Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | PEDRO FREITAS PINTO | ||
Descritores: | CRIME DE HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 05/07/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
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Sumário: | I – A conduta estradal do agente, ao cortar a curva que se lhe deparava, e que ele próprio refere ser “em cotovelo”, invadindo com o veículo ligeiro de mercadorias que conduzia, a hemi-faixa contrária de rodagem, indo aí embater no motociclo conduzido pelo ofendido, provocando a morte deste, é uma conduta altamente censurável e temerária, particularmente perigosa, por essa invasão se dar numa curva com essas caraterísticas, consubstanciando assim a prática do crime de homicídio por negligência grosseira, previsto no artigo 137º nº 1 e 2 do Código da Estrada. II – Nesta situação estamos perante um grau especialmente elevado da negligência que agrava a punição, não só ao nível da culpa como da ilicitude. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães. I - Relatório Decisão recorrida No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 488/21...., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Braga, foi proferida sentença, no dia 23 de novembro de 2023, cuja parte decisória se transcreve: “Pelo exposto: a) Condeno o arguido, AA, como autor material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de um ano e dez meses de prisão. b) Substitui-se a pena de prisão pela prestação de 480 horas de trabalho a favor da comunidade, a que acrescerá a obrigação de frequência de um programa de prevenção da sinistralidade rodoviária, a determinar pela D.G.R.S.P. c) Condeno o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 12 (doze) meses. d) Condena-se o arguido no pagamento das custas criminais do processo (art.º 513.º, n.º1 do C.P.P.), fixando-se a taxa de justiça em quatro unidades de conta (art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P. e tabela III)”. * Recurso apresentadoInconformado com tal decisão, o arguido AA veio interpor o presente recurso e após o motivar, apresentou as seguintes conclusões e petitório, que se transcrevem: “I- A condenação do ora Recorrente como autor material, de um crime de homicídio por negligência, na pena de um ano e dez meses de prisão, substituída pela prestação de 480 horas de trabalho a favor da comunidade, acrescida da obrigação de frequência de um programa de prevenção da sinistralidade rodoviária, a determinar pela D.G.R.S.P., e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 12 (doze) meses, bem como no pagamento de quatro unidades de conta a titulo de custas criminais do processo, enferma de uma clamorosa injustiça, e baseia-se numa errada apreciação da matéria de facto e uma incorreta aplicação da lei. II- Em primeiro lugar cumpre referir que o Recorrente lamenta profundamente a morte do Sr. BB, não obstante continuar a achar que não teve culpa no sucedido. III- O Tribunal a quo deu erradamente como provados os factos constantes dos pontos 2, 3, 10, 11 e 12 da matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida, a saber: 2. Ao chegar ao local em que a referida EM 519 apresenta um traçado curvo para a esquerda, com inclinação descendente, o arguido, ao abordar a dita curva, invadiu a hemi-faixa esquerda de rodagem, passando o veículo a circular por esta, a cerca de 53 km/hora. 3. Quando assim seguia embateu no motociclo de matrícula ..-TV-.., tripulado por BB, que seguia pela hemi-faixa esquerda, no sentido contrário, ou seja, .../EN ...03. 10.Por não ter adotado tal conduta, como podia e devia, ocorreu o embate, que ficou a dever-se à forma desatenta, descuidada e temerária como tripulou o veículo. 11.O arguido agiu com manifesta falta de consideração pelas normas legais relativas à circulação automóvel e, ao dirigir o veículo do modo e nas condições descritas, não agiu com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências possíveis da sua conduta. 12.Agiu o arguido AA sabendo proibida e punida por lei a sua conduta. IV- De acordo com a prova carreada nos autos, nomeadamente do depoimento credível e espontâneo do próprio Recorrente AA (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 16-11-2023, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14:18:50 horas e o seu termo pelas 14:44:42 horas, por referência à acta de discussão e julgamento), bem como do depoimento da testemunha do GNR CC, (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 16-11-2023, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14:49:25 horas e o seu termo a 15:06:06 horas, por referência à acta de discussão e julgamento), do depoimento isento, credível e espontâneo da testemunha DD (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 16-11-2023, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 15:22:06 horas e o seu termo a 15:25:57 horas, por referência à acta de discussão e julgamento), atento o registo fotográfico tirado no local do acidente ao falecido constante de fls…, as regras de experiencia comum e de acordo com os princípios da livre apreciação da prova, da descoberta da verdade material, da presunção da inocência e do in dúbio pro reo, tais factos constantes dos pontos 2, 3, 10, 11 e 12 da matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida deveriam ter sido dado como não provados. V- Verifica-se na decisão recorrida a ocorrência do vício do erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do n.° 2 do art.° 410° do CPP, por se verificar nela uma "...contradição material insanável, erro de lógica e inobservância do que aconselha o senso comum", nos factos provados relativos à dinâmica do acidente. VI- RELATIVAMENTE AOS FACTOS CONSTANTES DOS PONTOS 2, 3 E 10 DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA NA DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, O TRIBUNAL A QUO DEVERIA TER DADO COMO PROVADO O SEGUINTE: 2. Ao chegar ao local em que a referida EM 519 apresenta um traçado curvo para a esquerda, com inclinação descendente, o arguido, após ter permanecido cerca de 5 segundos na hemi-faixa esquerda devido à movimentação do ferro que trazia carregado na caixa aberta do veiculo de mercadorias em que circulava, e tendo visualizado que nos próximos 200 metros a estrada encontrava-se livre e desimpedida, dirigiu-se novamente para a sua hemi-faixa direita de circulação, passando o veículo a circular por esta, a cerca de 53 km/hora. O motociclo de matrícula ..-TV-.., tripulado por BB, que seguia pela hemi-faixa esquerda atento o sentido de marcha do Recorrente, no sentido .../EN ...03, circulava por uma curva em forma de cotovelo, encoberta por um pequeno morro de terra que impedia a visualização pelo Arguido do ciclomotor em que circulava o BB, não sendo por essa razão de todo previsível que o Sr. BB fosse surgir onde surgiu, dado que, o Arguido avistou a estrada em seu diante a cerca de 200 metros e não viu quem quer que seja a aproximar-se, avistando a estrada completamente livre. 3. Quando assim seguia, o motociclo de matrícula ..-TV-.., tripulado por BB, que seguia pela hemi-faixa esquerda atento o sentido de marcha do Recorrente, no sentido .../EN ...03, atrapalhado com o avistamento do Arguido a dirigir-se da hemi-faixa esquerda para a hemi-faixa da direita, coloca-se em pé, circulando de pantufas/ chinelos e dirige-se também para a hemi-faixa direita com receio de embater no veiculo tripulado pelo Arguido, momento em que ocorre o embate. 10.Por o condutor do motociclo ter adotado tal conduta devido à sua atrapalhação, inexperiência e ao facto de circular em pé e de pantufas/ chinelos, ocorreu o embate. VII- Nos pontos 2, 3 e 10 da matéria de facto dada como provada na Sentença ora recorrida, e ora impugnada neste recurso, está em causa, no essencial, a dinâmica do acidente ocorrido, da qual emerge se o Recorrente violou ou não as normas legais relativas à circulação automóvel e se agiu ou não com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance. VIII- A propósito do acidente só o Recorrente e o falecido o presenciaram. IX- Do depoimento credível, espontâneo e verdadeiro do Recorrente resulta que o acidente ocorreu na sua mão, ou seja, na faixa de rodagem em que seguia – a faixa de rodagem direita – ou quanto muito, no meio da estrada, sendo esta versão dos factos inteiramente confirmada pelo relatório fotográfico da GNR no qual é possível visualizar o Sr. BB caído no chão por cima da linha descontinua que separa as faixas. X- De acordo com as regras de experiência comum, estando o Recorrente caído no eixo da via duvidas não podem subsistir que o embate ocorreu no eixo da via destinado à circulação do Recorrente e que com a força do embate, de acordo com as leis da física, o mesmo foi projectado para o eixo da via. XI- O Recorrente não desmente que por cerca de 5 segundos ou menos circulou na faixa contrária, contudo, no momento do acidente tal já não sucedia. XII- In casu o que sucedeu, foi que falecido ao avistar o Recorrente na faixa esquerda, atrapalhou-se e em vez de se manter na sua faixa de rodagem procurou “fugir” pela via direita, provocando a colisão com o Recorrente, uma vez que este já se encontrava na sua faixa de rodagem, ou seja na faixa da direita. XIII- Só com base em meras suposições, contrárias às mais elementares regras da física se pode erroneamente concluir que o acidente ocorreu na hemi-faixa destinada à circulação do ciclomotor… XIV- O acidente deveu-se à infeliz atrapalhação do condutor do motociclo que ao avistar o Recorrente coloca-se em pé e decide “fugir” para a frente da carrinha em que circulava o Recorrente já na sua faixa de rodagem. XV- O acidente não se deveu a qualquer desatenção, imperícia ou culpa do Recorrente, nem à violação por este de qualquer dever de cuidado ou diligência, pois o Recorrente conduziu de acordo com as normas estradais de circulação automóvel. XVI- Dos depoimentos do Recorrente e da testemunha CC (GNR), resulta de forma clara que no momento que antecedeu o acidente o Falecido circulava por uma curva em forma de cotovelo, coberta por um pequeno morro de terra que impedia a visualização pelo Recorrente do ciclomotor em que circulava o Falecido, não sendo por essa razão de todo previsível que o falecido Sr. BB fosse surgir onde surgiu, dado que, o Recorrente avistou a estrada em seu diante a cerca de 200 metros e não viu quem quer que seja a aproximar-se, avistando a estrada completamente livre. XVII- Não era previsível de todo que por detrás de um pequeno alto que se encontra na curva, devido a um pequeno morro de terra lá existente, se encontrava a circular o motociclo do Falecido, o qual por tais motivos não era avistado por quem quer que seja. XVIII- Face ao referido, torna-se claro e evidente que o Recorrente nunca conseguiu prever que aquele pequeno morro de terra o impedia de ver o que quer que fosse, pensando sempre o mesmo que a sua visibilidade era plena e permitia apurar com 100% de certeza quem no momente em que antecede o acidente ninguém circulava no sentido oposto ao seu sentido de circulação. XIX- A este propósito o depoimento da testemunha CC, GNR, que quando questionado a tal propósito disse o seguinte (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 16-11-2023, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14:49:25 horas e o seu termo a 15:06:06 horas, por referência à acta de discussão e julgamento): (…) EE: Sr. agente, quem vai do lado do condutor, da IMPERCETIVEL, do Arguido, tem ou não tem visibilidade para a estrada mais adiante? Testemunha: Em que sentido? EE: No sentido onde vai o condutor para o motociclo. Testemunha: No sentido se ele tinha visibilidade para o local do ciclomotor? EE: Sim. Testemunha: Ali dificilmente. Eu acredito pelas fotografias que há ali um morro em terra, não sei até que ponto... ele vai numa altura diferente. Não sei até que ponto ele cria um ponto de perceção possível ou um ponto de perceção real. XX- Nem as próprias autoridades responsáveis pela sinalização das estradas deram conta que um ciclomotor que circulasse na curva em questão, devido ao pequeno morro de terra lá existente, não era avistado por quem, tal como o Recorrente, circulasse no sentido ..., pois certamente que teriam colocado linhas continuas a separar as hemi-faixas de rodagem. XXI- Se nem as autoridades conseguiram prever tal facto, por maioria de razão, não se poderá exigir que o Recorrente tivesse previsto que o ciclomotor circulava na curva encoberto pelo pequeno morro de terra lá existente. XXII- Atento o exposto, ninguém que circulasse nas circunstâncias em que o Recorrente estava a fazê-lo punha a hipótese ou preveria que o motociclo encontrava-se a circular exatamente naquele local em que não conseguia ser avistado. XXIII- Sucede porém que, Venerandos Desembargadores, o Tribunal a quo não valorizou o depoimento do Recorrente quanto à sua versão de que o embate se deu já na sua via de circulação, por entender ter-se tratado de uma tentativa de se furtar à assunção de toda a factualidade que lhe é imputada ou a uma errada (pese embora, não intencional) perceção do que ocorreu, como tantas vezes ocorre com os intervenientes em acidente de viação. XXIV- As circunstâncias em que ocorreu o acidente não se deveu a qualquer culpa do Recorrente, mas a um infeliz azar que pode acontecer a qualquer um de nós. XXV- Nenhuma das testemunhas descredibilizaram o depoimento do Recorrente, sendo certo que as fotografias juntas pela GNR aos autos do falecido no local do acidente, no eixo da via, corroboram de forma inequívoca a versão do acidente apresentada pelo Recorrente. XXVI- O acidente ocorreu nos modos supra transcritos e com a dinâmica já explanada, tendo havido um claro erro na apreciação da prova por parte do Tribunal a quo quando deu como provados os factos constantes dos pontos 2, 3 e 10 da matéria de facto dada como provada na Sentença. XXVII- Não existem nos autos, nem foi produzida prova em audiência de julgamento que infirme a versão do acidente trazida pelo Recorrente. XXVIII- RELATIVAMENTE AOS FACTOS CONSTANTES DOS PONTOS 11 E 12 DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA NA DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, O TRIBUNAL A QUO DEVERIA-OS TER DADO COMO NÃO PROVADOS, UMA vez que atento tudo o supra exposto a propósito da análise da dinâmica do acidente, que aqui por uma questão de economia processual se dá por integralmente reproduzido, salvo melhor opinião, forçoso se torna de concluir que o Recorrente não violou quaisquer normas legais relativas à circulação automóvel e que agiu sempre com a diligencia e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance. XXIX- Conforme já se referiu e decorre do depoimento do próprio Recorrente e da testemunha CC (GNR), resulta de forma clara que momentos antes do acidente ter ocorrido o Falecido circulava por uma curva em forma de cotovelo, coberta por um pequeno morro de terra que impedia a visualização pelo Recorrente do ciclomotor em que circulava o Falecido, não sendo por essa razão de todo previsível que o falecido Sr. BB fosse surgir onde surgiu, dado que, o Recorrente avistou a estrada em seu diante a cerca de 200 metros e não viu quem quer que seja a aproximar-se, avistando a estrada completamente livre. XXX- Nem o Recorrente nem alguém que estivesse no seu lugar conseguiria prever que aquele pequeno morro de terra impedia o Recorrente de ver o que quer que fosse, pensando sempre o mesmo que a sua visibilidade era plena e permitia apurar com 100% de certeza que ninguém circulava momentos antes do acidente ter ocorrido no sentido oposto ao seu sentido de circulação. XXXI- O Recorrente agiu assim sempre com cuidado e diligência, nada o fazendo antever que havia uma espécie de “angulo morto” que lhe cortava a visibilidade. XXXII- O Recorrente em momento algum infringiu qualquer norma relativa à circulação automóvel, porquanto, no local que antecede o acidente e no próprio local do acidente existe linha descontinua, podendo o Recorrente a transpor, como o fez, ainda que por breves 5 segundos ou menos devido ao embate do ferro que levava num dos lados da caixa aberta do veiculo que conduzia. XXXIII- Mas vejamos a propósito da existência de linha descontinua o depoimento do próprio GNR CC, testemunha nestes autos, que quando questionado disse o seguinte (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 16-11-2023, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14:49:25 horas e o seu termo a 15:06:06 horas, por referência à acta de discussão e julgamento) : (…) Procuradora: O traçado aqui da sinalização, são traços contínuos, descontínuos? Testemunha: Eu presumo que seja descontínua ali. XXXIV- E a propósito do embate do ferro que o Recorrente levava no seu veiculo e que motivo a entrada na hemi-faixa esquerda, veja-se o depoimento do próprio Recorrente que quando questionado a tal propósito disse o seguinte (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 16-11-2023, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14:18:50 horas e o seu termo pelas 14:44:42 horas, por referência à acta de discussão e julgamento): (…) Arguido: Eu, sim, eu circulava mais ou menos, sim a 50 km/h. E é verdade que eu entro um bocado dentro da curva. Antes dessa curva, 50 metros mais ou menos, eu trazia um atado de ferro da obra em cima da carrinha. E esse atado fugiu-me da traseira da carrinha e bateu-me no taipal. Como foi o acidente, isto é só a verdade. Eu olho assim pelo vidro da carrinha, pelo meio e vejo que o ferro está do outro lado e ao olhar eu guino um bocadinho para a valeta. A carrinha entra um bocadinho à valeta e então saio para a outra mão para aonde eu bati, já perto de bater… é verdade que eu aí já vou na outra mão e também ao mesmo tempo vejo a estrada completamente livre até lá baixo a santa... XXXV- Portanto, Venerandos Desembargadores, cremos pois que dúvidas não podem subsistir de que o Recorrente agiu com consideração pelas normas legais relativas à circulação automóvel e, ao dirigir o veículo do modo e nas condições descritas, agiu com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance. XXXVI- Contudo, o mesmo infelizmente talvez não se poderá dizer quanto ao condutor do motociclo que, num momento de atrapalhação, ao avistar o Recorrente, coloca-se em pé e decide “fugir” para a frente da carrinha em que circulava o Recorrente já na sua faixa de rodagem, circulando o mesmo com pantufas/ chinelos, o que certamente influenciou a sua condução e reação. XXXVII- Assim, Venerandos Desembargadores, por tudo o exposto, é evidente que a conduta do Recorrente não é proibida nem punida por lei, tendo o mesmo respeitado e actuado em conformidade com todas as normas legais, sem a omissão de qualquer dever objetivo de cuidado ou de diligência e dentro da previsibilidade que se lhe afigurava possível. XXXVIII- A forma como ocorreu o acidente não se deveu a qualquer culpa do Recorrente, mas a um infeliz azar que pode acontecer a qualquer um de nós. XXXIX- Assim sendo, e em face de tudo o supra exposto, nomeadamente, atento o depoimento do Recorrente, o depoimento da testemunha CC, as regras de experiencia comum, a falta de previsibilidade de que por detrás do morro de terra circulasse um ciclomotor e a condução do Recorrente sem qualquer omissão dos deveres objetivos de cuidado ou diligência, os factos melhor descritos e identificados pelos pontos 11 e 12 da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo na sentença ora recorrida deverão resultar como não provados. XL- Tal como já se referiu, verifica-se na decisão recorrida a ocorrência do vício de erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do n.° 2 do art.° 410° do CPP, por se verificar nela uma "...contradição material insanável, erro de lógica e inobservância do que aconselha o senso comum", nos factos provados relativos à dinâmica do acidente e quanto à responsabilidade pelo acidente. XLI- O Tribunal a quo para além da incorreta apreciação da matéria de facto, conforme supra se demonstrou, também errou e interpretou incorretamente a lei, fazendo uma errada interpretação e aplicação do direito. XLII- Salvo melhor opinião, não ficou provado que o Recorrente tenha praticado um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal. XLIII- In casu, e salvo melhor opinião o Recorrente não assumiu qualquer comportamento comissivo ou omissivo, porquanto, e conforme já supra se referiu, o Recorrente conduziu sempre com cuidado e diligência, tendo invadido a hemi-faixa contrária (esquerda) por breves 5 segundos ou menos em virtude do ferro que trazia na caixa traseira do veiculo de mercadorias que conduzia se ter movimentado. XLIV- Contudo, o Recorrente quando invadiu a hemi-faixa esquerda fê-lo convencido que o fazia em segurança, pois visualizou a estrada em seu diante tendo constatado que nos próximos 200 metros não circulava qualquer veículo. XLV- O Recorrente podia invadir a hemi-faixa esquerda porque a linha que separa as hemi-faixas é descontinua. XLVI- Infelizmente e por azar, no momento que antecedeu o acidente o Falecido circulava por uma curva em forma de cotovelo, coberta por um pequeno morro de terra que impedia a visualização pelo Recorrente do ciclomotor em que circulava o Falecido, não sendo por essa razão de todo previsível que o falecido Sr. BB fosse surgir onde surgiu, dado que, o Recorrente avistou a estrada em seu diante a cerca de 200 metros e não viu quem quer que seja a aproximar-se, avistando a estrada completamente livre. XLVII- O Recorrente actuou assim sempre com um dever objetivo de cuidado e de diligência. XLVIII- Acresce que , ainda no mencionado artigo 15º do CP. se considera a “culpa consciente” – na alínea a) – quando o agente prevê a possibilidade de realização do facto ilícito e tem dela consciência; ou seja «a representa». E, na alínea b) trata-se da “culpa inconsciente”, quando o agente não previu, não teve consciência, «não representa» a possibilidade de realização do facto ilícito. XLIX- In casu, entendemos pois que o Recorrente nunca previu ou podia prever a circulação do motociclo em sentido contrário atento o seu sentido de marcha, nem sequer teve consciência de que tal motociclo poderia circular naquele momento, pelos motivos já referidos. L- Na realidade, e imprevisivelmente, vinha a circular o ciclomotor em apreço nos autos, o qual o Recorrente, infelizmente, não conseguiu avistar porque se encontrava encoberto pelo pequeno morro de terra existente muito próximo do local do acidente. LI- O Recorrente tendo avistado toda a estrada numa extensão de 200 metros nunca iria conseguir prever que porventura pudesse circular um motociclo e que o mesmo estivesse encoberto pelo pequeno morro de terra existente no local próximo de onde ocorreu o acidente. LII- Acresce que, in casu verifica-se o resultado morte de uma pessoa, contudo a imputação desse resultado não se deve à conduta do agente. LIII- Porquanto, o agente, in casu o Recorrente, sempre se pautou pelo cumprimento de todas as normas legais relativas à circulação rodoviária, nunca tendo violado qualquer uma. LIV- Pelo que, e atento tudo o supra exposto, não tendo o Recorrente assumido um comportamento comissivo ou omissivo, nem violado o dever (objectivo e subjectivo) de cuidado e tendo se verificado o resultado morte de uma pessoa contudo não sendo o mesmo imputado à conduta do Recorrente, cremos pois que é deveras injusto e contra legem condenar o Recorrente pelo crime em apreço nos autos. LV- O comportamento do Recorrente atento o já exposto, e que aqui por uma questão de economia processual se dá por integralmente reproduzido, muito menos poderá ser tipificado como negligência grosseira. LVI- Não tendo o Recorrente sido negligente pelos motivos já aduzidos, muito menos a sua conduta poderá ser considerada negligencia grosseira, o que desde já se invoca para os devidos e legais efeitos. LVII- Atendendo à dinâmica do acidente descrita e explicada supra e que entendemos ter de resultar como provada, bem como ao cumprimento de todas as normas legais pelo Recorrente e à falta de previsibilidade de que o motociclo pudesse surgir do local que antecede o local do acidente devido à existência do pequeno morro de terra, verificamos que a conduta do Recorrente não preenche efectivamente os requisitos do crime de homicídio por negligencia, nem qualquer outro. LVIII- E, por tal motivo, conforme a factualidade descrita haverá de concluir-se que o Recorrente é inocente e como tal deverá ser absolvido da prática do crime pelo qual foi condenado. LIX- Uma vez que a decisão se baseia em meras suposições, e por isso falíveis, sempre se imporia à luz do artigo 127° do Código de Processo Penal, e dos princípios in dúbio pro reo e da presunção de inocência (artigo 32° da Constituição da República Portuguesa) e do princípio da descoberta da verdade material vertido no artigo 340 do CPP, a absolvição do Recorrente. LX- Se os Venerandos Desembargadores entenderem que não obstante não haver negligencia grosseira, o Recorrente actuou com negligência, sempre se dirá que no caso concreto, apreciada a globalidade da conduta do Recorrente, apresentando em julgamento a versão real e concreta do acidente a qual aliás é corroborada pelas fotografias juntas aos autos pela GNR, e não foi contrariada por quem quer que seja, entendemos que lhe deverá ser aplicada uma pena não privativa da liberdade. LXI- In casu, atenta a dinâmica concreta do acidente relatada pelo Recorrente, o cumprimento integro de todas as normas de circulação rodoviária pelo Recorrente, bem como a falta de previsibilidade de que o motociclo surgisse a escassos metros do local do acidente em virtude da existência de um morro de terra, a ilicitude dos factos revela-se, quanto muito, diminuta. LXII- In casu, consideramos que, quanto muito, o grau da culpa é o normal - homicídio com negligência, a forma menos grave de violação de deveres de cuidado a ter existido, o que não se admite de todo e apenas por mera hipótese teórica se equaciona. LXIII- In casu, as condições de vida do Recorrente – familiarmente e profissionalmente integrado, sem antecedentes criminais também são de valorar a este propósito. LXIV- A personalidade do Recorrente, o comportamento anterior e posterior, verbalizando tristeza com o sucedido, também são circunstancias a valorar na determinação concreta da pena a aplicar ao Recorrente. LXV- Pelo que, no caso sub specie, atenta a dinâmica do acidente e os circunstancialismos já supra descritos em que o mesmo ocorreu, bem como as razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração, afigura-se justo e adequado aplicar ao Recorrente, quanto muito, a pena de multa de 20 dias à taxa diária de €6,00, o que perfaz a quantia de €120,00. LXVI- Mesmo que se entendesse que o arguido cometeu o crime de homicídio por negligência grosseira, a pena aplicada é exagerada. LXVII- Pelas razões e factos acima expostos, mesmo sem alteração da decisão quanto à matéria de facto (de que não se prescinde) a culpa do arguido e as necessidades de prevenção, no caso concreto são diminutas. LXVIII- Face ao grau de culpa diminuto e às condições económicas do arguido (aufere o salário mínimo nacional), deverá ser-lhe aplicada a pena de prisão de 2 meses, substituída pela prestação de 50 horas de trabalho a favor da comunidade, sendo em qualquer circunstancia a pena acessória de proibição de condução de veículos com motor exagerada. LXIX- Por tudo quanto acima se deixou dito e, uma vez que também esta se trata de uma verdadeira pena, muitas vezes, mais gravosa para o Arguido do que a pena principal, deve a pena acessória de proibição de condução de veículos com motor ser reduzida para o mínimo legal de 3 meses. LXX- Conforme resulta do ponto 13 da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo o Recorrente é construtor civil, necessitando obviamente da sua carta de condução para desempenhar a sua profissão. LXXI- Aplicar ao Recorrente a pena acessória de proibição de condução de veiculos a motor é comprometer-lhe a sua vida na medida em que o mesmo ver-se-á impossibilitado de trabalhar e consequentemente de receber qualquer quantia monetária para fazer face às suas despesas quotidianas, nomeadamente com a alimentação, sujeitando-o inclusive a passar fome. LXXII- Ademais, aplicar ao Recorrente a mencionada pena acessória de proibição de condução de veiculos a motor é comprometer também a vida de terceiros, porquanto, conforme resulta do depoimento credível e espontâneo do próprio Recorrente o mesmo é Presidente da Junta de Freguesia ... e Vice Presidente do Centro Social de Idosos, cargos estes que o Recorrente desempenha com recurso à condução de veículos pois transporta os fregueses da freguesia ... e os utentes do Centro Social de Idosos para o médico, leva-lhes comida, etc. LXXIII- Em suma, o Recorrente está inocente e deverá ser absolvido da prática do crime de homicídio por negligencia pelo qual foi condenado pelo Tribunal a quo, com a consequente absolvição da frequência de qualquer programa de sinistralidade rodoviária e de qualquer pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor. LXXIV- Mesmo que entendam que o Recorrente cometeu o crime de homicídio por negligencia previsto e punido pelo artigo 137.º n.º1 do Código Penal, deverá ser-lhe aplicável a pena de multa de 20 dias à taxa diária de €6,00, o que perfaz a quantia global de €120,00. LXXV- Se os Venerandos Desembargadores entenderem que o Recorrente praticou o crime de homicídio com negligência grosseira, deverão, salvo melhor opinião, aplicar ao Recorrente a pena de 2 meses de prisão substituída pela prestação de 50 horas de trabalho a favor da comunidade, e quanto à pena acessória, concluirão que a mesma é exagerada e que face à situação concreta do Recorrente dever-lhe-á ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir veiculos com motor pelo período de três meses. LXXVI- Face a todo o exposto, deverá conceder-se provimento ao presente recurso, quer quanto ao apuramento da matéria de facto, quer quanto à aplicação do direito, revogando-se e substituindo-se a douta sentença recorrida, por outra que: altere a decisão da matéria de facto nos termos expostos e, em suma, absolva o Recorrente da prática do crime de homicídio negligente e consequente pena acessória de proibição de conduzir veiculos a motor. LXXVII- A douta sentença recorrida violou os princípios constitucionais do in dubio pro reo, da verdade material e o principio da presunção de inocência e, entre outras, as disposições dos artigos 10º, 15°, 40º, 41º, 47º, 69°, 70°, 71° e 137 do Código Penal, dos artigos 124°, 127°, 340°. e 410° do Código Processo Penal, dos artigos 13º, 145º e 147º do Código da Estrada, e do artigo 32º da Constituição da Republica Portuguesa. TERMOS EM QUE, Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença impugnada, sendo substituída por outra, em conformidade com a pretensão do Recorrente supra exposta, fazendo, assim, V. Exa. a habitual Justiça”. * Resposta ao recurso por parte do Ministério Público.Na primeira instância, o Ministério Público, apresentou resposta ao recurso considerando que a sentença recorrida deve ser mantida na íntegra, negando-se assim provimento ao recurso. Apresenta as seguintes conclusões, que também se reproduzem: “1. No âmbito dos presentes autos foi o arguido AA condenado como autor material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de um ano e dez meses de prisão, substituída pela prestação de 480 horas de trabalho a favor da comunidade, a que acrescerá a obrigação de frequência de um programa de prevenção da sinistralidade rodoviária, a determinar pela D.G.R.S.P., e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 12 (doze) meses. 2. No nosso ordenamento jurídico processual vigora o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º, do Código de Processo Penal, segundo o qual a prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. 3. Ora, a convicção do Tribunal a quo está devidamente fundamentada, com a análise e exame crítico da prova, encontrando-se a matéria de facto bem decidida, a prova bem sopesada e o direito bem aplicado. 4. Não ocorreu qualquer erro na determinação da matéria de facto dada como provada. 5. Com efeito, para dar como provada a factualidade assente o Tribunal a quo ponderou a análise científica do acidente vertida nos autos bem como as próprias declarações do arguido no dia do sinistro e que constam da participação do acidente (distintas daquelas que produziu em audiência de julgamento), não tendo dúvidas de que a tese aventada pelo recorrente de que o embate se deu já na sua via de circulação não é verosímil, pelo que deveria o recorrente ter adoptado outro comportamento, tal como faria um cidadão cuidadoso e prudente. 6. O Tribunal recorrido ficou convencido de que o ora recorrente praticou os factos que lhe foram imputados, pelo que não há lugar à aplicação do princípio in dúbio pro reo. 7. A decisão recorrida não padece do vício constante na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal. 8. Face à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, resultaram provados os elementos do tipo objectivo e subjectivo do sobredito ilícito criminal. punido com pena de prisão entre um mês e 5 anos. 9. Pois como resulta da sentença recorrida “inexistem dúvidas de que a conduta do arguido integra a negligência grosseira, porquanto evidencia um caso de demissão, por parte do condutor, dos elementares deveres de precaução do exercício da condução.”. 10. Por outro lado, o Tribunal a quo fez uma correcta interpretação dos artigos 40º, 70º e 71º, todos do Código Penal na escolha e determinação da medida concreta das penas principal e acessória aplicadas. 11. De facto, o Tribunal recorrido ponderou que foi elevada a violação do dever de cuidado por parte do arguido, que actuou com negligência inconsciente, que o mesmo encontra-se social e familiarmente inserido, o facto de não ter antecedentes criminais bem como as elevadas exigências de prevenção geral “atenta a elevada sinistralidade rodoviária”, ao que acresce as consequências da sua conduta (morte da vítima). 12. Pelo que atendendo à moldura penal abstracta em causa (pena de prisão de um mês a cinco anos), afigura-se-nos adequada e proporcional às finalidades da punição a aplicação ao arguido de uma pena de 1 ano e 10 meses de prisão, substituída pela prestação de 480 de trabalho a favor da comunidade, e o mesmo se diga da pena acessória aplicada de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 12 meses, tendo sobretudo em consideração as particulares exigências de prevenção geral que nestes crimes se fazem sentir. 13. Ademais, importa sublinhar, como ficou exarado na sentença em crise, que atendendo “às consequências gravíssimas da imprudência do arguido”, e a fim de sensibilizar o arguido para a necessidade de não violar as regras estradais e o dever objectivo de cuidado no acto da condução, mostra-se adequado que o mesmo frequentar um programa de prevenção da sinistralidade rodoviária, a determinar pela DGRSP. 14. Nesta senda, urge concluir que não foram violados quaisquer preceitos legais, designadamente, o disposto nos artigos 40º, 70º, 71º e 137º, todos do Código Penal, 127º e 340º, ambos do Código de Processo Penal, e 32º, da Lei Fundamental”. *** Tramitação subsequenteNeste Tribunal da Relação de Guimarães, o processo foi com vista ao Ministério Público, tendo o Exmº. Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitido douto parecer, com pertinente avocação doutrinária e jurisprudencial, concluindo a final que o recurso não deve merecer provimento. * Cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP, o arguido apresentou resposta na qual, em súmula veio reiterar os fundamentos já aduzidos no seu douto recurso. * Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.* II – Fundamentação. Cumpre apreciar o objeto do recurso. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas essas questões, as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal[1]. As questões que se colocam à apreciação deste tribunal são, por ordem lógica da sua apreciação, as seguintes: - Vício do erro notório na apreciação da prova. - Erro de julgamento da matéria de facto provada nos pontos 2, 3, 10, 11 e 12, com violação do principio do in dúbio pro reo. - Erro de julgamento em matéria de direito, no enquadramento jurídico penal. - Escolha da pena. - Pena principal e acessória consideradas excessivas. * É a seguinte a matéria de facto dada como provada e não provada pelo tribunal “a quo” (transcrição):“1. No dia 11 de agosto de 2021, pelas 15h45, na EM ...91 (Rua ...), em ..., o arguido AA conduzia o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-MN, pela hemi-faixa direita da referida EM, atento o sentido que seguia, o qual era, EN...3/.... 2. Ao chegar ao local em que a referida EM 519 apresenta um traçado curvo para a esquerda, com inclinação descendente, o arguido, ao abordar a dita curva, invadiu a hemi-faixa esquerda de rodagem, passando o veículo a circular por esta, a cerca de 53 km/hora. 3. Quando assim seguia embateu no motociclo de matrícula ..-TV-.., tripulado por BB, que seguia pela hemi-faixa esquerda, no sentido contrário, ou seja, .../EN ...03. 4. Por força do embate, BB foi projetado do veículo em que circulava, ficando imobilizado no eixo da via. 5. Como consequência direta e necessária do embate, BB sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 32 e sgs - o qual aqui se dá por integralmente reproduzido – nomeadamente, lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, torácicas e abdominais. 6. Tais lesões viriam a causar-lhe, sempre de forma direta e necessária, a morte. 7. O local do acidente traduz-se numa faixa de rodagem com uma curva à esquerda com inclinação, constituída por hemi-faixas de trânsito, cada uma destinada a sentidos opostos, separadas por uma linha longitudinal descontinua, sendo que a faixa de rodagem tem a largura de 6,70 metros. 8. Na ocasião do embate, o dia estava claro e sem nevoeiro. 9. Podendo aperceber-se da existência da uma zona de traçado curvo e das circunstâncias espácio-temporais descritas, nada impedia o arguido de circular na via da direita, sem invadir a hemi-faixa contrária e, consequentemente, evitar o embate com o motociclo de BB, que aí circulava em sentido contrário. 10.Por não ter adotado tal conduta, como podia e devia, ocorreu o embate, que ficou a dever-se à forma desatenta, descuidada e temerária como tripulou o veículo. 11.O arguido agiu com manifesta falta de consideração pelas normas legais relativas à circulação automóvel e, ao dirigir o veículo do modo e nas condições descritas, não agiu com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências possíveis da sua conduta. 12.Agiu o arguido AA sabendo proibida e punida por lei a sua conduta. 13.O arguido é construtor civil, auferindo, mensalmente, cerca de €800. 14.Vive com o filho, de 26 anos de idade, independente financeiramente, na casa deste. 15.Tem um empréstimo bancário contraído para aquisição de viatura automóvel, no âmbito do qual liquida, mensalmente, o valor de cerca de €200. 16.Tem o 6.º ano de escolaridade. 17.Nunca sofreu qualquer condenação criminal e do seu registo individual de condutor nada consta. Factos não provados: Da discussão da causa, não resultou provado que: A) O embate ficou a dever-se à velocidade que o arguido imprimiu, desajustada às condições espácio-temporais do local”. * Para tanto motivou a decisão de facto do seguinte modo (transcrição):“Todos os elementos probatórios constantes dos autos foram analisados de uma forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum, tendo sido todos articulados e concatenados entre si. Para dar como provados os factos 1) a 4), parcialmente admitidos pelo arguido – negou que o embate se tenha dado na via de circulação do ciclomotor - o Tribunal fundou-se na conjugação das declarações prestadas de forma séria e isenta pelas testemunhas CC, responsável pela investigação técnica do acidente e que elaborou o relatório de fls. 160 e ss e FF, militar da G.N.R. que elaborou a participação do acidente e o croquis anexo à mesma – fls. 8/9 - confirmando o mesmo à luz das declarações que lhe foram prestadas, no momento, pelo arguido. O Tribunal alicerçou-se, ainda, no relatório pericial constante de fls. 227 e ss, onde se conseguiu apurar a velocidade a que se deslocava o veículo do arguido, admitida, até, pelo próprio arguido, em audiência de julgamento. Assim e atentos tais elementos probatórios, quer pela análise científica do acidente vertida nos autos, quer pelas próprias declarações prestadas pelo arguido no dia do sinistro, vertidas na participação do acidente, diferentes das que trouxe em audiência, não pôde colher a sua versão de que o embate se deu já na sua via de circulação, afigurando-se ter-se tratado de uma tentativa de se furtar à assunção de toda a factualidade que lhe é imputada ou a uma errada (pese embora, não intencional) perceção do que ocorreu, como tantas vezes ocorre com os intervenientes em acidente de viação. Os factos 5) e 6) decorrem do relatório de autópsia de fls. 32 e ss. O arguido admitiu o teor dos factos 7) e 8). Assim, quanto aos factos 9) a 11), não revelando o arguido qualquer incapacidade psíquica (ou seja, enquadrando-se na figura do homem médio, prudente e diligente), podia ter atuado de forma diferente, como faria um cidadão cuidadoso e prudente, sabendo ser proibida a sua conduta, atento o crime em análise. Como se refere nos acórdãos da R.P., pr. n.º 0140379, de 03/10/2001, e Ac. da R.G., pr. n.º 1559/05.1, de 14/12/2005, ambos disponíveis em www.jurisprudencia.vlex.pt, o elemento subjectivo pode comprovar-se “por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência.”. Os factos relativos à situação socioeconómica do arguido resultaram das suas próprias declarações, que se mostraram credíveis. No que concerne à ausência de antecedentes criminais, o Tribunal atendeu ao que consta do C.R.C. junto a fls. 226 e, quanto ao registo individual do condutor, ateve-se ao teor de fls. 102 e 103. Quanto ao facto não provado, inexistiu prova que o corroborasse, dado que, no local do sinistro, a velocidade permitida era de 90Km/hora, tendo o arguido declarado que tinha o controlo do veículo, circulando a cerca de 50Km/hora, pelo que só resultou da prova produzida que a passagem para a via contrária se ficou a dever a facilitismo do arguido e não ao desajustamento da velocidade a que circulava. Prestaram, ainda, declarações, GG, irmã da vítima falecida, cujas declarações não se mostraram relevantes, dado não ter assistido aos factos, HH, II, ambos amigos do arguido e que vieram falar da sua personalidade e DD, que esteve no local do sinistro após a sua ocorrência”. * Do alegado vício do erro notório na apreciação da prova.A matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas formas: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios ou de algum dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal; outra, usualmente denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo Código. Assim, se no primeiro caso, o recurso visa uma sindicância centrada exclusivamente no texto da sentença, dirigida a aferir da capacidade do juiz em expressar de forma adequada e suficiente as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou, já no segundo, o que o recurso visa é o reexame da matéria de facto, através da fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção, a partir delas. Dispõe o artigo 410º do Código de Processo Penal: «1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. 3 – O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada”. * Como ensina Maria João Antunes, [2] os vícios do nº 2 do artigo 410º, do C. P. Penal, não são vícios do julgamento, mas vícios da decisão, que surgem umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, que impõe a fundamentação das decisões de facto e de direito, sob pena da nulidade da sentença, mas que com eles se não confundem”.Refere por sua vez o senhor Juiz Conselheiro Sérgio Poças e de um modo que cremos lapidar [3] “O recorrente não pode misturar/confundir a invocação dos vícios previstos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º com os requisitos da impugnação da matéria de facto a que se refere o nº 3 e respectivas alíneas e o nº 4 do artigo 412º, trata-se de institutos distintos com natureza e consequências distintas”. Como se sabe, os vícios previstos no mencionado artigo 410º - como é expresso na norma – devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência e aí se ficam, a impugnação ampla da matéria de facto cava fundo na apreciação da prova. Aqui o recorrente vai além do texto da decisão, debruça-se sobre a prova produzida em 1ª instância”. No mesmo sentido, escreve Gama Lobo [4] relativamente aos vícios previstos nesse nº 2 do artigo 410º que “une todas estas situações, que o código apelida de “vícios”, o facto de serem endógenas da sentença, isto é, resultam sem mais, da leitura da sentença, não admitindo elementos exteriores para a sua constatação. É inoperante no recurso aludir a quaisquer outros elementos externos à sentença, como sejam declarações no decurso do inquérito ou da instrução ou até mesmo do julgamento, defeito que acontece muitas vezes”. O Exmº Juiz Conselheiro Pereira Madeira [5] elucida de uma forma lapidar que “fica excluída da previsão do preceito toda a tarefa de apreciação e ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração dos depoimentos, mesmo que objecto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto”. Temos assim que, relativamente a todos os vícios contidos no artigo 410º nº 2 do CPP têm de resultar apenas do texto da sentença/acórdão recorrido, sem que o recorrente possa fazer apelo à prova produzida nos autos. Relativamente ao erro notório na apreciação da prova, elucida o Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 10 de julho de 2019, que “O vício a que alude a recorrente e que consta da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP é, contrariamente à frequência com que é invocado, um vício muito raro, uma vez que só ocorre quando é detetável por qualquer pessoa – homem médio – em face do texto da decisão recorrida. E é evidente se qualquer pessoa o deteta, também o juiz que elabora o texto dificilmente o deixaria passar. É o erro que evidencia que as regras da experiência da vida e do normal acontecer foram violadas pelo raciocínio patente no texto da decisão”. O erro notório na apreciação da prova, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Perante a simples leitura do texto da decisão, o “homem médio” conclui, legitimamente, que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. Refere Paulo Pinto de Albuquerque [6] que o propósito do legislador foi “conter a sindicância do tribunal de recurso aos termos estritos da sentença recorrida, embora se admitisse que o texto da decisão recorrida pudesse ser interpretado à luz das regras de experiência comum”. Adianta ainda o senhor Juiz Conselheiro Sérgio Poças [7] “o erro notório é o erro que se vê logo, que ressalta evidente da decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência, adiantando que “embora muito invocado nos tribunais, verdadeiramente o erro notório na apreciação da prova (tal como é desenhado na lei) raramente se verifica, para concluir que “quando o recorrente entende que a prova foi mal apreciada deve proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de factos conforme o artigo 412º, nº 3, e não agarrar-se ao vício do erro notório”. Ora, não resulta do texto da sentença recorrida qualquer erro notório na apreciação da prova, que emane do texto da sentença recorrida, sendo que como se refere no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 28/08/2018, [8] o erro notório na apreciação da prova, tem “que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida”. Ora, este tribunal de recurso não vislumbra, qualquer erro notório, palmar, evidente na apreciação da prova que resulte do texto da sentença. A alegação do recorrente afirmando a existência deste vício, socorrendo-se para tanto à prova pessoal prestada em julgamento e às fotografias junto aos autos, levam facilmente a concluir que o que o recorrente pretende reconduz-se à impugnação ampla da matéria de facto, prevista no artigo 412º do CPP, que nada tem a ver com este vício e que trataremos de seguida. * Do alegado erro de julgamento no que respeita aos factos dados como provados nos pontos 2, 3, 10, 11 e 12.Sendo a pretensão do recorrente a impugnação da matéria de facto mediante a análise da prova produzida, a modificabilidade da decisão de facto da 1ª instância só poderá ter lugar quando se verifiquem os requisitos estabelecidos no artigo 431.º do CPP, a saber: a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) se a prova tiver sido impugnada, nos termos do artigo 412.º n.º 3; ou, c) se tiver havido renovação da prova. Face ao disposto no referido nº 3 do artigo 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas. Dispõe, ainda, o seu n.º 4 que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”. O recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual alternativa à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e dizendo quais os motivos exatos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado. Se dessa comparação resultar que o Tribunal não podia ter concluído, como concluiu na consideração daqueles factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detetado. Porém, se a convicção ainda puder ser objetivável de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresentar for meramente alternativa e igualmente possível, então, deverá manter-se a opção do julgador, porquanto tem o respaldo dos princípios da oralidade e da imediação da prova, da qual já não beneficia o Tribunal de recurso. Neste caso, já não haverá, nem erro de julgamento, nem possibilidade de alteração factual. Como ensina Damião da Cunha [9] “Uma decisão errada, ilegal ou arbitrária não pode ser sustentada numa simples alegação da discordância entre a convicção do recorrente e a convicção que o julgador livremente formou com base na prova produzida em audiência de julgamento, antes passa necessariamente pela demonstração inequívoca de que o tribunal que a proferiu contrariou as regras da experiência e desrespeitou princípios basilares do direito probatório (v. g. prova legalmente vinculada, provas proibidas etc.). Quando o recorrente pretende apenas por em causa a livre apreciação da prova, o recurso estará irremediavelmente destinado à improcedência. É que, como se referiu, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos atos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defender-se uma outra solução, o tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou, então, numa espécie de juízos por parâmetros”. Salienta por sua vez Paulo Pinto de Albuquerque [10] “A Lei n.º 48/2007, de 29.8, muda profundamente o regime de impugnação da matéria de facto. O legislador tem dois objectivos: tornar mais exigente a especificação dos pontos de facto impugnados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida no recurso da decisão sobre a matéria de facto e pôr cobro ao dever de transcrição dos registos gravados. O novo regime articula-se com as regras novas sobre a documentação das declarações prestadas na audiência e o acesso dos sujeitos processuais a esta documentação. Assim, a motivação do recurso sobre a matéria de facto deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. A especificação dos "concretos pontos de facto" só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado. (…). A especificação das "concretas provas" só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa”. Ou, como também refere o Senhor Juiz Conselheiro Pereira Madeira [11] o recorrente tem sobre si ónus de concretizar, (não bastando uma alusão genérica) os pontos de facto tidos por mal julgados. Foi assim propósito do legislador delimitar o âmbito do recurso interposto sobre a decisão a matéria de facto, em termos de o permitir apenas nos casos em que haja uma identificação do concreto erro de julgamento ocorrido, bem como dos específicos meios de provas que concretamente o demonstram. Temos assim que a identificação do alegado erro de julgamento, por via da indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e dos meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida são essenciais para que o tribunal de recurso possa conhecer do mérito da impugnação da decisão da matéria de facto. * O arguido identifica os pontos de facto provados que pretende ver alterados e que são os seguintes:“2. Ao chegar ao local em que a referida EM 519 apresenta um traçado curvo para a esquerda, com inclinação descendente, o arguido, ao abordar a dita curva, invadiu a hemi-faixa esquerda de rodagem, passando o veículo a circular por esta, a cerca de 53 km/hora. 3. Quando assim seguia embateu no motociclo de matrícula ..-TV-.., tripulado por BB, que seguia pela hemi-faixa esquerda, no sentido contrário, ou seja, .../EN ...03. 10.Por não ter adotado tal conduta, como podia e devia, ocorreu o embate, que ficou a dever-se à forma desatenta, descuidada e temerária como tripulou o veículo. 11. O arguido agiu com manifesta falta de consideração pelas normas legais relativas à circulação automóvel e, ao dirigir o veículo do modo e nas condições descritas, não agiu com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências possíveis da sua conduta. 12. Agiu o arguido AA sabendo proibida e punida por lei a sua conduta”. Pretende o arguido que os pontos 2º, 3º e 10º passem a ter a seguinte redação: “2. Ao chegar ao local em que a referida EM 519 apresenta um traçado curvo para a esquerda, com inclinação descendente, o arguido, após ter permanecido cerca de 5 segundos na hemi-faixa esquerda devido à movimentação do ferro que trazia carregado na caixa aberta do veiculo de mercadorias em que circulava, e tendo visualizado que nos próximos 200 metros a estrada encontrava-se livre e desimpedida, dirigiu-se novamente para a sua hemi-faixa direita de circulação, passando o veículo a circular por esta, a cerca de 53 km/hora. O motociclo de matrícula ..-TV-.., tripulado por BB, que seguia pela hemi-faixa esquerda atento o sentido de marcha do Recorrente, no sentido .../EN ...03, circulava por uma curva em forma de cotovelo, encoberta por um pequeno morro de terra que impedia a visualização pelo Arguido do ciclomotor em que circulava o BB, não sendo por essa razão de todo previsível que o Sr. BB fosse surgir onde surgiu, dado que, o Arguido avistou a estrada em seu diante a cerca de 200 metros e não viu quem quer que seja a aproximar-se, avistando a estrada completamente livre. 3. Quando assim seguia, o motociclo de matrícula ..-TV-.., tripulado por BB, que seguia pela hemi-faixa esquerda atento o sentido de marcha do Recorrente, no sentido .../EN ...03, atrapalhado com o avistamento do Arguido a dirigir-se da hemi-faixa esquerda para a hemi-faixa da direita, coloca-se em pé, circulando de pantufas/ chinelos e dirige-se também para a hemi-faixa direita com receio de embater no veiculo tripulado pelo Arguido, momento em que ocorre o embate. 10.Por o condutor do motociclo ter adotado tal conduta devido à sua atrapalhação, inexperiência e ao facto de circular em pé e de pantufas/ chinelos, ocorreu o embate”. Por força dessa alteração, entende então que devem ser dados como não provados os pontos 11º e 12º. * Este tribunal de recurso procedeu à audição integral das declarações prestadas pelo arguido e bem assim dos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento.Dessa audição não resulta que deva ser alterado o modo como a Mmª Juiz “a quo” de um modo fundado e esclarecedor, deu como provada a matéria ora impugnada. O arguido, numa postura, naturalmente comprometida e interessada, tentou, sem êxito fazer crer que o embate se deu já na sua hemi-faixa de rodagem, apesar de consentir que “entrou um bocado dentro da curva”, referindo ainda que a cabine do seu veículo estava já na sua hemifaixa direita de rodagem, enquanto a perte restante da carrinha ainda se encontrava na hemifaixa esquerda, atento o seu sentido de marcha. Ao contrário do que o recorrente pretende fazer valer, não é pelo facto das duas hemi-faixas de rodagem estarem separadas por uma linha longitudinal descontinua, que permite aos condutores passarem a conduzir pela hemi-faixa de rodagem contrária e “cortarem” as curvas que se lhes apresentam, por maior ou menor visibilidade que tenham. Quanto à visibilidade o arguido dizia que tinha uma visibilidade de 200 metros e por isso cortou a curva mas ao mesmo tempo dizia que era uma curva em cotovelo e não viu o motociclo. A testemunha FF, militar da GNR, que foi a agente participante do sinistro e que elaborou o Auto de notícia e o croquis junto aos autos, não tem dúvidas em referir o local do embate, que foi logo nessa ocasião, indicado pelo próprio arguido, também esclarecendo que os rastos de travagem do veículo conduzido pelo arguido iam até esse local. Local esse que se situa inequivocamente na hemi-faixa esquerda de rodagem atento o sentido de marcha do arguido. O facto de o corpo da vítima ter ficado prostrado no centro da via como foi dito pela referida testemunha explica-se pela circunstância de ter sido projetado. Nenhuma prova credível e isenta leva a considerar que foi o condutor do motociclo quem se atrapalhou, que se pôs de pé ao avistar a carrinha, vindo a embater na hemi-faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do arguido, como pretende o recorrente. Do mesmo modo, também inexiste prova que existia um morro de terra que impedia a visualização pelo Arguido do motociclo conduzido pelo BB. A circunstância do BB poder estar calçado com umas pantufas, em nada contribuiu para a existência do embate, sendo que o próprio arguido admitiu que se tivesse sempre mantido-se na sua faixa de rodagem, “a mota teria passado”. E assim, o acidente não teria ocorrido. A testemunha DD não viu o acidente e o seu contributo enquanto testemunha, que disse ser condutor profissional é que “é normal cortar uma curva”!. Não existe assim qualquer prova que leve e muito menos imponha a alteração pretendida pelo recorrente aos pontos 2º. 2º e 10º da matéria de facto dada como provada pelo que se mantém inalterada e consequentemente também assim a matéria constante nos pontos 11º e 12º dados como provados, referentes ao elemento subjetivo e conhecimento da ilicitude. * Da alegada violação do princípio do in dúbio pro reo.O princípio do in dubio pro reo enquanto corolário do princípio da presunção de inocência decorrente do artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, impõe que, em caso de dúvida acerca de factos referentes ao objeto do processo (existência dos factos, forma de cometimento e responsabilidade pela sua prática), essa dúvida deve ser sempre desfeita em benefício do arguido relativamente ao ponto ou pontos duvidosos, podendo mesmo conduzir à absolvição [12] Como ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira [13] “O princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dúbio pro reo. (…) Os princípios da presunção de inocência e in dúbio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena”. Surge deste modo tal princípio como resposta ao problema da incerteza da prova em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo. Implica deste modo, que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal. Salienta Figueiredo Dias que “Um non liquet na questão da prova – não permitindo ao juiz – que omita decisão … - tem que ser sempre valorado a favor do arguido (…) com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dúbio pro reo”.[14] É um mecanismo de resolução dos estados de incerteza, na convicção do julgador, quanto à verificação dos factos integradores de um crime ou relevantes para a pena. Pressupõe que a dúvida seja razoável e se mantenha insanável, mesmo depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas. Resolve a dúvida, cominando-lhe como consequência a consideração dos factos como não provados e a consequente absolvição do arguido, ou, em qualquer caso, a decisão da matéria de facto, sempre, no sentido que mais favorecer o arguido. Constituí, deste modo, um limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º do CPP, na medida em que a dúvida que lhe subjaz, sendo insuperável, impõe-se com carácter vinculativo, impedindo o juiz de decidir uma parte do objeto do processo: precisamente, a que se refere aos factos incertos que sejam desfavoráveis ao arguido. Da decisão recorrida não resulta, bem pelo contrário, que tenham restado dúvidas ao tribunal a quo da prática do crime pelo arguido, não se mostrando assim violado este princípio. Uma outra dimensão do princípio in dubio pro reo, é que este princípio também pode e deve ser entendido objetivamente, ou seja, desgarrado da dúvida subjetiva ou histórica, postulando uma análise da sua violação já não como vício decisório, mas como erro de julgamento. Nos termos do art. 428º do CPP, os poderes de cognição do tribunal da Relação incluem os factos fixados na primeira instância e, na medida em que o in dubio pro reo é uma vertente processual do princípio nulla poena sine culpa, a sua inobservância também pode e deve ser apreciada como um erro de julgamento, nos termos regulados pelo art. 412º do CPP. Deste modo a impugnação ampla da matéria de facto, visando os chamados erros de julgamento, habilita o Tribunal da Relação, fora dos limites apertados dos vícios decisórios previstos no art. 410º do CPP a aferir da conformidade ou desconformidade da decisão sobre os factos impugnados com a prova efetivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como, com as regras específicas e os princípios vigentes em matéria probatória, entre os quais se incluem, naturalmente, os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo. Também aqui não resulta da prova produzida levasse a criar uma dúvida insanável e que apreciada a prova produzida, não se pode concluir que na dúvida o tribunal decidiu contra o arguido. A sentença recorrida encontra-se bem fundamentada, pelo que também aqui soçobra o recurso do arguido. * Do alegado erro do enquadramento jurídico dos factos provados na prática do crime de homicídio por negligência grosseira.A este propósito consta na sentença recorrida: O arguido AA encontra-se acusado da prática, como autor material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 2, do Código Penal. Dispõe o artigo 137.º, do Código Penal, que “1- Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2 - Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos.”. O tipo de homicídio negligente está inserido no capítulo que o Código Penal dedica aos crimes contra a vida e protege, precisamente, o bem jurídico vida humana. Trata-se de um ilícito criminal exigido pelo texto da Constituição, na medida em que o artigo 24.º, n.º 1, da Lei Fundamental prescreve a inviolabilidade da vida humana. Assim, objeto do crime é sempre outra pessoa. Para aferir da verificação do tipo objetivo, há que atender aos seguintes elementos: 1. Ação ou omissão da ação devida 2. Violação do dever objetivo de cuidado O dever objetivo de cuidado imposto ao arguido tem de ser determinado por critérios objetivos, nomeadamente, pelas exigências postas ao homem avisado e prudente, colocado na situação concreta do agente. A conduta do agente só assume relevância jurídico-penal para o preenchimento do tipo de ilícito em apreciação se o agente não atuou com o cuidado a que estava obrigado e que podia fazer, ou seja, “[a]ntes de tudo a negligência é omissão de um dever objectivo de cuidado ou diligência” (Eduardo Correia, in ”Direito criminal ” , Volume I , reimpressão, Almedina, 2007, p. 421) . Conforme refere Jorge de Figueiredo Dias ( in “Comentário Conimbricens e do Código Penal ”, Tomo I , Coimbr a Edi tor a, 1999, p. 108) , “[a] violação de normas de cuidado assume particular relevo em domínios absolutamente especializados que importam riscos para a vida de outras pessoas. Nestes domínios o agente não deve actuar antes de se ter informado ou esclarecido sobre tais riscos, sempre que se não encontre em posição de os avaliar correctamente. Se não conseguir alcançar a informação ou o esclarecimento necessários deve omitir a conduta; se o não faz e a morte de outrem surge em consequência, a violação de um tal dever pode integrar o tipo de ilícito do homicídio negligente.” No que se refere em concreto aos acidentes rodoviários, “a imputação de um crime negligente terá subjacente a violação de um dever objectivo de cuidado que emerge das regras de experiência comum ou da violação das normas do Código da Estrada, ou da violação de ambas", pelo que, "tendo existido uma violação das normas estradais, e sendo o evento produzido do tipo que a lei quis evitar quando impôs a disciplina violada, deve presumir-se a negligência" (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de Janeiro de 2003, proferido no Processo n. º 3741/02 e disponível em www.dgsi.pt). 3. Princípio da confiança como delimitador do tipo De acordo com o princípio da confiança, quem atua em conformidade com as normas deve poder confiar que os outros também o fazem. Assim, tendo em conta este princípio, “o agente deve poder contar com que os outros não cometerão factos ilícitos-típicos dolosos. Salvo se (…) as circunstâncias concretas do caso derem fundado motivo para pensar que um tal cometimento pode muito bem ocorrer.” (Jorge de Figueiredo Dias, op. cit. p. 110) . 4. Produção do resultado ofensa à vida 5. Previsibilidade objetiva do resultado De acordo com um juízo de prognose, o resultado tem de ser previsível para um homem avisado e prudente, colocado na situação concreta do agente. 6. Imputação objetiva do resultado à conduta do agente A ofensa à vida tem de ser, em si mesma, o resultado da atuação do agente, ou seja, o tipo de ilícito não é preenchido quando o agente, com a sua conduta, não criou, não assumiu ou não potenciou um perigo típico para a vítima; ou porque o perigo não chegou ao limite do juridicamente relevante ou porque, sendo embora a conduta em si perigosa, se manteve dentro dos limites do risco permitido; ou mesmo porque o agente se limitou a contribuir para a autocolocação em perigo dolosa de outra pessoa (sobre tal matéria, ver Jorge de Figueiredo Dias, op. cit, p. 107). Quanto ao tipo subjetivo, conforme decorre da epígrafe do artigo, trata-se de um crime negligente, pelo que exige os seguintes requisitos: 1. Censurabilidade da ação objetivamente violadora do dever objetivo de cuidado tendo em conta as qualidades e capacidades individuais do agente: Trata-se de uma capacidade de culpa. A negligência supõe que o agente seja capaz de cumprir o dever de cuidado e de prever o resultado típico. Deve comprovar-se se o autor, de acordo com as suas qualidades e capacidade individual, estava em condições de satisfazer as correspondentes exigências objetivas, tendo em atenção a sua inteligência, formação, experiência de vida; deve olhar-se também às especialidades da situação em que se atua (medo, perturbação, fadiga). Se o agente, por uma deficiência mental ou física, ao tempo da sua atuação, não estava em condições de corresponder às exigências de cuidado, não poderá ser censurado pela sua conduta. Para a maioria da doutrina, porém, valerá “um critério generalizador relativamente aos agentes dotados de capacidades médias ou inferiores à média, um critério individualizador relativamente a todos os agentes dotados de especiais capacidades (superiores à média).” (Jorge de Figueiredo Dias). 2. Previsibilidade individual do resultado: Este é um elemento que estará excluído nos casos de negligência inconsciente. O resultado tem de ser “previsível e evitável para o homem prudente, dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente” (Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I , Coimbra Editora, 2004, p. 634). 3. Exigibilidade do comportamento lícito alternativo: De acordo com as concretas circunstâncias do caso, àquele agente tem de ser exigível que atue do modo exigido pelo direito. A conduta cuidadosa não será exigível quando a sua adoção não for de esperar de uma pessoa na situação do agente. * Por fim e quanto ao conceito de negligência grosseira, exigir-se-á um comportamento do agente que ultrapassa em muito a simples falta de cuidado, que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz e, antes, evidencia uma conduta insensata, irrefletida e mesmo irresponsável no modo de agir.Exemplos dessa situação encontramo-los no âmbito do exercício da condução, nos casos de demissão do condutor dos elementares deveres de precaução do exercício da condução, na condução temerária ou na condução efetuada de uma forma totalmente despreocupada de cuidados exigidos (veja-se, neste sentido o Ac, da R.E. de RE 19.11.91, CJ 1991 TV, p.260). * Importa, agora, analisar a matéria factual dada como provada, à luz dos referidos elementos do tipo de ilícito imputado ao arguido.Antes de mais, o arguido atuou, conduzindo a sua viatura, nas circunstâncias descritas nos factos provados. O dever objetivo de cuidado que o arguido desrespeitou prende-se com a violação do disposto no artigo 13.º, nºs 1 e 2, do Código da Estrada, na medida em que, conforme acima referido, passou para o lado esquerdo da faixa de rodagem sem intenção de ultrapassagem ou mudança de direção, únicas situações que poderiam justificar a conduta. O princípio da confiança, delimitador da violação do dever objetivo de cuidado, não é chamado a conformar a atuação do arguido, na medida em que não foram provados quaisquer factos que permitam ao Tribunal concluir que a atuação do arguido se ficou, ainda que, em parte, a dever à violação de alguma regra estradal por banda da vítima. O quarto elemento acima referido também se verifica, na medida em que a vítima faleceu. No que respeita à previsibilidade objetiva do resultado, tendo em consideração os factos provados, designadamente os atinentes à dinâmica do acidente e às lesões da vítima, também se verifica, na medida em que um homem prudente médio, colocado na situação concreta do agente, prevê como consequência que a violação do comportamento lícito imposto pelo C.E., ao circular pelo lado esquerdo da faixa de rodagem, com trânsito em sentido contrário, poderia implicar um embate com uma viatura que circulasse em sentido oposto, do qual poderiam advir lesões, como a morte de algum interveniente no acidente, A imputação do resultado morte à conduta do arguido resulta dos factos 5) e 6). Verificados os elementos do tipo objetivo, importa passar à análise do tipo subjetivo. Não tendo resultado provado qualquer facto que permita concluir ter o arguido uma incapacidade de corresponder às exigências de cuidado, é-lhe censurável a sua conduta. Por força destas mesmas circunstâncias, aliadas ao facto de os acidentes de viação em Portugal terem uma ampla cobertura noticiosa e serem alvo de variadas campanhas de prevenção, o arguido tinha a possibilidade de prever o resultado acidente e morte como consequências da sua conduta e era-lhe exigido que se mantivesse a circular do lado direito da faixa de rodagem, evitando o resultado. O arguido agiu na modalidade de negligência inconsciente, porque não previu e representou o resultado da sua conduta – cfr. facto 11), parte final. Acresce salientar que a relação de causalidade entre o comportamento e o evento se basta com a afirmação de que a ação é uma das condições de resultado, não sendo necessário que ela seja a primeira ou a última condição da sua verificação (cfr. Ac.T.R.L. 22.09.2004, in WWW.dgsi.pt). Por fim, inexistem dúvidas de que a conduta do arguido integra a negligência grosseira, porquanto evidencia um caso de demissão, por parte do condutor, dos elementares deveres de precaução do exercício da condução. Inexistem causas de justificação ou de desculpação. Consubstanciada está, pois, a prática, pelo arguido, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, nºs 1 e 2, do Código Penal. Concorda-se plenamente com o discorrido na douta sentença recorrida pelo que pouco mais há a acrescentar. A conduta estradal do arguido, ao cortar a curva que se lhe deparava, e que ele próprio refere ser “em cotovelo”, invadindo a hemi-faixa contrária de rodagem, indo aí embater no motociclo conduzido pelo BB, provocando a morte deste, é uma conduta altamente censurável e temerária, particularmente perigosa, por essa invasão se dar numa curva com essas caraterísticas, consubstanciando assim a prática do crime de homicídio por negligência grosseira, previsto no artigo 137º nº 1 e 2 do Código da Estrada, estando deste modo aqui em causa um grau especialmente elevado da negligência que agrava a punição, não só ao nível da culpa como da ilicitude. * Da escolha e medida da pena.Este crime é punível com pena de um mês a cinco anos de prisão. A pena de multa, no caso como pena substitutiva da pena de prisão, é manifestamente inadequada num crime desta natureza, tendo-se nomeadamente em consideração as necessidades prementes ao nível da prevenção geral, face à elevadíssima taxa de sinistralidade automóvel, que constitui um verdadeiro flagelo no nosso País. O tribunal “a quo” aplicou ao arguido uma pena de um ano e dez meses de prisão, tendo e bem, face à ausência de antecedentes criminais do arguido substituído essa pena de prisão por 480 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade. A pena aplicada não muito afastada do seu limite mínimo, não é excessiva, nem viola as regras de experiência, não ultrapassando a medida da culpa do arguido. Saliente-se que no que respeita à controlabilidade da pena em sede de recurso, aquando da determinação do seu quantum, concorda-se com Figueiredo Dias, [15] no que é acompanhado pela generalidade da jurisprudência, quando defende que “a sindicância recursória deverá reservar-se para as hipóteses em que tiveram sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”. Este entendimento jurisprudencial a que naturalmente se adere continua válido como se extrai do recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de novembro de 2023, procº nº 808/21.3PCOER.L1.S1, relatado pela Exmª Juíza Conselheira Ana Barata Brito, onde se escreve a este propósito “Recorda-se que os recursos são sempre remédios jurídicos e que também em matéria de pena mantêm o arquétipo de recurso-remédio. (…) O Supremo não julga de novo, não determina a pena como se inexistisse uma decisão de 1.ª instância, decisão já sufragada em 2.ª instância, e a sindicância desta decisão pelo tribunal superior não abrange a fiscalização dum quantum exacto de pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada. E não inclui a compressão da margem de livre apreciação reconhecida ao tribunal de 1.ª instância enquanto componente individual do acto de julgar. A margem de liberdade do juiz de julgamento nos limites expostos, abrange todo o processo prático de decisão sobre a pena”. Mantém-se assim a pena aplicada ao arguido de 480 horas de trabalho a favor da comunidade, a que acresce a obrigação de frequência de um programa de prevenção da sinistralidade rodoviária, a determinar pela D.G.R.S.P. * Da medida da pena acessória.O tribunal “a quo” condenou o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 12 (doze) meses. O arguido entende ser excessiva essa pena e que a mesma devia ser reduzida para o período de três meses. Atento o disposto no artigo 69º nº 1 al. b) do Código Penal é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período entre três meses e três anos quem for punido por crime cometido com utilização de veículo. Trata-se de uma pena acessória, que como salienta Maria João Antunes [16], “São penas acessórias as penas cuja aplicação pressupõe a fixação na sentença condenatória de uma pena principal ou de substituição, estando previstas quer na parte geral quer na parte especial do CP”. Esta pena acessória em apreço desempenha uma função preventiva adjuvante da pena principal já que como salienta Figueiredo Dias [17] “a função preventiva não se esgota com a intimidação da generalidade mas se dirige também, ao menos em alguma medida à perigosidade do delinquente”. Pressupondo a fixação de uma pena principal na sentença condenatória, a proibição de condução de veículos motorizados prevista no artigo 69.º do Código Penal participa da natureza e finalidade próprias das penas acessórias. Estas, como realça Pedro Caeiro [18], visam “censurar especialmente o arguido pelo circunstancialismo que envolve o crime cometido, circunstancialismo esse que justifica a privação de certo direito, faculdade ou posição privilegiada de algum modo relacionados com a prática do crime. É precisamente a relação (cuja existência só em concreto pode ser estabelecida) entre o cometimento do crime e o abuso (mau uso) do direito ou faculdade que a ele se liga que cria o «espaço» onde vive a censura suplementar contida na pena acessória; é também nessa relação que a pena acessória colhe o fundamento material legitimador da sua aplicação ao lado da pena principal”. A pena acessória aplicada, que se encontra no primeiro terço da moldura abstrata, a qual, como se referiu, varia entre três meses e três anos, como estipula o nº 1 do artigo 69º do Código Penal. Deste modo, não se mostra desproporcional e excessiva, responde às exigências de prevenção, sobretudo geral, e assim se mantém também inalterada. A tanto não obsta naturalmente a circunstância alegada pelo recorrente de ficar impossibilitado de trabalhar sujeitando-o inclusive a passar fome e enquanto Presidente da Junta de Freguesia ... e Vice Presidente do Centro Social de Idosos, conduzir veículos onde transporta os fregueses da freguesia ... e os utentes do Centro Social de Idosos para o médico, leva-lhes comida. Essa matéria não ficou provada, aliás nem fazia parte da contestação por si apresentada sendo ainda que as exigências de cumprir com as regras estradais, fazem-se sentir ainda com mais veemência, a quem, como alega o recorrente, conduz diariamente. Conclui-se assim que quer no quantum da pena principal, quer na pena acessória, foram respeitados os princípios da necessidade, proibição de excesso ou proporcionalidade das penas, sendo adequadas à reposição da validade das normas infringidas e que não ultrapassam a medida da culpa do arguido. E nesta medida, improcede na sua totalidade o recurso apresentado. * III – Decisão.Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e em consequência, confirmam a douta sentença recorrida. * Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça - artigos 513.º, n.ºs. 1 e 3, do C.P.P. e 8.º, n.º 9, do R.C.P. e Tabela III anexa.* Notifique.Guimarães, 7 de maio de 2024. (Decisão elaborada pelo relator com recurso a meios informáticos e integralmente revista pelos subscritores, que assinam digitalmente). Os Juízes Desembargadores, Pedro Freitas Pinto (Relator) Fátima Furtado (1ª Adjunta) Ana Teixeira (2ª Adjunta) [1] Cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995 e, na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 3ª Edição Atualizada, Universidade Católica Editora, 2009, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1027/1028. [2] Revista Portuguesa de Ciência Criminal Ano 4, 1994, pgs. 118/123. [3] “Processo Penal quando o recurso incide sobre a decisão de facto”, Revista Julgar nº 10, pág.25. [4] Código de Processo Penal. Anotado. Almedina, 3ª ed., pág. 895. [5] Na anotação a este artigo efetuada no Código de Processo Penal. Comentado. António Henriques Gaspar et ale , Almedina, 3ª edição, pág. 1291 e segs. [6] Obra citada, pág.1050. [7] Obra citada, pág. 29. [8] Publicado in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de acórdãos). [9] “O Caso Julgado Parcial”, 2002, pág. 37 [10] Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 1121. [11] Henriques Gaspar et ale in Código de Processo Penal. Comentado. 3ª edição revista, pág.1312. [12] cfr. Simas Santos e Leal Henriques, in Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, págs 50 e 51) [13] In Constituição da República Portuguesa. Anotada. Coimbra Editora, 4ª edição, pág. 519. [14] in Direito Processual Penal, I vol, pág. 213 [15] “Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime”, pág. 197. [16] Penas e Medidas de Segurança, Almedina, pág.20. [17] Direito Penal Português II, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª Reimpressão, Editorial Notícias, 1993, pág. 96. [18] “Qualificação da sanção de inibição da faculdade de conduzir prevista no artigo 61º, nº 2, al. d), do Código da Estrada (anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de abril de 1992)”, R.P.C.C., nº 3, 1993. |