doutrina, em nada contradizendo a jurisprudência fixada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, e são as que melhor se coadunam com a realização da justiça material e o direito de acesso à justiça do ofendido, consagrado no art. 20.º da CRP, obstando-se à consagração de um verdadeiro e puro formalismo exacerbado que não encontra qualquer fundamento na lei. 26. Optar-se por solução conivente com a decisão do Tribunal Recorrido será, com o devido respeito por opinião diversa, negar justiça ao ofendido, em clara violação do consagrado no art. 20.º da nos CRP, pelo simples facto de não utilizar um formalismo a que, repetimos, a própria lei não obriga, mas que os usos forenses têm levado a algumas doutas peças processuais de acusação e de RAI no nosso país, o que tem a Recorrente por manifestamente ilegal! 27. Como refere José Souto de Moura: “O n.º 2 do art. 287.º parece revelar a intenção do legislador restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução. O que aliás resulta directamente da finalidade assinalada à instrução pelo n.º 1 do art. 286.º: obter o controle judicial da opção do Mº Pº. Ora, se a instrução surge na economia do código com o carácter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional, da judicialização da fase preparatória. A garantia constitucional esvaziar-se-ia, se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher, ou valesse só para casos contados.” 28. Por tudo quanto antecede, forçoso será concluir que, mal andou o Tribunal Recorrido ao ter tomado a decisão que tomou, interpretando a norma constante do das als. b) e c) do n.º 3 do art. 283.º ex vi n.º 3 art. 287.º, ambos os preceitos legais do CPP, no sentido de que aquelas determinam a nulidade do RAI apresentado pela Assistente objecto de indeferimento liminar, e que não permitem solução diversa, nomeadamente, o convite ao aperfeiçoamento e/ou a alteração não substancial dos factos em sede de debate instrutório conforme melhor explanado supra. 29. Pois que, para além de tais preceitos não imporem no caso vertente, e em situações similares, a solução pretendida pelo Tribunal a quo, os mesmos foram devidamente observados e cumpridos pelo RAI apresentado pela Assistente. Pelo que, indeferindo liminarmente o Requerimento de Abertura de Instrução oferecido pela Assistente, com o fundamento de que, “Ao abrigo do disposto no art. 287.º n.ºs 2 e 3, quer porque a instrução é inadmissível – por inexequibilidade e por falta de objecto (…), quer porque o requerimento de abertura de instrução é nulo, atentas as disposições conjugadas dos arts. 287º, nº 2 e 283º, nº 3, al. b)”, violou claramente o Tribunal Recorrido o preceituado naqueles arts. 287.º n.º 2 e 283.º n.º 3, ambos do CPP, bem como o princípio constitucional do direito de acesso à justiça da Assistente, consagrado no art. 20.º da CRP.”. 5. Na resposta ao recurso, o Exmo. Magistrado do Mº Público junto da 1ª instância respondeu ao mesmo, pugnando pela sua improcedência (cfr. fls. 279/287). 6. Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, que sintetizamos nos seguintes moldes: - Não ocorre a assacada nulidade, derivada do indeferimento da instrução sem qualquer fundamento legal válido, tendo-se expressamente consignado no despacho sob escrutínio que tal indeferimento se ficou a dever a inadmissibilidade legal da mesma, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 286º, 287º/2 e 3, 283º/2 e 3-b), 308°/2, e 311º/1, 2-a), e 3-b), do Código de Processo Penal, e não deixando tal fundamento de ser enquadrado como motivo legal para a rejeição (nº 3 do artº 280º citado), não se descortinando como possa, a tal propósito, assistir qualquer razão à recorrente; - Quanto à pretensa carência de fundamentação devida, o douto aresto sob escrutínio é coerente, porque consistente e lógico no enfoque que analisa, é objectivo, integrando dados que permitem ao analista exterior um exame. é racional, ou seja analiticamente compreensível e justificado na convicção demonstrada, e é suficiente, existindo uma verdadeira percepção intra e extraprocessual da motivação externada, contendo uma exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a convicção, permitindo aos sujeitos processuais o exame do processo lógico ou racional que esteve na formação da convicção do julgador, e das razões que o impeliram à rejeição registada, permitindo deduzir, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, qual o substrato racional que conduziu à decisão; - No que tange ao que a recorrente apelida de interpretação do RAI, nos termos do artigo 287°, n° 2, C.P.P, não estando o requerimento para abertura de instrução sujeito a formalidades especiais, deverá, contudo, conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo certo que, ao requerimento do assistente e sempre de acordo com a norma antes citada, é ainda aplicável o disposto no artigo 283°, nº 3, als. b) e c) - isto é, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis. Importando realçar que, abstendo-se o M. P. de acusar, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente terá de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, para possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório, bem como a elaboração da decisão instrutória, não satisfazendo tal exigência o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente do qual não constem expressamente os elementos mencionados nessas alíneas b) e c) do artigo 283°, n° 3, do C.P.P.. E que o eventual não acatamento pelo assistente de tais exigências é insuprível, já que o juiz de instrução está limitado aos factos descritos pelo assistente no requerimento de abertura da instrução, nos termos do disposto no n° 1 do artigo 309° do CPP, sendo certo que o STJ fixou já jurisprudência na matéria, através do ac. nº 7/2005 de 12/5/2005, publicado no DR, I Série-A, n° 212 de 4/11/2005. Porém, opina no sentido de que, no caso vertente, “impondo-se, quiçá, um maior rigor e exaustão por parte da recorrente na alegação factual do preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos crimes imputados, a mesma não deixou, no RAI, designadamente nos pontos a que mais se atém - 72° a 81° (...) de consignar a imputação dos ilícitos em questão (...), factualidade e imputação que, se bem em limites mínimos (...) podem materializar os elementos objectivos e subjectivos do ilícito p.p. pelo nº 2 do artº 150°, CPenal, (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges antis): realização de intervenção ou tratamento por médico com propósito curativo, e com violação das leges artis; criação de perigo de grave ofensa para o corpo, em consequência da inobservância das leges artis; conhecimento e vontade de praticar o facto, sendo que, embora se não descreva o particular e concreto comportamento que a acção da médica deveria revestir (crime de execução vinculada), se não deixa de referir a opção por outros tratamentos, como o que, posteriormente foi efectuado no hospital de Braga”, merecendo provimento o recurso neste ponto específico (cfr. fls. 308/312). 6.1. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal, veio a arguida apresentar a sua resposta, sustentando, em síntese, dever o recurso ser considerado improcedente e, por via disso, ser integralmente mantida nos seus precisos termos a decisão recorrida (cfr. fls. 316/317). 7. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO Como se sabe, é hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal (3). Ora, no caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pela assistente/recorrente, são duas as questões que importa decidir: - Saber se o despacho recorrido enferma de irregularidade, por deficiente e insuficiente fundamentação; - Saber se o requerimento de abertura de instrução contém a alegação de factos suficientes para preenchimento dos tipos legais dos crimes imputados (neste âmbito se apreciando a invocada errada interpretação do requerimento de abertura de instrução e consequente nulidade insanável do despacho recorrido, por ter determinado a não realização da instrução, sendo a mesma obrigatória, bem como a (não) admissibilidade do convite ao aperfeiçoamento). Vejamos, pois. Começando pela primeira questão, sustenta a assistente que o despacho recorrido é inválido, padecendo do vício de “irregularidade”, nos termos do disposto nos Artºs. 97º, nº 5 e 118º, nº 2, conjugado com o Artº 123º, todos do C.P.Penal (4), em virtude de o mesmo conter deficiente e insuficiente fundamentação e não indicar com precisão, e de forma crítica, quais os elementos objectivos e subjectivos em falta no RAI da assistente. Como se sabe, o dever de fundamentar uma decisão judicial é conatural aos actos decisórios, despachos e sentenças/acórdãos. Na verdade, as decisões finais, ou despachos que não sejam de mero expediente, mas com repercussão na esfera jurídica dos destinatários, só se legitimam com a respectiva fundamentação. Por isso se diz com acerto quer o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de Direito democrático. Aliás, a imposição do dever de fundamentação tem consagração constitucional, prescrevendo o Artº 205º, nº 1, da nossa lei fundamental, que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. E, no que diz respeito ao processo penal, o Artº 97º, nº 5, vem precisar isso mesmo ao preceituar que “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”, decorrendo desse preceito legal que esse dever de fundamentação é restrito dos actos decisórios propriamente ditos, considerando-se como tal aqueles que aí são elencados (nos nºs. 1 e 2). No caso vertente, está em causa o despacho do Mmº JIC de 15/11/2017, exarado a fls. 210/217, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução oportunamente apresentado pela assistente. Ora, salvo o devido respeito, cremos não assistir qualquer razão à assistente nesta crítica que dirige àquela decisão judicial. Com efeito, a fundamentação explanada na decisão em causa expõe com suficiente clareza e profundidade as razões que levaram o tribunal àquela rejeição, concordando-se inteiramente com o Exmo. Procurador Geral Adjunto quando aduz que tal decisão “(...) é coerente, porque consistente e lógico no enfoque que analisa, é objectivo, integrando dados que permitem ao analista exterior um exame. é racional, ou seja analiticamente compreensível e justificado na convicção demonstrada, e é suficiente, existindo uma verdadeira percepção intra e extraprocessual da motivação externada, contendo uma exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a convicção, permitindo aos sujeitos processuais o exame do processo lógico ou racional que esteve na formação da convicção do julgador, e das razões que o impeliram à rejeição registada, permitindo deduzir, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, qual o substrato racional que conduziu à decisão.”. Constatando-se que em tal despacho se faz a “devida análise do que se entende serem os elementos objectivos e subjectivos de qualquer dos ilícitos imputados, como, em que medida, se entende não se poder extrair do RAI da recorrente a consignação de tais elementos, não se tornando necessário (...) que se anunciassem quais os elementos que constituem cada um dos crimes pelos quais foi requerida a pronúncia e que não constam do RAI, pois isso, no fundo, seria ter que substituir-se à recorrente naquilo que a esta competiria”. Em suma, o despacho sob escrutínio está devida e suficientemente fundamentado, sendo perfeitamente percepcionável pelos respectivos destinatários, nomeadamente pela assistente. E tanto assim é que a recorrente (no seu recurso) revela ter entendido claramente o caminho lógico percorrido pelo Tribunal recorrido, expondo a este Tribunal de recurso as razões pelas quais não está de acordo com ele. Não padece, pois, a decisão recorrida, do vício da falta de fundamentação ou de insuficiência da mesma, soçobrando o recurso, nessa parte. Apreciemos, agora, a segunda questão supra elencada. Como prescreve o Artº 286º, nºs. 1 e 2, a instrução, que tem carácter facultativo, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. A este propósito, sublinha Germano Marques da Silva (5) que, no nosso Código de Processo Penal, a fase de instrução foi estruturada com uma dupla finalidade: obter a comprovação jurisdicional dos pressupostos jurídico-factuais da acusação, por uma parte, e o controlo judicial da decisão processual do Ministério Público de acusar ou arquivar o inquérito, por outra. Ora, dispõe o Artº 287º, nº 2, que o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º. Ou seja, sendo (a instrução) requerida pelo assistente, o respectivo requerimento deverá conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada - al. b) - e a indicação das disposições legais aplicáveis – al. c). O que significa que, tendo-se abstido o Ministério Público de acusar (é este um pressuposto essencial para legitimar a intervenção do assistente), o requerimento de abertura da instrução apresentado por este tem de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, de molde a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório, bem como a elaboração da decisão instrutória (6). Há que ter ainda em conta o disposto no Artº 303º, que vincula o juiz aos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, prescrevendo o nº 3 desse preceito legal que uma alteração substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância. Bem como o nº 3 do citado Artº 287º, que nos aponta as três causas de rejeição do requerimento de abertura de instrução: extemporaneidade; incompetência do juiz; ou inadmissibilidade legal da instrução. Cabem no conceito de inadmissibilidade legal da instrução realidades diversas, como a circunstância de o requerimento do assistente “não conformar uma verdadeira acusação”, não sendo o mesmo admissível se dele não constar a descrição da conduta típica (com os seus elementos objectivos e subjectivos) com a indicação das disposições legais violadas ou indicação do arguido, pois é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta dos pressupostos de objecto e de arguido (7). Cumpre referir, também, não se afigurar inconstitucional a norma em causa, do Artº 283º, nº 3, als. b) e c), quando interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas. Entendimento esse que já foi expressamente afirmado pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 358/2004, de 19/05/2004 (8), no qual a propósito se expendeu: “Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe (...) uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução. Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre (...) de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada. Será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos, ou pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos? A resposta é negativa. Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo. De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa. Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo. Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.”. Sufragando-se inteiramente este entendimento, poderá, no entanto, perguntar-se: perante um requerimento de abertura de instrução que não contenha tais elementos, ou que os contenha em termos deficientes, não deverá o juiz de instrução convidar o assistente a aperfeiçoar essa peça processual? A resposta é negativa. Na verdade, de acordo com o consignado no Acórdão de Fixação de Jurisprudência de nº 7/2005, de 12/05/2005, in DR I Série A, de 04/11/2005, “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”. Ali se expendendo que “o preenchimento das lacunas em processo penal pelo recurso ao processo civil, ao princípio da cooperação, conhece um intransponível limite: o da não harmonização das finalidades descritas quanto ao último ramo de direito àqueloutro, por força do artigo 4º do CPP. Que (…) A falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283º, nº 3, alínea b), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP. A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada – o ser manifestamente infundada, igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.”. Que (…) O convite à correcção encerraria, isso sim, uma injustificada e desmedida, por desproporcionada, compressão dos seus direitos fundamentais, em ofensa ao estatuído no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP, que importa não sancionar.”. Que “Sem acusação formal o juiz está impedido (...) de pronunciar o arguido, por falta de uma condição de prosseguibilidade do processo, ligada à falta do seu objecto, e, mercê da estrutura acusatória em que repousa o processo penal, substituindo-se o juiz ao assistente no colmatar da falta de narração dos factos, enraizaria em si uma função deles indagatória, num certo pendor investigatório, que poderia ser acoimado de não isento, imparcial e objectivo, mais próprio de um tipo processual de feição inquisitória, já ultrapassado, consequenciando, como, com proficiência, salienta a ilustre procuradora-geral-adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça, «uma necessária e desproporcionada diminuição das garantias de defesa do arguido», importando violação das regras dos artigos 18.º e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, colocando, ao fim e ao cabo, nas mãos do juiz o estatuto de acusado do arguido, deferindo-se-lhe, contra legem, a titularidade do exercício da acção penal.”. E que “(…) O requerimento de abertura de instrução nenhuma similitude apresenta com a petição inicial em processo cível, em termos de merecer correcção, enfermando de deficiências, nos termos do artigo 508.º, n.º 1, alínea b), do CPC, por, se com aquela se introduz, inicia, o pleito em juízo, é com a queixa que se inicia o processo, cabendo ao requerimento de abertura de instrução uma exposição dos factos que, comprovados, com a maior probabilidade, tal como sucede com os vertidos na acusação, sugerem que o arguido, mais do que absolvido, será condenado, numa óptica de probabilidade em alto grau de razoabilidade, inconfundível com uma certeza absoluta, aquela excludente de as coisas terem acontecido de dada forma prevalente, em detrimento de outra” (9). Também o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta temática, designadamente através do Acórdão nº 175/2013, de 20/03/2013 (10), considerando “Não julgar inconstitucional a norma resultante do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, com referência ao artigo 283.º, nº 3, alíneas b) e c), do mesmo Código, segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados aos arguidos, delimitando o objecto fáctico da pretendida instrução”. Do exposto, extrai-se claramente que, quando o requerimento do assistente para a abertura de instrução não narra os factos que integram um crime, ou não os narra de modo suficiente, não pode haver pronúncia, sob pena de violação dos Artºs. 303º, 283º, nº 3, als. b) e c), do C.P.Penal e 32º, nºs. 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa. Na verdade, a pronunciar-se o arguido por factos que não constam do requerimento de abertura de instrução e que importam uma alteração substancial dos mesmos, tal configuraria também uma nulidade, prevista no Artº 309º, nº 1. Isto posto, passemos à análise da concreta situação verificada nos presentes autos. Como se viu, o Mmº JIC, através do despacho de 15/11/2017, ora impugnado, rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente A. C. em virtude de, em síntese, o mesmo ser omisso na alegação factual decisiva ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crimes em causa, por aquela imputados à arguida S. F., de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo Artº 148º, nº 1, do Código Penal, e de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo Artº 150º, nº 2, do mesmo diploma legal. Entendimento que é questionado pela assistente no recurso sub-judice, que em síntese sustenta que no seu RAI delimita devidamente e como o exigido legalmente o objecto da instrução requerida, e alega o preenchimento dos elementos do tipo dos dois crimes supra mencionados. Ora, para melhor dilucidarmos esta questão, teremos de, necessariamente, analisar os elementos objectivos e subjectivos dos dois ilícitos criminais em causa, para, num segundo momento, decidirmos se a factualidade que a propósito a assistente alegou no seu RAI preenche, ou não, tais elementos. Vejamos, então. Sob a epígrafe “Ofensa à integridade física por negligência, dispõe o Artº 148º, nº 1, do Código Penal: “Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”. A propósito do crime de ofensa à integridade física por negligência, expende Paula Ribeiro de Faria que “é intenção do legislador proteger aqui a integridade física da pessoa viva contra ataques negligentes, pelo que o bem jurídico protegido é idêntico ao que subjaz aos tipos legais dolosos de ofensa à integridade física” (11). Tratando-se de um tipo legal de resultado, distinguindo a lei duas modalidades de realização do tipo: ofensas no corpo; e ofensas na saúde, entendendo-se por “ofensa no corpo” todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante, e como “lesão da saúde” toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a (12). E, nos termos do Artº 15º do Código Penal: Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização (13); ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto (14). Para que o agente possa ser responsabilizado a título negligente pelo resultado danoso é necessário, portanto, que se mostrem preenchidos os pressupostos objectivos e subjectivos que condicionam aquela imputação. Assim, seguindo os ensinamentos de Eduardo Correia (15), para que um comportamento se possa dizer negligente há que verificar: a) Se a produção do evento era previsível e se só a omissão ou violação do dever objectivo de cuidado tenha impedido a sua previsão ou a sua justa previsão. Tal dever e tal previsibilidade devem ser determinados através da exigência que, no mesmo sentido, de acordo com as regras da experiência, se possa fazer, numa análise “ex ante” da situação, à generalidade dos homens prudentes e conscienciosos; b) Se foi observado o dever de adoptar um comportamento conforme ao objectivo de evitar a produção do evento. c) Se o dever omitido ou violado era adequado a evitar a produção do evento. d) Se o agente podia e era capaz, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de prever ou de prever correctamente a produção do evento e de adoptar um comportamento adequado a evitá-lo. Deve, pois, poder afirmar-se, segundo um padrão médio de conduta, a possibilidade de, face àquela situação concreta, se prever o perigo de violação do bem jurídico protegido e valorá-lo correctamente, uma vez que todas as precauções tendentes a evitar um resultado danoso dependem do conhecimento do perigo. Em regra, a previsibilidade e o dever de prever existem sempre naquelas situações em que o evento seja uma consequência de verificação normal ou típica da conduta violadora do dever de cuidado. A adequação consiste na previsibilidade da produção de certo resultado como consequência normal e típica de uma certa conduta. Deste modo, a causalidade deve considerar-se excluída não só quando o resultado era imprevisível, mas também quando, sendo previsível, era de verificação anormal ou muito rara. O elemento configurador da censurabilidade da negligência reside na capacidade de cumprimento do dever objectivo de cuidado. Está aqui em causa um critério subjectivo, concreto ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as capacidades e qualidades do agente. Logo, se a adopção de um comportamento diferente for irrazoável ou inexigível, não podemos consubstanciar um juízo de censura dirigido ao agente e não há, por isso, fundamento para a punição. A afirmação de um tal dever de cuidado far-se-á, caso a caso, em função das particulares circunstâncias de actuação do agente, constituindo auxiliares importantes nessa determinação as normas jurídicas que impõem aos seus destinatários específicos deveres e regras de conduta no âmbito de actividades perigosas. A nível subjectivo a punição do agente depende do facto deste se encontrar em condições de reconhecer as exigências de cuidado que lhe dirige a ordem jurídica, e de as cumprir, sendo ainda necessário que ao agente fosse possível actuar em conformidade com o dever violado. E porque em causa está a omissão de um dever há que atender ao disposto pelo Artº 10º do Código Penal nos termos do qual “Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei”. Sendo certo que, em conformidade com o nº 2 do mesmo preceito, “A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o emitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado”. Quanto ao crime de “Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos”, está o mesmo previsto no Artº 150º do Código Penal, nos seguintes termos: “1 – As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física. 2 – As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal.”. O nº 1 deste preceito legal, sem qualquer norma incriminadora, indica os requisitos que condicionam a verificação do efeito exclusório da acção médica: o fim curativo da acção levada a cabo; o respeito pelas leges artis e; a habilitação legal para se proceder à intervenção ou tratamento. No que concerne à definição legal de intervenção médico-cirúrgica, explica Manuel da Costa Andrade (16) que esta “integra um conjunto de elementos subjectivos e objectivos. Concretamente: dois elementos subjectivos e outros tantos de índole objectiva. Na síntese de Englisch, “só pode falar-se de intervenção terapêutica nos casos em, que se verifica, não apenas a indicação objectiva e a execução segundo as leges artis, mas também a direcção da vontade do agente para a terapia” (...). Numa aproximação mais analítica, do lado subjectivo exige-se, para além da específica qualificação do agente (há-de tratar-se de “médico ou pessoa legalmente autorizada”), a intenção terapêutica, compreendida pela lei portuguesa em termos particularmente amplos, abrangendo tanto o diagnóstico como a prevenção. Enquanto isto é do lado objectivo, exige-se a indicação médica e a realização segundo as leges artis. Os quatro elementos são de verificação necessariamente cumulativa, resultando, por isso, reciprocamente redutores.” Conforme dá conta Maia Gonçalves (17), a introdução do nº 2 do artigo 150º do Código Penal pela Lei nº 65/98, de 2 de Setembro, visou “resolver o caso da violação das leges artis, cuja submissão ao regime geral de responsabilidade criminal através das ofensas à integridade física se não afigurava satisfatória, porque a observância das leges artis não é configurável como um requisito de restrição típica dos crimes contra a integridade física, operada então por este artigo, dotado de eficácia idêntica à exigência de finalidade curativa.”. Ainda no que tange à alteração imposta pela citada Lei nº 65/98, de 2 de Setembro no artigo 150º do Código Penal, sublinha Manuel da Costa Andrade (ibidem, págs. 312/313) que o “artigo 150.º, n.º 2 do Código Penal, pôs de pé a criação de um perigo “para a vida” ou de “grave ofensa para o corpo ou para a saúde”, como consequência de violação das leges artis. Com a sua consagração, o legislador quis assumidamente alargar o arsenal de meios punitivos dos ilícitos imputáveis aos médicos. Para além de responderem por ofensas corporais negligentes (art. 148º CP) e por Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários (art. 156º CP), os médicos passariam a responder também por um novo crime, que terá sido pensado como um crime de perigo concreto.” Constata-se, assim, que contrariamente ao que sucedia anteriormente ao aditamento do nº 2 do artigo 150.º do Código Penal, a conduta de um médico ou outro técnico de saúde que leve a cabo intervenção ou tratamento com fim curativo violando as leges artis, será punida, desde que se se verifiquem os demais pressupostos do nº 2. O que significa que, bem vistas as coisas, com a alteração legislativa supra mencionada, o legislador quis tutelar penalmente aos casos em que, por força da inadequação dos tratamentos terapêuticos e/ou médico-legais, fosse causado ao doente um perigo para a sua vida ou perigo de grave ofensa para o corpo. Assistiu-se, pois, ao acolhimento do entendimento pacificamente veiculado na doutrina de que, no caso de actuação médica, existe um dever jurídico do clínico que existe independentemente de qualquer vínculo contratual. Conforme referem Figueiredo Dias e Sinde Monteiro (18), “a aceitação pelo médico de um doente cria para aquele um dever jurídico (posição de garante) de evitar a verificação de um evento danoso para a vida e para a saúde deste”. Quanto à interpretação do conceito das leges artis, refere Faria Costa (19) que “estas não estão definidas, é certo, por determinação jurídico-positiva, mas o seu recorte e definição não é menos exacto do que aquele que eventualmente a lei definisse. Os grupos profissionais, independentemente da sua organização em espírito corporativo, não deixam de instruir os seus membros dentro de regras mínimas que dão razão de ser ao exercício da própria profissão. Assim, em termos de síntese podemos afirmar a este propósito, que uma actuação dentro dos limites das leges artis – por exemplo, dentro dos limites das leges artis da medicina, mas não só – pressupõe os seguintes pontos: adequação técnica aos parâmetros mais avançados e já solidificados da respectiva ciência ou disciplina; agudo juízo no que toca à oportunidade interventora, tendo em conta o caso concreto e ainda adequação dos meios através de uma dupla variável: o circunstancialismo que se desprende do caso concreto e os meios técnicos disponíveis”. Haverá, pois, respeito pelas leges artis quando o agente execute os cuidados médicos com a técnica mais apropriada, em consonância com os processos e as regras que no momento são oferecidas pela ciência médica, com a perícia devida. Deste modo se concluindo que o termo leges artis deverá ser entendido no sentido de perfeição técnica do tratamento ou intervenção e também da sua oportunidade e conveniência no caso concreto e idoneidade dos meios utilizados. O crime previsto no citado Artº 150º, nº 2, do Código Penal, pressupõe, no plano objectivo, um crime específico próprio com a estrutura de um crime de perigo concreto. E em função do tipo subjectivo enunciado no citado preceito legal, apenas será punível a conduta daquele que tenha agido dolosamente, dolo este que abrange não só a conduta típica (intervenção com violação das leges artis), mas também o próprio perigo para a vida, para o corpo ou para a saúde (20). Há que atentar, ainda, na noção de dolo, prevista no Artº 14º do Código Penal, segundo o qual: “1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar. 2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta. 3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.”. O dolo é constituído por dois elementos essenciais: o intelectual e o emocional ou volitivo. Tem-se por elemento intelectual o conhecimento por parte do agente de todos os elementos e circunstâncias do tipo legal do crime e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. Já o elemento emocional ou volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que o dolo será directo, necessário ou eventual: - No dolo directo o agente teve como fim, como intenção, a realização do facto criminoso (nº 1); - No dolo necessário o agente, tendo porventura outro fim diferente, reconhece o facto criminoso como consequência necessária da sua conduta e, no entanto, não se abstém da sua prática (nº 2); e - No dolo eventual o agente ao actuar conformou-se com a possível realização do facto criminoso como consequência da sua conduta (nº 3). Quanto ao crime de “Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos”, em discussão nos presentes autos, o dolo será directo quando o agente representa a violação das leges artis e o perigo, actuando com intenção de criar este perigo; será necessário, quando o agente representa a violação das leges artis e o perigo como consequência necessária da sua conduta; havendo, finalmente, dolo eventual quando o agente representa como possível a violação das legis artis e a criação do perigo, para a vida, para o corpo ou para a saúde do ofendido, conformando-se com a verificação de tais factos. Exige-se, pois, neste ilícito criminal, que o arguido conheça e deseje a violação das leges artis e, para além disso, conheça e deseje a criação de perigo, ou seja, o dolo imposto pela norma (para a qual basta o dolo eventual) deverá revelar-se a dois níveis: primeiro na própria violação das leges artis; depois na criação do perigo a que a norma se refere. Ora, voltando ao caso vertente, há que averiguar desde logo se, face à alegação efectuada pela assistente no seu requerimento de abertura de instrução, se mostram verificados todos os elementos constitutivos do crime de ofensa à integridade física por negligência, como aquela preconiza. Salvo o devido respeito, afigura-se-nos que a resposta é negativa. Na verdade, em termos objectivos, alega a assistente que no dia 14/0/2015 foi sujeita a um tratamento de endodontia (desvitalização) do dente 45, na “X-Clínicas Dentárias, Lda.”, sita no Largo (...), Braga, tratamento realizado pela arguida S. F., médica dentista, melhor identificada nos autos. Mais alega que, no âmbito dessa terapêutica endodôntica do dente 45, durante a irrigação do sistema de canais ocorreu extravasamento de hipoclorito de sódio, através do ápex para os tecidos periapicais. Que, na sequência desse tratamento, a assistente sentiu, imediatamente, dores intensas e paralisia facial, que a levaram novamente a uma consulta com a arguida. Que a arguida, nas várias vezes que a assistente recorreu ao seu consultório médico, após o tratamento realizado em 14/1/2015, apenas fez tratamento com fármacos. E que, no dia 20/1/2015, dada a continuação das dores intensas sentidas pela assistente, novamente se dirigiu ao consultório da arguida S. F., na sequência do que a assistente foi dirigida para o Hospital de Braga, onde foi realizada aspiração do conteúdo do edema. Ora, admite-se que o descrito quadro poderá configurar, em termos objectivos, uma ofensa no corpo ou na saúde da assistente. Porém, quanto ao elemento subjectivo do ilícito, não se vislumbra que a assistente tenha alegado factos suficientes para preencher os respectivos requisitos. Na verdade, a esse propósito, a assistente limita-se a aduzir que, ao proceder daquela forma, a arguida optou por um tratamento em desuso, com sérios riscos de acidente, ciente dos riscos de tal prática, apenas tendo medicado a assistente, podendo optar por outros tratamentos, negligenciando o dever de cuidado a que estava obrigada, violando as leges artis. Sucede que, tal alegação é manifestamente conclusiva e insuficiente, não tendo tido a assistente o cuidado de concretizar o que entende por tratamento em desuso, e bem assim que outros tratamentos alternativos seriam os mais adequados na situação em causa. Nem tampouco alegando que, por não ter procedido com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada, e de que era capaz, a arguida representou como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actuou sem se conformar com essa realização, ou que não chegou sequer a representar a possibilidade de realização do facto. Verifica-se, pois, como refere o Mmº JIC no despacho impugnado, uma omissão na alegação factual decisiva ao preenchimento dos elementos do tipo de crime em causa, de ofensa à integridade física negligente, maxime ao nível subjectivo. E o mesmo se diga relativamente ao crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos a que alude o Artº 150º, nº 2, do Código Penal. Pois, tal ilícito pressupõe - como já supra enfatizado -, no plano objectivo, um crime específico próprio com a estrutura de um crime de perigo concreto, ao passo que, em função do tipo subjectivo enunciado no citado preceito legal, apenas será punível a conduta daquele que tenha agido dolosamente, dolo este que abrange não só a conduta típica (intervenção com violação das leges artis), mas também o próprio perigo para a vida, para o corpo ou para a saúde. Ora, transcorrendo o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, na parte que interessa considerar (artºs. 64º a 73º), facilmente se constata que a mesma é totalmente omissa na alegação de factos que, minimamente, preencham tais requisitos. Ou seja, e dito de outra forma, em parte alguma a assistente alega factos que consubstanciem uma conduta dolosa por banda da arguida, quer relativamente à violação das leges artis, quer relativamente à criação do perigo de ofensa grave à integridade física, mesmo que essa actuação se estribasse dentro da modalidade do dolo eventual. O que necessariamente afasta o preenchimento do tipo subjectivo. Cumpre sublinhar, aliás - e se nos é permitida a observação -, que a assistente sabe bem que a prova indiciária recolhida no processo não consente minimamente a afirmação que faz de que houve violação das leges artis por banda da arguida. Pois, como se constata dos autos, foi oportunamente solicitado ao “Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P.” a realização de perícia “com vista a determinar se os actos médicos e tratamentos aplicados à ofendida, na sequência da intervenção para o tratamento de uma pulpite aguda submetida no dente 45, na clínica X, pela Dra. S. F., médica dentista, respeitou as leges artis instituídas para o caso” – cfr. despacho de 19/02/2016, exarado a fls. 138. Sucede que, tal pedido acabou por ser apreciado pelo “Conselho Médico-Legal” do “Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P.” (21) (22), constando de fls. 151/153 o respectivo laudo (23), aprovado por unanimidade em reunião de 06/09/2017, do qual é relatora a Professora de Medicina Dentária Doutora Eunice Carrilho, nele se afirmando com toda a clareza: “Face aos dados no processo não foram violadas as “leges artis” pela médica dentista S. F. (sublinhado nosso). A correcta informação disponibilizada à queixosa e aos colegas da unidade hospitalar sobre o acidente ocorrido, bem como, a adequada prescrição terapêutica, configuram os procedimentos recomendados no caso de um acidente por hipoclorito de sódio. O hipoclorito de sódio é o irrigante de primeira escolha na limpeza e desinfecção do sistema de canais, devido às suas propriedades antimicrobianas e à sua acção de dissolução (...). A extrusão de hipoclorito de sódio através do ápex dentário é conhecida como “acidente com hipoclorito de sódio”. Este acidente raro pode ocorrer durante a preparação do sistema de canais, causando sintomas e sequelas descritas na literatura (...). Devido à sua actividade de dissolução da matéria orgânica, se atinge a zona periapical pode destruir as células fibroblásticas e endoteliais (...). Os sintomas são imediatos com: dor, hemorragia tecidular e edema. A gestão do acidente é empírica, a maior parte dos sintomas resolve-se em breves semanas. No entanto, as permanentes como a lesão nervosa, são de resolução mais imprevisível. A perda dentária não é o resultado direto da extrusão da solução, mas poderá estar envolvida por vontade do doente (...). Considerando milhões de tratamentos endodônticos convencionais em todo o mundo, crê-se que este acidente seja realmente raro. No entanto um estudo refere que metade dos especialistas em endodontia descreve a ocorrência de pelo menos um “acidente com hipoclorito de sódio” durante a sua actividade profissional (...). Ora, como lapidarmente afirma Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues (24), “A observância das leges artis exclui, em princípio, o chamado erro médico, designadamente na sua modalidade, porventura a mais relevante de “erro de tratamento”. Dizemos “em princípio” pois, se perfilharmos a noção amplíssima de erro médico (…) todo o erro em que incorre o médico no tratamento dos seus doentes, casos existem em que o erro é meramente acidental, inerente ao elevado risco do exercício da medicina, sem que se possa falar em qualquer violação das leges artis nem, tão pouco, em violação do dever objectivo de cuidado, pois apesar da maior diligência possível por parte do médico, existe sempre a possibilidade de um acidente imprevisível ou inevitável que não reflecte qualquer menosprezo pela observância das regras da arte médica”. Porém, no caso ora apreciação, não está propriamente em causa apurar da existência, ou não, de indícios suficientes da prática de crime(s) por banda da arguida, mas sim saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente obedece, ou não, aos requisitos legais. E, quanto a esse aspecto essencial, face às considerações jurídicas anteriormente expostas, apenas podemos concluir que essa peça processual é manifestamente omissa quanto à descrição factual de todos os elementos objectivos e subjectivos integradores dos dois tipos de ilícitos que a assistente imputa à arguida. Não podendo o juiz de instrução, pelas razões jurídicas anteriormente explanadas - mesmo que durante as diligências de instrução concluísse pela existência de indícios da prática por banda da arguida de um crime - alterar ou criar por si a factualidade em falta, nem tampouco convidar a assistente a suprir as falhas detectadas. Assim sendo, bem andou o Mmº JIC ao rejeitar o requerimento para abertura de instrução, formulado pela assistente, por inadmissibilidade legal, não se verificando, consequentemente, a invocada nulidade insanável, nem qualquer outra, nem se vislumbrado ter sido violada qualquer das normas trazidas à colação pela assistente, designadamente o direito de acesso à justiça, consagrado no Artº 20º da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, como se viu, a exigência de que o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente configure uma verdadeira acusação, com a narração dos factos (objectivos e subjectivos) que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, e a indicação das disposições legais aplicáveis, não se traduz num mero formalismo, decorrendo antes da necessidade da delimitação inequívoca do objecto do processo face à estrutura acusatória do processo penal consagrada no Artº 32º, nº 5, da nossa lei fundamental. Ora, no caso sub-judice, o direito de a assistente aceder à justiça e de intervir no processo jamais foi beliscado ou colocado em causa, enquadrando-se nesses direitos a oportunidade de requerer a abertura de instrução face ao arquivamento do inquérito por banda do Mº Público e de recorrer para a 2ª instância da decisão que lhe indeferiu esse requerimento. Sendo certo que, se o requerimento para abertura da instrução foi rejeitado, tal circunstância apenas é imputável à própria assistente, que não deu cumprimento às exigências legais. Nessas circunstâncias, e mau grado o esforço argumentativo da recorrente, o recurso não pode deixar de improceder, in totum. III. DISPOSITIVO Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pela assistente A. C., confirmando-se, consequentemente, a decisão recorrida. Custas pela assistente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia (Artº. 515º, nº 1, al. b), 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo). (Acórdão elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal). * Guimarães, 8 de Outubro de 2018 (António Teixeira) (Nazaré Saraiva) 1. É esta, e apenas esta, a factualidade que alega em abono da sua tese. 2. Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator. 3. Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 3ª Edição, pág. 347, e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade. 4. Ao qual se reportam todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem. 5. In “Direito Processual Penal Português” 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 126. 6. Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, ibidem, pág. 133 e sgts.. 7. Germano Marques da Silva, ibidem, pág. 141/142. 8. Disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040358.html. 9. Obviamente que, diferentemente do que sucedia com os anteriores assentos, através dos quais os tribunais fixavam doutrina com força obrigatória geral (de acordo com o Artº 2º do Código Civil, que veio a ser revogado pelo Artº 4º do Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), os acórdãos de Uniformização de Jurisprudência não são vinculativos para quaisquer tribunais, mas não deixam de criar “uma jurisprudência qualificada, mais persuasiva e, portanto, a merecer uma maior ponderação” particularmente para as instâncias que não o próprio STJ, como se intui do disposto no Artº 678º, nº 2, al. c), do C.P.Civil – cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 14/05/2009, proferido no âmbito do Proc. nº 218/09.OYFLSB, in www.dgsi.pt. Ademais, tal jurisprudência uniformizadora contribui para a “unidade da ordem jurídica, face à autoridade que normalmente anda ligada às decisões dos supremos tribunais, designadamente quando eles se reúnem em pleno ou em plenário de secções para solucionar divergências jurisprudenciais” - Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 4ª edição, págs. 271 e 272). Ora, com o sublinha Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, 2ª edição revista e actualizada, págs. 446/448, a propósito dos acórdãos de uniformização de jurisprudência na jurisdição processual civil, considerandos que aqui se aplicam totalmente, no actual quadro normativo nacional, é pelo seu intrínseco valor persuasivo que é exercida a influência intra-sistemática da jurisprudência uniformizadora, pelo que tendo em conta o sentido e valor que se atribui a esta jurisprudência, parece óbvio “que, em princípio, enquanto se mantiverem as circunstâncias em que se baseou a tese do Supremo, devem os tribunais judiciais acatá-la, na medida em que, não o fazendo, além de esse não acatamento poder representar uma quebra injustificada do valor da segurança jurídica e das legítimas expectativas dos interessados, ainda podem ser provocados graves danos na celeridade processual e na eficácia dos tribunais, considerando a previsível derrogação da decisão em caso de interposição de recurso”, razão pela qual se pode afirmar que apenas quando “estiver preenchido um circunstancialismo complexo será de ponderar adesão a tese oposta àquela que anteriormente obteve vencimento”, podendo elencar-se, entre tais circunstâncias a apresentação de “argumentos jurídicos que não tenham sido convincentemente rebatidos pelo acórdão uniformizador”, a “manutenção ou ampla renovação do quadro de juízes que integram as secções cíveis do Supremo que faça prever uma mudança de posição”, o “período de tempo decorrido desde a prolação da decisão, conjugado com relevantes modificações no regime jurídico ou no diploma em que se enquadra a norma cuja interpretação uniformizadora se efectivou, ou a ponderação de alterações sensíveis das condições específicas constatadas no momento da aplicação” ou a “contrariedade insolúvel da consciência ético-jurídica do julgador em caso de adesão à jurisprudência uniformizadora”. E para contrariar a jurisprudência uniformizadora do Supremo – sublinha aquele Ilustre Autor –, exige-se a verificação de fortes razões ou outras especiais circunstâncias que, porventura, ainda não tenham sido suficientemente ponderadas. Ora, tendo em conta estas considerações doutrinárias, e à míngua de argumentos novos que possam refutar os dele constantes, como se exige no Artº 445º, nº 3, do C.P.Penal, não vemos quaisquer razões para deixar de acatar a jurisprudência emanada pelo supra citado Acórdão Uniformizador. 10. Disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130175.html. 11. In “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 209. 12. Paula Ribeiro de Faria, ibidem, pág. 205/207. 13. É a chamada “negligência consciente”, segundo a qual o agente previu a realização do crime e confiou em que ele teria lugar ou mostrou-se indiferente a essa produção. 14. É a designada” negligência inconsciente, que ocorre quando o agente não previu – como podia e devia -, aquela realização do crime. 15. In “Direito Criminal”, Vol. I, Reimpressão, Almeida, 2004, pág. 421 e sgts. 16. In “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 307. 17. In “Código Penal Português Anotado e Comentado”, 14ª Edição, Almedina, 2002, pág. 505. 18. In “Responsabilidade Médica em Portugal”, Separata ao BMJ, 1984, págs. 50 e 51. 19. In “O Perigo em Direito Penal”, Coimbra Editora, 2000, pág. 523, em nota de rodapé. 20. Cfr., neste sentido, entre outros: o Acórdão da Relação de Coimbra, de 26/02/2014, proferido no âmbito do Proc. nº 1116/10.0TAGRD.C1, disponível in www.dgsi.pt (aliás citado quer no despacho de arquivamento, quer na decisão recorrida); o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 27/06/2011 (relatado pela ora Exma. Adjunta), in CJ XXXVI-II-303; e Acórdão da Relação de Coimbra, de 11/09/2013, in CJ XXXVIII-IV-49. 21. Cujos estatutos foram aprovados pelo Dec.-Lei nº 166/2012, de 31 Julho. 22. Ao qual compete exercer funções de consultadoria técnico-científica e emitir pareceres sobre questões técnicas e científicas no âmbito da medicina legal e de outras ciências forenses, podendo a consulta técnico-científica ser solicitada pelo membro do Governo responsável pela área da justiça, pelo Conselho Superior da Magistratura, pela Procuradoria-Geral da República ou pelo presidente do conselho directivo do INMLCF, I.P.. (cfr. Artº 7º, nº 1, al. b) e 2, do mesmo diploma legal). 23. Que se presume subtraído à livre apreciação do julgador, conforme prescreve o Artº 163º, nº1, do C.P.Penal. 24. In “A Negligência Médica Hospitalar na Perspectiva Jurídico-Penal”, Estudo sobre a responsabilidade criminal médico-hospitalar, Almedina, 2013, pág. 154. |