Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
86/21.4T8GMR.G1
Relator: MARIA CRISTINA CERDEIRA
Descritores: INEPTIDÃO
FALTA DE CAUSA DE PEDIR
CASO JULGADO
PER
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
DEVER DE COLABORAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I) - Há falta de causa de pedir quando não são alegados os factos em que se funda a pretensão do autor; há insuficiência da causa de pedir quando aqueles factos são alegados, mas são insuficientes para determinar a procedência da acção.
II) - A petição inicial apenas é inepta, por falta de causa de pedir, quando o autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível e insindicável a sua pretensão; a insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa petendi, não fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, de inepta a petição, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido.
III) - Só a falta total (e já não a escassez) ou a ininteligibilidade da causa de pedir é que geram a ineptidão da petição inicial.
IV) - Este entendimento enquadra-se com o estatuído no artº. 186º, nº. 3 do NCPC, pois mesmo que o réu, na contestação, invoque a ineptidão da petição inicial com fundamento na falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir - o que pode indiciar uma certa imperfeição, prolixidade, confusão ou incompletude da petição - tal invocação não é atendível se se concluir que ele, não obstante tais deficiências, compreendeu a pretensão do autor e as consequências que dela se pretende retirar. Neste caso, a arguição de ineptidão será julgada improcedente, se se chegar à conclusão que o réu interpretou de forma certa a petição inicial, mesmo que se reconheça que a mesma é uma peça confusa, imprecisa ou nebulosa.
V) - O dispositivo do artº. 590º, nº. 2, al. b) e nº. 4 do NCPC atribui ao juiz um poder vinculado que o mesmo tem o dever de exercer quando ocorram nos articulados insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, devendo providenciar pelo suprimento dessas deficiências por convidar as partes ao aperfeiçoamento dos respectivos articulados.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A. F. Unipessoal, Lda. intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra X – Engenharia e Construções, Lda., pedindo que a Ré seja condenada:

a) no reconhecimento da existência do crédito da Autora;
b) no reconhecimento do incumprimento do plano de recuperação da Ré aprovado no âmbito do Procedimento Especial de Revitalização que correu termos sob o processo nº. 7835/12.0TBBRG pelo 3º Juízo Cível do extinto Tribunal Judicial de Braga;
c) no consequente pagamento à Autora do valor € 7.129,29 acrescido dos juros vincendos.

Para tanto, alega, em síntese, que por sentença datada de 12/06/2013 e transitada em julgado em 2/12/2013, foi homologado o plano de recuperação da Revitalizante, ora Ré.
Por força desse plano o crédito que a ora Autora detinha sobre a Ré, decorrente dos serviços prestados constantes das facturas juntas como documentos nºs 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11, foi objecto de um perdão de dívida no valor de 50%, isto é, o crédito por si reclamado e reconhecido sofreu uma redução de metade do seu valor, que era inicialmente de € 10.694,25 passando, por força da aprovação do plano, para € 5.347,12.

Mais concretamente, no âmbito do referido plano, no que aos credores comuns respeita, consagrou-se o seguinte:

a) Pagamento de 50% do capital em 6 anos, com perdão de juros vencidos e vincendos, em prestações mensais e sucessivas de igual valor, a primeira com vencimento no dia 15 do mês seguinte ao de término do período de carência;
b) Um período de carência de 24 meses após a data de trânsito em julgado do despacho de homologação do plano de recuperação, com perdão total dos juros vencidos e vincendos, tudo conforme lista de créditos, listagem dos votos e plano de pagamentos que consta do documento nº. 12 junto aos autos.
Tendo a sentença de homologação do plano transitado em julgado a 2/12/2013, o período de carência terminara a 2/12/2015, iniciando-se a 15 de Janeiro de 2016 o plano de pagamentos mensais aos credores comuns, onde a Autora se insere.
Porém, apenas em 3 de Setembro de 2020 efectuou a Ré o pagamento das primeiras 12 prestações à Autora.
Em face da persistência no incumprimento, foi a Ré interpelada para o cumprimento na íntegra do valor em falta para com a Autora até à data de 15 de Outubro de 2020, sob pena de lhe ser requerida a insolvência por incumprimento das obrigações decorrentes do plano de pagamentos.
A Ré voltou a incumprir, tendo apenas pago mais 24 prestações mensais e em 9 de Dezembro de 2020, após uma última interpelação por email para que a Ré procedesse ao pagamento das prestações em falta, esta resolveu pagar mais 12 prestações, encontrando-se ainda em dívida outras 12 prestações, vencidas no dia 15 dos meses de Janeiro a Dezembro de 2020.
Ora, não tendo a Ré regularizado as prestações em falta nem no prazo de 15 dias após a recepção das interpelações, nem posteriormente, consideram-se verificadas as exigências previstas na al. a) do nº. 1 do artº. 218º do CIRE, pelo que a moratória ou o perdão previsto no plano ficam sem efeito.
Verificando-se a violação do plano de revitalização aprovado e homologado, deve o mesmo ser declarado sem efeito e, concomitantemente, devem os créditos recuperar a sua situação originária, nos termos do artº. 218º, nº 1, al. a) do CIRE, pelo que a Ré é devedora à Autora da quantia de € 7.129,29, resultante da dedução do valor pago até à presente data que importa em € 3.564,96 ao valor originariamente em dívida de € 10.694,25.

A Ré contestou, aceitando os factos descritos nos artºs 1º, 2º, 3º (excepto “reconhecido”), 4º (o primeiro artigo com esta designação e não o segundo, que deveria ter assumido o n.º 5º) e 5º da petição inicial, impugnando os restantes factos alegados pela Autora.
Refere que as comunicações que remeteu à Ré em 15 de Outubro e 9 de Dezembro de 2020 não podem ser consideradas como interpelações admonitórias para pagamento das prestações vencidas, não podendo ser invocadas para efeitos de aplicação do regime estatuído no art.º 218º do CIRE.
Invoca a mora do credor (Autora) em disponibilizar-lhe o IBAN da conta para a qual pretendia que a Ré depositasse as prestações que se venceriam a partir de Janeiro de 2016, o cumprimento integral do PER em função de novos termos acordados entre as partes e o abuso de direito em função do comportamento adoptado pela Autora e o ora reflectido na acção.
Termina, pugnando pela improcedência da acção e sua absolvição dos pedidos formulados.

Em 5/11/2021 foi realizada tentativa de conciliação, sem qualquer acordo entre as partes.

Em 5/02/2022, a Mª Juíza “a quo” proferiu o seguinte despacho:
«Uma vez que a Autora pretende o prosseguimento dos autos, concede-se o prazo de 10 dias para, querendo, se pronunciar acerca da eventual ineptidão da p.i. por falta de causa de pedir – não indica os termos da relação negocial entre as partes, data do mesmo, quantidade/qualidades das obrigações que as partes terão assumido, datas das obrigações, … - donde deriva o seu pretenso crédito: pretendendo-se o cumprimento da original obrigação pecuniária emergente de suposto contrato (pedidos a) e c)), não releva a matéria relacionada com o PER homologado, tendo sido, porém, o que aconteceu no caso concreto.
Ainda, concede-se o mesmo prazo de 10 dias para que a Autora informe se recebeu os valores documentados nos autos e, bem assim, se, em caso de cumprimento rigoroso do alegado PER, à data de 08.11.2021 teria o seu crédito fixado por acordo totalmente liquidado.
D.N., concedendo-se igual e subsequente prazo de 10 dias ao Réu para, querendo, se pronunciar quanto ao que vier a ser introduzido nos autos.»

Na sequência do aludido despacho, em 21/02/2022 a A. veio apresentar uma nova petição inicial “aperfeiçoada”, que denominou de “articulado superveniente”, em que voltou a alegar a matéria constante da primeira petição inicial, acrescentando, ainda, o seguinte:

- A Autora é uma sociedade comercial por quotas que exerce, com escopo lucrativo, a actividade de construção de edifícios residenciais e não residenciais.
- A Ré procurou a Autora no sentido de esta lhe efectuar diversos trabalhos de empreitada e também serviços de mão de obra em vários locais onde a Ré desenvolvia trabalhos de empreitada, tudo conforme melhor consta das facturas, entre outras anteriores mas que foram pagas, já juntas com os nºs 2 a 11 da primeira petição inicial, e que foram efectivamente prestados.
- Do total do valor facturado pela Autora à Ré correspondente a serviços efectivamente prestados, a Ré não pagou até à data de entrada do PER, a quantia de € 10.694,25, cujo valor sem juros vencidos foi reclamado e reconhecido no PER apresentado pela Ré, como resulta da sentença datada de 12/06/2013 e transitada em julgado em 2/12/2013, em que foi homologado o plano de recuperação da Ré.
- À data de entrada da presente acção declarativa a Ré era devedora do montante de € 891,24 correspondente a 12 prestações vencidas no âmbito da execução do PER e não pagas, referentes aos meses de Janeiro a Dezembro de 2020.
- Aquando da entrada da presente acção declarativa (porque esse é o momento relevante para aferir ou não do (in)cumprimento sucessivo e reiterado do plano), era a Ré devedora à Autora, ou passou a ser decorrente do incumprimento do PER, da quantia de € 7.129,29 resultante da dedução do valor pago até à referida data que importava em € 3.564,96 ao valor originariamente em dívida de € 10.694,25.
- Dado que entretanto, após a entrada da acção e na pendência da mesma (mais de um mês depois), a Ré efectuou o pagamento das 12 prestações já vencidas e para cujo pagamento tinha sido interpelada, referentes aos meses de Janeiro a Dezembro de 2020, e a 24 de Maio efectuou as que estavam novamente em dívida correspondentes às prestações de Janeiro a Maio de 2021, e a 8 de Novembro de 2021 procedeu ao pagamento das restantes prestações compreendidas no PER, será devedora à Autora, por força do incumprimento reiterado do plano apresentado no âmbito do PER, da restante quantia de € 5.347,12, acrescida de juros de mora vincendos, configurada esta como o valor do perdão da dívida no âmbito do PER que não foi manifesta e abusivamente cumprido pela Ré como deveria ter sido.

Conclui, pedindo que a Ré seja condenada:
a) no reconhecimento da existência do crédito da Autora;
b) no reconhecimento do incumprimento do plano de recuperação da Ré aprovado no âmbito do Procedimento Especial de Revitalização que correu termos sob o processo nº 7835/12.0TBBRG pelo 3º Juízo Cível do extinto Tribunal Judicial de Braga;
c) no consequente pagamento à Autora do valor € 5.347,15 (valor actual em dívida, deduzido do que foi pago na pendência da acção, sendo que o valor original seria o de € 7.129,29) acrescida dos juros vincendos.

A Ré apresentou resposta, alegando que a A. não se pronunciou sobre a eventual ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, tendo, ao invés, apresentado um articulado superveniente que, no seu entender, é legalmente inadmissível, porquanto a A. não invoca quaisquer factos supervenientes, antes se reportando a factos já com vários anos e dos quais tem pleno conhecimento, para além de que não invoca nos autos quaisquer factos anteriores dos quais só tenha tido conhecimento posterior, Nem, tão pouco, demonstra comprovadamente essa alegada superveniência.
Refere, ainda, que a petição inicial é inepta, pois a A. não justificou nem demonstrou a existência do crédito que alegadamente detém sobre a Ré, nada referindo acerca dos termos e duração da relação negocial, quantidade e qualidades dos serviços alegadamente contratados, datas de cumprimentos, entre outros.
Termina, mantendo tudo quanto alegou em sede de contestação.

Em 4/04/2022 foi proferido saneador-sentença onde consta o seguinte [transcrição parcial]:

“(…) Importa começar com os conceitos de caso julgado, para se compreender a natureza e alcance da reclamação de créditos levada a cabo num Per.
Como se diz no Ac. Relação de Lisboa de 16.12.2020, «IV - O caso julgado formal apenas tem força obrigatória dentro do processo em que a decisão é proferida. Por sua vez, o caso julgado material tem força obrigatória não só dentro do processo como também, e principalmente, fora dele.
V- A reclamação de créditos levada a cabo no PER, fase na qual por um lado não se detecta a verificação de um efectivo contraditório e por outro se constata que prima pela celeridade e superficialidade da apreciação dos créditos, destina-se a delimitar o universo de credores que podem participar nas negociações, bem como o universo de credores que têm direito ao voto e dessa forma apurar a base de cálculo das maiorias necessárias.
Assim, visto que a mesma tem uma função primordialmente processual, apenas goza de força de caso julgado formal valendo exclusivamente para efeitos do PER.» (cfr. in Proc. 21940/18.5T8LSB.L1-4, disponível em www.dgsi; sublinhado nosso).
Por isso, aliás, a Ré e bem impugnou a alegação da Autora de que o crédito por si reclamado fora “reconhecido.”
Ou seja, para que se possa aferir da procedência da condenação no cumprimento de uma obrigação emergente de um contrato (pedidos de a) e c), importa trazer aos autos a relação negocial que existira entre as partes, como aliás, dito por despacho de 05.02.2022: quais as obrigações que cada parte aceitou, quais as datas dos seus cumprimentos, quais os seus valores ou conteúdo… o que é que correu menos bem …

Por nele nos revermos, transcrevemos parte do Ac. da Relação de Guimarães, proferido a 27.06.2019, e que retrata situação semelhante ainda que por referência a um processo especial derivado de uma injunção:
«Efetivamente, nos termos do nº 1 alínea d) do artº 552º do CPC, intitulado “Requisitos da petição inicial”, “Na petição com que propõe a acção deve o Autor (…) expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção”, sendo a causa de pedir, nos termos do artº 581º nº 4 alínea d) do CPC o facto jurídico de que emerge o direito que se visa acautelar ou fundamenta o efeito jurídico pretendido.
Já José Alberto dos Reis se referia ao conceito de “causa de pedir” (Código de Processo Civil Anotado, I, 3.ª ed., 309), como “o acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para enunciar o seu pedido…”
Também Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 234-235), ensinam que “causa de pedir” é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido, pelo que, se o autor não mencionar esse facto concreto, a petição será inepta.
Segundo os mesmos autores, não basta, para o preenchimento da exigência legal, a indicação vaga ou genérica dos factos em que o autor fundamenta a sua pretensão, dizendo por exemplo que na acção possessória de manutenção, que o réu tem praticado actos de perturbação do seu direito; na acção de divórcio, que o réu tem violado os deveres conjugais, sem mais precisão; na acção de reivindicação, não indicando todos os factos concretos que interessam à aquisição do domínio…
Por seu turno, Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, I, 207 e ss) afirma que se encontra consagrada na nossa lei processual civil “a teoria da substanciação”, consagrada no n.º 4 do art. 498º do anterior CPC (actual nº 4 do artº 581º), tendo o autor na petição inicial de expor “os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção”, ou seja, de fazer a indicação dos factos concretos constitutivos do direito, não se podendo limitar à indicação da relação jurídica abstracta.
O mesmo nos diz Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o novo Processo Civil, 269), ao tratar do conteúdo formal da petição inicial, quando afirma que na narração o autor deve expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção (art. 467º nº 1, al. d) do anterior código, alínea d) do nº 1 do artº 552º do actual CPC), aí se contendo a alegação dos factos principais.
E compreende-se a exigência legal, porquanto não só o juiz tem de saber o que está em causa nos autos, isto é, o que as partes pretendem que seja dirimido na ação, como ainda tal alegação é de manifesta importância para a definição da causa de pedir e do pedido, elementos estes de primordial importância à delimitação do âmbito do caso julgado e também à arguição de uma possível litispendência (arts. 580º e 581º do CPC).
A relevância da indicação da causa de pedir e do pedido na petição inicial é de tal ordem e tão manifesta, que o legislador sanciona (como já sancionava no anterior código) a sua omissão com a nulidade de todo o processado, por ineptidão da petição inicial (artº 186º nº 1 e 2 al. a) do CPC), nulidade essa que é de conhecimento oficioso (artº 196 do CPC), a ser proferida no despacho saneador, se não tiver sido apreciada em momento anterior (artº 200 nº 2 do CPC), ou na sentença final.
Trata-se além disso de uma excepção dilatória nominada (artº 577 al. b) do CPC), que conduz à absolvição do Réu da instância (artº 576 nº 2 do CPC).
(…)
Podemos avançar desde já que em nosso entendimento tal significa que, embora de forma sucinta, também neste tipo de processos, tal como se prevê para o processo comum (artº 552º nº 1 alínea d) do CPC), o requerente não está dispensado de indicar a causa de pedir em que fundamenta o pedido formulado.
Aliás, em situações como a presente, em que houve oposição da requerida (como poderá sempre ocorrer perante um requerimento injuntivo), a exposição suscinta dos factos que à pretensão processual do requerente servem de fundamento, assume particular relevância, porque se trata de causa de pedir susceptível de apreciação jurisdicional, dado que o procedimento de injunção se transmutou em acção declarativa pela dedução da oposição por parte da requerida.
Por isso consideramos que o requerente da injunção não está dispensado (nunca) de invocar no seu requerimento os factos jurídicos concretos que integram a respectiva causa de pedir, embora a lei flexibilize a sua narração em termos sucintos, sintéticos e breves (conforme artº 10º nº 2 do DL 269/98).
Assim, como a pretensão do requerente (neste tipo de procedimento) só é susceptível de derivar de um contrato, a causa de pedir, embora sintética, não pode deixar de envolver o conteúdo das respectivas declarações negociais, assim como os factos positivos e negativos consubstanciadores do seu incumprimento por parte da requerida.
Como refere Salvador da Costa (A Injunção e as Conexas Acção e Execução, pág. 163), a possibilidade de procedimento de injunção que abstraísse de qualquer menção fáctica à causa de pedir só seria compreensível e viável se não se transmutasse na acção declarativa de condenação no seguimento de oposição. Desde que haja oposição, para que o tribunal não se veja na contingência de não poder decidir de mérito, por verificar a existência da excepção dilatória de ineptidão do requerimento de injunção por falta de causa de pedir, tem o requerente de assegurar que nesse requerimento se encontram os elementos factuais necessários a preencher a mesma, isto é, que o mesmo individualiza o contrato invocado.
Transpondo agora os ensinamentos mencionados para o caso dos autos, haverá então que averiguar se o requerimento de injunção em causa, no que se refere aos fundamentos da providência, nos termos em que foi preenchido pela requerente, integra suficiente explanação da causa de pedir, sendo certo que esta, como se disse, quando venha a existir oposição, se torna mais exigente, visto que a providência passa a acção declarativa, vindo a ser sindicada pelo juiz, e sendo sujeita à produção de prova em julgamento (art. 17º/1 do DL 269/98).
E como já fomos adiantando, analisado o requerimento inicial apresentado pela Autora, verificamos que do mesmo não consta a causa de pedir, ou seja, dele não consta a alegação dos factos necessários à sustentação do pedido por ela deduzido.
Efetivamente, do requerimento inicial apresentado pela A consta apenas – no que à causa de pedir respeita –, que a requerida encomendou à requerente vários fornecimentos de bens, sem especificar quais e em que circunstâncias. Mais acrescenta a requerente que emitiu três faturas em nome da requerida, que juntou mais tarde aos autos, delas constando apenas o seu valor (não coincidente, aliás, com o inicialmente alegado), a data da sua emissão e a data do seu vencimento.
Ora, a simples alusão à encomenda de vários fornecimentos de bens pela requerida à requerente, sem os concretizar, ou a simples alusão ao contrato de fornecimento, não se revela suficiente em termos de causa de pedir, por se tratar de mera qualificação jurídica do contrato, sem individualização do negócio concreto entre as partes celebrado (como se decidiu no Ac. RP de 30.3.2006, disponível em www.dgsi.pt).
(…) Pertinente é nesta matéria o que refere José Alberto dos Reis (ob citada, III, 3.ª ed., 121) - dissertando sobre a identidade da causa de pedir no âmbito mais lacto das excepções de litispendência e de caso julgado, e referindo-se a Baudry e Barde (Traité de droit civil, 15.º, 359) -, que não se deve confundir a causa de pedir com os meios (de prova) de que a parte se serve para a sustentar ou demonstrar, constituindo estes as provas e os argumentos por via dos quais se procura estabelecer a existência do facto jurídico que serve de fundamento à acção, o que leva a que se se apresentaram testemunhas para provar a existência dum empréstimo e se decair, não se pode propor nova acção com base no mesmo empréstimo, embora se pretenda, agora, fazer a prova dele mediante documento, porque a segunda acção teria a mesma causa de pedir que a primeira: o contrato de empréstimo, apenas mudando o meio de prova do contrato.
É certo porém - como se decidiu no Ac. RP de 30 de Maio de 2006 (disponível em www.dgsi.pt), aderindo a uma corrente mais tolerante -, que se poderá admitir a simples remissão do requerimento injuntivo para os factos que constem de documentos que o autor junte, considerando-se os mesmos como ali reproduzidos (no mesmo sentido já havia decidido a Relação de Lisboa, por Ac. de 21/4/81, C.J., 1981, 2.º, 194).
Os defensores dessa corrente entendem que a causa de pedir da acção é (apenas) o contrato específico de que emerge a obrigação a pagar. E que “há petições em que se alega o tipo de actividade exercido pelo autor e o fornecimento de determinadas mercadorias ou serviços no exercício dessa actividade, durante certo tempo ou na execução de certa encomendas, que se demonstram devidamente com facturas ou guias de remessa, ou numa conta-corrente, que assim completam a petição, em consequência das quais se invoca a existência de um crédito de certo montante, correspondente ao preço ou saldo existente, cujo pagamento se pede. Nesses casos não pode haver dúvidas quanto à relação concreta de que se trata, ou seja, quanto ao facto jurídico concreto invocado para obter o efeito pretendido”.
Daí que exista ineptidão apenas quando o autor se limita a indicar vagamente uma transacção comercial ou serviço, como fonte do seu direito. Já não existirá ineptidão, por desconhecimento da causa de pedir, quando na petição inicial se pede o pagamento de determinada quantia proveniente de vendas contabilizadas em forma de conta-corrente de mercadorias e outros artigos, entendendo-se que em tal caso é nítida a causa de pedir, pois consiste nas referidas vendas (Ac. do S.T.J. de 12/3/63, B.M.J. n.º 125.º, 405).
Segundo esta corrente, o documento junto com a petição deve considerar-se parte integrante dela, suprindo as lacunas de que possa enfermar; a mesma virtualidade deve ser atribuída ao que for junto ulteriormente, mas a tempo de surtir o efeito que a concomitante junção produz (Ac. da R. de Évora de 25/6/86, B.M.J. n.º 368.º, 632), sendo legal a remissão, feita na petição inicial, para documentos a ela juntos, desde que a causa de pedir fique bem concretizada (Acs. da R. de Lisboa de 15712/87, B.M.J. n.º 372.º, 464; R. de Évora de 9/3/89, B.M.J. n.º 385.º, 627; e R. de Coimbra de 27/6/89, B.M.J. n.º 388.º, 612).
Cremos que foi esta a corrente - mais tolerante -, seguida pelo tribunal recorrido, ao dar relevância às faturas aludidas pela requerente no seu requerimento de injunção e que veio juntar mais tarde aos autos.
A questão é que dessas faturas não consta também a que tipo de bens ou serviços se refere a requerente no alegado contrato de fornecimento celebrado com a ré, ficando o requerimento apresentado sem qualquer substrato factual, mesmo que se considere que os documentos dele fazem parte integrante.» (cfr. Proc. n.º 30491/18.7YIPRT.G1, disponível em www.dgsi.pt). [itálicos nossos].
Revertendo, agora, tudo quanto se expor, vemos, desde logo, que, no caso, as facturas nem sequer foram dadas como reproduzidas nos autos, para efeitos de suprir qualquer falta de alegação do conteúdo do alegadamente fornecido…
A junção de documentos em sede de instrução e de julgamento não tem a aptidão de suprir a lacuna da falta de alegação dos concretos serviços e/ou bens prestados, as quantidades, preços e datas, como no caso concreto dos atos.
Acresce, analisando-as, delas não constam os concretos serviços e/ou bens prestados, as quantidades e preços de forma compreensível, datas da sua prestação...
Tal seria efetivamente relevante para a defesa sobre a relação original, com a Ré.
E, outrossim, relevante para que o tribunal conseguisse perceber qual os regimes jurídicos passíveis de aplicação ao caso concreto: ou acha-se que, para “o reconhecimento da existência do crédito da Autora” e “condenação no pagamento à Autora do mesmo”, o tribunal se bastaria em aferir do incumprimento de um PER?!
O PER, incumprido, não consolidou a pretensa relação jurídica entre as partes, como resulta do que supra se referiu a propósito dos seus efeitos. Daí, também, perder a sua apreciação absoluta utilidade nesta causa.
No caso em análise, há, pois, uma manifesta falta de individualização da causa de pedir quanto a tal valor, que se não pode suprir, de todo, por outros elementos, designadamente, probatórios.
E não se diga que a Ré compreendeu o alegado, pois a sua contestação reflete exatamente o oposto, negando o “reconhecimento do crédito” e, em momento, se pronuncia sobre a concreta relação comercial que teve com a Autora.
Temos assim de concluir, com se fez no acórdão vindo de transcrever em segundo lugar, que no caso em análise o contrato invocado pela requerente não está minimamente individualizado, pelo que é manifesta a falta de causa de pedir da petição inicial, o que acarreta a sua ineptidão e a nulidade de todo o processado, com a absolvição da ré da instância.
Ao juiz está reservado um papel ativo mas subsidiário quanto a cooperar no sentido de que tal configuração reúna os contornos e o nível de concretização suficientes para assegurar a justa resolução do litígio, à luz do quadro normativo aplicável, mas não pode ir ao ponto, de substituir às partes no cumprimento do ónus da alegação dos factos essenciais.
Um convite ao aperfeiçoamento no caso presente não consubstancia um verdadeiro convite ao aperfeiçoamento – ante significaria possibilitar à parte a supressão daquela falta com a apresentação de uma nova peça processual onde se descrevessem os factos jurídicos concretos de onde emerge o direito a que se arroga.
Porque está em causa a falta de causa de pedir, prevista no art.º 5.º e na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do art.º 552 do Código de Processo Civil, importa conhecer da excepção a que a mesma se reconduz.
A falta da causa de pedir leva, como dissemos, à ineptidão da petição inicial e gera a nulidade de todo o processado, constituindo esta uma excepção dilatória de conhecimento oficioso que obsta ao conhecimento do mérito da acção e dá lugar à absolvição da instância, conforme disposto nos art.ºs 186º, n.ºs 1 e 2, al. a), 196º, 278º, n.º 1, al. b), 576º, n.ºs 1 e 2, 577º, al. b), e 578º do Código de Processo Civil.
À luz do exposto terá que se concluir que a petição inicial é, realmente, inepta por falta de causa de pedir e pela prejudicialidade, por inutilidade, do conhecimento do pedido de reconhecimento do incumprimento do PER.

III. Dispositivo:
Pelo exposto, julga-se verificada a nulidade do processado, por ineptidão da p.i. quanto a a) e c) e, por via disso, absolve-se a Ré da instância nesta parte, mais se julgando prejudicado o conhecimento do peticionado em b).
(…).”

Inconformada com tal decisão, a A. dela interpôs recurso de apelação, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:

«1 - Prescreve o art. 193º do CPC, que “1. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2. Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3. Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, não se julgará procedente a arguição quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
4. No caso da alínea c) do nº 2, a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo.”;
2 - A Mma. Juiz a quo errou ao considerar que no caso em análise o contrato invocado pela requerente não está minimamente individualizado, pelo que é manifesta a falta de causa de pedir da petição inicial, o que acarreta a sua ineptidão e a nulidade de todo o processado, com a absolvição da ré da instância.
3 - A sentença recorrida enfatiza que o articulado inicial é o único que importa considerar para esta análise, esquecendo o articulado superveniente apresentado pela Autora em resposta ao despacho de 08/02/2022.
4 – É certo que, na petição inicial a Autora não é perfeita na concretização da relação subjacente ao crédito que detém sobre a Ré, mas é certo também que os documentos probatórios que junta, e que são facturas, concretizam em pleno aquele crédito, documentos esses que não foram em momento algum impugnadas pela Ré.
5 - Estamos perante nulidade sanável, como prevê o n.º 3 do art. 193º do CPC. Na verdade, “se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, não se julgará procedente a arguição quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.”
6 – Ora, na sua contestação, a Ré aceita como verdadeiros os factos descritos nos artigos 1º, 2º e 3º da petição inicial, pese embora a impugnação do reconhecimento do crédito, e como já se referiu sem em momento algum impugnar os documentos juntos com a petição e que são as facturas demonstrativas dos serviços prestados pela Autora à Ré, valores e datas de vencimento.
7 - E ademais, deduz defesa directa quanto aos termos do pagamento, impugnando a factualidade descrita pela autora e relatando a sua própria versão dos mesmos factos – de um modo que revela inequivocamente ter compreendido o que contra ele era dito.
8 – De tal modo assim é que, a Ré, apesar de impugnar o reconhecimento do crédito, adiante vem na pendencia dos autos pagar as facturas em dívida, juntando os respectivos comprovativos de pagamento!
9 – Pelo que, ainda que se entendesse padecer a petição inicial de ineptidão (e julgamos firmemente que não), parece-nos ocorrer no caso uma situação enquadrável no o n.º 3 do art. 193º do CPC.
10 - Sucede ainda que, a Autora no seu articulado superveniente, do qual fez letra morta o Tribunal a quo, percebe-se perfeitamente que a Autora e a Ré são sociedades que se dedicam à construção civil, tendo a Ré contratado a Autora para efectuar trabalhos de construção civil em várias obras da Ré, todos devidamente descritos nas facturas juntas pela Autora e não impugnadas pela Ré, diga-se uma vez mais.
11 - A sentença recorrida radica na confusão entre o que seja uma petição inepta e uma petição simplesmente deficiente ou tecnicamente pouco conseguida.
12 - Nunca é de mais referir que, nos termos da al. a) do n.º 2 do art. 193º do CPC, que só a falta total (não a escassez) ou a ininteligibilidade da causa de pedir é que geram a ineptidão da petição inicial.
13 - E, no que respeita à ininteligibilidade, há que não esquecer o disposto no nº 3 do art. 193º: “se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com o fundamento da alínea a) do número anterior, não se julgará procedente a arguição quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”. Ou seja, não há ineptidão, se se chegar à conclusão que o réu interpretou de forma certa a petição inicial, mesmo que se reconheça que a mesma é uma peça confusa, imprecisa ou nebulosa (cfr. Ac. TR Coimbra de 15-05-2007, in www.dgsi.pt).
14 – Logo, a sentença recorrida errou ao julgar inepta a petição inicial.
15 - A douta sentença recorrida violou, entre outros, o disposto no arts. 5º, 6º e 193º do CPC.
Termina entendendo que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a referida decisão, substituindo-a por outra que ordene o prosseguimento dos autos.

A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 167 (refª. 180019338).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2 (aplicável “ex vi” do artº. 663º, n.º 2 in fine), 635º, nº. 4, 637º, nº. 2 e 639º, nºs 1 e 2 todos do Novo Código de Processo Civil (doravante designado NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6.

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pela Autora, delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à questão de saber se ocorre ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.

Com relevância para a apreciação e decisão da questão suscitada no presente recurso, importa ter em consideração a dinâmica processual supra referida, em sede de relatório.
*
Apreciando e decidindo.

A ora recorrente insurge-se contra a decisão que julgou verificada a nulidade do processo, com fundamento na ineptidão da petição inicial quanto às alíneas a) e c) do petitório e, em consequência, absolveu a Ré da instância nesta parte, julgando prejudicado o conhecimento do peticionado na alínea b).
Para tanto, argumenta que o Tribunal “a quo” errou ao considerar que no caso em análise o contrato invocado pela Autora não está minimamente individualizado, pelo que é manifesta a falta de causa de pedir da petição inicial, o que acarreta a sua ineptidão e a nulidade de todo o processado, com a absolvição da Ré da instância, esquecendo o articulado superveniente apresentado pela A. em resposta ao despacho de 5/02/2022.
Alega, ainda, que embora a petição inicial não seja perfeita na concretização da relação subjacente ao crédito que a A. detém sobre a Ré, as facturas juntas à mesma concretizam em pleno aquele crédito, são demonstrativas e descritivas dos serviços prestados pela A. à Ré, valores e datas de vencimento, não tendo tais documentos sido impugnados pela Ré.
Para além de que se o modo como se desenrolou a relação comercial entre as partes não está perfeita, se os contornos desse negócio não estão perfeitamente desenhados, se não estão devidamente concretizados os seus termos, se alguma deficiência é detectável naquele articulado, afigura-se de todo razoável o convite ao respectivo aperfeiçoamento previsto no artº. 590º, n.º 4 do NCPC (e não artº. 508º, nº. 3 como, certamente por lapso, é referido nas alegações de recurso e respectivas conclusões, reportando-se ao anterior CPC).
Acrescenta que a nulidade em causa é sanável nos termos do n.º 3 do artº. 186º do NCPC (e não artº. 193º, nº. 3 como, certamente por lapso, é referido nas alegações de recurso e respectivas conclusões, reportando-se ao anterior CPC) pelo que, ainda que se entendesse padecer a petição inicial de ineptidão, estaríamos perante uma situação enquadrável naquela norma, pois a Ré na sua contestação deduz defesa directa quanto aos termos do pagamento, impugnando a factualidade descrita pela A. e relatando a sua própria versão dos factos, de um modo que revela inequivocamente ter compreendido o que contra ela era dito.
Entende a recorrente que a sentença recorrida radica na confusão entre o que seja uma petição inepta e uma petição simplesmente deficiente ou tecnicamente pouco conseguida, sendo que nos termos do artº. 186º, nº. 2, al. a) do NCPC, só a falta total (não a escassez) ou a ininteligibilidade da causa de pedir é que geram a ineptidão da petição inicial, não se verificando tal vício se se chegar à conclusão que o réu interpretou de forma certa a petição inicial, mesmo que se reconheça que a mesma é uma peça confusa, imprecisa ou nebulosa.
Defende, pois, a recorrente que na petição inicial destes autos o fundamento da acção não falta nem é ininteligível, e tanto assim é que a Ré não demonstra qualquer dúvida sobre a questão, fazendo mesmo a impugnação detalhada da factualidade alegada pela A. como causa de pedir, demonstrando assim ter compreendido a referida causa de pedir, tendo inclusive procedido ao pagamento das facturas em dívida, em plena pendência da acção, e junto aos autos os respectivos documentos comprovativos.
Vejamos se lhe assiste razão.

Estatui o artº. 186º do NCPC:
«1. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2. Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3. Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com o fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial. (…)»
Como é sabido, o pedido é o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor, o efeito jurídico que ele pretende obter com a acção; a causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao pedido, ao efeito jurídico pretendido, pelo que se o autor não mencionar esse facto concreto, a petição será inepta (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 245).
O nosso direito adjectivo acolheu a teoria da substanciação, segundo a qual o objecto da acção é o pedido, definido através de certa causa de pedir, que se reconduz aos factos jurídicos de onde emerge o direito invocado pelo autor e que este se propõe fazer valer (cfr. José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, pág. 41 a 46),
Tem-se em vista não o facto jurídico abstracto, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico material concreto, conciso e preciso, cujos contornos se enquadram na definição legal.
Conforme resulta dos autos, a A., ora recorrente, intentou a presente acção com vista a obter a condenação da Ré a reconhecer a existência do crédito da A. e o incumprimento do plano de recuperação da Ré aprovado e homologado por sentença proferida no âmbito do Processo Especial de Revitalização (doravante PER) e transitada em julgado, bem como no pagamento à A. da quantia de € 7.129,29 acrescida dos juros vincendos.
Para tanto, a A. alegou, em suma, que por sentença datada de 12/06/2013 e transitada em julgado em 2/12/2013, foi homologado o plano de recuperação da Ré, e por força desse plano o crédito que a A. detinha sobre a mesma, decorrente dos serviços prestados constantes das facturas juntas com aquele articulado como documentos nºs 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11, foi objecto de um perdão de dívida no valor de 50% - ou seja, o valor do crédito reclamado pela aqui recorrente naquele processo era no montante inicial de € 10.694,25 passando, por força da aprovação do plano, para € 5.347,12, tendo-se verificado vários incumprimentos desse plano por parte da Ré, que a A. especifica naquele articulado, pelo que é a Ré devedora à Autora da quantia de € 7.129,29 resultante da dedução do valor pago até à data da propositura da presente acção, que importa em € 3.564,96, ao valor originariamente em dívida de € 10.694,25.
Como bem se refere na decisão recorrida, importa começar por analisar os conceitos de caso julgado, para se compreender a natureza e o alcance da reclamação de créditos levada a cabo num PER, tendo para tanto citado o acórdão da RL de 16/12/2020 (proc. nº. 21940/18.5T8LSB, disponível em www.dgsi.pt), em cujo sumário se refere que: “IV - O caso julgado formal apenas tem força obrigatória dentro do processo em que a decisão é proferida. Por sua vez, o caso julgado material tem força obrigatória não só dentro do processo como também, e principalmente, fora dele.
V – A reclamação de créditos levada a cabo no PER, fase na qual por um lado não se detecta a verificação de um efectivo contraditório e por outro se constata que prima pela celeridade e superficialidade da apreciação dos créditos, destina-se a delimitar o universo de credores que podem participar nas negociações, bem como o universo de credores que têm direito ao voto e dessa forma apurar a base de cálculo das maiorias necessárias.
Assim, visto que a mesma tem uma função primordialmente processual, apenas goza de força de caso julgado formal valendo exclusivamente para efeitos do PER.”
No mesmo sentido se pronunciaram Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 7ª ed., 2019, Almedina, pág. 444; Fátima Reis Silva, in Processo Especial de Revitalização, Notas Práticas e jurisprudência mais recente, Abril de 2014, Porto Editora, pág. 45; Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, PER - O Processo Especial de Revitalização, Comentários aos artigos 17º-A a 17º-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Março de 2014, Coimbra Editora, pág. 78 e segs. e Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed., 2013, pág. 159 e segs.
Deste modo, concordamos com o Tribunal “a quo” quando, do acima exposto, conclui que, por esse motivo, a Ré impugnou (e bem) a alegação da A. de que o crédito por si reclamado fora “reconhecido”; ou seja, para se poder aferir da procedência da condenação no cumprimento de uma obrigação emergente de um contrato (pedidos formulados nas alíneas a) e c) da petição inicial), importa trazer aos autos os termos da relação negocial que existiu entre as partes, como aliás foi dito no despacho de 5/02/2022: data do contrato, quantidade/qualidade das obrigações que as partes terão assumido, datas de cumprimento, quais os seus valores ou conteúdo e eventuais incumprimentos.
Em conformidade com a jurisprudência e a doutrina supra citadas, o crédito reclamado pela A. no PER relativo à Ré não se mostra reconhecido por qualquer sentença de verificação de créditos ou por outra decisão judicial, ainda que não transitada em julgado.
A reclamação de créditos apresentada pela aqui A. no referido PER teve apenas por fim delimitar os credores que podiam participar nas negociações encetadas no âmbito desse processo especial e os credores com direito de voto, assumindo, por isso, tão-só força de caso julgado formal unicamente para efeitos desse PER.
Portanto, para que pudesse ser apreciado o pedido de reconhecimento da existência do crédito que a A. diz deter sobre a Ré e consequente condenação desta no pagamento à A. do valor de € 7.129,29, impunha-se que fosse alegado na petição inicial o acto ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que a A. invoca e pretende fazer valer.
Ora, analisada a petição inicial constata-se que a A. não indicou os termos da relação negocial que existiu entre as partes, o tipo de contrato celebrado entre a A. e a Ré, a data e duração do mesmo, a quantidade e o tipo de serviços alegadamente contratados, as datas de cumprimento, os valores e preços acordados e o que não foi cumprido, entre outros factos.
Ou seja, no articulado inicial, a A./recorrente não justificou nem demonstrou a existência do pretenso crédito que alega deter sobre a Ré/recorrida e que serve de base aos pedidos que formula nas alíneas a) e c) do petitório, designadamente, o de reconhecimento da existência desse crédito e a consequente condenação da Ré no pagamento da quantia de € 7.129,29.
Tanto assim é que a Mª Juíza “a quo” proferiu o despacho de 5/02/2022 acima referido, no qual concedeu à A. o prazo de 10 dias para se pronunciar sobre a eventual ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir (enunciando alguns dos elementos fácticos não alegados naquele articulado), por entender que, pretendendo a A. o cumprimento da obrigação pecuniária original emergente de suposto contrato (pedidos das alíneas a) e c)), não releva a matéria relacionada com o PER homologado, e ainda para informar se recebeu os valores documentados nos autos e, bem assim, se, em caso de cumprimento rigoroso do alegado PER, à data de 8/11/2021 teria o seu crédito fixado por acordo totalmente liquidado.
Notificada do aludido despacho, a A. interpretou-o como um convite para o aperfeiçoamento da petição inicial, pois logo no início do novo articulado que apresentou em 21/02/2022 e que apelidou indevidamente de “articulado superveniente”, refere o seguinte: “Notificada que foi para o aperfeiçoamento da Petição Inicial vem fazê-lo da forma como SEGUE: (…)”, consubstanciando tal articulado uma nova petição inicial “aperfeiçoada” nos termos atrás referidos.
Refere-se na decisão ora colocada em crise que, na petição inicial, não está minimamente individualizado o contrato invocado pela A., nem estão alegados os concretos serviços e/ou bens prestados, as quantidades, preços e datas acordados entre a A. e a Ré, havendo uma manifesta falta de individualização da causa de pedir naquele articulado, sendo que o incumprimento do PER não consolidou a pretensa relação jurídica entre as partes.
Acresce referir que a sentença recorrida se reporta apenas ao articulado inicial, desconsiderando a nova petição inicial “aperfeiçoada” (incorrectamente denominada de “articulado superveniente”) apresentada pela A. em resposta ao despacho de 5/02/2022.
Assim, importa apreciar “in casu” se existe falta de causa de pedir – não olvidando a nova petição inicial apresentada pela A. na sequência do aludido despacho que esta interpretou como um convite ao aperfeiçoamento do primeiro articulado - já que foi esse o fundamento para o Tribunal “a quo” considerar a petição inicial inepta.
Na verdade, aquilo que se questiona é se a factualidade descrita na petição inicial com interesse para a justa resolução do caso é suficiente (caso em que se deve revogar a decisão recorrida), se a descrição fáctica contém insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto, por nela não se encontrarem articulados todos os factos principais (circunstância em que se justificaria a prolação de um despacho de aperfeiçoamento) ou se, efectivamente, não foi concretizada a causa de pedir (hipótese em que a decisão proferida se mostra conforme às exigências processuais legais).
Relativamente à falta de causa de pedir, o vício em discussão apenas ocorre quando o autor não indica o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito ou da pretensão que aspira a fazer valer (cfr. acórdão da RE de 2/10/2018, proc. nº. 4036/18.7YIPRT, disponível em www.dgsi.pt).
A ineptidão da petição inicial fundada na falta ou ininteligibilidade da causa de pedir poderá ocorrer, na visão de Remédio Marques, quando “o autor substancia e não identifica em concreto os factos que servem de fundamento ao pedido de condenação” (in Acção Declarativa à luz do Código revisto, 2007, Coimbra Editora, pág. 276).
A ineptidão sobrevém quando não pode saber-se “qual a causa de pedir, ou, por outras palavras, qual o acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para enunciar o seu pedido” (cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., 1982, Coimbra Editora, pág. 309).
O Prof. José Alberto dos Reis sublinha ainda que “o que interessa, no ponto de vista da apresentação da causa de pedir, é que o acto ou facto de que o autor quer derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição”, adiantando ainda que “a petição pode ser redundante e difusa, pode conter factos e razões de direito impertinentes e desnecessários para o conhecimento da acção, sem que isso resvale na ineptidão. (…).
Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente (…). Quando a petição, sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga” (in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. II, Coimbra Editora, pág. 369, 371 e 372).
Em sentido idêntico se pronuncia Abílio Neto que avaliza a tese que só a omissão total do pedido ou da causa de pedir ou a sua formulação em termos de tal modo obscuros que não se compreenda qual a tutela jurídica pretendida pelo autor ou o facto jurídico em que alicerça o pedido, que não a mera imperfeição, equivocidade, incorrecção ou deficiência, constitui vício gerador de ineptidão (in Breves Notas ao Código de Processo Civil, 2005, pág. 61).
A jurisprudência dos nossos tribunais superiores afirma consensualmente que há falta de causa de pedir quando não são alegados os factos em que se funda a pretensão do autor; há insuficiência da causa de pedir quando aqueles factos são alegados, mas são insuficientes para determinar a procedência da acção. Isto é, a petição inicial apenas é inepta, por falta de causa de pedir, quando o autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível e insindicável a sua pretensão; a insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa petendi, não fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, de inepta a petição, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido. Efectivamente, uma petição prolixa não é o mesmo que uma petição inepta e causa de pedir obscura, imprecisa ou inadequada não é o mesmo que causa de pedir inexistente ou ininteligível. (cfr. acórdãos da RL de 2/02/2020, proc. nº. 33805/09.7YIPRT e da RC de 27/09/2016, proc. nº. 220/15.3T8SEI, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Como a pretensão da A. só é susceptível de derivar de um contrato ou de uma pluralidade de contratos de prestação de serviços de construção civil, tendo em conta a matéria alegada nos artºs 1º e 2º da nova petição inicial “aperfeiçoada” e o teor das facturas juntas com o articulado inicial (cfr. fls. 8 a 22vº), a causa de pedir não pode deixar de envolver o conteúdo das respectivas declarações negociais e os factos negativos ou positivos consubstanciadores do seu incumprimento por parte da Ré (cfr. acórdãos da RG de 27/06/2019, proc. nº. 30491/18.7YIPRT e da RP de 16/12/2004, proc. nº. 0435580, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
A própria A./recorrente reconhece, nas suas alegações, que na primeira petição inicial não concretiza a relação subjacente ao crédito que detém sobre a Ré, pese embora a junção das facturas concretizadoras desse crédito, e que não foram impugnadas pela Ré.
Para logo a seguir defender que, se o modo como se desenrolou a relação comercial entre as partes não está perfeita, se os contornos desse negócio não estão perfeitamente desenhados, se não estão devidamente concretizados os seus termos, se alguma deficiência é detectável no articulado, afigura-se de todo razoável o convite ao respectivo aperfeiçoamento previsto no artº. 590º, n.º 4 do NCPC, o que embora não tenha sido expressamente feito no supra mencionado despacho de 5/02/2022, foi como tal interpretado pela A., tanto assim é que esta apresentou uma nova petição inicial onde, para além dos factos alegados inicialmente, introduziu factualidade atinente à identificação do contrato celebrado entre as partes, o tipo de serviços prestados pela A. à Ré, remetendo para as facturas juntas aos autos, a quantia não paga pela A. até à data de entrada do PER correspondente a serviços efectivamente prestados e os pagamentos efectuados (inclusive na pendência da presente acção) em cumprimento do alegado PER.
Da análise da petição inicial “aperfeiçoada” verifica-se que, na generalidade, os factos essenciais se encontram reflectidos no enunciado da acção nos termos supra referidos, designadamente a actividade exercida pela A., a celebração de contratos de prestação de trabalhos de empreitada e de serviços de mão de obra em várias obras da Ré, tudo como consta das facturas juntas aos autos como doc. nºs 2 a 11 da primeira petição inicial, nas quais são indicadas as respectivas datas de emissão e de vencimento, quantidades de trabalhos e respectivos valores unitários, os montantes totais de cada uma, sendo ainda identificadas as obras da Ré onde foram prestados os serviços pela A., pese embora na maior delas não sejam enunciados pormenorizadamente o tipo de trabalhos ou serviços prestados nessas obras, fazendo-se menção apenas a “Trabalhos diversos de construção civil”, “Mão-de-obra oficial”, “Mão-de-obra servente”, “Aplicação de impermeabilização em fachadas”, “Abertura de carotes” e “Fornecimento e aplicação de materiais”.
É verdade que a A. poderia ter sido mais clara no delinear do fundamento da sua pretensão, designadamente ao nível da descrição sumária das condições contratuais ajustadas, bem como descriminar as diversas facturas em causa (não obstante estas constarem dos autos), com a indicação das respectivas datas de emissão e de vencimento e o valor de cada, esclarecendo ainda, de forma pormenorizada, quais os concretos trabalhos e serviços prestados pela A. nas obras da Ré, identificando na petição inicial cada uma dessas obras.
Vem sendo entendido por alguma jurisprudência que os elementos constitutivos do direito de crédito do autor não podem ser substituídos pela simples remissão para o conteúdo das facturas emitidas e juntas aos autos (principalmente quando as mesmas se ficam por uma descriminação vaga e genérica), pois as mesmas nem sempre reproduzem o sentido vinculante do acordo celebrado e têm uma vocação essencialmente contabilística e fiscal, sem embargo da sua configuração prioritária como meio de prova (cfr. acórdãos da RC de 15/10/2013, proc. nº. 2445/05.0TBLRA e da RE de 2/10/2018 acima referido, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Porém, salvo o devido respeito por opinião contrária, não poderemos afirmar, a nosso ver, que a origem do crédito da A. e sua definição se encontram totalmente subtraídos da petição inicial, tendo em atenção a matéria alegada no novo articulado “aperfeiçoado” e o que se mostra escrito nas facturas juntas aos autos, para as quais a A. remete. Da matéria alegada nesse articulado, que não foi tido em conta pelo Tribunal “a quo”, percebe-se perfeitamente que a A. e a Ré são sociedades que se dedicam à construção civil, tendo a Ré contratado a Autora para efectuar trabalhos de construção civil em várias obras suas, identificadas nas aludidas facturas e onde também se mostram minimamente referenciados os trabalhos e serviços prestados.
Entendemos, pois, que na petição inicial “aperfeiçoada” o fundamento da acção não falta nem é ininteligível, e tanto assim é que a Ré, em ambos os articulados que apresentou (contestação e resposta à petição inicial “aperfeiçoada”), impugnou a factualidade alegada pela A. como causa de pedir, demonstrando assim ter apreendido o alcance da causa de pedir, tendo inclusive, na pendência da acção, procedido ao pagamento de todas as prestações vencidas no âmbito da execução do PER e que se encontravam em dívida, juntando aos autos os respectivos documentos comprovativos.
De salientar que só a falta total (e já não a escassez) ou a ininteligibilidade da causa de pedir é que geram a ineptidão da petição inicial.
Este entendimento enquadra-se com o estatuído no nº. 3 do artº. 186º do NCPC, pois mesmo que o réu, na contestação, invoque a ineptidão da petição inicial com fundamento na falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir - o que pode indiciar uma certa imperfeição, prolixidade, confusão ou incompletude da petição - tal invocação não é atendível se se concluir que ele, não obstante tais deficiências, compreendeu a pretensão do autor e as consequências que dela se pretende retirar. Neste caso, a arguição de ineptidão será julgada improcedente, se se chegar à conclusão que o réu interpretou de forma certa a petição inicial, mesmo que se reconheça que a mesma é uma peça confusa, imprecisa ou nebulosa (cfr. acórdãos da RL de 18/05/2017, proc. nº. 5484/15.0T8FNC, da RC de 15/05/2007, proc. nº. 7630/05.2TBLRA e de 27/09/2016 acima referido, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Ora, no caso presente, atenta a matéria alegada pela A. na nova petição inicial “aperfeiçoada” nos termos atrás expostos e o teor das facturas juntas aos autos, sendo a pretensão da A. suficientemente perceptível, não estamos perante ineptidão da petição inicial, mas antes perante uma questão de (im)procedência da acção, sendo as questões suscitadas pelas partes dilucidadas a final em sede de decisão de mérito.
Mas mesmo a aceitar-se a posição plasmada na sentença recorrida, atendendo às razões nela expostas, somos em crer que não se trata de uma questão de ineptidão da petição inicial, mas sim de uma petição em que a descrição fáctica apenas contém insuficiências ou imprecisões na exposição ou na concretização da matéria de facto alegada, por nela não estarem presentes determinados factos constitutivos da obrigação. No caso em apreço, não existe, na petição inicial, uma escassez total de factos integradores da causa de pedir; mesmo nesta perspectiva existiria (apenas) uma causa de pedir incompleta ou deficiente, que poderia comprometer o êxito da acção.
Ora, perante tal quadro, coloca-se a questão de saber se, ao invés de ter sido determinada a notificação da A. para se pronunciar sobre a eventual ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, não deveria antes ter sido proferido despacho que a convidasse a aperfeiçoar a petição inicial.

A reforma da lei processual civil de 2013 veio acentuar ainda mais o dever de gestão processual do juiz consagrado no artº. 6º do NCPC, nos termos do qual:

«1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.»

Por sua vez, estabelece o artº. 590º do NCPC o seguinte:
«1 - Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.
2 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º;
b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;
c) Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.
3 - O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.»

Escreveu-se no acórdão desta Relação de 26/01/2017 (proc. nº. 1927/14.8TBGMR, disponível em www.dgsi.pt), em que a aqui relatora interveio como adjunta, o seguinte:
«A este propósito refere a Dra. Gabriela Cunha Rodrigues, na comunicação sobre a ação declarativa comum, nos Cadernos do CEJ, Vol. I a páginas 160 que «tendo em conta as posições assumidas pelas partes, se os articulados oferecidos apresentarem insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que justifiquem a prolação de despacho pré-saneador, tem lugar um convite ao aperfeiçoamento fáctico das peças apresentadas.
Da nova redação do artigo 590.º, n.º 4, consta a expressão “Incumbe ao juiz convidar as partes”.
A alínea b) do n.º 2 prevê que o juiz profira despacho destinado a “providenciar pelo aperfeiçoamento”.
Na interpretação deste preceito, não podemos deixar de extrair da exposição de motivos da Proposta de Lei nº 113/XII o seguinte trecho:
“Concluída a fase dos articulados, o processo é feito concluso ao juiz, cabendo a este, antes de convocar a audiência prévia, verificar se há motivos para proferir despacho pré-saneador.
O âmbito do despacho é clarificado e ampliado. Continuando a destinar-se a providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias e pelo aperfeiçoamento dos articulados, fica estabelecido o carácter vinculado desse despacho quanto ao aperfeiçoamento fáctico dos articulados”.
O legislador deixou aqui uma nota clara no sentido de estarmos perante um despacho vinculado, cuja omissão é suscetível de gerar nulidade – artigo 195.º (no âmbito do anterior n.º 2 do artigo 508.º (atual artigo 590.º, n.º 3), a jurisprudência já apontava para o exercício de um poder vinculado e não discricionário do juiz.»
Também o Dr. José Lebre de Freitas (A ação declarativa comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª Edição, página 156 e seg.) afirma que «o poder do juiz (de convidar ao aperfeiçoamento) era, no CPC revogado, discricionário (cfr. art. 152º-4) e, por isso, nem o despacho que o exercesse era recorrível (artigo 630º-1) nem o seu não exercício podia fundar uma arguição de nulidade (artigo 195º).
O novo código atribui ao juiz um poder vinculado que o juiz tem o dever de exercer quando ocorram nos articulados “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (“incumbe ainda ao juiz convidar as partes …”)».
Como vimos, estamos a tratar, em relação ao tribunal, de um poder vinculado. De uma manifestação do dever de cooperação tendente à realização da finalidade última do processo, que é a justa composição do litígio (artº. 7º, nº. 1 do NCPC). E porque assim é, ou seja, porque o tribunal só prossegue esse objectivo, é que está vinculado a tudo fazer, dentro dos poderes que a lei lhe confere, para prevenir resultados que fiquem aquém ou contrariem aquela finalidade. Mesmo que para isso tenha de exercer uma função assistencial. Não em benefício de uma das partes ou mesmo de ambas, mas tão só da realização da justiça (cfr. acórdão da RG de 9/03/2017, proc. nº. 536/11.8TBPTL, disponível em www.dgsi.pt).
Entendendo-se assim as coisas, neste caso, e considerando o disposto nos citados artºs 6º e 590º, nº. 4 do NCPC, impendia sobre a Mª Juíza “a quo” o dever de convidar a A. a completar e/ou aperfeiçoar o seu articulado, providenciando, assim, pelo suprimento de tais insuficiências ou imprecisões.
No entanto, como já se referiu, tendo a A. interpretado o despacho de 5/02/2022 como um convite para o aperfeiçoamento da petição inicial nos termos supra expostos, sendo que na sequência do mesmo apresentou um novo articulado, que apelidou indevidamente de “articulado superveniente”, mas que verdadeiramente é uma nova petição inicial “aperfeiçoada”, entendemos que não deverá ser proferido novo despacho de convite ao aperfeiçoamento, tanto mais que esse desiderato já foi alcançado com a apresentação daquele novo articulado.
Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, terá de proceder o recurso de apelação interposto pela Autora e, em consequência, determinar-se o prosseguimento dos autos para apreciação dos pedidos formulados na petição inicial.
*
SUMÁRIO:

I) - Há falta de causa de pedir quando não são alegados os factos em que se funda a pretensão do autor; há insuficiência da causa de pedir quando aqueles factos são alegados, mas são insuficientes para determinar a procedência da acção.
II) - A petição inicial apenas é inepta, por falta de causa de pedir, quando o autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível e insindicável a sua pretensão; a insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa petendi, não fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, de inepta a petição, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido.
III) - Só a falta total (e já não a escassez) ou a ininteligibilidade da causa de pedir é que geram a ineptidão da petição inicial.
IV) - Este entendimento enquadra-se com o estatuído no artº. 186º, nº. 3 do NCPC, pois mesmo que o réu, na contestação, invoque a ineptidão da petição inicial com fundamento na falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir - o que pode indiciar uma certa imperfeição, prolixidade, confusão ou incompletude da petição - tal invocação não é atendível se se concluir que ele, não obstante tais deficiências, compreendeu a pretensão do autor e as consequências que dela se pretende retirar. Neste caso, a arguição de ineptidão será julgada improcedente, se se chegar à conclusão que o réu interpretou de forma certa a petição inicial, mesmo que se reconheça que a mesma é uma peça confusa, imprecisa ou nebulosa.
V) - O dispositivo do artº. 590º, nº. 2, al. b) e nº. 4 do NCPC atribui ao juiz um poder vinculado que o mesmo tem o dever de exercer quando ocorram nos articulados insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, devendo providenciar pelo suprimento dessas deficiências por convidar as partes ao aperfeiçoamento dos respectivos articulados.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Autora A. F. Unipessoal, Lda. e, em consequência, revogam a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos para apreciação dos pedidos formulados pela Autora.

Custas pela recorrida.
Notifique.
Guimarães, 27 de Outubro de 2022
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

Maria Cristina Cerdeira (Relatora)
Raquel Baptista Tavares (1ª Adjunta)
Margarida Almeida Fernandes (2ª Adjunta)